Resumo: O artigo aborda o direito à moradia sob a ótica da teoria da justiça de John Rawls. Isto porque há um grande problema de acesso à moradia digna que afeta os centros urbanos, gerado e ampliado, pela falta de planejamento urbano e da dificuldade de definição do papel do Estado em relação a esse direito. Ao passo que, a justiça como equidade formulada por Rawls pode contribuir para o debate ao apresentar princípios que norteiam a atuação estatal, ao tratar da justiça distributiva espacial, para garantir que todos os indivíduos possam usufruir daquele direito fundamental. Para tanto, utilizou-se uma abordagem de natureza teórica. Já para a operacionalização deste método foram usadas as técnicas metodológicas de pesquisa bibliográfica, pesquisa documental e fichamento de textos.
Palavras-Chave: John Rawls, Justiça como equidade, Direito à moradia.
Abstract: The article discusses the right to housing from the perspective of the theory of justice of John Rawls. This is because there is a big problem of access to decent housing that affects the urban centers, generated and amplified by the lack of urban planning and the difficulty of defining the state's role in relation to that right. Whereas justice as fairness formulated by Rawls can contribute to the debate by presenting principles that guide state action, when dealing with territorial distributive justice, to ensure that all individuals can take advantage of that fundamental right. For this purpose, a theoretical approach was used. As for the operationalization of this method were used methodological techniques of bibliographical research, documental research and book report texts.
Key-words: John Rawls, Justice as fairness; Right to housing.
Sumário: Introdução. 1. Justiça como equidade. 1.1. Premissas da teoria rawlsiana; 1.2. posição original e véu da ignorância. 1.3. princípios de justiça. 2. Bens primários como direitos fundamentais. 3. O direito à moradia, planejamento urbano e a justiça como equidade. 3.1. Princípio da diferença e justiça distributiva espacial. Conclusão. Referências.
Introdução
A preocupação com questões urbanas tem aumentado a cada dia, na medida em que muitos problemas são sentidos por toda a população, direta ou indiretamente. Este fato tem levado à discussão a respeito de temas como trânsito, transporte público, saneamento básico e moradia, pela sociedade e diversos meios de comunicação.
Cada um desses assuntos assume grande importância, sendo o direito à moradia um dos mais interessantes em virtude do grande contrassenso que o acompanha. Isto porque, a sociedade brasileira atribui grande valor à moradia, no entanto, é um país em que, notadamente, grande parcela da população vive em habitações inadequadas (SOUZA, 2008, p. 22).
O número de habitações irregulares tem se multiplicado durante as últimas décadas em todas as regiões do Brasil. Estima-se, conforme os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, obtidos por meio do Censo Demográfico 2010 (IBGE, 2010), que o percentual de domicílios que contam com alguma inadequação habitacional é de cerca da metade do total existente atualmente no Brasil. Mais de cinco milhões de moradias dignas precisam ser construídas em todo o país para suprir a demanda atual, de acordo com os dados da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio, de 2012 (IPEA, 2013, p. 3). Segundo esta pesquisa, o estrato de renda mais prejudicado com a falta de habitabilidade é o que aufere até três salários mínimos mensais (IPEA, 2013, p. 4).
Essa situação envolve outras tão ou mais complexas quanto, como por exemplo, a reforma agrária, economia interna e externa, política governamental e movimentos sociais, além do processo de urbanização – entendido como o fenômeno em que há um movimento migratório das áreas rurais para os centros urbanos – intensificado no Brasil, em especial a partir do séc. XX.
Ao mesmo tempo, urge a necessidade de se buscar o desenvolvimento econômico nos centros urbanos, com a construção de shoppings centers, empreendimentos habitacionais e comerciais, loteamentos, condomínios fechados. Tendo em vista estes acontecimentos, é imperioso notar que, enquanto as questões ambientais já ganharam espaço, com a crescente preocupação nacional e internacional, além da pressão exercida por ONGS, sociedade civil e Estado, dentre outros atores, as urbanísticas muitas vezes são deixadas de lado ou ainda não recebem a devida atenção. O que não parece fazer muito sentido, na medida em que muitos assuntos classificados como ambientais são, também, urbanos.
Daí decorre a importância da análise do pensamento de John Rawls (2008) presente na sua obra Uma Teoria da Justiça, em que são elaborados princípios que, pela sua generalidade, podem ser aplicados em muitas sociedades ocidentais (democráticas e que garantam algum nível de liberdade aos seus cidadãos), e que, pelo seu conteúdo, introduzem uma forma de guiar a atuação estatal, tendo em vista os interesses de toda a sociedade, e em particular, o das classes sociais menos favorecidas. A justificativa para não se utilizar obras mais recentes do autor se dá em face da diminuição ou perda do caráter normativo contido na Uma Teoria da Justiça, no que se refere à igualdade socioeconômica.
A relevância da justiça rawlsiana se deveu a forma como a liberdade foi articulada com a igualdade, ao mesmo tempo em que compete, principalmente, ao Estado (guiado por princípios de justiça) se preocupar com a distribuição dos bens primários. Contudo, a atuação estatal é feita sem interferir nos planos individuais ou na concepção de vida que cada pessoa possui. Desta forma, há respeito ao indivíduo e se garante um mínimo para que ele tenha condições de perseguir seu plano de vida.
Esta é a razão pela qual a sua obra é de grande relevância para se pensar e implementar o planejamento urbano e o direito à moradia, na medida em que une um sentido normativo de sua teoria com o lado político e moral, com vistas à garantia de que todos os cidadãos possam viver com dignidade.
