Resumo: Tomando por base a problemática de Michel Foucault acerca do Poder e da Verdade, realiza-se uma análise da evolução do saber jurídico de caráter dogmático, explicitando a transição entre a dogmática fundada em valores sociais universais de justiça e sua crescente tecnização, tal como apontada por Tércio Sampaio Ferraz Jr. A metodologia empregada consiste na análise minuciosa da literatura foucaultiana e no confronto de suas conclusões com as noções da teoria dogmática contemporânea tal como fornecidas por Tércio Sampaio Ferraz Jr. e Luis Alberto Warat, para que, assim, possam-se identificar os problemas que o direito enfrenta para se afirmar legítimo perante uma sociedade com progressivo esvaziamento de valores e instituições. A conclusão à qual se chega, no atual desenvolvimento da pesquisa, é que a neutralidade da técnica jurídica, como fundamento para a justiça das decisões, possibilitando uma justiça de caráter formal, não basta para atender à ânsia social pela materialidade da justiça. A questão se agrava, quando se atenta para o fato de que o valor de justiça se torna relativo, adquirindo um caráter diferente para diferentes grupos e indivíduos.[1]
Palavras chave: Michel Foucault. Filosofia do Direito. Verdade. Poder. Pós-Modernidade. Justiça.
Abstract: Based on Michel Foucault´s problematic on Power and Truth, an analysis of the evolution of dogmatic knowledge of law is carried out, explaining the transition between a dogmatic founded on universal values of justice, as such values are understand by each society, and the increasing technicization of dogmatic knowledge of law, as pointed by Tércio Sampaio Ferráz Jr. Research metodology consists in careful reading and interpretation of Foucault´s literature, confronting its conclusions with notions of contemporary´s dogmatic of continental law, as explained by Tércio Sampaio Ferraz Jr and Luis Alberto Warat, as to identify the challenges faced by law to be subjectively legitimized by a society characterized by the progressive deflation of values and institutions. The conclusion that can be achieved in research´s current development, is that the neutrality of legal technique as a basis for the justice of decisions is not enough to meet society´s longing for materiality of justice. This issue is aggravated when one pays attention to the fact that justice becomes a relative value, wich receive different meanings to different groups and individuals.
Keywords: Michel Foucault. Philosophy of Law. Truth. Power. Post-Modern Society. Justice.
Sumário: Introdução. 1. A Verdade. 2. O Poder. 3. O Saber Sobre o Direito. 4. O Direito e a Justiça
Introdução
Michel Foucault, filósofo francês, morto precocemente em 1984, é considerado um dos pensadores mais importantes do século XX. Ao longo de sua vasta produção acadêmica, compreendida não apenas por livros publicados, mas também por inúmeras entrevistas, conferências, e até mesmo da transcrição das aulas ministradas no Collége de France, instituição na qual lecionou de 1970 até poucos meses antes de sua morte, o pensador aborda temas de grande importância para a filosofia e para demais outros saberes, tais como o conhecimento, a verdade e, sem dúvidas, com maior notoriedade o Poder.
Ainda que o filósofo nunca tenha feito do direito, propriamente, um objeto de sua pesquisa, utilizando-o mais como um modelo para demonstrar fenômenos que superavam as práticas jurídicas e davam os contornos da sociedade como um todo, a potência de seu pensamento ressoa em diversos temas importantes para o direito.
Desta forma, neste trabalho, pretendemos utilizar dois temas amplamente analisados pelo pensamento de Foucault, Verdade e Poder, para tecer observações acerca do saber jurídico contemporâneo e, consequentemente, também sobre as práticas que a este estão vinculadas.
Em nossa análise, aplicaremos a problemática foucaultiana acerca da verdade e do poder às modernas noções da dogmática jurídica, tal como estas são abordadas por Tércio Sampaio Ferráz Jr. e Luis Alberto Warat, de modo a se traçar uma imagem da dogmática jurídica na pós-modernidade.
1. A Verdade
Segundo a tradição clássica da filosofia ocidental, o problema da verdade é uma questão que afeta o homem desde a sua origem. Buscar a verdade, querer saber como as coisas são, querer conhecer, é um dos instintos do intelecto humano.
