A necessidade de conservação ambiental para o exercício do direito ao conhecimento tradicional

Resumo: As comunidades tradiconais possuem uma relação de estreita dependência com o local onde vivem, uma vez que o seu modo de vida tem uma forte relação com a diversidade biológica, em função de uma dependência com fins de subsistência, econômicos, culturais ou religiosos. Nessa esteira, os conhecimentos tradicionais que são adquiridos como resultado de um engajamento prático e diário que exige lugares específicos para serem produzidos, seja por uma questão religiosa ou mesmo por causa da existência em um determinado lugar de uma certa espécie de planta. O deslocamento dessas comunidades ou a simples depredação do meio ambiente em que vivem, causam prejuízos não só ao meio ambiente como também à produção do conhecimento tradicional. Por isso, diversos tratados e convenções internacionais tratam dessa temática.

Palavra-chave: conhecimento tradicional; conservação ambiental.

Abstract: The tradiconais communities have a close relationship of dependency with the place where they live, once their way of life has a strong relationship with the biological diversity, due to a dependency for subsistence purposes, economical, cultural or religious. In this sense, the traditional knowledge that are acquired as a result of practical engagement and daily that require specific places to be produced, either by a religious issue or even because of the existence in a determined place of a certain plant specie. The displacement of these communities or the mere destruction of the environment in which they live cause damage not only to the environment but also to the production of traditional knowledge. That is why various treaties and international agreements address this issue.

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Palavra-chave: traditional knowledge; environmental conservation.

Sumário: Introdução. 1. Comunidades tradicionais. 2. Conhecimento tradicional. 2.1 Proteção em âmbito Internacional. 2.2 Os conhecimentos tradicionais como sendo um Direito Humano à Cultura. 3. Relação entre o direito ao ambiente e o direito humano à cultura. 3.1 Caso Inuit vs. EUA. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

O conhecimento tradicional é a mais ancestral forma de produzir ciência, e como tal destaca-se por seu vasto campo e varidade que comportam, segundo Juliana Santilli, técnicas de manejo de recursos naturais, métodos de caça e pesca, além de conhecimentos sobre os diversos ecossistemas e sobre propriedades farmacêuticas, alimentícias e agrícolas de espécies e as próprias categorizações e classificações de espécies de flora e fauna utilizadas pelas populações tradicionais.

A produção desse conhecimento têm dimensões múltiplas no que diz respeito à própria organização do trabalho dos povos tradicionais, indo além de elementos técnicos e englobando o ritual, o simbólico, além de correlacionar a vida econômica com a vida social do grupo de tal forma que se tornam indissociáveis.

A produção de conhecimento resulta de práticas culturais, feitas através de observação minuciosa e sobre isso Manuela Cunha e Mauro Almeida dizem que além do que seria necessário ou racional do ponto de vista econômico existe um “excesso” de conhecimentos somente justificado pelo mero prazer de saber, pelo gosto do detalhe e pela tentativa de ordenar o mundo de forma intelectualmente satisfatória. Complementam dizendo que dentre os apetites, o apetite de saber é um dos mais poderosos.

A partir do século XX, esses conhecimentos tradicionais, os quais até então destinavam-se à manutenção do modo de vida de comunidades tradicionais, passaram a ser vistos sob um prisma utilitarista por causa do novo cenário científico e tecnológico, o qual ganha contornos claros com a ascensão de tecnologias novas que passam a ver nesses recursos um potencial industrial.

Contribuem para isso a biotecnologia e as aspirações consumidoras, as quais cada vez mais identificam as culturas tradicionais como um bem a ser consumido.

O crescimento do chamado “mercado verde”, impulsionado pela mercantilização da sustentabilidade também tem contribuído para isso com influência no avanço sobre essas culturas.

O presente trabalho visa mostrar a forte correlação entre as comunidades tradicionais e o meio ambiente como instrumento para a fruição dos direitos humanos por essas comunidades, mais especificamente para a fruição do direito ao conhecimento tradicional e os instrumentos de proteção no cenário internacional desse direito ao conhecimento tradicional.

Para tanto, o presente trabalho foi dividido em três capítulos. O primeiro capítulo traz uma breve abordagem do conceito de comunidades tradicionais.

O segundo capítulo traz uma abordagem conceitual sobre o conhecimento tradicional, os instrumentos de proteção desse direito em âmbito internacional e a caracterização desse direito como sendo um direito humano à cultura.

O terceiro e último capítulo mostra a relação entre o direito ao meio ambiente e o direito humano à cultura e como esses dois “direitos” são intimamente dependentes um do outro. E para demosntrar essa nítida relação é feita uma explanação sobre o Caso Inuit vs. EUA.

1 COMUNIDADES TRADICIONAIS

O tema “comunidade tradicionais” é um assunto complexo não só por causa das especificidades das sociedades envolvidas como também pela discordância semântica em torno do assunto.

No presente trabalho, não será feito o enfrentamento desses problemas semânticos, que giram em torno da melhor denominação a ser dada aos grupos tidos como tradicionais como os povos indígenas, quilombolas e comunidades locais (caiçaras, açorianos, caipiras, babaçueiros, jangadeiros, pantaneiros, pastoreiros, quilombolas, ribeirinhos/caboclo amazônico, ribeirinhos/caboclo não amazónico (varjeiro), sertanejos/vaqueiro, pescadores artesanais, extrativistas, seringueiros, camponeses, dentre outros).

