The insertion of literature in the juridical sciences: a transdisciplinary proposal for a (re)construction of the juridical teaching
Francisco dos Santos Oliveira Soares – Graduando em Direito pela Universidade Federal do Tocantins (UFT). Graduado em Ciências Biológicas pela Faculdade do Médio Parnaíba (FAMEP). Perito Criminal na Polícia Científica do Tocantins. Palmas (TO), Brasil. CV: http://lattes.cnpq.br/8206998135248795. ORCID nº https://orcid.org/0000-0003-4541-9975
Aloísio Alencar Bolwerk – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Tocantins (UFT) e Professor Permanente do Programa de Mestrado Interdisciplinar em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos UFT/ESMAT. Doutor em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Líder do Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos e Prestação Jurisdicional registrado no CNPQ. Advogado, Brasil. ORCID nº 0000-0003-4229-4337.
Mayara Pereira Gomes – Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Tocantins (UFT). Palmas (TO), Brasil. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/4590093069694262
Resumo: O ensino de Direito tem sido construído por meio da utilização de recursos e materiais didáticos restritos ao âmbito jurídico, isto é, existe uma tendência a não optar por recursos exógenos. É nesse cenário que o artigo busca soluções para a questão da formação do acadêmico do curso de ciências jurídicas, apontando as falhas existentes no ensino estritamente técnico e construído a partir de disciplinas que não fogem ao mundo jurídico, que priorizam conteúdos didaticamente herméticos quanto à abrangência de outras áreas do conhecimento. Faz profunda reflexão sobre o processo de ensino e aprendizagem, assim como aponta as artes literárias como meio de estímulo à reflexão humana. Busca aprimorar o método de ensino de ciências jurídicas a partir da incorporação da literatura no direito, com foco no desenvolvimento das habilidades relacionadas ao conhecimento histórico, cultural e linguístico. Dessa forma, partindo do método dedutivo e com fundamentos em revisão bibliográfica na área do direito e literatura, ratifica-se que o direito deve ser regado com a literatura para que os futuros profissionais não sejam frutos de um sistema cartesiano, cuja roupagem se destaca pela baixa axiologia humanística.
Palavras-chave: direito e literatura, ensino jurídico, transdisciplinaridade.
Abstract: The teaching of law has been constructed by using resources and teaching materials restricted to the juridical environment, that is, there is an inclination not to opt for exogenous resources. In this scenario this work seeks solutions for the formation issue of the juridical sciences course academics, pointing out the existing failures in the strictly technical teaching that is also built from disciplines that do not restrain from the juridical world, which prioritize didactically hermetical contents regarding the coverage of other knowledge areas. It also thinks heavily on the teaching-learning process and appoints, as well, the literary arts as a mean of stimulating human thinking. Moreover, this work seeks to better develop the juridical sciences teaching method by incorporating literature into the law science, focusing on the development of the abilities related to the historical, cultural and linguistic knowledge. Therefore, starting from the deductive method and based on bibliographical review in the areas of law and literature, it is ratified that law science should be complemented with literature in order for the future professionals to not become heirs to a Cartesian system, which highlights itself by having a low humanistic axiology.
Keywords: law and literature, juridical teaching, transdisciplinarity.
Sumário: Introdução. 1 O ensino jurídico em crise: técnica sem arte. 2 Ensino, direito e literatura. 2.1 Aspectos do processo ensino-aprendizagem. 2.2 O ensino jurídico e a contribuição da literatura. 2.3 A humanização do ensino acadêmico de ciências jurídicas a partir da literatura. Conclusão. Referências.
Introdução
O presente artigo tem como objetivo discutir a importância da inserção da literatura no ensino de direito e busca relacionar a arte ao desenvolvimento humanístico dos acadêmicos. Expõe o problema da formação dos profissionais de direito, que são direcionados a uma perspectiva puramente cartesiana das ciências jurídicas e, consequentemente, deslocando do centro o mais importante fator de existência das ciências sociais, o homem.
Inicialmente discutir-se-á a questão do método de ensino utilizado nas instituições, no qual não existe, em nível de graduação, a utilização da literatura como disciplina propedêutica, pois há severa restrição às disciplinas técnicas. Destaca-se alguns programas de incentivo à inserção de obras literárias como auxílio ao estudo do direito, contudo, a proposta apresentada não se resume simplesmente a um contexto multidisciplinar, mas, parte da perspectiva interdisciplinar[1] com intuito de alcançar a transdisciplinaridade, isto é, a abordagem literária e jurídica de maneira orgânica, de forma a constituir holisticamente uma nova perspectiva de ensino, que levará o acadêmico ao estado da arte quanto à manifestação de direitos humanos, superando a tradicional e ultrapassada técnica do ensino mecanizado.
Para isso, faz-se necessário demonstrar a íntima relação entre as ciências jurídicas, pilar fundamental da sociedade moderna, que busca consolidação e constante reafirmação sob a égide dos direitos humanos, com a literatura, expressão artística e cultural de um povo, fonte de detalhes e riquezas do contexto histórico-social de um espaço e tempo.
Finalmente, considerando o ensino jurídico em processo de desenvolvimento, em plena evolução, buscando adaptar-se à realidade e consolidar-se junto à sociedade, o presente trabalho propõe abordar a inserção da literatura como disciplina de elevado conteúdo humanístico, pilar robusto e necessário à formação dos futuros profissionais do direito.
A pesquisa foi desenvolvida a partir do método indutivo, onde se buscou defender a tese da humanização dos acadêmicos de ciências jurídicas a partir da inserção da literatura como disciplina integrante da grade do curso, para isso, desenvolve-se o assunto por meio de teorias gerais e amplamente aceitas nas áreas das ciências sociais, literatura e educação, de modo a embasar e justificar a transdisciplinaridade como metodologia de ensino do direito.