Conhecer a verdade torna-se o mesmo que desvendar a realidade essencial das coisas. Esta relação entre verdade e realidade se encontra expressa na famosa máxima aristotélica: “Dizer daquilo que é que não é, ou daquilo que não é que é, é falso, enquanto dizer daquilo que é que é, ou daquilo que não é que não é, é verdadeiro.” (ARISTÓTELES, 1969, p.107)
Claro que esta aproximação entre verdade e realidade faz-se relativa na história do pensamento tradicional. Desde uma correspondência entre verdade e realidade, tal como a concepção do próprio Aristóteles, até um ponto de convergência entre vários discursos no caminho para uma verdade derradeira cuja identificação foge ao intelecto humano, tal como vemos no pensamento de Charles S. Peirce.
Em uma série de conferências proferidas na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro no ano de 1973, as quais deram origem ao livro A Verdade e as Formas Jurídicas, Michel Foucault dedicou grande parte de sua fala, na primeira destas conferências, para tratar a questão da verdade e do conhecimento tal como ela aparece no pensamento de Nietzsche.
Segundo Foucault, “Em Nietzsche, parece-me, encontramos efetivamente um tipo de discurso em que se faz a análise histórica da própria formação do sujeito, a análise histórica do nascimento de um certo tipo de saber, sem nunca admitir a preexistência de um sujeito de conhecimento.”. (FOUCAULT, 2013B, p.22)
Na interpretação que Foucault (Idem, p.25) nos fornece do pensamento de Nietzsche, o conhecimento, antes de ser uma ferramenta para revelar e sistematizar a realidade, é uma invenção dos homens, não restando “em absoluto inscrito na natureza humana”. (Idem)
A relação entre o conhecimento e os instintos não é de identificação, como se o conhecimento fosse mais um instinto entre os outros, mas é uma relação de produto. Isto é, o conhecimento é o produto resultante “do jogo, do afrontamento, da junção, da luta e do compromisso entre os instintos” (Idem). Reafirmando Nietzsche, Foucault(Idem, p.26) dirá que o conhecimento é “como 'uma centelha entre duas espadas', mas que não é do mesmo ferro que as duas espadas”.
Esta relação entre instintos e conhecimento torna impossível realizar a dedução analítica do conhecimento a partir de uma espécie de derivação natural. O conhecimento, para Nietzsche e, consequentemente, para Foucault (Idem), é a um só tempo contra instintivo e contranatural.
Diante desta perspectiva, somos inevitavelmente levados a uma pergunta: Se o conhecimento não possui uma relação de continuidade para com o mundo ou mesmo para com a natureza humana, tal como propunha, por exemplo, Descartes ou mesmo Kant (Idem, p.27), quais mecanismos epistemológicos dão ao conhecimento a forma que ele tem para nós e, derradeiramente, o que faz com que o conhecimento, notadamente o conhecimento científico, se constitua como verdade?
Ora, Foucault assinala que nem sempre as coisas se deram dessa forma. Isto é, houve um tempo em que a verdade se encontrava desvinculada do conhecimento tal como o compreendemos hoje, “porque, nos poetas gregos do século VI, o discurso verdadeiro – no sentido forte e valorizado do termo – o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror, aquele ao qual era preciso submeter-se, porque ele reinava, era o discurso pronunciado por quem de direito e conforme o ritual requerido; era o discurso que pronunciava a justiça e atribuía a cada qual sua parte; era o discurso que, profetizando o futuro, não somente anunciava o que ia se passar, mas contribuía para a sua realização, provocava a adesão dos os homens e se tramava assim com o destino.” (FOUCAULT, 2013A, p.14)
Neste caso, a verdade dá-se como um acontecimento, ela surge de um ato de criação, uma força positiva que irrompe no mundo e o transforma. No entanto “chegou um dia em que a verdade se deslocou do ato ritualizado, eficaz e justo, de enunciação, para o próprio enunciado: para seu sentido, sua forma, seu objeto, sua relação a referência.” (Idem, p15)
A verdade se estabelece então como a demonstração da realidade, deixa de ser um acontecimento, afasta-se do exercício do poder político, e passa a repousar na contemplação e na memória.