Diegues aponta como características dessas populações a dependência e até simbiose com a natureza, os ciclos naturais e os recursos naturais renováveis a partir dos quais se constroem um modo de vida; conhecimento aprofundado da natureza e de seus ciclos que se reflete na elaboração de estratégias de uso e de manejo dos recursos naturais.

Pode-se perceber que estas pessoas possuem uma relação de estreita dependência e consumo com o local onde vivem, tomando decisões sobre que recursos são necessários, a forma de obtê-los e a forma de consumí-los.

Percebe-se que o que faz o grupo social ser identificado como tradicional, é o seu modo de vida e as suas formas de estreitar relações com a diversidade biológica, seja em função de uma dependência com fins de subsistência, como também com fins econômicos, culturais ou religiosos.

Como a historicidade destas pessoas está ligada a natureza, os relatos afirmam que os conhecimentos surgem nos ensinamentos dos mais velhos durante as atividades do cotidiano.

Quando é preciso ingerir algum medicamento, basta recorrer ao ambiente para obtê-lo através das plantas e de animais, que são utilizados especificamente para determinados fins terapeuticos e preparados conforme o conhecimento local.

Na natureza tudo pode ser aproveitado, e é com esta concepção que os povos tradicionais ensinam seus filhos o conhecimento que é repassado de geração em geração.

Os saberes culturais que permeiam as relações do homem tradicional com o meio ambiente são altamente necessários quando se discute a educação ambiental. Devido o descaso presente em muitos ecossistemas, devemos buscar nos costumes da cultura tradiconal formas de melhorar a qualidade de ensino e sensibilização ambiental das pessoas.

2 CONHECIMENTO TRADICIONAL

Para Diegues o conhecimento tradicional é o saber e o saber-fazer a respeito do mundo natural e sobrenatural, gerados no âmbito da sociedade não urbano/industrial e transmitidos oralmente de geração em geração.

Lévi-Strauss, sobre esse tema conclui, com base em um longo período de observações em campo, que o conhecimento dos povos indígenas supõe séculos de observação ativa e metódica, hipóteses ousadas e controladas, a fim de rejeitá-las ou confirmá-las através de experiências incansavelmente repetidas.

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Os conhecimentos tradicionais são adquiridos em consequência de um engajamento prático e diário, por parte das sociedades tradicionais, nos diferentes campos de sua vida social onde são tomadas decisões sobre o seu cotidiano.

Ao longo de muitas gerações, no cotidiano dessas comunidades é que esses conhecimentos são repetidos, de modo a serem reforçados, modificados ou mesmo abandonados devido a mudanças nas condições de sua produção, aplicação e transmissão.

Apesar de a prática diária e o prazer de conhecer instigarem a produção do conhecimento tradicional, existem outras vias pelas quais esse conhecimento é produzido, e estas são tão importantes quanto o empirismo.

A literatura faz menção a outras formas de obtenção do conhecimento envolvendo a conexão com o mundo espiritual, tais como o conhecimento advindo de espíritos ancestrais, aos quais têm acesso por meio de visões e de sonhos, ou por meio de revelações, insights, transe xamânico e experiências oníricas.

Qualquer que seja a forma de produção ou aquisição é preciso reconhecer que o conhecimento tradicional é fruto de uma lógica complexa, que envolve processos sofisticados de construção, impensáveis sem uma atividade intelectual consciente.

Nas sociedades indígenas, por exemplo, nas quais a propriedade sobre as coisas tem pouco valor em comparação com a propriedade do conhecimento que é marca distintiva entre os que têm muito (sabem muito) e os que têm pouco (sabem pouco). Essa diferença entre saber muito e saber pouco é algo construído com o tempo, funcionando como um motor essencial da estrutura de poder nessas sociedades.

Nesse tipo de comunidade, cabe aos mais velhos transmitir os conhecimentos aos mais novos e, assim, os jovens aprendem ouvindo ou imitando os mais velhos.

É importante destacar que essa transmissão não acontece de modo informal, ao contrário, cada tipo de ensinamento exige lugares específicos para serem produzidos, tais como a mata e a roça.

Percebe-se, com isso que existe uma estreita relação entre o mundo físico, o espiritual e o social, uma vez que, como já foi dito, cada tipo de ensinamento exige lugares especifícos para a transmissão, sendo o ambiente natural o lugar privilegiado para essa transmissão.

Ademais, as sociedades tradicionais interagem com outras populações, tradicionais ou não, o que pode as induzir a transformações no seu modo de vida.

Para Gallois, reconhecer a mutabilidade histórica como uma condição inerente à cultura possibilita abandonar a imagem negativa que suscita a idéia de perda de conhecimentos e favorece a operar com a ideia de avanço proporcionado pelas novas aquisições que, sem dúvida, transformam os conhecimentos tradicionais.

Ainda a respeito da capacidade de adaptação dessas comunidades, Cunha afirma que tanto quanto ou talvez mais do que informações, o que se transmite do conhecimento tradicional é uma combinação de pressupostos, formas de aprendizado, de pesquisa e de experimentação.

