A purga da mora nos contratos de alienação fiduciária em garantia de bens moveis após a edição da Lei nº 10.391/04 que alterou o Decreto-Lei nº 911/69

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Resumo: O presente artigo objetiva analisar o instituto da purga da mora nos contratos de alienação fiduciária em garantia de bens móveis, disciplinado no Decreto-Lei nº 911/69, após as mudanças advindas da Lei nº 10.931/04, frente ao Código de Defesa do Consumidor e Código Civil. Assim, após demonstrar os diferentes posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, será apresentada a decisão do Superior Tribunal de Justiça relativa ao Recurso Especial representativo de controvérsia, REsp nº 1.418.593, onde, no acórdão paradigma, ficou decidido que não mais existe a possibilidade de purga da mora, devendo o devedor fiduciante pagar a integralidade da dívida pendente, entendida como as parcelas vencidas e vincendas, conforme os valores apresentados e comprovados pelo credor na inicial.

Palavras chaves: alienação fiduciária em garantia. Busca e apreensão. Purga da mora. Integralidade da dívida pendente.

Sumário: Introdução. 1. Conceituação. 2. Legislação. 3. Procedimento da ação de busca e apreensão. 4. Purga da mora no decreto-lei 911/69. 4.1. A purga da mora após o código de defesa do consumidor. 4.2. Purga da mora após a lei nº 10.931/04. 4.3. Consolidação do entendimento: julgamento do recurso representativo de controvérsia, REsp nº1.418.593. Conclusão.

Introdução

O parágrafo 1º, do artigo 3º, do Decreto-Lei nº 911/69, previa a possibilidade do devedor fiduciante requerer a purga da mora, caso já houvesse pago, no mínimo, 40% (quarenta por cento) do valor financiado.

Após a edição da Lei nº 10.931/04, que alterou a redação dada ao artigo 3º do Decreto-Lei nº 911/69, a expressão “purga da mora” foi retirada do texto trazendo em seu lugar a expressão “pagamento da integralidade da dívida pendente”.

Com esta mudança vieram os questionamentos: O que significa dívida pendente, pagamento da parcelas vencidas e vincendas ou pagamento da parcelas vencidas e acessórios? Houve a revogação do instituto da purga da mora? É possível aplicação do Código de Defesa do Consumidor e Código Civil onde a Lei for omissa?

Uma década se passou e a questão continuava gerando polêmica. E, após ir parar por diversas vezes no Superior Tribunal de Justiça, a Corte resolveu suspender o andamento dos processos de busca e apreensão para julgar a questão através do recurso representativo de controvérsia, REsp nº 1.418.593.

Em um primeiro momento, será analisada a aplicação da redação original do artigo 3º do Decreto-Lei nº 911/69 frente ao Código de Defesa do Consumidor e Código Civil. Em segundo momento será apresentada a alteração trazida pela Lei nº 10.931/04 ao Decreto-Lei nº 911/69 e suas implicações relativas ao instituto da purga da mora. Por fim, será exposto o julgamento do recurso repetitivo, REsp nº 1.418.593, e a fundamentação utilizada pelo Ministro Relator que deu origem ao acórdão paradigma.

Para alcançar o fim almejado por esse estudo, foram analisadas as discussões doutrinárias a respeito do tema e o posicionamento da jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais e do Superior Tribunal de Justiça. A pesquisa será realizada pelo procedimento qualitativo do tipo descritivo e parcialmente exploratório.

O presente trabalho, portanto, tem como objetivo verificar se com o advento da Lei nº 10.931/2004 poderá o devedor fiduciante purgar a mora com base nas parcelas vencidas do contrato. Para isso será realizado um estudo detalhado das alterações introduzidas pela Lei nº 10.931/2004, bem como serão abordados posicionamentos doutrinários, aliados às jurisprudências sobre temas ligados diretamente à matéria em comento, trazendo à baila as repercussões de tais institutos na ação de busca e apreensão.