1 O ensino jurídico em crise: técnica sem arte
O ensino de ciências jurídicas em sala de aula normalmente segue a mesma metodologia tradicionalmente adotado em basicamente todas as instituições de ensino, que corresponde ao estudo de diversos textos e obras de autores da própria área ou de áreas muito próximas.
A adoção dessa prática acaba por afunilar profundamente a capacidade de expansão científica e de inviabilizar a interdisciplinaridade, ferramentas necessárias e importante para proporcionar aos estudantes uma visão mais ampla da sociedade.
O ensino deve ampliar a capacidade da manifestação humana e expandir uma perspectiva do desenvolvimento tecnológico e da globalização da informação com fundamento na dimensão axiológica das interações, assim como apontar os abismos falaciosos existentes no percurso do conhecimento pontual.
A busca incessante pela conclusão imediata de um assunto ou esgotamento de determinada questão, faz com que educadores, instituições e todos os envolvidos no processo de ensino e aprendizagem, especificamente nos cursos de direito, que se enquadra no campo das ciências sociais aplicadas, vislumbrem a educação como ciência fechada, restrita às disciplinas imediatamente correlacionadas à atividade do futuro profissional (mesmo que essa visão seja apenas aparente, pois, muitas disciplinas que não estão presentes na grade curricular do curso de direito, poderiam ser utilizadas como ferramenta de formação complementar).
Essa forma de ensino conduz os discentes a uma formação técnica, guiando os profissionais a desempenharem suas funções de forma mecânica e restrita às análises frias e distantes da real necessidade social. Gera conhecimento de ferramentas tecnológicas e da globalização, mas é limitado quando necessita conhecer o próprio ser humano, o meio social.
Muitas são as possibilidades de utilização de outras áreas do conhecimento dentro dos conteúdos do curso de direito, principalmente aquelas que podem proporcionar mais conhecimento em relação à própria essência humana e à dinâmica das relações sociais.
Assim se posiciona Júlia Bucher-Maluschke ao tratar sobre o tema:
Consideramos que do ponto de vista do conhecimento da população, em relação às leis e sua aplicação, ainda existem muitas lacunas e distorções. Observamos a tendência à interdisciplinaridade, como uma forma de encontrar caminhos para enfrentar a crise que se instalou na sociedade em relação aos valores, a quebra de paradigmas tradicionais, sem que outro tenha surgido para dar conta da realidade em plena transformação, como uma das conseqüências do rápido desenvolvimento tecnológico. (Bucher-Maluschke, 2007, p. 95)
Nesse ínterim, a Literatura apresenta-se como um potente instrumento a ser utilizado por todos que estão envolvidos no ensino das ciências jurídicas, haja vista apresentar um vasto acervo com diversos temas e excelentes escritos nas mais diversas formas de manifestação da língua. Arnaldo Godoy corrobora com essa visão no trecho abaixo:
De forma menos pragmática, investiga-se também a presença do direito nos textos literários. Nesse sentido, a inquirição ganha foros exemplificativos. O discurso torna-se moralista. Textos literários, nos vários gêneros, da prosa à poesia, indicariam circunstâncias de referência ética. Essa leitura ingênua presta-se para captar a anatomia de um desencanto. Pretende-se demonstrar que a literatura de ficção seja amplo campo para identificação e problematização das mazelas do direito. (Godoy, 2008, p. 10)
Além de apontar a enorme vantagem da inclusão da literatura no direito, o mesmo autor segue com exemplos que podem ser utilizados para levar o expectador a lugares fictícios, mas que retratam a realidade e aponta diversos temas que poderiam ser debatidos a partir dessas obras, como se segue:
Passagens da literatura universal são apanhadas a laço e identificam justiça vendida, comprometida, instrumento de poderosos. Desfilam então Morus, Erasmo, Rabelais, Shakespeare e tutti quanti. Canonizam-se passagens de forma recorrente. Camus seria autor indispensável; O Estrangeiro potencializaria reflexões em torno do direito internacional. Kafka seria lembrança imperdível; O Processo refletiria a imbecilidade da superlativização da racionalidade burocrática. (Godoy, 2008, p. 11)
Nesse sentido a utilização da literatura não pode ser excluída do ambiente de ensino jurídico, pois ela “é um dos conteúdos escolares nos quais se mostra com maior riqueza a dialética entre as condições históricas específicas de produção de um bem cultural e o valor universal que esse bem pode adquirir no decorrer da história humana” (Duarte, 2011, p. 11). Assim é possível trabalhar diversos casos a partir de obras literárias, onde se buscará examinar habilidades relacionadas à capacidade interpretativa, argumentativa, lógica e, principalmente, de resolver casos envolvendo diversas situações de grande impacto emotivo e psicológico, mesmo que examinando apenas o material escrito.
Até mesmo obras literárias simples, que, aparentemente, não possuem muito a acrescentar, podem ser objeto de muita importância quando se pretende transmitir um determinado valor, como já foi exposto. Essa linguagem mais simples, inclusive, pode ser uma alternativa para iniciar os estudos de textos literários, acrescentando, gradativamente, complexidade aos estudos, até atingir o patamar de correlacioná-los com textos jurídicos.
O desenvolvimento de habilidades relacionadas à interpretação e argumentação no âmbito jurídico pode ser trabalhado a partir da literatura, que aborda diversos gêneros e mantém relação de proximidade com as ciências jurídicas.