No primeiro capítulo, serão apresentados alguns conceitos constantes da obra Uma Teoria da Justiça, que se entende serem essenciais para a compreensão do pensamento de Rawls. Em seguida será introduzido o debate acerca dos bens primários como direitos fundamentais. Por fim, no terceiro capítulo serão abordadas algumas considerações sobre a Constituição Federal e o Estatuto da Cidade (lei federal 10.257/2001), além de algumas leis federais mais recentes, no que toca ao direito à moradia, à luz da teoria de Rawls. Ao final serão apresentadas as conclusões da presente pesquisa.
Para tanto, utilizou-se uma abordagem de natureza teórica. Já para a operacionalização deste método foram usadas as técnicas metodológicas de pesquisa bibliográfica, pesquisa documental e fichamento de textos.
1. Justiça como equidade
J. Rawls (2008) quer elaborar uma teoria da justiça que seja viável e alternativa às outras que dominavam, até então, a área da filosofia política inglesa. Para isso, é definido o papel da justiça, que para instituições sociais é a primeira virtude. Logo, não importa se estas instituições são ou não são eficientes e bem organizadas se forem injustas, caso em que devem ser abolidas ou reformuladas.
Em verdade, na época da publicação da obra Uma Teoria da Justiça, em 1971, o principal alvo a ser atingido era a concepção de justiça utilitarista[1] que predominava na teoria política anglo-saxã, cujo princípio pode ser lido como a maior felicidade do maior número possível de pessoas. Esta doutrina ética apresentava problemas, criticados pelo autor, como o fato de haver um conceito de justiça que andasse a reboque do bem (no caso, a felicidade) ou de considerar o bem-estar geral, mas não individual (ou o indivíduo como pessoa, diferente dos demais), o que pode levar a desvantagem de alguns, desde que traga vantagens para a maioria. Aqui, a sociedade é justa quando “as suas principais instituições estão organizadas de modo a alcançar o maior saldo líquido de satisfação, calculado com base na satisfação de todos os indivíduos que a ela pertencem”. O bem (felicidade) é definido independentemente do justo e o justo é aquilo que produz ou que eleva o bem a maiores patamares – é uma teoria teleológica. Porém, não importa como este bem está distribuído entre as pessoas ou as preferências dos grupos minoritários – o que pode prejudicar a publicidade, visto que este tipo de informação dificilmente será divulgado.
O que Rawls queria era fornecer uma alternativa a esta corrente de pensamento, em que o justo pudesse existir independentemente do bem e não estar subordinado a este – ou seja, uma teoria deontológica. Isto porque para o autor a justiça é uma virtude, cuja concepção mais racional é aquela que todos aceitariam se estivessem em condições de igualdade uns para com os outros.
Desta forma, algumas ideias são apresentadas.
1.1. Premissas da teoria rawlsiana
A justiça assegura a cada individuo uma inviolabilidade que nem a maioria ou o bem-estar da sociedade pode violar, tais direitos estão, portanto, fora de negociações políticas ou de variações segundo interesses sociais. No entanto, em face da constatação de que as sociedades são marcadas por conflitos entre seus membros, existe a necessidade de um denominador comum a todos, que são os princípios de justiça. Eles irão servir de fio condutor para a escolha entre os diversos modos de organização social que definem essa divisão de vantagens, pois são um modo de atribuir direitos e deveres nas instituições básicas da sociedade, bem como de definir a distribuição apropriada dos benefícios e dos encargos da cooperação social.
A justiça como equidade adota algumas premissas, como a que a teoria será aplicada a uma sociedade bem ordenada e regulada por uma concepção pública de justiça, entendida como aquela em que todos os indivíduos aceitam e sabem que outros aceitam os mesmos princípios de justiça, ao passo que as instituições sociais fundamentais geralmente atendem a esses princípios. Em seguida, a tese delimita as instituições essenciais, que são a constituição política e arranjos econômicos e sociais mais significativos, de onde se tem como exemplos a proteção da liberdade de pensamento e de consciência, mercados competitivos, a propriedade privada dos meios de produção e a família monogâmica.
O objeto principal da justiça é a estrutura básica da sociedade, cuja concepção[2] oferece um padrão por meio do qual se devem avaliar os aspectos distributivos dessa estrutura.
Nesse passo, só há justiça entre iguais. Entretanto, não se trata de uma justiça interpretada como igualdade (no sentido de igual tratamento), mas como equidade, a permitir tratamentos desiguais, desde que justificados. A justiça como equidade (ou como imparcialidade) quer associar a liberdade com a equidade, o que demanda a escolha dos princípios da justiça no acordo original por pessoas livres, racionais e em posição inicial de igualdade, para reger os acordos subsequentes. Cuida-se de uma doutrina derivada da teoria do contrato social, que ao invés de inaugurar determinada sociedade ou estabelecer uma forma de governo, ela deseja que o acordo original tenha como objeto a seleção de princípios de justiça. O que permite perceber que o estado de natureza da teoria tradicional é tratado aqui como a posição original.
1.2. Posição original e véu da ignorância
A posição original é uma situação hipotética composta por pessoas morais, cujo resultado de deliberação não será influenciado ou condicionado por contingências arbitrárias ou forças sociais.