Segundo Foucault, a partir deste momento, “o ocidente vai ser dominado pelo grande mito de que a verdade nunca pertence ao poder político, de que o poder político é cego, de que o verdadeiro saber é o que se possui quando se está em contato com os deuses ou nos recordamos das coisas, quando olhamos o grande sol eterno ou abrimos os olhos para o que se passou. Com Platão, se inicia um grande mito ocidental: o de que há antinomia entre saber e poder. Se há o saber, é preciso que ele renuncie ao poder. Onde se encontra saber e ciência em sua verdade pura, não pode mais haver pode político.” (FOUCAULT, 2013B, p.56)
Foucault fala em mito, pois, como abordará em A Ordem do Discurso, as regras que operam a divisão entre verdadeiro e falso, aquilo que o filósofo chamará de Vontade de Verdade, atuam como um sistema de exclusão discursiva, capaz de conjurar os poderes e os perigos do discurso, como podemos ver na seguinte passagem: “certamente, se nos situamos no nível de uma proposição, no interior de um discurso, a separação entre o verdadeiro e o falso não é nem arbitrária, nem modificável, nem violenta. Mas se nos situarmos em outra escala, se levantamos a questão de saber qual foi, qual é constantemente, através de nossos discursos, essa vontade de verdade que atravessou tantos séculos de nossa história, ou qual é, em sua forma muito geral, o tipo de separação que rege nossa vontade de saber, então é talvez algo como um sistema de exclusão (sistema histórico, institucionalmente constrangedor) que vemos desenhar-se.” (2013A, p.13-14)
Ora, quando a verdade passa a ser concebida como demonstração do real, a vontade de verdade resta ocultada pela própria verdade, tal como o filósofo expõe na seguinte citação: “O discurso verdadeiro, que a necessidade de sua forma liberta do desejo e libera do poder, não pode reconhecer a vontade de verdade que o atravessa; e a vontade de verdade, essa que se impõe a nós há bastante tempo, é tal que a verdade que ela quer não pode deixar de mascará-la.” (Idem, p.19)
Ao se separar a verdade do poder, oculta-se a vontade de verdade, afinal, como reconhecer jogos de poder em uma verdade que ao referir-se apenas a si mesma, cuja capacidade de ser proferida está ao alcance de todos aqueles que se dispõem a pesquisá-la, e não apenas de alguns poucos que exercem o poder político, torna-se imune a qualquer poder?
Em certa medida, podemos dizer que reconhecer a vontade de verdade é invalidar a verdade a partir de suas próprias regras. É torná-la novamente um acontecimento, pois somos levados ao seguinte questionamento: “se o discurso verdadeiro não é mais, com efeito, desde os gregos, aquele que responde ao desejo ou aquele que exerce o poder, na vontade de verdade, na vontade de dizer esse discurso verdadeiro, o que está em jogo, senão o desejo e o poder?”(Idem)
Antes de aplicarmos a problemática da verdade foucaultiana ao saber jurírido, acreditamos necessário abordar um outro tema que interessa diretamente ao direito e que, para Foucault, encontra-se estreitamente vinculado à verdade, o poder.
2. O Poder.
No pensamento de Foucault, Verdade e Poder compõem um binômio quase indissociável, afinal, como expomos na seção anterior, enquanto a verdade é recortada pelo poder, ao mesmo tempo, ela exerce poder.
Para esclarecer esta problemática, recorre-se ao que se chama, usualmente, de relação Saber-Poder em Foucault. O filósofo problematiza que, por um lado, o saber, como uma forma de se organizar a verdade, serve como justificativa para o exercício do poder, enquanto, por outro lado, o exercício do poder cria as condições necessárias para que o saber se forme. (2012, p.289)
A partir destas considerações preliminares, podemos começar a traçar algumas características do poder, tal como observadas por Foucault. Em primeiro lugar, e talvez esta seja uma de suas principais características, o poder não possui um caráter unicamente repressivo, na verdade, sua função principal é produtiva, de saberes, de comportamentos, de sujeitos.(Idem, p.276)
Da mesma forma, o poder não pode ser pensado a partir de relações econômicas e patrimoniais, o poder não é algo que se possui, que se adquire, que se aliena, o poder só existe enquanto é exercido. (Idem, p.272-274)
Foucault concebe o poder como algo que se exerce não a partir de instituições centralizadas, mas sim de capilaridades, das relações cotidianas entre os indivíduos. O poder, por tanto, não pode ser esquematizado a partir do modelo da pirâmide, mas sim como uma rede que atravessa os indivíduos(Idem, p.282). Nesta relação, os indivíduos não são o outro do poder, não são o objeto sob o qual se impõe a sua dominação, mas são eles mesmos instrumentos do exercício do poder, de sua amplificação ou despotencialização. (Idem, p.284)
Num primeiro momento, parece que Foucault rejeita completamente as concepções da tradição política clássica, no entanto, o que ele argumenta é que esta noção de poder, pautada na soberania do Estado como fonte da qual emana o poder, faz-se incompleta para compreender toda a complexidade das relações de poder em nossas sociedades.