Portanto, o que distingue um conhecimento como sendo tradicional não é o seu conteúdo específico, mas sim o modo, o processo, a forma como é adquirido, produzido, usado e transmitido.

Contudo, não se pode perder de vista a possibilidade de essas condições de mutabilidade e inovação atingirem os processos que regulam a autonomia e a liberdade de vivenciar o modo de ser das sociedades tradicionais.

De qualquer modo, ninguém melhor do que as pessoas que compõem essas comunidades para dizer quais inovações lhes interessam e como poderão ser absorvidas, incorporadas e articuladas em favor do fortalecimento de suas identidades.

2.1. Proteção em âmbito Internacional

A temática da proteção dos conhecimentos, práticas e inovações das comunidades tradicionais é tratada nas mais diversas instituições, sendo que sua abordagem ora diz respeito à preocupação com a proteção dos conhecimentos ancestrais conforme suas peculiaridades, ora diz respeito ao interesse econômico sobre os mesmos.

Existem diversos tratados ou convenções internacionais tratando sobre essa temática, dentre os quais não se pode deixar de citar a preocupação da Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura (UNESCO-United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization) quanto ao patrimônio cultural, possuindo normas referentes à proteção do folclore, conforme se percebe da leitura da Recomendação sobre a salvaguarda da cultura tradicional e popular, de 1989, abaixo transcrita:

“A cultura tradicional e popular é o conjunto de criações que emanam de uma comunidade cultural fundadas na tradição, expressas por um grupo ou por indivíduos e que reconhecidamente respondem à expectativas da comunidade enquanto expressão de sua identidade cultural e social; as normas e os valores se transmitem oralmente, por imitação ou de outras maneiras. Suas formas compreendem, entre outras, a língua, a literatura, a música, a dança, os jogos, a mitologia, os rituais, os costumes, o artesanato, a arquitetura e outras artes”.

Apesar de o conceito de obras de folclore não se confundir com o de  conhecimentos tradicionais associados aos recursos biológicos, muitas expressões culturais do folclore podem ser traduzidas em conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.

Segundo Eliane Abrão obras de folclore são manifestações de cultura tradicional e popular definidas na Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular aprovada pela Conferência Geral da UNESCO, em Paris, em 15 de novembro de 1989, como o conjunto de criações que emanam de uma comunidade cultural fundadas na tradição, expressadas por um grupo ou por indivíduos e que reconhecidamente correspondem às expectativas da comunidade enquanto expressão de sua identidade cultural e social. Ainda segundo a mesma autora, as normas e os valores são transmitidos oralmente, por imitação ou de outras maneiras e suas formas compreendem, entre outras, a língua, a literatura, a música, a dança, os jogos, a mitologia, os ritos, os costumes, o artesanato, a arquitetura, e outras artes.

Na 33ª reunião da Conferência Geral da UNESCO, celebrada em Paris, em 2005, foi adotada a Convenção sobre a proteção e promoção Diversidade das Expressões Culturais, a qual valoriza tanto os conhecimentos tradicionais quanto os sistemas de conhecimento das populações indígenas, além de ressaltar a necessidade de sua adequada promoção para a plena realização dos direitos humanos, conforme estabelece a convenção ao ressaltar:

“(…) a importância da diversidade cultural para a plena realização dos direitos humanos e das liberdades fundamentais proclamados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e outros instrumentos universalmente reconhecidos”.

A Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, de 2003, é outro importante instrumento internacional que conceitua patrimônio cultutal imaterial como sendo:

“(…) as práticas, representações, expressões, conhecimentos e aptidões – bem como os instrumentos, objectos, artefactos e espaços culturais que lhes estão associados – que as comunidades, os grupos e, sendo o caso, os indivíduos reconheçam como fazendo parte integrante do seu património cultural. Esse património cultural imaterial, transmitido de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função do seu meio, da sua interacção com a natureza e da sua história, incutindo-lhes um sentimento de identidade e de continuidade, contribuindo, desse modo, para a promoção do respeito pela diversidade cultural e pela criatividade humana. A Convenção 169, adotada em 1989, estabelece padrões internacionais de proteção do desenvolvimento dos direitos das populações indígenas, com destaque à tutela de sua cultura. Reconhece que os Estados devem respeitar o especial significado da relação desses povos tradicionais com suas terras e particularmente seus valores culturais e espirituais. Prevê a necessidade de consulta prévia desses povos e da participação de seus representantes em qualquer projeto de desenvolvimento regional ou local”. (grifo nosso).

A Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), que é um dos principais documentos assinados na Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992, estabelece que os Estados têm o dever de preservar o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilos de vida tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade, além de incentivar sua mais ampla aplicação, com a aprovação e a participação dos detentores desse conhecimento, e ainda encorajar a repartição equitativa dos benefícios oriundos da utilização dessas inovações e práticas, como se depreende da leitura do parágrafo abaixo:

“(..) a estreita e tradicional dependência de recursos biológicos de muitas comunidades locais e populações indígenas com estilos de vida tradicionais, e que é desejável repartir equitativamente os benefícios derivados da utilização do conhecimento tradicional, de inovações e de práticas relevantes à conservação da diversidade biológica e à utilização sustentável de seus componentes”. (grifo nosso).