Nessa posição originária, como instrumento de asseverar a igualdade entre todos, coloca-se o véu da ignorância sobre estes, o que não deixa que se conheçam seus valores, preferências, interesses, condições pessoais, etc. O acordo é feito entre pessoas éticas como seres racionais com objetivos próprios e capazes de ter um senso de justiça. Como todos são iguais, nem é necessário que se utilize regras de votação como a regra da maioria, o pacto é justo e até a unanimidade é viável, sem favorecer ninguém ou prejudicar grupos específicos.
A preferência por princípios de justiça, como o princípio da utilidade dentre outros deve ser justificada: como todos estão no mesmo patamar, a opção por um princípio como o da utilidade deve ser rejeitada, porque pode levar a exigência de sacrifício de direitos de um grupo em favor de uma maior felicidade ou satisfação de uma maioria. Como não se sabe quem faz parte do grupo que poderá ser sacrificado, adota-se uma postura cautelosa e prudente no momento da escolha, que não irá prejudicar ninguém.
Na verdade se trata de um problema de deliberação, em que todos devem concordar racionalmente com uma concepção em detrimento de outra. O resultado dependeria, então, da quantidade de informações disponíveis, pois é plausível afirmar que na posição original, cada um escolherá um princípio de justiça que o beneficie. Aí entra, naturalmente, o véu da ignorância, pois a finalidade é reduzir complexidades e contingências que levam à discórdia, ao atrito. A justiça como equidade é uma justiça procedimental pura, em que não há um critério independente do justo, mas há um procedimento adequado para chegar a um resultado justo, que é a posição original sob o véu da ignorância.
Existem algumas limitações na adoção dos princípios, que decorrem da função de conciliação das reivindicações que as pessoas fazem umas às outras e às instituições. Os princípios, por exemplo, devem ser gerais; ter aplicação universal; ser públicos; e a concepção do justo deve impor uma ordenação às reivindicações conflitantes. A publicidade, em particular, é relevante para se contrapor ao utilitarismo e pela sua necessidade natural em uma teoria contratualista, em que as partes devem conhecer as concepções de justiça para saber como eles interferem nas instituições da vida social e nas suas próprias vidas.
Já o véu da ignorância é o ponto de partida equitativo (é uma espécie de igualdade forçada) para que o justo seja alcançado sem a interferência de contingências específicas, mas com a apresentação de informações genéricas. Ninguém sabe o seu lugar na sociedade, posição de classe, habilidades, inteligência, a sua concepção de bem, dentre outros. No entanto, elas entendem as relações políticas, base da organização social, e outros fatos genéricos. Aqui percebe-se a união entre a autonomia e a objetividade: as pessoas são autônomas quando agem conforme aquilo que elas próprias, enquanto seres éticos livres e racionais decidiram; e os princípios de justiça são escolhidos assim, de forma que na sua eleição não entram em debate questões subjetivas, como valores e preferências pessoais.
Assim, os princípios de justiça podem ser definidos com autonomia e objetividade.
1.3. Princípios de justiça
A autonomia lida aqui tem relação com a autonomia kantiana, que é vista quando uma pessoa age de acordo com os princípios escolhidos por ela como a expressão mais adequada possível de sua natureza, como um ser racional livre e igual. Os princípios de justiça mantêm relação com o imperativo categórico kantiano, que é um princípio de conduta que se aplica a uma pessoa em virtude de sua natureza de ser racional livre e igual, sem interesse particular.
Para guiar a discussão a respeito dos princípios de justiça, deve-se trazer à baila a distribuição dos bens sociais primários, que para o autor são o autorrespeito, autoestima, direitos, liberdades, oportunidades, renda, riqueza. Estes bens são aqueles que todos desejam, independentemente do que mais desejam ou de seus planos de vida. Ou ainda, podem ser compreendidos como os bens essenciais para que uma pessoa possa ter a vida que deseja, com dignidade.
Acontece que na vida em sociedade, uma série de fatores podem afetar a forma como estes bens são distribuídos, por força dos talentos naturais (inteligência, aptidão física, dentre outros), sociais (renda ou posição social), ou de características pessoais (idade, gênero, etnia), a conduzir a uma situação em que algumas pessoas concentrem os bens sociais e outros indivíduos fiquem desprovidos do acesso a estes bens. Então, os princípios de justiça devem reduzir as loterias naturais e sociais, ao mesmo tempo em que devem ser sensíveis à ambição individual ou ao esforço.
Em outras palavras, admite-se a desigualdade, desde que seja controlada, pois ninguém poderá ter todos os bens primários e todos os indivíduos farão jus a uma parcela destes bens. Ao passo que alguma concentração de bens sociais será permitida, devido ao mérito e esforço, respeitada a regra anterior, de que todos farão jus a alguma parcela.
Para apresentar os princípios de justiça desenhados pelo autor é importante ter em mente que outras regras devem acompanhar a sua interpretação e aplicação, como as regras de prioridade, na sua versão final, os princípios de justiça com as regras de prioridade são demonstrados por RAWLS (2008, p. 333) da seguinte maneira:
“Primeiro princípio
Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema total de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para todos.
Segundo princípio
As desigualdades econômicas e sociais devem ser ordenadas de tal modo que, ao mesmo tempo:
a) Tragam o maior benefício possível para os menos favorecidos, obedecendo às restrições do princípio da poupança justa,
b) Sejam vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades.
Primeira regra de prioridade (A prioridade da liberdade)
Os princípios da justiça devem ser classificados em ordem lexical e portanto as liberdades básicas só podem ser restringidas em nome da liberdade.