1. Conceituação

Rizzardo, citando Pontes de Miranda, (2005, p.1296) conceitua alienação fiduciária em garantia como a transferência da propriedade, porém não com o fim de troca, mas com o fim de garantia, para que o bem transmitido garanta ao fiduciário que ele irá receber o que é seu por direito, o pagamento da dívida que o fiduciante possui com ele; o outro retém a posse sob condição resolutiva da dívida ser saldada. Destina-se a garantir a dívida do devedor em favor do credor.

Na acepção de Fábio Ulhoa (2006, p. 461), a alienação fiduciária em garantia pode ter por objeto bem já pertencente ao devedor e é nesse sentido que o STJ sumulou em 1991, e, segundo a súmula 28 do STJ, “o contrato de alienação fiduciária em garantia pode ter por objeto bem que já integrava o patrimônio do devedor”, podendo tal objeto ser bem móvel ou imóvel. Mas, sua larga utilização está no campo do financiamento de bens de consumo duráveis, sendo, atualmente, um dos principais objetivos do negócio fiduciário: garantir as operações de crédito para a aquisição de utilidades móveis, especialmente veículos.

Pode-se extrair dos conceitos acima que a alienação fiduciária consiste em um contrato acessório. Quando o contrato principal for cumprido, a propriedade do bem retorna ao devedor contratante, podendo este fazer o exercício regular do seu domínio. Entretanto se o contrato principal não for cumprido, passa o credor a ter o direito de pleitear o bem dado em garantia.

2. Legislação

No Brasil, a primeira Lei que regulamentou os contratos de alienação fiduciária foi a Lei nº 4.728, de 14 de julho de 1965, que dispõe sobre o mercado de capitais direcionados para a dinamização do financiamento de bens móveis, atribuindo a propriedade do bem como forma de garantia para a instituição que empresta o dinheiro.

Esta Lei trazia em seu artigo 66 a disciplina sobre a matéria. Posteriormente o Decreto-Lei nº 911/69 alterou a redação do referido artigo passando então a regrar tais contratos, criando o procedimento processual para a retomada do bem alienado em garantia, no caso do devedor ficar inadimplente.

Em 2004 o Decreto-Lei nº 911/69 passou por significativas mudanças, advindas da Lei nº 10.931/04, que acabaram por gerar diversos questionamentos sobre a ação de busca e apreensão nos contratos de alienação fiduciária dos bens móveis, sendo um deles o instituto da purga da mora.

3. Procedimento da ação de busca e apreensão

O artigo 1º do Decreto-Lei nº 911/69, que deu nova redação ao artigo 66 da Lei nº 4.728/65, dispõe:

“Art. 1º – O artigo 66, da Lei nº 4.728, de 14 de julho de 1965, passa a ter a seguinte redação:

Art. 66 – A alienação fiduciária em garantia transfere ao credor o domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel alienada, independentemente da tradição efetiva do bem, tornando-se o alienante ou devedor em possuidor direto e depositário com todas as responsabilidades e encargos que lhe incumbem de acordo com a lei civil e penal.”

Observa-se que no contrato de empréstimo garantido com alienação fiduciária, a posse direta do bem fica com o devedor, mas a propriedade e a posse indireta é do credor. E, se houver inadimplemento, caberá ao credor requerer a busca e apreensão do bem alienado, que poderá ser deferida liminarmente. Após a execução da liminar, poderá o devedor fiduciante, no prazo de cinco dias, pagar a integralidade da dívida pendente, segundo os valores apresentados pelo credor fiduciário na inicial, hipótese na qual o bem lhe será restituído livre do ônus, nos termos dos parágrafos 1º e 2º, do artigo 3º, do Decreto-Lei nº 911/69, redação dada pela Lei nº 10.931/04.

Não havendo o pagamento da integralidade da dívida, o credor passará a ser o exclusivo possuidor e proprietário do bem, isto é, a propriedade e posse do bem serão consolidadas no patrimônio do credor. 