O filósofo fará uma inversão do Leviatã de Hobbes que, faz-se a “coagulação de individualidades separadas, unidas por um conjunto de elementos constitutivos do Estado: mas no coração do Estado, ou melhor, em sua cabeça, existe algo que o constitui como tal e este algo é a soberania, que Hobbes diz ser precisamente a alma do Leviatã.” (Idem)
Para Foucault (Idem, p.291), o poder não emana da alma do Leviatã, mas dos corpos, periféricos e múltiplos, que o compõem. Sendo assim, invés de pensar o poder a partir da lógica da soberania, ele buscará analisá-lo a partir das relações destes corpos externos, relações estas que, compreende o autor, se dão no âmbito da disciplina.
Estamos então diante de dois conceitos amplamente discutidos por Foucault, Soberania e Disciplina, sendo que, conforme temos exposto, o primeiro traduz o modo como a tradição da ciência política, tanto de matriz liberal quanto marxista, aborda o funcionamento do poder.
Soberania e Disciplina são formas pelas quais o poder se organiza, e o autor (Idem, p.290) destaca o período transcorrido entre os séculos XVII e XVIII, como ponto para invenção da mecânica de poder que resta identificada com o Poder disciplinar. Mecânica, esta, completamente incompatível com a relação súdito-soberano, que é a única relação de poder observada pela soberania.
Ainda assim, a soberania persiste como teoria que sustenta a organização da ciência política e, sobretudo do direito e seus códigos, segundo Foucault (Idem, p.292), isto ocorre por dois motivos. Em primeiro lugar, pois foi justamente a soberania, empregada com um instrumento de crítica permanente contra os mandos e desmandos do soberano, que afastou todos os obstáculos à formação da sociedade disciplinar. Em segundo lugar (Idem), a teoria da soberania, aliada a formação de códigos jurídicos nela fundados, oculta os procedimentos de dominação do poder disciplinar, na medida em que o direito opera a democratização da soberania, a qual só pode se fixar mais profundamente através da coerção disciplinar.
A soberania resta então como uma máscara para o poder disciplinar, na medida em que ela constitui a própria forma a qual comumente atribuímos ao poder. Este procedimento de ocultação nos remete à relação similar, anteriormente estabelecida, entre a verdade e a vontade de verdade.
3. O Saber sobre o Direito.
O saber jurídico possui uma característica que o diferencia de alguns saberes científicos, sobretudo aquelas de caráter empírico, tais como, por exemplo a física ou a química.
Ora, enquanto estes saberes empíricos, ao observarem os fenômenos da natureza, reorganizando-os linguisticamente, possuem uma função informativa. Isto é, em termos gerais, dizem como seus objetos são. O saber jurídico, não apenas informa como são seus objetos, mas também os conformam, ou seja, diz como estes objetos devem ser. Podemos observar esta conclusão na obra, já citada, do professor Tércio Sampaio Ferraz jr (2013, p.17), quando aborda a diferença entre a transformação das definições na Física e no Direito. “No caso do físico, a definição é superada porque se tornou falsa. No caso do jurista, porque deixou de ser atuante. Ou seja, as definições da física, em geral, são lexicais, as do jurista são redefinições. Nesse sentido, se diz também que a ciência jurídica não apenas informa, mas também conforma o fenômeno que estuda, faz parte dele. A posse é não apenas o que é socialmente, mas também como é interpretada pela doutrina jurídica.”