Existem dois casos:
a) Uma redução da liberdade deve fortalecer o sistema total das liberdades partilhadas por todos;
b) Uma liberdade desigual deve ser aceitável para aqueles que têm liberdade menor.
Segunda regra de prioridade (A prioridade da Justiça sobre a eficiência e sobre o Bem-estar)
O segundo princípio da justiça é lexicalmente anterior ao princípio da eficiência e ao princípio da maximização da soma de vantagens; e a igualdade equitativa de oportunidades é anterior ao princípio da diferença. Existem dois casos:
a) Uma desigualdade de oportunidades deve aumentar as oportunidades daqueles que têm uma oportunidade menor;
b) Uma taxa excessiva de poupança deve, avaliados todos os fatores, tudo somado, mitigar as dificuldades dos que carregam esse fardo.”
No que toca ao primeiro princípio, percebe-se que ele não é absoluto, mas suas restrições constituem hipóteses excepcionais, assim como se dá prioridade para as liberdades básicas, em detrimento da igualdade material. O segundo princípio, que se subdivide em dois, admite desigualdades sociais, desde que controlada, ou seja, não se trata de um sistema igualitário ao extremo ou mesmo de se conceber um Estado paternalista.
Após a escolha dos princípios de justiça, as partes irão estabelecer uma convenção constituinte e depois as leis e assim por diante, pois são decisões necessárias para reger uma sociedade complexa. Há um processo constituído de quatro etapas: a cada passo aumenta-se o conhecimento das contingências e os conflitos começam a surgir, o que já significa a adoção de regras, como a regra da maioria, para que se possa chegar a um termo. A primeira fase é a opção pelos princípios de justiça na posição original, a seguinte é a escolha de uma constituição (estágio da convenção constituinte) em que se nota o princípio da liberdade igual; a terceira é a fase da produção legiferante ou estágio legislativo, momento em que o princípio da diferença pode ser implementado; e a última é a execução das leis e a atuação do judiciário ou estágio de aplicação das normas. Este processo (que nem sempre é realizado desta forma) permite que se chegue a um acordo, pois há um terreno comum a todos, que começa na posição original.
Tendo em vista a forma como são articulados os princípios de justiça e a hierarquia entre eles, falta fundamentar a razão da prioridade da liberdade, que pode ser explicada pelo fato de que os interesses e objetivos fundamentais devem estar protegidos pelo primeiro princípio, logo, para Rawls a este deve ser dada a prioridade. Quanto aos meios que permitem alcançar interesses secundários, desconhecidos na posição original, é atribuído um lugar subordinado. O que resulta na impossibilidade de restringir liberdades em nome de bens ou fruições econômicas. Ao contrário, a restrição na sua liberdade infringe a base de autorrespeito em uma sociedade justa e enfraquece a sua posição política, o que destrói a autoestima. Pois é a posição da igual cidadania que atende à necessidade de status, tornando imprescindível a precedência das liberdades iguais, que significa igualdade na base social do respeito.
Algumas questões são interessantes. A prioridade para a liberdade pode ser interpretada como uma necessidade para uma sociedade que respeite o mérito e não force as pessoas a fazerem algo que não desejam, apenas para aumentar a fruição econômica. Por outro lado, o princípio da diferença, que permite a discussão sobre saúde pública, cotas em universidades públicas para pessoas de baixa renda, limitação da influência econômica em pleitos políticos, interferência do Estado sobre o território para a garantia da moradia digna, perdeu a força em obras posteriores, a ponto de Gargarella (2008, p. 222-248) falar em “novo Rawls”, que se preocupou mais com a viabilidade prática de sua teoria do que com o igualitarismo econômico.
2. Bens primários como direitos fundamentais
A teoria de Rawls é conhecida como adepta do liberalismo kantiano (VITA, 1993) e tem como uma de suas pedras de toque a distribuição de bens primários, que pode ser traduzido como a garantia de um mínimo de bem-estar material que satisfaça as necessidades básicas de todos os indivíduos, ou em outras palavras, trata-se de um modelo de justiça distributiva. Não significa que não existam outras teorias e modelos que também mereçam destaque e que trabalham com o conceito de justiça distributiva[3]. Porém, a opção por trabalhar com a teoria de Rawls se justifica na medida em que apresenta uma tendência normativa, apta a ser incorporada pelo ordenamento jurídico pátrio – já que é uma teria que encontra espaço em sociedades democráticas, ao mesmo tempo em que aproxima a política da moral.
Se os bens primários são coisas que se supõe que um homem racional deseja, indaga-se o meio pelo qual se daria a incorporação desses bens pelo Direito. Os bens primários da justiça rawlsiana são autorrespeito, autoestima, direitos, liberdades, oportunidades, renda, riqueza.
A resposta dada, então, é que a leitura mais adequada ao nosso paradigma jurídico é a de que ver estes bens como direitos fundamentais. Inicialmente, estes bens se aproximam dos chamados direitos fundamentais civis e políticos (em particular, por ser uma teoria concebida por um liberal). Entretanto, em face das mudanças feitas na interpretação da dignidade humana, a melhor interpretação desses bens é a que a amplia para incluir outros direitos fundamentais, inclusive direitos sociais, por ser uma teoria que visa à garantia de bem-estar material para todos os cidadãos. Os direitos sociais têm como finalidade assegurar a igualdade material entre os indivíduos, servindo como mecanismo de promoção de igualdade e de bem-estar (ABRAMOVICH e COURTIS, 2006, p. 8-21).