A Convenção 169 da Organização Internacional do trabalho (OIT) sobre povos indígenas e tribais fala sobre a necessidade de se respeitar a integridade dos valores, práticas e instituições dos povos indígenas e da obrigação de consulta prévia a esses povos sobre qualquer medida legislativa ou administratíva susceptível de afetá-los, conforme se percebe da leitura do parágrafo abaixo:

“Os Estados deverão consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-Ios diretamente”.

A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 2007, estabelece que os povos indígenas possuem o direito de manter, controlar, proteger e desenvolver seu patrimônio cultural, seus conhecimentos tradicionais, suas expressões culturais tradicionais e as manifestações de suas ciências, tecnologias e culturas, compreendidos os recursos humanos e genéticos, as sementes, os medicamentos, o conhecimento das propriedades da fauna e da flora, as tradições orais, as literaturas, os desenhos, os esportes e jogos tradicionais e as artes visuais e interpretativas, como se percebe da leitura do parágrafo abaixo:

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“Os povos indígenas têm o direito a medidas especiais de proteção, como propriedade intelectual, de suas manifestações culturais tradicionais, como a literatura, desenho, artes visuais e representativas, cultos, conhecimentos médicos e conhecimento das propriedades úteis da fauna e da flora”.

Também, segundo a supramencionada declaração, os povos indógenas têm o direito de manter, controlar, proteger e desenvolver sua propriedade intelectual sobre o mencionado patrimônio cultural, seus conhecimentos tradicionais e suas expressões culturais tradicionais.

2.2 Os conhecimentos tradicionais como sendo um Direito Humano à Cultura

Segundo Peres Luño, os direitos humanos podem ser entendidos como o conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretiza as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos nos âmbitos nacional e internacional.

Celso de Albuquerque Mello afirma que os direitos do homem são aqueles que estão consagrados nos textos internacionais e legais, não impedindo que novos direitos sejam consagrados no futuro, no entanto, os direitos já existentes não podem ser retirados, vez que são necessários para que o homem realize plenamente a sua personalidade no momento histórico atual.

Durante muito tempo preponderou a visão de gerações de direitos humanos, na qual os direitos humanos de primeira geração seriam os direitos civis e políticos, os direitos de segunda geração seriam os direitos sociais, econômicos e culturais e os direitos de terceira geração correspondiam aos direitos à soberania, ao meio ambiente sadio, à informação, dentre outros.

Esta visão refletia o processo histórico pelo qual a Europa passava, o que serviu, muitas vezes, de subsídio para uma visão fragmentária dos direitos humanos, através da qual os direitos humanos eram apresentados com uma concepção individualista da sociedade, característica da cultura ocidental, em que se pode falar de individualismo religioso, político, moral, jurídico, estético, etc. Em culturas dominadas pelo caráter grupal, com preponderância à comunidade, à tribo, ao Estado, não seria  possível o desenvolvimento de direitos considerados inerentes às pessoas, que podem ser opostos contra a coletividade.

A partir da Conferência Mundial de Direitos Humanos de Viena em 1993, esta visão fragmentária dos direitos humanos foi substituída pelo princípio da complementariedade solidária desses direitos, consagrando-se o entendimento de que os direitos humanos são interdependentes e inter-relacionados. 

Esse entendimento de complementariedade dos direitos humanos é essencial para que se possa compreender os conhecimentos tradicionais como sendo direitos humanos.

Os direitos culturais são parte integrante dos direitos humanos e estão indicados no artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e no artigo 15 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), como se depreende da leitura dos citados artigos abaixo transcritos:

“1. Todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir das artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios.

2. Todo ser humano tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica literária ou artística da qual seja autor”.

“§1. Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem a cada indivíduo o direito

de:

1. Participar da vida cultural;

2. Desfrutar o progresso científico e suas aplicações;

3. Beneficiar-se da proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de toda a produção científica, literária ou artística de que seja autor”.

Pela leitura dos artigos acima transcritos, percebe-se que todas as pessoas têm o direito de poder poder participar da vida cultural de sua escolha e exercer suas próprias práticas culturais, além de desfrutar do progresso científico e suas aplicações, beneficiar-se da proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de toda a produção científica, literária ou artística de que sejam autoras.

Durante muito tempo os direitos culturais foram compreendidos sob a égide de uma sociedade unitária, negando-se, dessa forma o pluralismo e o multiculturalismo. Nesse sentido leciona Fernando Dantas:

“Classicamente, no que concerne ao patrimônio cultural, a proteção jurídica recaia sobre bens de natureza material. Bens culturais, para o direito moderno ocidental clássico eram coisas concretas, palpáveis, registráveis e documentáveis. (…) A inclusão dos bens de natureza imaterial no rol de bens culturais merecedores de proteção jurídica, em sede constitucional, significa e aponta para um novo momento da historicidade do direito no que diz respeito ao não ocultamento das múltiplas e plurais representações culturais dos povos formadores do tecido social (…)”.

Com a luta histórica travada, ao longo dos anos, pelas comunidades tradicionais visando o reconhecimento do multiculturalismo, deve-se reconhecer que no que concerne aos direitos humanos culturais estão englobados não apenas os direitos outrora reconhecidos, mas também o direito ao pluralismo cultural, no qual está incluso o direito ao exercício e proteção aos conhecimentos tradicionais.