Em passagens simples, como as observadas em O Mercador de Veneza, de William Shakespeare, onde o autor trabalha questões jurídicas de forma cômica, é possível extrair diversos assuntos relacionados ao direito de personalidade, preconceito de raça, direito de família, costumes e outros temas comumente tratados em sala de aula apenas sob o prisma da leitura e da discussão da respectiva lei ou texto estritamente jurídico[2].
Não seria a completa substituição das tradicionais matérias da academia de direito, mas apenas a inclusão de conteúdos de uma disciplina que ajudará no processo de ensino-aprendizagem e, ainda mais efetivamente, no processo de humanização de profissionais que se encontram cada dia mais robotizados em virtude do modelo de educação aos quais foram submetidos e da moderna forma de trabalho associada a conceitos pré-moldados de praticamente tudo, até mesmo de soluções e decisões que envolvem o mais íntimo sentimentos das pessoas.
Sobre soluções e decisões, cabe trazer à tona os ensinamentos de Rizzatto Nunes (2017), que apresenta o problema de forma clara e objetiva. Para ele, na maioria das vezes, a decisão é a maneira mais simples de acabar com o litígio, contudo, a maneira de como alcançá-la pode fazer-se perder o caminho para a solução.
Mesmo ciente disso, os juristas são levados a optar pela decisão em detrimento da solução, pois, segundo os ensinamentos adquiridos durante o curso, o importante é encerrar a questão. É nítida a falta de sensibilidade nesses casos – existem muitos situações em que a decisão é inevitável, como naqueles em que sem ela poderá ocorrer danos irreversíveis, mas, em muitos outros, a decisão poderia ser uma alternativa secundária e direcionar os esforços para a solução (Nunes, 2017, p. 88 – 96) –, cenário que reflete carência de domínio em relação a recursos literários e estilísticos para buscar, por todas as vias possíveis, a solução, o que, nesse caso específico, só é possível com intensos debates, exames apurados do material disponível e extrema habilidade para transformar atos e ações em material escrito.
Assim sendo, a inserção de textos literários nas disciplinas da grade curricular nos cursos de direito deve ser analisada com muita seriedade e discutida por todos. A sociedade necessita de profissionais mais bem capacitados e com formação verdadeiramente humanística, os quais apresentem habilidades para encontrar a solução dos problemas encarados, ao mesmo instante em que detenham a concepção de humanidade relacionada às ações e reações das pessoas perante cada caso em particular e isso só será alcançado a partir da desmistificação da supremacia de classes, desenvolvimento das habilidades sociais e aperfeiçoamento da capacidade comunicativa, o que pode ser plenamente possível a partir do contato intenso ao longo da vida acadêmica com obras literárias que trabalham com primazia não só os temas supracitados, mas muitos outros de grande importância para a formação do profissional, cidadão e, acima de tudo, ser humano.
2 Ensino, direito e literatura
O estudo do direito associado à literatura apresenta-se como alternativa para solução de problemas costumeiramente vivenciados nas salas de aula. Já existem algumas discussões a respeito do assunto, principalmente na vertente de enfatizar a necessidade de desenvolver técnicas de humanização no ambiente acadêmico de direito, constando que, com esse propósito, ocorre na maioria das vezes a leitura de textos literários e posterior debates relacionados a eles. Não existe um planejamento de fato sobre quais trabalhos de literatura devem ser expostos, assim como também existe grande carência quanto à abordagem desse material, pois normalmente são utilizados de forma superficial.
A interdisciplinaridade entre direito e literatura deve ser holística, aplicada, portanto, apresentada por professores que possuam um bom conhecimento tanto de literatura quanto de ciências jurídicas, alinhando as duas áreas do conhecimento, para realmente surtir os efeitos desejados.
O problema é que vivemos a sociedade tecnicista, onde a formação capacita os alunos a entrarem no mercado de trabalho e realizarem repetida e cotidianamente os modelos pré-estabelecidos para cada caso. Não existe uma produção científica fora do mundo acadêmico; poucos são os que se aventuram a deixar o comodismo das formas e seguirem em busca de criarem paradigmas no mundo jurídico.
É nesse sentido que a literatura pode fornecer grande ajuda, pois ao longo da história muitos gênios literários deixaram seu legado, revelando detalhes da vida social da época, das leis vigentes naquele momento, dos costumes e de muitos aspectos que serviram de alicerce para a formação de nossa sociedade atual.
Muitas vezes é possível o estudo de casos, envolvendo uma teia complexa de atores, em relação às ciências jurídicas. É possível adequar os temas à realidade de cada sala de aula e trabalhar os assuntos segundo as necessidades encontradas em cada grupo, como, por exemplo, a obra Crime e Castigo do escritor e jornalista russo Fiódor Dostoiévski, que apresenta como tema central um crime, mas trabalha majestosamente diversas questões sociais relacionadas à moral, ao direito, à personalidade psicológica dos personagens e as relações envolvendo o indivíduo e a sociedade que o cerca. Ela pode, por exemplo, ser utilizada como instrumento de exame para avaliação de um caso fictício envolvendo as ciências jurídicas. E se trabalhada por um docente que possui conhecimentos jurídicos e literários, o resultado poderá alcançar os valores sociais transmitidos pelo autor em suas metáforas, isto é, transpor a simples compreensão do enredo.
Para Seligmann-Silva as duas áreas do conhecimento, Direito e Literatura, estão intimamente interligadas e isso pode ser muito bem explorado na obra do autor russo, pois:
Direito que, se nunca foi propriamente o representante da Justiça, hoje deixa claro que esconde as desigualdades, preconceitos e iniqüidades sociais sobre o manto da legalidade e neutralidade científica.