Como ensinam Monsalve e Román (2009) existem, pelo menos, três contradições que rodeiam o significado e o alcance da dignidade humana, que são formuladas da seguinte maneira: a tensão entre seu caráter natural e seu caráter artificial ou político; a segunda é a contradição entre seu caráter abstrato e seu caráter concreto; e, por último, existe um problema entre seu caráter universal e seu caráter particular. De onde conclui que todas as tensões estão relacionadas e que a resposta tem sido dada pelos tribunais na análise do caso concreto, em que a dignidade “aparece não somente como um direito ou um princípio reconhecido nos tratados internacionais, mas também renasce como critério de interpretação a favor do sentido mais amplo dos direitos humanos”. Na linha de pensamento dos autores, a filosofia prática kantiana concebeu a dignidade humana como um imperativo geral que impõe que cada ser humano é um fim em si mesmo, sem que possa ser instrumentalizado. Assim, todo ser humano que seja capaz de possuir razão e liberdade para seguir os imperativos morais é dotado de uma dignidade humana universal. Todavia, não há conteúdo concreto ou prático, que tenta ser preenchido com aspectos mais tangíveis da vida social e política de forma a tecer uma relação com o bem viver.
Logo, a justiça rawlsiana carrega consigo a pretensão de universalidade, conforme as premissas vistas acima, mas, para assegurar a distribuição de bens primários é preciso desce aos aspectos tangíveis da vida social e política, o que inclui a configuração do ordenamento jurídico pátrio, que inseriu algumas prestações materiais na Carta de 88, como direitos fundamentais.
Estes direitos, incluído o direito à moradia, são bens primários ou requisitos mínimos para que um individuo possa exercer suas liberdades básicas e devem ser prestados através do Estado, em consonância com o disposto no art. 1º, III e art. 3º, I, III e IV, todos da Lei Maior.
Com o advento da Emenda Constitucional nº 26/2000, a redação do artigo 6º da Carta Magna foi alterada, acrescentando o direito social à moradia. A ideia trazida pela Constituição de 1988, de que a cidade tem uma função social (art. 182, caput, CF), sendo a moradia um direito do cidadão e um dever do Estado, carreou consigo a questão sobre a forma de implementação. Os direitos sociais formam um grupo heterogêneo, no que diz respeito ao conteúdo e positivação, conduzindo ao raciocínio de que a implementação se dá de forma diferenciada.
O que não deve restar dúvida é de que uma pessoa não pode viver com dignidade sem um local no qual possa residir e descansar, com algum grau de segurança, por ser uma necessidade humana básica, que encontrou guarida na Lei Maior como o direito fundamental à moradia. Não há como um ser humano exercer seus direitos se suas necessidades fundamentais não são atendidas.
A concepção de justiça rawlsiana pressupõe a distribuição dos bens sociais primários como condição sine qua non para que uma pessoa possa realizar seu projeto de vida. Por isso, a interpretação destes bens como direitos fundamentais ajuda a lançar luz sobre o significado de dignidade humana: é o mínimo que uma pessoa faz jus para viver a vida que deseja, com dignidade.
O direito à moradia está relacionado a outros direitos, como infraestrutura urbana e serviços públicos, assim como, coletivamente, manter estreitas ligações com classes econômicas vulneráveis que demandam proteção jurídica especial, como populações carentes e sem recursos financeiros. O que fez com que o tópico tenha ganhado destaque na seara jurídica, com diversos diplomas internacionais e nacionais tratando do objeto.
Cabe destacar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, previa o direito à intimidade do lar e à habitação[4]. No entanto, foi com o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em 1966, que se utilizou, pela primeira vez no plano internacional, a expressão moradia[5], mesmo que não tenha ocorrido uma efetiva diferenciação dos termos.
Além desses dois diplomas, a Conferência do Habitat II de Istambul, em 1996, produziu a Agenda Habitat, que define uma moradia adequada, em §39, como aquela em que seja sadia, segura, acessível e com preço viável, que inclua serviços básicos, instalações e áreas de lazer, e que esteja livre de qualquer tipo de discriminação no que se refere à habitação ou à garantia legal da posse. Adotando-se o conceito de moradia previsto em documentos internacionais e considerando-o um direito fundamental, o problema a ser enfrentado é como efetivá-lo, e a resposta não é outra, senão por meio do planejamento urbano.
3. O direito à moradia, planejamento urbano e a justiça como equidade
Planejar significa programar ou fazer planos, e no contexto urbano significa fazer planos para alcançar metas relacionadas ao desenvolvimento urbano, que hoje deve levar em consideração os interesses privados, interesses públicos, a sustentabilidade, dentre outros diversos interesses que possam confluir dentro das cidades contemporâneas.
Cabe ressaltar, na linha do raciocínio de Dias (2012, p. 128-131), que o planejamento urbano tem que ser pensado conjugando a interligação entre uma série de serviços que devem ser prestados com eficiência a todos os bairros de uma cidade inserida numa economia nacional, como um microssistema, dentro de limites orçamentários para garantir o bem-estar social. Com isso se evita o deslocamento de pessoas com baixa renda para áreas de invasão, loteamentos clandestinos, formação de bolsões de miséria, dentre outros problemas urbanísticos.
Sem sombra de dúvida o papel do Direito aqui é fundamental, inicialmente por ser necessário para a proteção dos direitos fundamentais e depois para arbitrar os conflitos que possam emergir do convívio social. A Constituição Federal determina ser competência municipal, art. 30, VIII, e art. 182, caput CF, que deve ser exercida em conjunto com a função ordenadora da economia, art. 174, caput, CF, e, por isso, devem ser lidos conjuntamente:
“Art. 30. Compete aos Municípios:
VIII – promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;
Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.”