Desta forma, o professor Tércio Sampaio Ferráz Jr. divide o saber jurídico em dois enfoques teóricos, o zetético e o dogmático, os quais trabalham justamente privilegiando cada uma estas funções, informativa e diretiva, respectivamente.
Segundo ele, “no enfoque zetético predomina a função informativa da linguagem. Já no enfoque dogmático, a função informativa combina-se com a diretiva e esta cresce ali em importâncias.” (Idem, p.19)
Assim, a chamada zetética jurídica se caracteriza pela possibilidade de questionamento de todos os objetos do conhecimento. Mesmo que se adote premissas como pontos de partidas, estas podem vir a ser descartadas caso tornem-se inadequadas aos critérios de determinada analítica.
Via de regra, as investigações zetéticas partem do âmbito de ciências como a sociologia, psicologia, história, filosofia, ciência política, e etc., que, enquanto não sejam propriamente ciências jurídicas, possuem campos dedicados ao estudo do fenômeno jurídico.
Por outro lado, a dogmática jurídica, como ressoa no próprio nome, caracteriza-se pela adoção de dogmas inquestionáveis, sem os quais a ação torna-se impossível. No caso, estes dogmas tomam substância no ordenamento jurídico.
Tércio Sampaio (Idem, p.25) diz que as dogmáticas são regidas pelo que ele denomina princípio da não negação dos pontos de partida de séries argumentativas, e dirá que podermos encontrar um exemplo de premissa do mesmo gênero no “princípio da legalidade, inscrito na Constituição, e que obriga o jurista a pensar os problemas comportamentais com base na lei, conforme à lei, para além da lei, mas nunca contra a lei.”
Entretanto, o referido jusfilósofo (Idem, p.26) nos adverte que o conhecimento dogmático não trabalha com as certezas que circundam os dogmas, mas sim com suas incertezas. Isto é, a dogmática não pode negar os dogmas, mas isso não quer dizer que deva apenas repeti-los e afirmá-los, mas sim, confrontá-los com questionamentos, a fim de que sejam desenhados os seus contornos.
Assim, não basta, para uma análise dogmática, que se constante a existência e vigência de determinada lei, por exemplo, mas sim buscar os significados que podem ser extraídos de sua interpretação, sobretudo dentro do contexto do ordenamento jurídico.
O professor Tércio (Idem, p.65) ressalta, ainda, que o que as questões zetéticas e dogmáticas encontram-se em correlação funcional, através de uma transição entre ser, representado pela zetética, e dever ser, representado pela dogmática. Sendo assim, a distinção entre ambas cumpre uma função muito mais didático teórica do que, propriamente, prática.
Ainda assim, o autor atenta (Idem, p.25), tem-se notado, ao menos nos últimos 100 anos, a preponderância do enfoque dogmático na formação acadêmica dos juristas, os quais têm sido direcionados para uma especialização cada vez mais centrada e fechada, de modo que se encontrem capacitados a solucionar toda a sorte de problemas que venham a surgir no interior das dogmáticas.
4. O Direito e a Justiça.
É, precisamente, a adoção dos dogmas que possibilita ao direito solucionar os conflitos jurídicos sem, no entanto, abalar as estruturas sociais. Os dogmas operam como uma verdade prévia que o jurista não deve ignorar. Desta forma, impedem, que a prática jurídica se perca em questões metafísicas potencialmente infinitas, limitando o escopo e a abrangência potencial das questões dogmáticas.
Os dogmas, entretanto, ao mesmo tempo que servem de diretrizes para o saber jurídico, são também objetos deste e, conforme já expomos anteriormente, os enunciados da ciência jurídica não possuem apenas função informativa, mas também diretiva.