O reconhecimento do direito aos conhecimentos tradicionais como sendo um direito humano cultural advêm também do confronto à apropriação, exploração indevida e mesmo da negação ao exercício desse direito, seja por parte de atos do mercado, de governos, de Estado ou por até mesmo de qualquer outro ator social ou político. 

Assim, entende-se que o direito humano ao conhecimento tradicional implica em reconhecer a existência de diferentes modos de ser e viver, além de se reconhecer o direito de não sofrer limitações, intervenções ou expropriações destes direitos.

Diante de todo o exposto percebe-se a necessidade de destinar aos conhecimentos tradicionais tratamento compatível com o sistema de direitos humanos, para que estes direitos sejam tratados não como insumos, mas sim como direitos humanos culturais essenciais para a concretização da dignidade da pessoa humana, além de estarem diretamente relacionados ao exercício de outros direitos tais como o direito à vida, à saúde, à liberdade e ao território tradicional.

Esta visão se harmoniza com vários instrumentos de direitos humanos, em específico o Protocolo adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, “Protocolo de San Salvador” que em seu artigo 14 garante o direito à participar da vida cultural comunitária:

“1. Os Estados Partes neste Protocolo reconhecem o direito de toda pessoa a:

a) Participar na vida cultural e artística da comunidade;

b) Gozar dos benefícios do progresso científico e tecnológico;

c) Beneficiar-se da proteção dos interesses morais e materiais que lhe caibam em virtude das produções científicas, literárias ou artísticas de que for autora.

2. Entre as medidas que os Estados Partes neste Protocolo deverão adotar para assegurar o pleno exercício deste direito, figurarão as necessárias para a conservação, desenvolvimento e divulgação da ciência, da cultura e da arte.

3. Os Estados Partes neste Protocolo comprometem-se a respeitar a liberdade indispensável para a pesquisa científica e atividade criadora.

4. Os Estados Partes neste Protocolo reconhecem os benefícios que decorrem da promoção e desenvolvimento da cooperação e das relações internacionais em assuntos científicos, artísticos e culturais e, nesse sentido, comprometem-se a propiciar maior cooperação internacional nesse campo”.

3. RELAÇÃO ENTRE O DIREITO AO AMBIENTE E O DIREITO HUMANO À CULTURA

A idéia do meio ambiente como sendo um direito humano foi consagrada, pela primeira vez, no Princípio 1 da Declaração de Estocolmo de 1972 da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, o qual prevê:

“O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar, tendo a solene obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações presentes e futuras (…)”.

Apesar da Declaração de Estocolmo não ter consagrado, explicitamente, o direito ao meio ambiente sadio como um direito humano, percebe-se que esta declaração, implicitamente, ligou a proteção ao meio ambiente à garantia de direitos de primeira e segunda geração, tais como o direito à vida, à saúde, à alimentação, etc.

Neste sentido, Shelton argumenta que o enfoque dado pela Declaração de Estocolmo entende a proteção do meio ambiente como uma condição prévia para o desfrute de uma série de direitos humanos que gozam de garantias internacionais. Consequentemente, a proteção do meio ambiente constitui um instrumento essencial que se encontra subsumido no esforço para garantir efetivamente o desfrute dos direitos humanos.[1]

Cançado Trindade também analisou a relação do direito ao meio ambiente sadio com outros direitos humanos, ressaltando a clara ligação intrinseca entre o direito ao meio ambiente sabio e o direito a uma vida digna como se depreende da leitura do trecho a seguir:

“Tomado em sua dimensão ampla e própria, o direito fundamental à vida compreende o direito de todo ser humano de não ser privado de sua vida (direito à vida) e o direito de todo ser humano de dispor dos meios apropriados de subsistência e de um padrão de vida decente (preservação da vida, direito de viver). (…) O direito fundamental à vida, assim propriamente entendido, fornece uma ilustração eloqüente da interrelação e indivisibilidade de todos os direitos humanos”.

Além do aspecto substancial demonstrando a intríseca relação entre o direito ao meio ambiente e os direitos humanos de segunda e primeira geração, as cortes internacionais de direitos humanos têm analisado essa relação através de seu aspecto processual, o qual tem como sua principal base normativa a Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1992 que, em seu Princípio 10, prevê:

“A melhor maneira de tratar questões ambientais é assegurar a participação, no nível apropriado, de todos os cidadãos interessados. No nível nacional, cada indivíduo deve Ter acesso adequado a informações relativas ao meio ambiente de que disponham autoridades públicas, inclusive informações sobre materiais e atividades perigosas em suas comunidades, bem como a oportunidade de participar em processos de tomada de decisões. Os Estados devem facilitar e estimular a conscientização e a participação pública, colocando a informação à disposição de todos. Deve ser propiciado acesso efetivo a mecanismos judiciais e administrativos, inclusive no que diz respeito à compensação e reparação de danos.”

Assim, em diversos casos envolvendo o direito ao meio ambiente sadio, Estados foram condenados por não garantirem os aspectos processuais deste direito, como por exemplo, o acesso a documentos sobre contratos ambientais entre empresas e Estados, ou a consulta prévia a comunidades tradicionais afetadas por atividades poluidoras.