Nesse passo, todos os entes federados devem cooperar e atuar conjuntamente, o que torna imprescindível o diálogo e a comunicação entre todos, como forma de se ordenar as cidades. Ao ente federal, coube editar normas gerais, materializadas no Estatuto da Cidade (lei 10.257/2001), que seguindo ditames constitucionais, como o que determina que a propriedade deve exercer sua função social (art. 5, XXIII, CF) a ser expressa no plano diretor municipal (art. 182, §2, CF), rompeu com um modelo de apropriação do espaço urbano pautado mais no interesse privado que público e elevou a participação popular a condição de legitimação da aprovação da lei que irá disciplinar os planos traçados para o desenvolvimento da cidade – o plano diretor municipal. Isto pode ser observado nos art. 2, incisos I à IV e XIII, art. 4, III, ‘f’, IV, ‘s’ e §3, art. 40, §4, incisos I à III da lei 10.257/2001:
“Art. 2o A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:
I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações;
II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano;
III – cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao interesse social;
IV – planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente;
IX – justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização;
XIII – audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população;
Art. 4o Para os fins desta Lei, serão utilizados, entre outros instrumentos:
III – planejamento municipal, em especial:
f) gestão orçamentária participativa
V – institutos jurídicos e políticos:
s) referendo popular e plebiscito;
§ 3o Os instrumentos previstos neste artigo que demandam dispêndio de recursos por parte do Poder Público municipal devem ser objeto de controle social, garantida a participação de comunidades, movimentos e entidades da sociedade civil.
Art. 40. O plano diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana.
§ 4o No processo de elaboração do plano diretor e na fiscalização de sua implementação, os Poderes Legislativo e Executivo municipais garantirão:
I – a promoção de audiências públicas e debates com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade;
II – a publicidade quanto aos documentos e informações produzidos;
III – o acesso de qualquer interessado aos documentos e informações produzidos.”
Desse conjunto de dispositivos já se percebe uma orientação normativa que visa alterar a forma de pensar a cidade e o espaço urbano. Outra característica marcante é a tendência universalizante da Lei 10.257/2001 de garantir a todos uma cidade sustentável e o direito à moradia digna de todos os cidadãos, que aliada à participação popular permite traçar uma relação com os princípios da justiça de Rawls.
O primeiro princípio protege as liberdades básicas e pode ser usado como um guia para evitar abusos ou ingerências desnecessárias às liberdades dos cidadãos. Com isso, garante-se a propriedade privada (art. 5, XXII, CF), à qual se soma mais uma proteção: até uma eventual desapropriação deve ser motivada consoante o plano diretor, que exige a participação daqueles que serão atingidos e permite controle social por aqueles que possuem menor liberdade. Assim as restrições tentam proporcionar um sistema que melhore ou aprimore as liberdades de todos.
Como exemplo, cita-se o caso de desapropriação de pessoas que moram em lugares de risco à sua vida ou integridade física. Nessa situação deve haver uma regulamentação, inclusive no plano diretor, em que conste que aquela região não deve ser habitada e este assunto deve ser discutido pelas lideranças locais e pessoas interessadas, além de órgãos públicos, tais como Ministério Público, Secretárias Estaduais e Municipais, dentre outros. A exceção, naturalmente, decorre de casos imprevistos ou decorrentes de causas naturais em que a proteção à vida reclama uma ação mais imediata e não pode esperar pela deliberação legislativa.
O direito à moradia se relaciona com inúmeras liberdades, como exemplo de proteção constitucional, cita-se o direito à intimidade, inviolabilidade de domicílio, segredo doméstico (que decorre da intimidade e pode se manifestar como liberdade de pensamento, assunto familiar, sigilo profissional, sigilo de correspondência), direito ao sossego (melhor observado nas normas do direito de vizinhança) e a liberdade de construir (no sentido de fazer o que quiser com a sua moradia desde que a lei não proíba ou ofenda direito de terceiros). Todos estes casos podem ser citados como exemplos de proteção e limitação ao primeiro princípio com o objetivo de assegurar a todos um sistema total de liberdades melhor.
Isto é importante porque nenhum dos entes federados deve, a título de ordenar a cidade, ofender direitos ou restringir garantias constitucionais que assegurem a liberdade. Como o planejamento urbano mantém relação com a organização econômica, é digno de nota que, inclusive, o Estado não deve explorar diretamente atividade econômica, com exceção dos casos previstos na Lei Fundamental (art. 173, caput, CF). Os meios de produção, então, estão, principalmente nas mãos da iniciativa privada, que demanda um determinado nível de liberdade para atuar com eficiência, o que não impede alguma regulação, com vistas a um melhor funcionamento, de acordo com o que preconiza SEN (2000). O que se quer evitar é o abuso de ingerência na esfera privada e nos mercados. Há, então, que se observar a função social da propriedade e a função social da cidade, a justa distribuição dos ônus e bônus dos processos de urbanização, dentre uma série de princípios.