Este é o procedimento atual disposto no Decreto-Lei nº 911/69, alterado pela Lei nº 10.931/04.

4. Purga da mora no decreto-lei 911/69

A redação original do parágrafo 1º, do artigo 3º, do Decreto-Lei nº 911/69 trazia expressamente o instituto da purga da mora e seus requisitos. Vejamos:

”Art. 3º – (…)

§ 1º – Despachada a inicial e executada a liminar, o réu será citado para, em três dias, apresentar contestação ou, se já tiver pago 40% (quarenta por cento) do preço financiado, requerer a purgação de mora.”

Pode-se verificar que era dado ao devedor nas ações de busca e apreensão em alienação fiduciária o direito de requerer a purga da mora, caso já houvesse pago, no mínimo, 40% (quarenta por cento) do valor financiado, do contrário não haveria a possibilidade de utilizar-se do instituto para manter o contrato de financiamento em alienação fiduciária.

4.1. A purga da mora após o código de defesa do consumidor

Com a entrada em vigor, em 11 de março de 1991, do Código de Defesa do Consumidor, Lei nº 8.078/90, um microssistema de natureza constitucional advindo das normas programáticas previstas nos artigos 5º, XXXII e 170, V da CR/88, a matéria passa a ser tratada de forma diferente.

A jurisprudência, começou a se posicionar no sentido de que não mais estaria vigente a condição de haver o adquirente do bem, pago, no mínimo, o equivalente a 40% (quarenta por cento) do valor financiado, como constava na redação original do Decreto-Lei 911/69, exigindo apenas o valor do débito existente no momento, acrescido dos acessórios. Este posicionamento fundamentava-se nos artigos 6º, V e 53 do Código de Defesa do Consumidor, in litteris:

“Art.6º – São direitos básicos do consumidor:

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V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas; “…

“Art. 53 – Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado.”

Nesse sentido:

“EMENTA:ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – BUSCA E APREENSÃO – PURGA DA MORA – DECRETO-LEI 911/69, ART. 3º, §1º – REVOGAÇÃO – CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR (…).

Por representar desvantagem exagerada, ensejando desequilíbrio contratual, acha-se revogado o §1º do art. 3º do decreto-lei 911/69, na parte que limita o direito à purga da mora ao pagamento de 40% (quarenta por cento) do valor financiado, valendo-se o devedor das disposições contidas nos arts. 6, V, e 53 do Código de Defesa do Consumidor".(TJMG – Apelação Cível  2.0000.00.340270-0/000, Relator(a): Des.(a) Nepomuceno Silva , Relator(a) para o acórdão: Des.(a) , julgamento em 21/08/2001, publicação da súmula em 15/09/2001) (grifo nosso)

“AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO AUTÔNOMA – ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – PURGA DA MORA – POSSIBILIDADE – INEXIGÊNCIA DE PAGAMENTO DE 40% DO PREÇO – INCLUSÃO DAS PARCELAS VINCENDAS – IMPOSSIBILIDADE – RECURSO NÃO PROVIDO.

– Diante das regras estabelecidas no Código de Defesa do Consumidor, não se pode exigir o pagamento de 40% do preço para propiciar ao devedor o direito de purga da mora nos contratos de alienação fiduciária.

– Segundo a jurisprudência majoritária, no depósito realizado para purga da mora, deve-se exigir apenas o valor do débito existente no momento, acrescido dos acessórios, sendo vedada a inclusão nos cálculos das parcelas vincendas, cuja exigência somente se anteciparia se a mora não fosse purgada.” (TJMG –  Apelação Cível  2.0000.00.361654-6/000, Relator(a): Des.(a) Eduardo Mariné da Cunha , Relator(a) para o acórdão: Des.(a) , julgamento em 29/05/2002, publicação da súmula em 19/06/2002) (grifo nosso)

Ocorre que a questão não estava sedimentada pela jurisprudência, ocasionando decisões em sentido contrário. Vejamos:

“BUSCA E APREENSÃO. DECRETO-LEI Nº 911/69. CDC. INAPLICABILIDADE. DISCUSSÃO SOBRE ENCARGOS. INVIABILIDADE. PURGA DA MORA: 40% NÃO PAGOS. AUSÊNCIA DE DIREITO.