Uma vez feita a relação entre o direito ao meio ambiente e os direito humanos de primeira e segunda geração, cumpre agora observar, especificamente, a relação existente entre o direito ao meio ambiente e o direito à cultura.

Como já foi dito em tópico anterior, o direito à cultural implica em dar às pessoas a possibilidade de escolher de que forma construirão sua identidade cultural, uma vez que esta última é composta de diversos elementos, tais como, a etnia, o gênero, a língua, etc.

Não se pode forçar uma pessoa para que esta permaneça vinculada a uma determinada cultura. A escolha da pessoa deve ser fruto de uma análise racional e não deve ser motivada a não permanecer em sua cultura original pela falta de oportunidades sócioeconômicas e políticas.

A cultura não é estática, imutável, ela é dinâmica, estando em constante transformação. Os próprios antropólogos descartam o conceito de cultura como um fenômeno social claramente delimitado e fixo, conforme explica Yash Ghai:

“Nenhuma comunidade tem uma cultura estática, especialmente hoje em dia, quando cada comunidade é confrontada com uma multiplicidade de imagens, e exposição a outros modos de vida. A própria consciência de direitos afeta a cultura; (…) Culturas mudam e mesclam-se”.

Diante disso, não se tem como fazer uma definição concreta e fechada do que é direito cultural e o que não é, esse direito possui um conceito muito abrangente, uma vez que a proteção desse direito visa ampliar ao máximo as possibilidades para o ser humano, a sua qualidade de vida, desde a proteção do direito ao lazer, do esporte até a proteção do direito à liberdade religiosa e da tradição.

E é nesse contexto, que se analisa a importância do ambiente natural como locus de ensinamento de práticas de sobrevivência, de lazer, de rituais e regras de convivência.

Não se separa o mundo físico, do espiritual e social, uma vez que, como já foi dito em tópico anterior, cada tipo de ensinamento exige lugares apropriados para a transmissão, sendo o ambiente natural lugar privilegiado para a sua transmissão, reprodução e produção.

Assim, determinados cânticos, rituais, orações são feitos em lugares específicos.

É também no ambiente natural que os conhecimentos tradicionais são produzidos, como por exemplo comunidades tradicionais que vivem da pesca de determinada espécie de peixe ou do cultivo de determinado fruto que existe somente naquela região em que essas pessoas vivem. Medicamentos que são produzidos pela utilização de determinadas espécies vegetais que crescem em determinada região.

Outro exemplo é o do povo Inuit que será analisado em tópico posterior que precisam da neve densa para a construção do iglu, conhecimento tradicional passado de geração em geração e que aos poucos vem se perdendo por causa do aquecimento global.

Por conta disso relevante é conservação ambiental, não só para a produção de conhecimentos relacionados à sobrevivência material dos povos tradicionais, mas também para a sua educação e formação moral e espiritual. É o ambiente natural o lugar apropriado para o aconselhamento, para o ensino da reza, dos cantos, dos remédios, dos mitos, das regras do uso da mata, dos animais.

A degradação ambiental provocada pelo homem, seja o aquecimento global, sejam queimadas, inundações, que obrigam o deslocamento forçado de comunidades tradicionais são uma violação ao direito humano à cultura, uma vez que como foi explicado acima, o meio ambiente é essencial para o exercício desse direito. 

3.1 Caso Inuit vs. EUA

O presente tópico visa demonstrar quais foram os argumentos utilizados na petição em defesa do Inuit, a qual solicitava proteção ao meio ambiente que vinha sofrendo com as mudanças climáticas provodacas pelo aquecimento global, e em consequência disso, a qualidade de vida, a cultura e a subsistência desse povo encontravam-se prejudicadas, o que caracteriza, claramente, uma lesão aos direitos humanos como bem demonstram os argumentos constantes na petição.

Sheila Watt-Cloutier, uma mulher Inuk e Presidente da Conferência Circumpolar Inuit, encaminhou petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em nome próprio e de outros 62 indivíduos, todos os Inuit das regiões árticas dos Estados Unidos da América (EUA) e do Canadá, solicitando apoio da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) para que se fizesse cessar as violações de direitos humanos decorrentes dos impactos das mudanças climáticas descritos na petição.

A economia, cultura e identidade do Inuit, como povos indígenas, dependem do gelo e da neve, uma vez que ao longo de milhares de anos os Inuit construiram toda uma cultura adaptada ao ambiente ártico, desenvolveram um relacionamento íntimo com este meio, usando sua compreensão do ambiente ártico para desenvolver uma cultura complexa, que lhes permitiu crescer com recursos escassos.

As temperaturas médias anuais do Ártico estão aumentando duas vezes mais rápido do que as temperaturas no resto do mundo, o que já causou impactos severos no Ártico, tais como a deterioração nas condições de gelo, uma diminuição na quantidade e qualidade da neve, as mudanças no tempo e nos padrões meteorológicos.

Devido a perda na espessura, extensão e duração do gelo do mar, estas práticas tradicionais tornaram-se mais perigosas, mais difíceis, às vezes, impossíveis, por conta de serem recorrentes casos de caçadores e viajantes que durante as viagens, devido a espessura fina do gelo, não conseguem andar sobre ele ou este acaba cedendo, provocando a queda dos viajantes na água gelada.