O hermetismo da linguagem jurídica, o arcabouço dos conceitos jurídicos abstratos, as imensas barreiras simbólicas que separam a Lei do cidadão comum, são questões que só podem ser criticamente desveladas a partir de um enfoque extrajurídico e, sem dúvida alguma, a literatura traz grandiosas contribuições nesse sentido.
A leitura dos ensaios remete a uma visão mais aguda do universo do Direito e também para melhor compreender o potencial que a literatura de Dostoiévski tem de penetrar nas camadas mais profundas do homem e das relações humanas, provando que juristas e literatos têm muito a conversar e a ganhar com essas ricas trocas. (Seligmann-Silva, 2012, p. 12)
Pelo exposto é evidente que a não utilização da literatura, como no supracitado romance, exclui um potente instrumento de pesquisa e debate entre os acadêmicos das ciências jurídicas e acarreta a impossibilidade de contato direto com diversas personalidades e com casos de altíssimas complexidades. Essa compreensão acomoda inclusive os estudos relacionados à questão da dignidade da pessoa humana, como afirma Leilane Serratine Grubba.
A compreensão da dignidade humana pode se pautar pela intrínseca vinculação entre o Direito e a arte, a última como consciência est-ética e o primeiro como código regulamentar da conduta humana para a con-vivência da vida em sociedade e não somente visto como sistema pretensamente coerente e completo. (Grubba, 2012, p. 39)
A autora é enfática ao relacionar a compreensão dos sistemas orientadores da sociedade ao domínio do direito e da arte. Dominar apenas um ou outro fará com que a compreensão seja direcionada para um perigoso caminho, onde a realidade (verdade) pode ser distorcida e os espelhismos surjam como guias.
Contudo, a inserção da Literatura no ambiente acadêmico de ensino das ciências jurídicas necessita de planejamento que envolve diretamente o processo de ensino-aprendizagem, pois, de outra forma, restaria prejudicado de morte qualquer tentativa de conciliação entre as duas.
2.1 Aspectos do processo ensino-aprendizagem
Para melhor compreensão da importância do estudo de textos literários no curso de direito, faz-se mister entender o complexo processo de ensino e aprendizagem, pois, se não existe transmissão e estímulos adequados, pode-se transformar o ambiente acadêmico em verdadeira luta quixotesca.
O processo de ensino e aprendizagem abrange um conjunto de fenômenos que ocorrem na perspectiva de construir um meio cognitivo mutuamente aberto, direcionado para a captação, o processamento e o armazenamento de formas e significados, capaz de permitir a interação entre seres humanos e entre estes e o meio físico, de modo a contribuir para o reordenamento do meio, sempre no intuito de aperfeiçoá-lo.
Um dos mais importantes trabalhos já publicados sobre esse assunto é a obra da Biologia do Conhecer de Humberto Maturana, onde se estuda a relação entre os seres humanos, destes com o meio físico e dos sistemas vivos em geral.
Nesse estudo o ser humano é considerado como parte de um sistema fechado, que se inter-relaciona com o meio e que permanece em constante modificação no propósito de se acoplar ao ambiente, permitindo uma estreita relação entre os indivíduos que o constituem, os fenômenos emocionais e as interações humanas, como destaca Humberto Maturana e Francisco Varela:
A estrutura obriga. Por sermos humanos, somos inseparáveis da trama de acoplamentos estruturais tecida por nossa permanente “trofolaxe” lingüística. A linguagem não foi inventada por um indivíduo sozinho na apreensão de um mundo externo. Portanto, ela não pode ser usada como ferramenta para a revelação desse mundo. Ao contrário é dentro da própria linguagem que o ato de conhecer, na coordenação comportamental que é a linguagem, faz surgir um mundo. Percebemo-nos num mútuo acoplamento lingüístico, não porque a linguagem nos permita dizer o que somos, mas porque somos na linguagem, num contínuo ser nos mundos lingüísticos e semânticos que geramos com os outros. Vemo-nos nesse acoplamento, não como a origem de uma referência nem em relação a uma origem, mas como um modo de contínua transformação no devir do mundo lingüístico que construímos com os outros seres humanos. (Maturana e Varela, 2018, p. 257)
Dessa forma, falar em processo de ensino aprendizagem sem falar de emoção[3], sentimento, troca mútua de energia entre aquele que transfere e o que recebe algum tipo de aprendizado, é tentar reduzi-lo a um processo mecânico e simplista, como o movimento exercido pelos ponteiros de um relógio em torno do próprio eixo. Esse é o magistério de Aragão:
Sendo assim, o ponto de partida de um processo de ensino/aprendizagem tem a ver, sobretudo, com um convite – e a aceitação mútua – para participarmos em conjunto de um espaço de convivência. Tudo depende dessa emoção, dessa possibilidade de nos movermos juntos de um lado para o outro, de estarmos num mundo de uma maneira ou de outra constituída no fluir de nossos encontros. A partir do emocionar é possível efetivarmos, numa convivência particular recorrente, uma transformação mútua que gere condutas adequadas, ou aqueles comportamentos que um observador, um professor, por exemplo, distingue como apropriado num contexto interacional por ele especificado. (Aragão, 2005, p. 106)
Nesses termos é inadmissível pensar em ensino e aprendizagem em ambientes desprovidos de emoção, onde os participantes não conseguem manter um vínculo pleno e recíproco de experiências e que se resumem a absorver, mecanicamente, o que é literalmente lançado pelos professores.
Do que foi exposto, mesmo sendo inaceitável a adoção de um método de ensino que não incorpore nenhum tipo de sentimento, ainda “vivemos uma cultura que desvaloriza as emoções, e não vemos o entrelaçamento cotidiano entre razão e emoção, que constitui o viver humano, e não nos damos conta de que todo sistema racional tem um fundamento emocional” (Maturana, 1999, p. 15).