Já nos referimos à mudança na forma da vontade de verdade, tal como problematizada por Foucault. Ora, uma alteração similar, acontece também no status dos dogmas como verdade para o direito. No já citado, A Verdade e as Formas Jurídicas, o filósofo aborda “a maneira pela qual, entre os homens, se arbitram os danos e as responsabilidades, o modo pelo qual, na história do Ocidente, se concebeu e se definiu a maneira como os homens podiam ser julgados em função dos erros que haviam cometido, a maneira como se impôs a determinados indivíduos a reparação de algumas de suas ações e a punição de outras, todas essas regras ou, se quiserem, todas essas práticas regulares, é claro, mas também modificadas sem cessar através da história – me parecem uma das formas pelas quais nossa sociedade definiu tipos de subjetividade, formas de saber e, por conseguinte, relações entre o homem e a verdade que merecem ser estudas.” (2013B, p.21)
Ou seja, de maneira resumida, Foucault preocupa-se em analisar a transformação nas regras para formação da verdade nos procedimentos judiciais, observando como, de maneira geral, elas eram expressões do modo como se organizava a vontade de verdade em cada momento histórico, partindo do “juramento entre guerreiros” do período Homérico (Idem, p.39), passando pelo embrião do será o inquérito presente em Édipo-Rei (Idem, p.46), pelas diferentes formas da prova(épreuve) medieval (Idem, p.62), bem como a retomada do uso do inquérito, primeiramente pela igreja medieval, e depois pelas primeiras monarquias centralizadas, bem como todo o aparelho judicial que o acompanhou (Idem, p.68-75), chegando aos contornos gerais da sociedade disciplinar a partir da “reforma, a reorganização do sistema judiciário e penal nos diferentes países da Europa e do mundo” (Idem, p.81).
O que se observa, ao longo deste processo, é que sempre houve uma preocupação de que a sentença judicial manifestasse a verdade, entretanto, quando a verdade era tida como um acontecimento, não era necessário demonstrar esta relação, ela era pressuposta. Quando se torna necessário demonstrar a relação entre a verdade e a realidade, a relação entre o ato de poder, que é a sentença, e a verdade deve, necessariamente, ser demonstrada. Acreditamos que um processo semelhante ocorre com a relação entre os dogmas e a justiça.
As análises históricas do fenômeno jurídico ocidental, frequentemente, referem-se transição do direito, como um fenômeno ético de ordem sagrada, para um fenômeno técnico e racional.
Ora, os dogmas capacitam-se como verdade para o direito ao vincularem-se aos valores que, em cada época, transmitem aquilo que é percebido como fonte da justiça.
Conforme esclarece o professor Tércio Sampaio Ferraz Jr. em Roma (2013, p.32), os dogmas atrelavam-se a fundação contínua da cidade, vista como um ato sagrado, através da auctoritas, para o Direito Medieval, os dogmas manifestavam, em última instância, a vontade divina. “O direito, assim, não perdeu seu caráter sagrado. Adquiriu, porém, uma dimensão de sacralidade transcendente, pois de origem externa à vida humana na Terra, diferente da dos romanos, que era imanente (caráter sagrado – mítico – da fundação).” (Idem, p.38)
Para a Era Moderna, os dogmas vinculavam-se ao ideal de racionalidade humana definitiva da qual o direito natural seria a expressão no campo da conduta humana, assim, a ciência do direito se transforma “numa teoria que devia legitimar-se perante a razão por meio da exatidão lógica da concatenação de suas proposições, o direito conquista uma dignidade metodológica especial. A redução das proposições a relações lógicas é pressuposto óbvio da formulação de leis naturais, universalmente válidas, a que se agrega o postulado antropológico que vê no homem não um cidadão da cidade de Deus, ou, como no século XIX, do mundo histórico, mas um ser natural, um elemento de um mundo concebido segundo leis naturais.” (Idem, p.43)
A era moderna marca o início do processo de positivação do direito. Isto é, o direito passa a ser identificado como as normas escritas postas pelo Estado, organizadas em um sistema que é, por princípio e necessidade, completo, coerente e hierarquizado. Assim “o direito irá perder progressivamente seu caráter sagrado. E a dessacralização do direito significará a correspondente tecnização do saber jurídico e a equivalente perda de seu caráter ético, que a Era Medieval cultuara e conservara.” (Idem, p.41)