Ao mesmo tempo, os demais requisitos para se ter uma moradia digna, que se consubstancia na prestação de serviços públicos eficientes, como transporte público, saneamento básico e iluminação pública, devem ser pensados para todos os cidadãos. Todavia, ao contrário do que muitas vezes se vê, em que se tenta maximizar a prestação de serviços públicos para bairros e regiões tidas como nobres da cidade, e, no que for possível para a minoria da população, quase sempre, as camadas com menor poder aquisitivo (em alguns casos é a maioria dos habitantes da cidade destituída de influência política ou econômica), os serviços devem ser prestados de forma que tragam o maior benefício possível para os menos favorecidos. Ou seja, os serviços são para todos – porque a cidade é de todos –, mas deve-se privilegiar estes grupos. Desta forma, é possível conceder o mínimo de bem-estar a todos, o que lhes propiciará a realização de seus projetos pessoais.
3.1. Princípio da diferença e justiça distributiva espacial
Dentro dos princípios da justiça como equidade, há o princípio da diferença, a permitir a adoção de sistemas econômicos e políticos que tragam benefícios para todos, dentro de certa razoabilidade, que ampliem as oportunidades dos grupos menos favorecidos. É neste princípio que se encontra a defesa de ações políticas, econômicas e sociais em favor de grupos que estejam em alguma situação de vulnerabilidade.
Alguns temas têm sido debatidos, dentre os quais, a adoção de cotas em favor de certos grupos em universidades públicas foi o que chamou a atenção recentemente, que envolvem a interferência do Estado na vida civil. No que tange ao direito à moradia, após o advento do Estatuto da Cidade e da inclusão da moradia como direito fundamental na Constituição, algumas leis foram elaboradas que materializam esta possibilidade.
A aplicação do princípio da diferença à distribuição do espaço, de maneira justa, entre todos os cidadãos, conduz ao tema “justiça distributiva territorial” (HARVEY, 1980, p. 85), ou, mais especificamente, pode ser chamado de justiça socioespacial.
A exploração do conceito de justiça e do que ela requer pode auxiliar a reflexão sobre a forma de organizar a vida coletiva, estabelecendo princípios básicos que justificam uma forma particular de Estado, ou que demostram como os recursos de uma sociedade devem ser partilhados entre seus membros. Uma vez que não se considera os acordos coletivos como imutáveis ou parte de uma ordem natural, estes estão abertos à mudança e exigem justificação.
Ainda há outro motivo para o exame de teorias que estão a serviço da busca por uma sociedade em que a igualdade não se restrinja a igualdade formal. É que a formulação de alguns programas no Brasil tem como fulcro uma frágil ideia de justiça, que não leva em consideração o que é melhor para toda a sociedade e para os indivíduos que a compõe (BRITO FILHO, 2012, p. 13-31). Assim, a pesquisa sobre algumas ideias concretas de justiça e igualdade podem fornecer os subsídios teóricos necessários para a normatividade de direitos sociais de forma coerente.
É digno de nota que a moradia digna, enquanto um direito fundamental não precisa corresponder ao direito à construção de parques habitacionais pelo Estado. Como dito acima, os direitos fundamentais são garantidos e protegidos das mais variadas formas. Pode haver interferência estatal pela regulação, prestação direta e em outros casos o Estado pode se abster de agir.
A moradia digna engloba infraestrutura (por exemplo, abastecimento de água por rede geral canalizada; iluminação elétrica; lixo coletado por serviço de limpeza diretamente); localização que permita aos seus moradores estabelecerem relações sociais; o acesso a serviços públicos básicos (como de saúde e de educação); e a proteção jurídica da posse, que não precisa se confundir com a propriedade privada.
Esse último elemento é interessante porque evidencia que mesmo que a moradia digna deva possuir algum grau de segurança de posse aos ocupantes do imóvel, que lhes garanta a proteção jurídica contra despejos forçados e outros tipos de interferências indevidas na posse, essa garantia pode se dar com o direito real de uso do solo urbano, ou, residualmente, com um sistema de aluguel social ou outra medida, que não precisa coincidir com a propriedade privada.
O direito à moradia não impede a remoção de pessoas, em especial, se for o caso de a área em que estiver localizada a moradia trouxer riscos aos ocupantes. O direito à moradia, nessa situação, exigiria o fornecimento de informação ao morador antes da tomada de decisão e de que o Estado apresente alguma alternativa, como a realocação dos ocupantes para região próxima da área de risco, para que sejam respeitados outros aspectos da moradia digna. Em outras palavras, o direito à moradia impõe limites e condições à remoção forçada, mas não elimina essa possibilidade, em casos extremos ou de interesse público.
Há um duplo caráter, em que de um lado há direito individual, pois cada cidadão tem direito a viver com dignidade, sendo titular do direito à moradia, e do outro lado há forte conotação coletiva, pois é praticamente impossível individualizar a quantidade exata que cada pessoa se beneficia de alguns serviços públicos (SEN, 2000, p. 153).
Nesse passo, por exemplo, a Lei Federal 11.977/2009 expressa bem a adoção de atuação estatal pautada por princípios de justiça, em especial do princípio da diferença. No primeiro capítulo deste diploma legal estão contidas normas sobre o subsídio de crédito para beneficiar a aquisição de residências, pelo Programa Minha Casa, Minha Vida. No terceiro capítulo está disciplinada a regularização fundiária como instrumento de proteção da moradia.
Existem, então três situações diferentes. A primeira é a possibilidade de se buscar, via mercado, a aquisição de uma residência com condições dignas. A segunda é a utilização de crédito subsidiado, também, para a compra de moradias. A última é a regularização fundiária de assentamentos informais.
Ou seja, os arranjos políticos, sociais e econômicos estão dispostos de maneira a distribuir a propriedade entre todos, utilizando-se de diversos mecanismos diferente.