Ao analisar o processo como um sistema dinâmico, que envolve um conjunto indissociável de razão e emoção, é de fundamental importância o entendimento que a proximidade e a interatividade entre as partes existam e sejam plenas, pois, de outra forma, ocorrem prejuízos que inviabilizarão o ensino e a aprendizagem. Assim se expressa Aragão ao tratar do assunto:
Ganhos sistemáticos podem ser obtidos se esse processo for configurado como um fenômeno observado no domínio das interações situadas dos seres humanos, de maneira dependente da nossa dinâmica biológica, em especial de nossas emoções, como especificadoras das dinâmicas relacionais, tanto interpessoais quanto com o meio físico. (Aragão, 2005, p. 102)
Sob a luz desse ensinamento, a sala de aula não deve ser vista como um local, um depósito de alunos, frio, sem emoção, onde ocorre, unilateralmente, a transmissão de determinado assunto, mas sim, deve ser entendida “como um espaço relacional multifacetado, um contexto co-constituído por alunos e professor no fluir de suas interações” (Aragão, 2005, p. 107).
Nessa peça, cada personagem tem seu papel; professores e alunos desempenham suas tarefas no intuito de evoluírem e fazerem funcionar um sistema complexo, analogamente ao que ocorre em um sistema autopoiético. Entender essa relação como algo dissociado, distante e desconexo é reduzir cada um ao seu papel, sem visualizar o conjunto formado por eles, pois se faz necessária a harmonia, que todos estejam no mesmo tom, assim como em uma orquestra.
Por isso, restringir o ensino à visão simplista e limitada de uma transmissão de conteúdo, da leitura de um livro ou a resolução de um problema jurídico é, como já foi dito, simplificar o universo do conhecer. O conhecimento carrega em si mesmo a concepção de algo magnificamente grande, a ideia de transformar um indivíduo; de torná-lo capaz de entender o verdadeiro significado da existência e do funcionamento de um sistema complexo, no qual ele se encontra inserido e onde todas as peças são fundamentais para constituírem o meio social. Sob esse prisma, o ambiente de aprendizagem deve ser enriquecido, buscando novos horizontes com o propósito de levar o aluno à êxtase emocional, externar o ser humano que é trancafiado nas profundas jaulas da vida humana moderna. Sobre isso, destacam-se as lições de José Marcos de Oliveira Cruz:
Há método para ensinar, porém não há método para se aprender, pois o aprendizado não pode ser circunscrito nos limites de uma aula, da audição de uma conferência, da leitura de um livro. O aprendizado ultrapassa todas essas fronteiras, rasga os mapas e pode instaurar múltiplas possibilidades. (Cruz, 2008, p. 1036)
Considerando a complexidade da relação que existe no processo de ensino aprendizagem, muitas são as tentativas para explicar e demonstrar a relação existente entre professores e alunos nesse sistema, uma delas é a Teoria da Autodeterminação, que tenta demonstrar a relação de motivação psicológica dos alunos, considerando, entre muitas coisas, a relação existente entre eles e os professores.
Ao tratar da Teoria da Autodeterminação, Guimarães e Boruchovitch (2004) expõe a necessidade de autonomia, a de competência e a de pertencer ou de estabelecer vínculos como necessidades psicológicas inatas para motivação intrínseca dos alunos. Na continuidade afirma que a satisfação das três é fator essencial para o ótimo desenvolvimento e saúde psicológica. Afirma ainda que, ao tratar de sala de aula, o professor exerce papel fundamental para a satisfação das três necessidades básicas, sendo indispensável no processo de ensino e aprendizagem, exercendo o papel de aproximar o aluno ao desejo de aprender, na busca pelo novo e desconhecido, criando um ambiente de interatividade e proporcionar ao discente a capacidade de desenvolvimento de sua motivação intrínseca.
O professor em sala de aula atua como indivíduo ativo, no qual os alunos encontram segurança em sua jornada educacional, um profissional capaz de orientá-los e de acolher aos que necessitam em momentos de dificuldade, pois “trabalhos envolvendo interação professor/aluno confirmam a relevância de se promover em sala de aula um contexto de relação segura, no qual o professor demonstraria interesse e disponibilidade para atender as necessidades e perspectivas dos alunos”. (Guimarães e Boruchovitch, 2004, p. 146)
A interação entre professores e alunos deve seguir guiada por relações sólidas de confiança e cumplicidade, conduzindo discentes e docentes ao estado da arte no processo de ensino aprendizagem. Um dos pilares mestres nessa relação é a capacidade emotiva do professor, que deve ser manifesta no sentido de transmitir ao aluno a firmeza necessária para gerar autoconfiança. Em face do exposto, a “qualidade do relacionamento entre professores e alunos, influenciada em grande medida pelo estilo motivacional dos primeiros, revela-se a fonte principal de satisfação ou frustração das necessidades psicológicas dos estudantes.” (Guimarães e Boruchovitch, 2004, p. 147)
Para alcançar esse estado, o professor deve compreender que o desafio é a ferramenta cotidiana de seu trabalho, sendo importante que todos os envolvidos no processo de ensino e aprendizagem encontrem-se em contínua evolução, utilizando técnicas ou métodos a fim de estimular, dirigir, incentivar e impulsionar o saber de forma eficaz. Cada modalidade de ensino exige uma didática diferente, no entanto, o ensino deve acontecer com participação ativa dos discentes no processo educacional, por isso que a interação professor-aluno é tão importante e desafiante.