A partir do século XIX, o direito se consolida como a norma escrita, posta pela vontade do Estado, o que “ao mesmo tempo em que aumenta a segurança e a precisão de seu entendimento, aguça também a consciência dos limites”(Idem, p.48). O direito, enquanto norma posta, precisa transformar-se constantemente para se adequar a sociedade, e o saber jurídico permanece relevante pois, para a consciência da época, o direito muda historicamente (Idem, p.51). “Em resumo, aquilo que a razão representou para os jusnaturalistas passou a ser substituído pelo fenômeno histórico. Surgiu, assim, dessa exigência de uma fundamentação da mutabilidade do direito, a moderna Dogmática.” (Idem, p.53)
Ao desvincular o direito de valores ético, a positivação favorece também a sua abstração. Desta forma, “a ciência dogmática, sendo abstração de abstração, vai preocupar-se de modo cada vez mais preponderante com a função de suas próprias classificações, com a natureza jurídica de seus próprios conceitos.” (Idem, p.55)
Estas últimas transformações, iniciadas no século XIX, marcam, sem grandes variações, o modo como a ciência dogmática compreenderá o seu objeto, o direito posto e dado previamente, “um conjunto compacto de normas, instituições e decisões que lhe compete sistematizar, interpretar e direcionar, tendo em vista uma tarefa prática de solução de possíveis conflitos que ocorrem socialmente. O jurista contemporâneo preocupa-se, assim, com o direito que ele postula ser um todo coerente, relativamente preciso em suas determinações, orientado para uma ordem finalista, que protege a todos indistintamente.” (Idem, p.57)
Vemos, então, que a racionalização do direito representa, também, o afastamento entre a dogmática e a justiça, “a ciência dogmática, na atualidade, não deixa de ser um saber prático. Mas com uma diferença importante. Enquanto para os antigos o saber prático, por exemplo, a jurisprudência romana, não estava apartada da verdade, visto que era um saber que produzia o verdadeiro no campo do útil, do justo, do belo, a tecnologia moderna deixa de nascer de uma verdade contemplada pela ciência, surgindo antes, como diz Heidegger, de uma 'exigência' posta pelo homem à natureza para esta entregar-lhe sua energia acumulada. Assim, a tecnologia dogmática, ao contrário da jurisprudência romana, torna-se uma provocação, uma interpelação da vida social, para extrair dela o máximo que ela possa dar. A tecnologia jurídica atual força a vida social, ocultando-a, ao manipulá-la. Diante da natureza das coisas.”(Idem, p.60-61)
Assim, da mesma maneira que o século V a.C. marcou a separação entre a verdade e o exercício do poder político na problemática foucaultiana, o processo de racionalização, iniciado na modernidade, marca a separação entre o direito e a justiça.
A ordem jurídica não representa mais, necessariamente, a justiça e, por isso, deve constantemente provar-se justa para manter sua legitimidade, “A erosão de tradições culturais em nome da prioridade da eficiência técnica gera, assim, uma necessidade crônica de legitimação do direito e do saber jurídico em termos de ordem justa.”(Idem, p.331)
Neste contexto, os dogmas se caracterizam menos como verdade, e mais como elementos do que Luis Alberto Warat (1979, p.19) chama “senso comum teórico dos juristas”. Uma vez que “trata-se de um pano de fundo que condiciona todas as atividades cotidianas. Sem ele não pode existir prática jurídica, isto é, não se tem como produzir decisões ou significados socialmente legitimáveis.”
Conforme podemos observar, a crise de legitimidade do direito não implica, necessariamente, uma crise de sua funcionalidade técnica. Conforme coloca o professor Tércio Sampaio Ferraz Jr., “é possível às vezes, ao homem e à sociedade, cujo sentido de justiça se perdeu, ainda assim sobreviver com seu direito”(FERRAZ JUNIOR, 2013, p.340).
O que esta situação parece nos mostrar é, o direito não pode ser compreendido, apenas, como expressão ou ato do poder, uma vez que não é por seu império que ele resta legitimado. Ele é, antes, atravessado pelo poder disciplinar ou, para conjurar uma imagem mais didática, é mais um campo em que se dão as disputas do poder.
Um saber sobre o direito, enquanto se propõe também como uma verdade sobre o mesmo, não poderá nunca ser libertado do poder, visto que, como Foucault deixa claro, a “própria verdade é poder”(FOUCAULT, 2012, p.54).
Entretanto, um saber sobre o direito, que pretenda legitimá-lo, na mesma medida em que o informa e conforma, deve ter o poder de sua verdade desvinculado das formas hegemônicas que permeiam nossa sociedade ou, inevitavelmente, permanecerá puro arbítrio.
Nota:
Informações Sobre o Autor
Rodrigo Ferlin Saccomani dos Reis
Advogado. Mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo