Resumo: A Lei Complementar 150 de 1º de junho de 2015 regulamentou a Emenda Constitucional 72 de 2 de abril de 2013, apelidada de “PEC dos Domésticos”, trazendo normas para a promoção da igualdade de direitos trabalhistas entre os trabalhadores domésticos e os demais trabalhadores urbanos e rurais. No entanto, trouxe um retrocesso social no artigo 46, o qual revogou o inciso I do artigo 3º da Lei 8.009 de 29 de março de 1990, excluindo o direito dos domésticos de penhorar o imóvel residencial em que trabalham, se for bem de família.
Palavras-chave: inconstitucionalidade. inconvencionalidade. vedação. retrocesso. domésticos.
Abstract: Complementary Law 150 of June 1, 2015 regulated the Constitutional Amendment 72 of April 2, 2013, dubbed “PEC dos Domésticos” bringing standards to promote equal labor rights for domestic workers and other urban and rural workers. However, brought a social backlash in article 46, which repealed in Item I of article 3 of Law 8,009 of March 29, 1990, excluding the right of domestic pledging the residential property in which they work, if properly family.
Keywords: unconstitutional. inconvencionalidade. prohibition. backlash. domestic.
Sumário: Introdução. 1. Liame entre a escravidão e o trabalho doméstico. 2. A impenhorabilidade do bem de família frente aos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias. 3. A incidência do princípio da vedação do retrocesso social. 4. A incidência do princípio da igualdade material. 5. A inconstitucionalidade ou inconvencionalidade parcial do art. 46 da LC 150/2015. 5.1. A regularidade formal do processo legislativo. 5.2. A necessidade de declaração de inconstitucionalidade. 5.3. A necessidade de controle de convencionalidade. Conclusão.
Introdução
A Lei Complementar 150, publicada no Diário Oficial da União no dia 02 de junho de 2015 trouxe a regulamentação da tão celebrada “PEC dos Domésticos”, que é o apelido que foi dado à EC 72 de 2 de abril de 2013.
Trata-se de um diploma normativo que vem na esteira do consenso em torno da necessidade de promoção constante da valorização da dignidade humana, promovida tanto no plano internacional, especialmente após as guerras mundiais, como no plano interno brasileiro, notadamente após a Constituição de 1988, pois tem o objetivo de romper com uma das odiosas reminiscências da espúria época da escravidão, que é a desigualdade de tratamento legislativo entre os domésticos e os demais trabalhadores.
Entretanto, o objetivo deste trabalho não é o de explicar ou elogiar os avanços promovidos pela LC 150/2015, mas sim, demonstrar, pelo método dedutivo, da maneira mais concisa e objetiva possível, a manifesta inconstitucionalidade do seu art. 46, o qual revogou o inciso I do art. 3º da Lei do Bem de Família (Lei 8.009/90), excluindo a possibilidade de penhora do bem de família para créditos de trabalhadores da própria moradia do empregador doméstico e das respectivas contribuições previdenciárias.
Faz-se necessário, para tanto, tecer uma breve análise da origem do trabalho doméstico, para demonstrar a sua forte ligação com o regime da escravatura, que vigorou no Brasil até pouco antes do fim do Império, depois disso será feita a análise do próprio instituto “bem de família” e sua relação com o princípio da vedação do retrocesso e da igualdade material, para ao final tecer considerações sobre a necessidade de declaração de inconstitucionalidade ou inconvencionalidade da referida revogação.
1. Liame entre a escravidão e o trabalho doméstico
Até o dia 13 de maio de 1888[1], era possível no Brasil que um ser humano fosse proprietário de outro, e este outro (o “servus”) era equiparado a uma “coisa” (“servus est res”)[2], que podia ser comprada, vendida e, até mesmo, ser submetida a trabalhos forçados sob pena de castigo corporal[3]. Era o regime da escravidão.
O regime escravista brasileiro foi especialmente cruel, pois não obstante a humanização decorrente do cristianismo, cujos efeitos se manifestaram ainda na antiga Roma[4], o art. 60 do Código Criminal do Império, em sua redação original de 1830, previa penas de açoites e galés para escravos, a qual estava abolida para os não escravos desde a Constituição Imperial de 1824.