2.2 O ensino jurídico e a contribuição da literatura
O processo de ensino e aprendizagem das ciências jurídicas inicia-se a partir das disciplinas chamadas propedêuticas. Nelas, os acadêmicos buscam interiorizar conhecimentos gerais relacionados à realidade social e conhecimentos específicos do mundo jurídico. Muitas disciplinas trazem no bojo de seus planos uma série de livros voltados para conteúdos diversos e, muitas vezes, literários. A exemplo de Sociologia Geral, que discute as ideias de Karl Marx, Émille Durkheim, Max Weber e August Comte; Filosofia Geral, que aborda autores como Sócrates, Platão, Aristóteles, Friedrich Nietzsche, Michel Foucault; Introdução ao Estudo do Direito, que abrange uma diversidade de autores referentes ao tema do juspositivismo e jusnaturalismo, com frequentes inserções de textos literários. E essa não é uma lista fechada, existe uma diversidade enorme de obras e temas que são colocados à disposição do ensino das ciências jurídicas, mas com finalidade meramente contemplativa, sem conexão imediata com o direito e distante da realidade fática. Sobre a presença da literatura no direito, Arnaldo Godoy destaca que:
Desenvolvem-se técnicas de escrita do direito, do mesmo modo como proliferam manuais de redação ou compêndios para composição de textos literários. Exemplifico com guia norte-americano, redigido para profissionais do direito, que se pretende texto para orientação para escrita jurídica clara, concisa e persuasiva. Clareza, concisão e persuasão são elementos que qualificam topói da teoria literária. (Godoy, 2008, p. 24-25)
Essa ligação entre as duas áreas do conhecimento é extremamente benéfica, pois fornece ao aluno o contato com diversos textos escritos em estilos diferentes, pois cada autor acaba por transpor um pouco de sua personalidade ao enredo, assim como proporciona mais versatilidade no processo de ensino-aprendizagem.
Como foi exposto, a sala de aula não deve ser um deserto ártico, mas deve prevalecer a emoção, mesmo se tratando de ensino de direito.
Ensinar direito a partir da literatura é levar aos acadêmicos a oportunidade de aperfeiçoamento da escrita, de desenvolvimento de suas capacidades humanas e conduzi-los a um mundo onde as emoções e a racionalidade convivem plenamente. Assim se posiciona Silvia Maria Pantoja dos Santos ao lembrar que “muitos conflitos sociais abordados pela literatura possibilitam ao leitor aproximação de realidades, muitas vezes, analisadas apenas tecnicamente” (Santos, 2012, p. 29).
Destarte, a literatura pode ser entendida como uma alternativa para o aperfeiçoamento das habilidades estilísticas dos alunos, pois os profissionais que resultarão desse processo de ensino-aprendizagem poderão dominar sublimemente a arte da escrita.
Dessa forma, é possível fazer a transposição de fatos da realidade para peças escritas e aperfeiçoar a interpretação de leis codificadas que, em alguns casos, são extremamente abstratas. Cabe ao jurista o domínio da linguagem para superar esses obstáculos com maestria, sem incorrer em falhas de interpretações textuais fatais, assim como absorver a realidade social sem distorções.
Assim, se a ciência é grosseira, de um lado, porém a vida é sutil, de outro a literatura mostra-se imprescindível para corrigir essa distância, visto que o saber que ela mobiliza nunca é inteiro, definitivo, derradeiro, mas tem a capacidade de transformar o mundo através da subversão da língua. (Trindade, 2012, p. 140)
É nesse caminho que à literatura será exigido romper com as correntes do ensino pontual, repleto de vícios, que conduz os profissionais ao caminho do lugar comum, das crenças jurídicas, linguagem hermética e repleta de juridiquês. Para alcançar esse objetivo, o professor deve instigar o aluno a contemplar as riquezas que a literatura pode ofertar, sentir a emoção nos textos de Shakespeare, tocar a alma em Raskólnikov (Crime e Castigo) durante sua turbulenta e conflituosa jornada, perceber o tormento da infelicidade sob o manto da vida social de Emma[4] e elevar-se ao estado da arte ao penetrar no fascinante, misterioso e macabro mundo de Edgar Allan Poe.
2.3 A humanização do ensino acadêmico de ciências jurídicas a partir da literatura
Em casos complexos, que exigem grande habilidade do profissional do direito, é esperado que a solução contemple os mais altos institutos da natureza humana. Para isso, a formação do acadêmico do curso de direito deve contemplar conteúdos que contribuem especificamente para isso, como os presentes na literatura. Essa carência pode resultar em situações complexas, onde o profissional engessa-se quando necessita atuar, preferindo trilhar o caminho comum, mais fácil, mesmo que isso resulte em prejuízo à justiça.
Tratando sobre a interpretação do sistema jurídico, Fiuza e Costa Poli fazem singular ponderação referente à importância da reflexão sobre princípios, valores sociais e valores jurídicos.
Cada caso deve ser analisado como novo, irrepetível como os fatos da história, interpretando as normas de todo o sistema jurídico de forma sistematizada e não apenas de forma isolada e literal, também considerando e sopesando princípios e especialmente valores sociais e jurídicos contemporâneos, para apresentar solução que se apresente como a única adequada e justa que o caso comporte e que guarde aceitação racional, segundo entendimento do cidadão médio. (Fiuza e Costa Poli, 2015, p. 173)
Mesmo sendo extremamente importantes, valores sociais e jurídicos não são codificados, isto é, não existe uma fórmula pré-moldada para aplicá-los, faz-se necessário que o próprio profissional busque mecanismos lógicos que os consolidem no caso concreto.