Houve mudança também no que concerne à qualidade, quantidade e tempo de queda da neve. A neve cai geralmente no final do ano e a média de cobertura da neve sobre a região diminuiu dez por cento ao longo das últimas três décadas. O degelo da primavera agora chega mais cedo. A neve densa necessária para a construção dos iglus (abrigo feito de neve utilizado por gente que habita as zonas de frio extremo) tornou-se escassa em algumas áreas, forçando muitos viajantes a contar com tendas, que são menos seguras e protegem menos do frio em comparação com os iglus. Isso também contribuiu para a perda do conhecimento tradicional sobre construção iglu, um componente importante da cultura Inuit.

A perda de gelo marinho, que amortece o impacto das tempestades em zonas costeiras, tem resultado em tempestades cada vez mais violentas que atingem a costa, intensificando a erosão e inundações, queda de casas, destruição de infra-estrutura, danos às propriedades Inuit, forçando a relocalização, em alguns casos é solicitado às comunidades que elaborem planos contingencias de relocalização. Essas transformações tiveram um impacto devastador sobre algumas comunidades costeiras, em especial no Alasca e na região do Mar Beaufort canadense. Além disso, esses impactos têm contribuído para o nível da água, quando da diminuição de rios e lagos, o que afeta fontes naturais de água potável e habitat para peixes e plantas, dos quais os Inuit dependem.

Os Inuit anciãos costumavam prever com precisão o tempo para próximos dias com base na formação das nuvens e dos padrões do vento, isso permitia que os Inuit pudessem agendar uma viagem mais segura. Acontece que o clima tornou-se mais imprevisível, uma vez que devido à mudança climática, o vento e as nuvens estão cada vez mais erráticos e menos útéis para a previsão do tempo. A incapacidade de previsão resultou em caçadores encalhados por causa de tempestades repentinas e cancelamentos de viagem.

Foram observadas, também, mudanças na localização, características, número e saúde de espécies vegetais e animais causada por mudanças nas condições climáticas. Algumas espécies estão menos saudáveis, enquanto que outras estão se tornando menos acessíveis ao Inuit, porque os animais estão se movendo para novos locais, exacerbando os problemas de viagens decorrentes da mudança climática. Outros ainda, não podem completar suas migrações anuais, porque o gelo, no qual viajavam não existe mais, ou porque não podem cruzar rios inchados por inundações repentinas. Estes impactos sobre os animais têm prejudicado a capacidade de subsistência do Inuit.

O aumento da temperatura e intensidade do sol tem aumentado o risco de problemas de saúde que anteriormente eram raras, tais como queimaduras solares, câncer de pele, catarata, distúrbios do sistema imunológico, além de outros problemas de saúde provocados pelo calor. Um clima mais quente aumenta a mortalidade e diminuiu a saúde de algumas espécies típicas de ambientes com baixas temperaturas, afetando importantes fontes de proteína para os Inuit. Métodos tradicionais de armazenamento e preservação de alimentos são menos seguros por causa do aumento das temperaturas durante o dia.

Diante disso tudo se pode perceber que, para os Inuit, o aquecimento é susceptível de perturbar ou até mesmo de destruir a sua cultura de caça e partilha de alimentos.

Vários princípios do direito internacional orientam a aplicação das questões de direitos humanos nesse caso. Mais especificamente, os Estados Unidos é obrigado, por ser membro da Organização dos Estados Americanos (OEA) e também, por causa de sua aceitação da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem para proteger os direitos humanos lá descritos, tais como todos os que foram ditos acima. Outros instrumentos internacionais de direitos humanos dão respaldo às obrigações dos Estados Unidos para com o respeito do disposto na Declaração, como por exemplo, o fato de, como parte da Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP), os Estados Unidos estão vinculados aos princípios nela contidos. Como signatário da Convenção Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), os Estados Unidos devem agir em conformidade com os princípios desse acordo.

Os Estados Unidos também têm obrigações internacionais quanto à elaboração de legislação ambiental, tendo a obrigação de assegurar que as atividades no seu território não causem danos transfronteiriços ou violem outros tratados por ele ratificados.

Como parte da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (CQNUMC), os Estados Unidos se comprometeu a desenvolver e implementar políticas destinadas a retornar a quantidade de suas emissões de gases do efeito estufa aos níveis de 1990.

Assim, todas estas obrigações internacionais são relevantes para a aplicação dos direitos constantes na Declaração Americana.

Os impactos das mudanças climáticas, causadas por atos e omissões dos Estados Unidos, violam os direitos humanos fundamentais do Inuit, isso inclui seu direito aos benefícios da cultura, à propriedade, à preservação da saúde, à vida, integridade física, segurança, e à um meio de subsistência e residência, liberdade de locomoção e a inviolabilidade do domicílio, protegidos pela Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e outros instrumentos internacionais.

Os Estados Unidos da América, atualmente é o maior contribuinte para as emissões de efeito estufa no mundo, no entanto, tem repetidamente se recusado a tomar medidas para regular e reduzir as emissões dos gases responsáveis pela mudança climática. O aumento das concentrações atmosféricas de gases do efeito estufa é indiscutivelmente o responsável pela maioria das alterações observadas nas temperaturas globais durante os últimos cinquenta anos e é atribuível às ações humanas. Esta conclusão é apoiada por um notável consenso na comunidade científica, incluindo todo o corpo científico dos EUA que possui grande prestígio no âmbito internacional, com experiência sobre o assunto e essa posição foi aceita até mesmo pelo Governo dos Estados Unidos.

Diante de toda a argumentação acima, percebe-se que a petição demonstra violações da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, a qual foi ratificada pelos Estados Unidos da América, e por isso, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos tem competência para receber e examinar essa petição.

O discurso global acerca das mudanças climáticas, por muito tempo, tendeu a centrar-se nos impactos físicos e naturais causados por essas mudanças climáticas. Porém, faz-se necessário analisar também o impacto imediato e profundo do fenômeno sobre os seres humanos do mundo todo que vem sendo, em grande parte, negligenciado.

Graves desdobramentos, dos mais variados, tais como inundações, erosões e alterações climáticas, dependendo de sua intensidade acabam atingindo o núcleo de direitos humanos, posto que, por uma dedução lógica, pode-se dizer que por causa desses desdobramentos o direito humano a moradia, ao acesso à água e a comida acabam sendo violados.

Os problemas decorrentes das mudanças climáticas, em sua grande maioria atingem três direitos humanos fundamentais, quais sejam: o direito à saúde, o direito à vida e o direito a subsistência. E os mais prejudicados com isso, costumam ser os povos tradicionais, tais como povos indígenas e outros grupos minoritários como os Inuit, posto que dependem exclusivamente da natureza.

O caso, porém, acabou não chegando a ser julgado pela Corte, porque os EUA assinaram, mas não ratificaram a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, não aceitando, assim, a competência da Corte. Também não assinaram e tampouco ratificaram o Protocolo adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em matéria de direitos econômicos, sociais e culturais, o qual faz referência ao meio ambiente como um direito humano.

CONCLUSÃO

Pode-se perceber que as comunidades tradiconais possuem uma relação de estreita dependência e consumo com o local onde vivem, tomando decisões sobre os recursos que sejam necessários para sua subsistência, a forma de obtê-los e a forma de consumí-los.

O modo de vida e as formas de estreitar relações com a diversidade biológica, seja em função de uma dependência com fins de subsistência, como também com fins econômicos, culturais ou religiosos é o que caracteriza a comunidade como sendo tradicional.

O relacionamento dessas pessoas com a natureza possui uma proximidade sensível, uma vez que se reconhecem como peça integrante do meio ambiente em que vivem.

Os conhecimentos tradicionais são adquiridos como resultado de um engajamento prático e diário, por essas comunidades tradicionais, nos diferentes campos de sua vida social onde são tomadas decisões sobre o seu cotidiano.

Ao longo de muitas gerações, esses conhecimentos são repetidos, de modo a serem reforçados, modificados ou mesmo abandonados devido a mudanças nas condições de sua produção, aplicação e transmissão, a qual não acontece de modo informal, ao contrário, cada tipo de ensinamento exige lugares específicos para serem produzidos.

Existem diversos tratados ou convenções internacionais tratando sobre essa temática, dentre os quais não se pode deixar de citar a preocupação da UNESCO quanto ao patrimônio cultural, possuindo normas referentes à proteção do folclore, conforme se percebe da leitura da Recomendação sobre a salvaguarda da cultura tradicional e popular, de 1989, a Convenção sobre a proteção e promoção Diversidade das Expressões Culturais, de 2005, a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, de 2003, a Convenção sobre Diversidade Biológica, que é um dos principais documentos assinados na Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992 e Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 2007.

O direito humano ao conhecimento tradicional implica em reconhecer a existência de diferentes modos de ser e viver, além de se reconhecer o direito de não sofrer limitações, intervenções ou expropriações destes direitos.

É necessário destinar tratamento compatível com o sistema de direitos humanos aos conhecimentos tradicionais, com o fim de que estes direitos sejam tratados não como produtos, mas sim como direitos humanos culturais essenciais para a concretização da dignidade da pessoa humana, além de estarem diretamente relacionados ao exercício de outros direitos tais como o direito à vida, à saúde, à liberdade e ao território tradicional.

A proteção do meio ambiente é condição prévia para o desfrute de uma série de direitos humanos, tais como o direito à vida, à alimentação e à saúde, direitos esses que gozam de garantias internacionais, como se pode perceber da análise do caso Inuit vs. EUA.

A degradação ambiental provocada pelo homem que obrigam o deslocamento forçado de comunidades tradicionais, uma vez que resta deteriorado o meio ambiente em que vivem e por vezes quase extintos fauna e flora indispensáveis para a sobrevivência desses povos, são uma clara violação não somente ao direito humano à cultura, uma vez que como foi explicado, o meio ambiente é essencial para o exercício desse direito, mas também para outros direitos humanos que também dependem do meio ambiente sadio para se concretizarem. 

 

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Nota:
[1] Original: “Entiende la protección del medio ambiente como una condición previa para el disfrute de una serie de derechos humanos que gozan de garantías internacionales. En consecuencia, la protección del medio ambiente constituye un instrumento esencial que se encuentra subsumido en el esfuerzo por garantizar efectivamente el disfrute de los derechos humanos”.


Informações Sobre o Autor

Barbara Barbosa Moda

Advogada bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Pará CESUPA especialista e mestranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra FDUC


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