Esta possibilidade de castigo atroz para escravos vigorou até o dia 15 de outubro de 1886, com o advento da Lei 3.310, a qual modificou a redação do dispositivo[5] como resultado da repercussão que teve a morte de dois escravos que tinham recebido a pena de 300 açoites cada um[6].
Tratou-se de uma escravidão que, inegavelmente, era baseada na ideia de raça, e foi assim porque os povos escravizados tinham, em sua imensa maioria, origem africana, cuja principal característica antropológica dos nativos daquele continente é a pele de cor “negra”. A escravidão, portanto, era indubitavelmente baseada na ideologia racista, a qual é a mais desumana, terrível e perigosa de todas, pois é uma arma capaz de destruir as nações[7].
Durante este período era normal que as casas de famílias abastadas tivessem escravos e escravas, sem nenhuma proteção contra abusos de todas as ordens, trabalhando no âmbito das residências de seus senhores e sinhás, desempenhando todo tipo de atividade, tais como:, cozinheiros, camareiros, cocheiros, babás, amas de leite, mucamas, lavadeiras etc. E após a abolição da escravatura, no final do século XIX e início do século XX, cerca de 70% da população ex-escrava continuou trabalhando no âmbito doméstico[8].
A escravidão brasileira foi composta em um primeiro momento por índios[9] e, posteriormente pelos povos originários do longo processo de escravização da África[10], e este dado histórico é a origem das desigualdades raciais existentes no Brasil, sendo fato público e notório que até hoje, a profissão de “doméstica” é desempenhada em sua ampla maioria por mulheres negras.
Segundo dados do Dieese[11]
“O trabalho doméstico no Brasil é, na maioria das vezes, exercido pela mulher negra. Entre 2004 e 2011, a proporção de mulheres negras ocupadas nos serviços domésticos no país cresceu de 56,9% para 61,0%, ao passo que entre as mulheres não negras observou-se uma redução de 4,1% pontos percentuais, com a participação correspondendo a 39,0%, em 2011. Em todas as regiões do país, a tendência de elevação do percentual de trabalhadoras domésticas negras esteve presente, exceto para a região Norte, onde passou de 79,6%, em 2004, para 79,3%, em 2011. A região Sudeste registrou o maior aumento de mulheres negras ocupadas no trabalho doméstico no período, com o percentual correspondendo a 52,3%, em 2004, e atingindo 57,2%, em 2011 (Gráfico 2).”
Esta desigualdade que ocorre no mundo do “ser”, no plano fático, não é a única consequência da escravidão, tendo em vista que no plano do “dever ser”, no plano do “Direito Posto”[12], a própria Constituição, chamada por Ulysses Guimarães de “Cidadã”, cedia à herança escravista no parágrafo único do art. 7º, sendo que até o advento da EC 72 de 2 de abril de 2013, dava menos direitos aos trabalhadores domésticos do que os demais trabalhadores, ou seja, autorizava expressamente a discriminação negativa dos domésticos, que como vimos, na prática se revela como discriminação contra negros, mais especificamente contra mulheres negras e pobres que possuem baixo grau de escolaridade e informações e por conta disso, se sujeitam a trabalhar sem o reconhecimento dos mesmos direitos dos demais trabalhadores.
Desde o período da escravidão, o trabalho doméstico desempenhado por terceiros (que não os membros da própria família) sempre foi importante para muitas casas de família. Todavia, mesmo com esta importância, trata-se de uma profissão que ainda é alvo de muita discriminação, e quando a legislação falha, infelizmente cabe aos juízes resolver, tendo como norte a Constituição e o valor supremo da dignidade da pessoa humana.
A LC 150/2015, seguindo esta linha de promoção da igualdade entre os domésticos e os demais trabalhadores, inegavelmente trouxe significativos avanços na busca pela isonomia material, mas cometeu um “erro trágico” ao criar uma discriminação negativa na parte do art. 46, que revogou o inciso I do art. 3º da Lei 8.009/90, o qual possuía nítido caráter social, por ser norma que protege os salários dos trabalhadores frente à propriedade privada dos patrões.
2. A impenhorabilidade do bem de família frente aos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias
A impenhorabilidade do bem de família surgiu exatamente como um meio de proteger a família, em um primeiro momento, ainda carregada da visão liberal clássica tradicional, como uma “instituição”, e não como “instrumento de promoção da dignidade humana”[13].