A regularização fundiária emerge como uma alternativa de política pública para o tratamento de áreas já ocupadas irregularmente (PRESTES, 2006, p. 42-47). Dentre as diversas diretrizes gerais da Política Urbana, a Lei Federal 10.257/2001 (Estatuto da Cidade) em seu art. 2º, inciso XIV, dispõe que a regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda será feita mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população. Dessa forma, é possível atuar nas duas formas de irregularidades existentes.
A existência deste arcabouço não é sinônimo de trabalho concluído por, basicamente, duas razões. A primeira é que tanto o Programa Minha Casa, Minha Vida e as políticas de regularização fundiária precisam ser aperfeiçoados. Não há a exigência legal, por exemplo, de que sejam observadas ou criadas leis municipais e estaduais urbanísticas, com vistas à promoção do direito à moradia. No caso do Programa Minha Casa, Minha Vida, quem define o local em que as residências serão construídas é a própria construtora, que tende a escolher regiões com menor custo, sem se preocupar com outras questões referentes à moradia digna, como infraestrutura.
A segunda razão é que pelo Princípio da Diferença seria necessário estar atento ao surgimento de novas formas de desigualdades e se os atuais programas de auxílio estatal conseguem dar conta de eventuais problemas novos que surjam.
Contudo, a base da justiça como equidade fornece corpo à compreensão de que o Estado deve gerir o espaço atento à forma como as pessoas se utilizam dele e se há grupos que estão sendo preteridos no acesso aos bens primários.
Pode-se, então, resumir que a justiça distributiva socioespacial exige adoção de políticas que distribuam entre todos os cidadãos, certos bens considerados fundamentais, a serem materializados na proteção da posse, infraestrutura e acesso a serviços básicos, respeito a questões culturais e de acessibilidade para grupos vulneráveis. No mesmo sentido, alguns bens podem ser obtidos via mercado, enquanto outros devem ser prestados pelo Poder Público, além de ser necessário, respeitando as liberdades fundamentais, que o espaço seja regulado, a ser feito via a legislação que trata do ordenamento territorial.
Esta é uma concepção de justiça que endossa a interferência estatal, mas que exige a adoção de critérios públicos e claros para pautar a ação do Estado.
Conclusão
A justiça como equidade de Rawls aplicada ao planejamento urbano é uma tentativa de discutir as cidades sob um outro ponto de vista. Não se teve a pretensão de esgotar o assunto.
Apesar desta teoria ter suas limitações, há uma clara preocupação com a totalidade da população na justa distribuição dos ônus e bônus do processo de desenvolvimento urbano. Somente isto já contribui para a implementação do direito à moradia e da execução do planejamento urbano.
Não se deve olvidar que a lei 10.257/2001 e a Constituição de 1988 garante a todos o direito à moradia digna. Conceber o planejamento urbano desta forma, fora de um modelo exclusivamente lastreado no interesse privado, sem a preocupação com outros atores e fatores, é um avanço, mas não é o suficiente.
Muitas ações adotadas pelo Estado possuem um viés utilitarista de maximizar bens, mas termina excluindo uma parcela da população que mais necessita de ajuda estatal. A tentativa de romper com este paradigma já merece ser notada. Se é difícil conceber um direito subjetivo de todo cidadão que obrigue o Estado a construir casas, é plenamente factível exigir do Estado a adoção de um planejamento urbano que contemple a cidade inteira, seja por meio das eleições, seja por meio de audiências e consultas públicas – além dos meios judiciais.
Assim, não se trata de um Estado grande demais que interfira demasiadamente na liberdade dos indivíduos, ou de um Estado tão pequeno que só atue na garantia de contratos e esfera penal. Trata-se de um Estado apto à garantir a dignidade humana, tendo em vista as privações e necessidades humanas contemporâneas.
Fernandes (2006) explica que com mais de 70% da população da América Latina vivendo em cidades e, mais especificamente no Brasil, com mais de 80% da população residindo em centros urbanos, a preocupação com os problemas enfrentados pelo processo de urbanização tem se intensificado. A razão é que o crescimento urbano tem sido acompanhado de exclusão social, crise habitacional, violência urbana, dentre outros, cuja solução depende de uma reforma urbana, desencadeada por uma reforma jurídica. Como é cediço no ordenamento jurídico pátrio, o Estatuto da Cidade prevê diversos instrumentos jurídicos e tributários, alguns dos quais não muito utilizados, que poderiam incentivar e ordenar o crescimento urbano com a proposta de evitar ou resolver estes efeitos do crescimento desorganizado, incluindo os incentivos e benefícios fiscais; contribuição de melhoria; concessão de direito real de uso; concessão de uso especial para fins de moradia; outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso; transferência do direito de construir; operações urbanas consorciadas; e assistência técnica e jurídica gratuita para as comunidades e grupos sociais menos favorecidos.
O que chama a atenção é que grande parte destes instrumentos, ainda assim, podem, balizados pela doutrina ética utilitarista, garantir o máximo de bens para a maioria da população. O resultado é conhecido: a parcela da população mais carente fica privada do mínimo de bens para sobreviver.
Nesse diapasão, os princípios de justiça de Rawls aplicados ao planejamento urbano, é uma alternativa viável para salvaguardar o direito à moradia digna de todos e endossar uma concepção de justiça distributiva socioespacial.
Informações Sobre o Autor
Gabriel Moraes de Outeiro
Doutorando em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido pela UFPA. Mestre em Direito pela UFPA Especialista em Direito Tributário pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Advogado