Para ilustrar, da maneira mais simples possível, considere o valor de um bem que, na maioria das vezes, é vinculado estritamente ao valor econômico, isto é, valor de mercado. Quando um jurista se encontra perante uma situação de decisão em relação a determinado bem, deve considerar apenas os fatores econômicos relacionados a ele? Se considerarmos o positivismo como fundamento, certamente a decisão será a simples subsunção (enquadramento concreto) do fato à norma legal. Contudo, o jurista encontra extrema dificuldade para resolver casos que envolvem bens de expressão econômica não determinada, isto é, aqueles que não possuem seu valor[5] definido claramente, como ocorre com os bens ambientais.
Deparando-se com tal situação, caberá ao julgador definir qual o valor da coisa em apreço, para isso, se não existir valor de mercado, deverá fazer uso de sua racionalização e de seu senso de humanidade, para não se desfilar em precipício e cometer severa injustiça.
Nesse diapasão, a literatura nos oferece um verdadeiro banquete de obras que podem estimular o desenvolvimento da capacidade sensitiva de humanidade do jurista, tocando, verdadeiramente, a alma humana em cada um que se serve dela.
Em casos de difícil solução, como o sobredito, busca-se profunda habilidade do profissional das ciências jurídicas para alcançar a solução, mas, sempre lembrando os ensinamentos de Rizzatto Nunes, sem se deixar sucumbir pela simples decisão irresoluta.
Para despertar essa sensibilidade, poderíamos levar o acadêmico à reflexão de qual é o valor de uma casa. Certamente, muitos responderão que depende da localização, da estrutura física, de suas dimensões, se possui área de lazer ou não e muitos outros aspectos considerados que agregam valor econômico ao bem. Assim, para não deixar dúvidas da contribuição da literatura ao mundo jurídico e permanecendo na discursão sobre valor, pode-se citar o livro O pequeno príncipe de Antoine de Saint-Exupéry – que para muitos juristas não passa de uma obra pueril – com intuito de estimular (até mesmo provocar) a concepção que cada um tem sobre questões fundamentais às relações humanas, como no trecho abaixo, em que o autor expõe majestosamente a contraposição de expressão econômica e valor:
As pessoas grandes adoram os números. Quando a gente lhes fala de um novo amigo, elas jamais se informam do essencial. Não perguntam nunca: “Qual é o som da sua voz? Quais os brinquedos que prefere? Será que coleciona borboletas?” Mas perguntam: “Qual é sua idade? Quantos irmãos ele tem? Quanto pesa? Quanto ganha seu pai?” Somente então é que elas julgam conhecê-lo. Se dizemos às pessoas grandes: “Vi uma bela casa de tijolos cor-de-rosa, gerânios na janela, pombas no telhado…” elas não conseguem, de modo nenhum, fazer uma idéia da casa. É preciso dizer-lhes: “Vi uma casa de seiscentos contos”. Então elas exclamam: “Que beleza!”. (Saint-Exupery, 2015, p. 11)
Dessa forma, o que à primeira vista, parece ser uma simples obra infantojuvenil, guarda intrínseco às suas metáforas valores da história do povo francês, adquirindo status de “componente cultural da resistência francesa, ao lado do hino ‘Le chant des Partisans’ (Canto dos Partisans) 6 , Les yeux d’Elsa (Os olhos de Elsa), de Louis Aragon, e La Peste (A Peste), de Albert Camus” demonstrando seu forte caráter valorativo em passagens simples, como a que representa a morte do protagonista pela mordida de uma cobra onde “pode ser lida como uma metáfora ao povo francês: a vivência de momentos dolorosos, como a guerra, pode levar ao fim os valores republicanos – liberdade, igualdade e fraternidade – que o regime de Vichy tentara cancelar” (Meireles e Moraes, 2016, p. 111-112).
Por todo o exposto, não restam dúvidas de como a literatura pode ser muito bem utilizada para o desenvolvimento humanístico do acadêmico de ciências jurídicas. Textos como os de Saint-Exupéry estimulam profundas reflexões sobre valores relacionados ao ser humano, sobre condutas de moral, certo e errado, justo e injusto, proporcionando formação aos alunos de direito mais condizente com os anseios sociais.
Não se propõe que a literatura venha substituir nenhum componente da grade curricular, pelo contrário, sugere-se que ela seja tratada como alicerce, pois contribuirá significativamente para o desenvolvimento humanístico dos discentes, proporcionando formação multidisciplinar necessária para formar profissionais justos e que possam solucionar casos difíceis com segurança jurídica. Como ilustra o professor Aloísio Bolwerk:
Nesta senda, o hermeneuta está diante de situação delicada, pois envolta pelo exercício subjetivo da autonomia da vontade do agente, e a exegese empregada não pode perder de vista a segurança jurídica, mas também não pode se desatrelar da justiça pretendida para a solução (e não mera decisão) do caso fático. (Bolwerk, 2016, p. 78)
Para suprir essa necessidade, existem alguns direcionamentos, mesmo que inconscientes, para o uso da literatura no ensino de direito, a exemplo do livro O caso dos Exploradores de Cavernas – The case of the Speluncean Explorers de Lon Fuller, traduzido para o português pelo professor Plauto Faraco de Azevedo, que é extremamente utilizado na disciplina de Introdução ao Estudo do Direito em praticamente todas as instituições de ensino superior do país. A partir dessa obra é possível realizar profundas discussões sobre diversos assuntos relacionados à disciplina, como a oposição entre “positivismo e jusnaturalismo, realismo jurídico e conservadorismo” (Godoy, 2008, p. 78), dicotomias de difícil entendimento quando expostas pelas vias tradicionais.
Ainda segundo Godoy (2008), a literatura facilita a compreensão do direito enquanto exercício de interpretação jurídica, assim como possibilita essa aproximação interdisciplinar, contribui para melhorar a própria visão de mundo, afirma ainda, que a partir de interpretações de conteúdos literários pode chegar-se a uma melhor compreensão dos fatos sociais.