Depois disso ocorreu uma primeira evolução deste entendimento: muito mais do que a proteção da família, notadamente matrimonialista, reconhece-se de forma pacífica na doutrina e na jurisprudência[14], que o bem de família visa proteger quaisquer manifestações de família, seja ela matrimonial, formalizada pelo casamento, seja ela informal, caracterizada pela união estável, seja ela heteroafetiva ou homoafetiva[15].
Sobreveio uma segunda evolução do entendimento sobre o bem de família, o qual tornando-se consenso doutrinário que sua principal função é proteger a parcela do “mínimo existencial”[16] relativa ao direito constitucional fundamental à moradia, a que todo ser humano tem direito[17]. Por conta disso, passou-se a entender que o bem de família não se restringe a dar proteção às famílias apenas, mas também à pessoa que vive sozinha (o “single”), independentemente do seu estado civil, o que ressalta o fato de ter por principal função a proteção da dignidade humana[18].
Tal entendimento restou consolidado no enunciado 364 da Súmula da jurisprudência predominante do STJ, com a seguinte redação: “O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas”.
Diante disso, tecnicamente não seria mais adequado falar em “bem de família”, mas sim, talvez cunhar uma nova nomenclatura, considerando que é um direito ligado ao “patrimônio mínimo” que não se limita a proteger famílias, tratando-se, portanto, de um direito inerente ao ser humano, vivendo este sozinho ou acompanhado.
A impenhorabilidade do bem de família está positivada no art. 1º da Lei 8.009/90, o qual possui a seguinte redação:
“Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.
Parágrafo único. A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados.”
Entretanto, tal direito não é absoluto, tendo em vista que esta mesma lei traz exceções no seu art. 3º, sendo que o que interessa para este trabalho, é uma destas exceções, o inciso I, o qual foi revogado pelo: art. 46 da LC 150/2015, o qual possuía a seguinte redação:
“Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
I – em razão dos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias; (Revogado pela Lei Complementar nº 150, de 2015)”
Tratava-se de um direito de caráter social, pois protegia os créditos trabalhistas e previdenciários dos empregados domésticos. Não obstante, o art. 46 da LC 150, por seu turno, trouxe o seguinte: “Art. 46. Revogam-se o inciso I do art. 3º da Lei no 8.009, de 29 de março de 1990, e a Lei no 5.859, de 11 de dezembro de 1972.” (grifo nosso)
As exceções que foram previstas no art. 3º da Lei 8.009/90 existem como resultado de um sopesamento (ponderação) de princípios em abstrato, feita pelo Legislador democraticamente legitimado[19], como forma de não sacrificar totalmente outros valores também protegidos constitucionalmente, já que cada regra tem por traz (ou deveria ter) um princípio que a fundamenta[20].
O direito constitucional contraposto ao direito à moradia, materializado no agora revogado inciso I do art. 3º da Lei 8.009/90 – e não menos importante –, é o direito fundamental dos trabalhadores domésticos à tutela adequada e efetiva[21], efetividade esta que diz respeito à satisfação dos créditos alimentares desta classe de trabalhadores ainda tão discriminada, portanto, nítida norma de caráter social.
Não se sabe ainda qual é o mistério sobre o motivo que levou o Legislador a inserir norma tão estranha, justamente em uma lei de caráter protetivo, pois apesar da importância social do inciso I do art. 3º da Lei 8.009/90, ele foi extirpado do ordenamento jurídico, de modo que a sociedade não pode saber e nem deduzir qual foi o interesse público subjacente a tal medida, se é que ele existiu.
O resultado é que não há mais previsão expressa da possibilidade de penhora do bem de família para satisfação de créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias, tendo o Legislador ponderado pela prevalência do direito à moradia do empregador doméstico sobre o direito à tutela jurisdicional efetiva atinente à satisfação dos créditos alimentares dos empregados domésticos.
3. A incidência do princípio da vedação do retrocesso social
No âmbito da proteção internacional dos direitos humanos, convencionou-se chamar o princípio da vedação do retrocesso pelo nome de efeito cliquet, termo francês usado pelos alpinistas, que significa que o alpinista, ao praticar o seu esporte, deve sempre subir, não pode retroceder no seu avanço[22].
Trata-se de uma norma principiológica que “veda aos Estados que diminuam ou amesquinhem a proteção já conferida aos direitos humanos”[23], ou seja, o Estado deve sempre evoluir, sempre aumentar a proteção de direitos sociais, que são direitos humanos de segunda dimensão[24], e nunca retroceder.
Esta norma é extraída do princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), do princípio da máxima efetividade (art. 5º, § 1º) e princípio do Estado democrático e social de direito, dentre outros[25].
A doutrina mais moderna de Direito Constitucional reconhece que a Constituição adotou implicitamente o princípio da vedação do retrocesso social[26]. Há interessante posição que o fundamenta em uma interpretação sistemática do art. 3º, I e III, e art. 170, caput e incisos VII e VIII da Constituição da República[27].
Pode-se entender, nesta linha de raciocínio, que o direito fundamental ao desenvolvimento, conforme trabalhado por Robério Nunes dos Anjos Filho[28], no sentido de direito ao desenvolvimento econômico sem desprezar o desenvolvimento social, da mesma forma que sustenta Amartya Sen, no livro Desenvolvimento como liberdade[29], é também fundamento para a vedação do retrocesso social.
Além disso, o art. 5º, § 2º da CF traz uma abertura material para o reconhecimento de outros direitos decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Isto inegavelmente inclui o princípio básico do direito dos povos que ordena “os povos devem honrar os direitos humanos”[30].
O princípio da vedação do retrocesso social é implícito na Constituição, mas está em nosso ordenamento, como decorrência da chamada “cláusula de progressividade” prevista em tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil e, por conta disso, a República Federativa do Brasil encontra-se proibida de retroceder em matéria de direitos sociais, os quais também são cláusulas pétreas[31].
Esta obrigação estatal existe por força da adesão ao Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômico Sociais e Culturais, também conhecido como “Protocolo de San Salvador” (Decreto 3.321/99), firmado no âmbito da OEA (Organização dos Estados Americanos), e que, em seu art. 1º impõe aos poderes públicos a adoção “progressiva” de medidas de implementação dos direitos sociais:
“Os Estados Partes neste Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos comprometem‑se a adotar as medidas necessárias, tanto de ordem interna como por meio da cooperação entre os Estados, especialmente econômica e técnica, até o máximo dos recursos disponíveis e levando em conta seu grau de desenvolvimento, a fim de conseguir, progressivamente e de acordo com a legislação interna, a plena efetividade dos direitos reconhecidos neste Protocolo”.
O Brasil também se obrigou a não retroceder em direitos sociais em razão da adesão ao Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, vigente no território nacional por força do Decreto 591/92, todos com status supralegal, isto é, superior a leis ordinárias e a leis complementares e a leis ordinárias, conforme decidiu o STF, cujo artigo 2, parágrafos 1 e 2 trazem a seguinte redação:
“1. Cada Estado Parte do presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas.
2. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a garantir que os direitos nele enunciados e exercerão em discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação.”
André de Carvalho Ramos ensina que a “cláusula de progressividade” possui duas facetas: 1º) dever de gradualidade, de sempre evoluir e concretizar mais direitos sociais; 2º) dever de garantir o progresso até então alcançado, ou seja, a proibição do retrocesso social[32].
No mesmo sentido Flávia Piovesan:
“Da aplicação progressiva dos direitos econômicos, sociais e culturais resulta a cláusula de proibição do retrocesso social, como também da inação ou omissão estatal, na medida em que é vedado aos Estados o retrocesso ou a inércia continuada no campo da implementação dos direitos sociais.”
Portanto, é garantido que tanto no plano constitucional, como no plano do Direito Internacional, pelos tratados de direitos humanos econômicos, sociais e culturais que o Brasil incorporou, é vigente o princípio da vedação do retrocesso social no ordenamento jurídico brasileiro, portanto, ele também se faz incidente nos direitos dos empregados domésticos.
Mais uma vez se reconhece e se louva o avanço que trouxe a LC 150/2015, no entanto, não pode ela suprimir direitos que já tinham sido conquistados anteriormente. O novel diploma não pode pretender estabelecer uma barganha, como se fosse uma troca dos velhos pelos novos direitos, mas sim, deve ser uma soma, um plus.
Ademais, a supressão do direito de penhora do imóvel do empregador doméstico em nada contribui com o ajuste das contas públicas que vem promovendo o Governo Federal sob o fundamento de que se trata de um preço de transição para uma situação melhor[33], e é medida que revela um preocupante e sorrateiro[34] retrocesso social.
4. A incidência do princípio da igualdade material
A necessidade de garantir a igualdade de condições entre todos os seres humanos, embora com certas divergências, não deixa de ser um consenso filosófico presente em todas as vertentes de pensamento democrático e ideologias econômicas modernas[35]. Nas constituições liberais o princípio da igualdade era meramente formal, no sentido de que as pessoas eram iguais perante a lei, embora pudessem ser desiguais em todos os demais aspectos da vida, concepção esta que gerou profundas crises sociais.
Posteriormente, com a Constituição Mexicana de 1917 e com a Constituição Alemã de 1919 passou-se a buscar a promoção da igualdade material (substancial), linha esta que é adotada pela Constituição brasileira de 1988, a qual autoriza medidas legislativas desiguais, desde que com o objetivo de promover a melhoria das condições de vida dos grupos menos favorecidos social e historicamente[36].
Obviamente que a relação entre o empregador doméstico e o empregado doméstico é desigual, portanto, a promoção da igualdade material autorizaria, neste caso, a edição de normas com discriminações positivas, ou seja, normas que melhorem as condições do empregado doméstico, que é o desfavorecido da relação; ao mesmo tempo que, por outro lado, proíbe normas que trazem vantagens desproporcionais para o empregador doméstico[37].
A revogação da possibilidade de penhora do bem de família do empregador doméstico ignora a necessidade de busca pela igualdade material e, inclusive, a situação é tão extrema que viola até mesmo a igualdade formal, considerando que o próprio art. 3º da Lei 8.009/90 favorece outros tipos de credores que estão em posição social muito melhor do que a empregada doméstica, dando tratamento desigual perante a lei[38].
A atitude legislativa discriminatória se agrava pelo fato de que atinge uma classe historicamente oprimida, cujas raízes remontam à época da escravidão, por isso, em nome da igualdade formal e material, inclusive da igualdade racial, a parte do art. 46 da LC 150/2015 que revoga o inciso I do art. 3º da Lei 8.009/90 deve ser erradicada do ordenamento jurídico brasileiro, sendo inclusive incompatível com a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1965 e com a Lei 12.288/2010.
A norma revogadora não é compatível com os modernos ditames da democracia, a qual não se confunde com o exercício da tirania de uma maioria, ou de uma elite dominante, contra uma minoria desprotegida[39]. A revogação em questão, como visto, ataca na prática, classes historicamente muito discriminadas, sendo o perfil atingido composto em sua grande maioria por mulheres, negras e pobres, portanto, a violação da isonomia material é agravada pelo fato de ser fruto de um péssimo continuísmo consuetudinário legislativo[40].
Se houve erro ou má-fé do legislador talvez nunca se saberá, mas é certo que o Legislador tem que se preocupar com as consequências práticas de suas normas, especialmente qual grupo social exatamente será mais atingido. Se permanecer no ordenamento, e os tribunais ignorarem a manifesta inconstitucionalidade da norma em questão, em muitos casos restará suprimido o direito fundamental de empregadas domésticas à tutela jurisdicional efetiva para a satisfação de seus créditos salariais e previdenciários, enquanto o patrão e a sinhá, que a explorou gratuitamente, viverão intangíveis no aconchego de seu lar.
Reconhece-se, por óbvio, o caráter fundamental do direito à moradia do empregador doméstico, e que pode se argumentar que se ele está prestes a perder o único imóvel para satisfazer o crédito de seus empregados domésticos, possivelmente ele estará em condições financeiras não muito melhores do que a daqueles.
Contudo, este direito deve ceder diante do peso maior que têm o direito dos empregados domésticos, tendo em vista que, conforme demonstrado, tal classe é vítima de séculos de segregação, inclusive com discriminações herdadas da época da escravatura, além do fato de ser moralmente justificável o sacrifício daquele que explorou o trabalho alheio sem pagar, se locupletando ilicitamente dos serviços de um humilde trabalhador de boa-fé.
Sobre o princípio processual da efetividade, ensina Fredie Didier Jr.[41], apoiado em Marcelo Lima Guerra:
“… os direitos devem ser, além de reconhecidos, efetivados. Processo devido é processo efetivo. O princípio da efetividade garante o direito fundamental à tutela executiva, que consiste ‘na exigência de um sistema completo de tutela executiva, na qual existam meios executivos capazes de proporcionar pronta e integral satisfação a qualquer direito merecedor de tutela executiva’.” (grifo do autor)
É certo que a concretização dos direitos sociais deve se dar na maior medida possível, pois o Estado possui recursos limitados, por isso a sua concretização é, como visto, progressiva, e não imediata, e a isso se convencionou chamar de reserva do possível[42]. Porém, qual seria a economia que o Estado brasileiro estaria promovendo com a supressão deste direito dos domésticos?
A resposta é facilmente deduzida: nenhuma. A relação entre empregador doméstico e empregado doméstico é privada, onde se vislumbra claramente uma classe com maior poderio econômico, a do empregador, em conflito com uma classe vítima de uma profunda discriminação fática e legislativa que se estende há séculos, que é a classe dos empregados domésticos, discriminação esta que se agrava devido a seus inegáveis contornos raciais.
A atitude do Legislador acaba por macular a nobreza da promoção da igualdade em direitos trabalhistas promovida pela LC 150/2015. A revogação do inciso I do art. 3º da Lei 8.009/90 é uma renitência legislativa, uma teimosia de quem se nega a romper definitivamente o liame desta digna profissão com a espúria era da escravidão no Brasil.
5. A inconstitucionalidade ou inconvencionalidade parcial do art. 46 da LC 150/2015
Este capítulo trata das medidas a serem adotadas para o afastamento da parte do art. 46 da LC 150/2015 que revogou o inciso I da Lei 8.009/90. Para tanto foi dividido em três tópicos, sendo que o primeiro trata da regularidade formal do processo legislativo; o segundo da necessidade de declaração de inconstitucionalidade; e o último da necessidade de controle de convencionalidade.
5.1. A regularidade formal do processo legislativo
Primeiramente cumpre observar que embora cause estranheza em um primeiro momento se deparar com uma lei complementar (150/2015) modificando uma lei ordinária (8.009/1990), por inobservância do paralelismo de formas, desde já é importante esclarecer que não há nenhum problema em casos como este.
A LC 150/2015 traz algumas matérias que são reservadas constitucionalmente à lei complementar[43] e outras que não, e por isso, por economia processual legislativa, o Legislador editou um único diploma legislativo, e as normas com conteúdo material de lei ordinária[44] poderão ser alteradas por lei ordinária.
Além disso, embora fosse dispensável[45], o legislador inseriu norma no art. 45 da LC 150/2015, esclarecendo esta possibilidade: “Art. 45. As matérias tratadas nesta Lei Complementar que não sejam reservadas constitucionalmente a lei complementar poderão ser objeto de alteração por lei ordinária.”.
Ademais, não há nenhum vício no trâmite do processo legislativo que comprometa a validade formal da norma.
5.2. A necessidade de declaração de inconstitucionalidade
Robert Alexy ensina que “quem quiser afastar-se de um precedente, assume a carga da argumentação”[46], da mesma forma, quem pretende afastar uma regra, assume a carga e o ônus da argumentação, por isso se recorreu a argumentos de isonomia e de progressividade de direitos sociais, para que ficasse demonstrado com forte carga argumentativa o porquê da necessidade de afastar a regra que limitou um direito fundamental dos empregados domésticos.
Portanto, fixada a premissa da inconstitucionalidade, resta enfatizar que existem sólidos fundamentos para se proceder a busca da declaração da inconstitucionalidade material da parte do art. 46 que revoga “o inciso I do art. 3º da Lei no 8.009, de 29 de março de 1990”, pois como foi visto, viola a isonomia formal e material, além do princípio constitucional da vedação do retrocesso social.
Melhor seria que o legislador corrigisse rapidamente pela via legislativa este erro que cometeu, mas enquanto isso, cabe inclusive esta matéria ser objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade perante o STF, mas para isso, a sociedade e, especialmente a classe atingida, depende da boa vontade alheia, para que algum dos legitimados do art. 103 da CF se sensibilize com a situação, e ajuíze a ação de controle concentrado de constitucionalidade.
Enquanto nenhum dos legitimados se movimenta, no entanto, cabe a cada juiz ou tribunal afastar esta norma em cada caso concreto, no exercício do controle de constitucionalidade difuso, e continuar aplicando o inciso I do art. 3º da Lei 8.009/90.
Quanto aos efeitos práticos da declaração de inconstitucionalidade da parte do art. 46 que revoga o inciso I do art. 3º da Lei 8.009/90, a consequência natural é a “repristinação” automática da norma revogada, tendo em vista que a inconstitucionalidade é um vício originário, cuja declaração possui eficácia ex tunc[47].
5.3. A necessidade de controle de convencionalidade
Conforme ficou demonstrado, a revogação do inciso I do art. 3º da Lei 8.009/90, também viola o artigo 1º do Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômico Sociais e Culturais, também conhecido como “Protocolo de San Salvador”, firmado no âmbito da OEA (Organização dos Estados Americanos), e também o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, firmado no âmbito da ONU.
Tais normas têm vigência no ordenamento jurídico interno brasileiro, com reconhecida hierarquia supralegal, ou seja, possuem status hierárquico superior ao das leis ordinárias e complementares, conforme reconhece o STF, por serem tratados de direitos humanos, aprovados na forma ordinária, e não na forma do § 3º do art. 5º da CF[48].
Conforme ensina Valerio de Oliveira Mazzuoli[49], da mesma forma que o controle de constitucionalidade, o controle de convencionalidade (ou de supralegalidade, nas palavras de Marinoni[50]) pode ser realizado de forma concentrada, perante o STF e na forma difusa por qualquer juízo ou tribunal.
Cabe a qualquer dos legitimados do art. 103 da CF propor a ação direta de inconstitucionalidade (ADI), pedindo ao STF que declare a inconvencionalidade[51] da parte do art. 46 da LC 150/2015 que revogou o inciso I do art. 3º da Lei 8.009/90, a fim de que a revogação não subsista no ordenamento, e não paire dúvidas quanto à vigência da norma, em razão do efeito repristinador, que é o mesmo da declaração de inconstitucionalidade.
Da mesma forma, cumpre enfatizar que enquanto nenhum dos legitimados para propor a ADI tomar a iniciativa, e enquanto a norma não for declarada inconstitucional em sede de controle concentrado, é possível que cada juiz ou tribunal possa continuar aplicando, em cada caso concreto que se fizer necessário, o inciso I do art. 3º da Lei 8.009/90, se valendo do controle de convencionalidade em sua forma incidental difusa, reconhecendo a inconvencionalidade da norma revogadora.
Conclusão
A profissão de empregado ou empregada doméstica sempre foi alvo de forte discriminação pelo Estado brasileiro, cuja legislação constantemente a tratou de maneira pior, conferindo menos direitos a esta classe de trabalhadores do que as demais. E pode-se atribuir isso a um liame histórico entre esta digna profissão com os maus costumes arraigados na cultura nacional, como decorrência do regime de escravidão brasileiro abolido em 13 de maio de 1888.
A LC 150/2015, ainda que tardiamente, visou promover a igualdade entre estes e os demais trabalhadores. Mas, porém, em um de seus artigos (art. 46), revogou o inciso I do art. 3º da Lei 8.009/90, suprimindo a possibilidade de penhora do imóvel em que trabalha, se for o único do patrão, para a satisfação de seus créditos trabalhistas e previdenciários.
Tal norma se revela como um verdadeiro retrocesso social, o que viola várias normas da Constituição de 1988, e de tratados internacionais de direitos humanos, além de se revelar como discriminatória, por dar tratamento pior aos créditos dos trabalhadores domésticos – vítimas de uma histórica discriminação com fortes traços raciais –, do que os créditos bancários decorrentes do financiamento da construção do imóvel, portanto, viola a isonomia.
Diante destas premissas, deduz-se que a solução é o afastamento desta revogação discriminatória e retrógrada do ordenamento jurídico brasileiro pela via do controle de constitucionalidade e de convencionalidade, em conjunto ou separadamente, seja pelos juízes e tribunais em cada caso concreto, pela via do controle incidental (difuso), seja pelo STF por meio de controle concentrado, pela via da ação direta de inconstitucionalidade (ADI).
Informações Sobre o Autor
Rafael Ioriatti da Silva
Advogado, MBA em Business Law e especialista em Direito Administrativo