Na continuidade, o mesmo autor enfatiza que “advogados deveriam estudar técnicas de interpretação artística e literária” (Godoy, 2008, p. 96), pois, necessita-se de extrema habilidade para extrair interpretação adequada dos instrumentos disponibilizados a esses profissionais para o exercício da profissão, assim como para expressar, em textos escritos, com o máximo de eficiência possível, aquilo que anseia em suas peças.
Por fim, ainda trilhando as ideias do supracitado autor, conclui-se que a literatura é forte ferramenta de auxílio quando o objetivo é aperfeiçoar habilidades relacionadas à tradução[6], sendo essa fundamental para alcançar a justiça, configurando relação entre seres humanos, aproximando as pessoas umas das outras e contribuindo decisivamente para o desenvolvimento do sentimento de humanidade, pois, “a tarefa da tradução educa. E o faz na medida em que se refere à necessidade de integração. Humanismo puro.” (Godoy, 2008, p. 103)
Conclusão
O enrijecimento do processo de ensino-aprendizagem no curso de direito acarreta enorme prejuízo quanto à sua eficácia real. Assim, a formação do futuro profissional do direito deve contemplar expressiva interdisciplinaridade.
O Direito como fato social não se esquiva de estar e ser para a sociedade, pelo contrário, atua constantemente junto às transformações que ocorrem ao longo do espaço e tempo, exigindo daqueles que com ele lidam profunda habilidade para ir além da decisão e encontrar as soluções necessárias a cada caso.
A literatura é eternização da evolução social, é perceptível como podemos notar, marcas de cada época e lugar eternizados nos textos literários, pois, a escrita acompanha o ser humano desde remotas sociedades. É nesse ínterim, que precisam estar alinhados e associados direito e literatura, pois, conforme ampla exposição, torna-se imprescindível acreditar numa realidade melhor para o ambiente jurídico, onde a pessoa se encontre com o humano, efetivando real contribuição para as demandas sociais em uma perspectiva holística de integração transdisciplinar entre essas áreas do conhecimento.
Trazer a literatura à luz do ensino jurídico é constituir forma aperfeiçoada de humanização e capacitação do futuro profissional do direito, pois a partir de enredos literários é possível conhecer as profundezas da alma humana. É percorrer casos imaginários que refletem a realidade, viver tempos remotos e seus costumes, aprender o significado de valores em diferentes contextos, é na literatura e a partir dela que se extrai significados de termos que nem a própria lei consegue dissecar por completo, como o de justiça, presente no cotidiano das pessoas e tema central em diversas obras, mas que provoca arrepios naqueles que se aventuram em dele extrair seu verdadeiro significado.
Destarte, é possível aprimorar o processo de ensino e aprendizagem no curso de direito a partir da inserção da literatura nos conteúdos jurídicos. Não sendo essa apenas uma perspectiva secamente literária, mas sim, uma integração entre direito e literatura, com caminho à interpretação e escrita entre as duas ciências, mútua cooperação, direcionando e perpassando por enredos que colaboram com a própria existência da ciência jurídica, fazendo de tudo que se coloca à disposição daqueles que trilham esse caminho uma forte ferramenta para melhorar a vida das pessoas e contribuir com a evolução social.
A reconstrução do modo de ensinar deve ocorrer através da transdisciplinaridade, isso facilitará a integração entre todos os envolvidos, assim como introduzirá no ambiente acadêmico a necessária ligação entre emoção e razão que constitui a própria essência humana.
Referências
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[1] Considere, neste caso, a interdisciplinaridade como conceito de mútuas contribuições entre distintas disciplinas. Neste artigo, será trabalhado o conceito interdisciplinaridade como meio de se alcançar um patamar superior, isto é, a transdisciplinaridade, assim sendo, considera-se a forma transversal de Direito e Literatura.
[2] Algumas instituições já incluíram estudos de obras literárias como suporte ao ensino jurídico. Essa prática é mais comum em outros países, como nos Estados Unidos da América, onde a Seton Hall Law School oferece disciplina denominada Shakespeare e a lei, voltada para a busca do histórico, social e legal, em obras como Medida por medida, Antonio e Cleópatra e Rei Lear. No Brasil, cite-se a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde o professor ministra a disciplina de História do Direito e trabalha o texto de O mercador de Veneza. Na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB), o projeto de pesquisa Ensino jurídico: o teatro como recurso pedagógico apresenta como atividade de pesquisa e extensão a encenação da obra Shakespeariana Medida por medida. (Olivo, 2005, p. 24)
[3] A emoção, nesse caso, não deve ser confundida com sentimentos, mas deve ser entendida como sendo as “disposições corporais dinâmicas que definem os diferentes domínios corporais de ação em que nos movemos”. (Maturana, 1999, p. 15)
[4] Personagem principal do livro Madame Bovary de Gustave Flaubert.
[5] Neste caso, o termo “valor” não se restringe ao valor de mercado, mas a tudo que lhe possa ser atribuído, como valor sentimental, valor de existência, valor de não disposição e todos os aspectos que o tornam singular.
[6] Nesse caso, tradução não deve ser compreendida como o simples translado de textos de um idioma para outro. A utilização do termo vai muito além, pois faz referência a qualquer processo que envolva questões de linguagem, interpretação, comunicação e compreensão entre línguas diferentes, áreas distintas do conhecimento. Assim, a tradução está intimamente ligada à relação entre as pessoas, envolvendo suas convicções, pensamentos, aspectos da vida social, do qual faz parte o direito, configurando parte da própria dinâmica da vida, destacando-se a interpretação da realidade e o autoconhecimento. (Godoy, 2008, p. 103)