"Nos estreitos parâmetros de "busca e apreensão" do Decreto-Lei nº 911/69, não é possível a discussão sobre os encargos financeiros ajustados, reservado o tema a uma ação própria, inaplicando-se o CDC, pelo menos à Busca e Apreensão, disciplinadas no especial Diploma Legal. Purga da mora só com 40% do débito já quitados".  (TJMG –  Apelação Cível  2.0000.00.348051-7/000, Relator(a): Des.(a) Francisco Kupidlowski , Relator(a) para o acórdão: Des.(a) , julgamento em 25/04/2002, publicação da súmula em 08/05/2002) (grifo nosso)

Assim com o objetivo de pacificar o conflito, o Superior Tribunal de Justiça – STJ, em 13 de maio de 2004, uniformizou o entendimento sobre a matéria aprovando a Súmula nº 284 segundo a qual “a purga da mora, nos contratos de alienação fiduciária, só é permitida quando já pagos, pelo menos, 40% (quarenta por cento) do valor financiado”.

Ao afastar a aplicação do Código de Defesa Consumidor afirmou o Tribunal que o artigo 6º, V do CDC nada tem a ver com a purgação da mora em contratos de alienação fiduciária, que é disciplinada pelo Decreto-Lei nº 911/69.

A Corte fundamentou, também, que o artigo 53 do CDC, versa sobre cláusulas contratuais que dispõem a perda de prestações, as quais são nulas de pleno direito. Contudo, no presente caso não se trata de cláusula contratual, mas de disposição legal para asseverar que, nos casos abrangidos por esta legislação especial, a exclusão será possível apenas com o pagamento do percentual determinado.

4.2. Purga da mora após a lei nº 10.931/04

A Lei nº 10.931, de agosto de 2004, operou profunda alteração no regime da ação de busca e apreensão de bens adquiridos através de contrato com cláusula de alienação fiduciária. Dentre as modificações introduzidas por esta Lei, destaca-se a nova redação dada ao artigo 3º do Decreto-Lei nº 911/69, de onde foi retirada a previsão de requerer o instituto da purga da mora por parte do devedor fiduciante, e, acrescentado no parágrafo 2º que prevê a possibilidade de restituição do bem apreendido liminarmente pagando a integralidade da dívida pendente.

“Art. 3º – (…)

§ 2º – No prazo do § 1o, o devedor fiduciante poderá pagar a integralidade da dívida pendente, segundo os valores apresentados pelo credor fiduciário na inicial, hipótese na qual o bem lhe será restituído livre do ônus“.

A alteração substancial do Decreto-Lei nº 911/69, trazida pela Lei nº 10.931/04, propiciou não apenas maior agilidade na execução da medida liminar de busca e apreensão de bens móveis financiado com o gravame da alienação fiduciária, como também controvérsia acerca dos valores a serem despendidos pelo devedor fiduciante em caso de purga da mora, haja vista a omissão quanto à possibilidade de purgação da mora.

No início da vigência da Lei nº 10.931/04, parte da doutrina e da jurisprudência, fazendo uma interpretação literal da Lei, entendeu que a purga da mora somente seria possível em caso de pagamento da integralidade das parcelas vencidas e vincendas até o final do contrato, se este possuísse cláusula de vencimento antecipado das prestações.

Para estes estudiosos o legislador havia revogado a possibilidade de emenda da mora por parte do devedor quando se referiu ao pagamento da integralidade da dívida como condição para a restituição do bem apreendido. Por força da Lei, aliás, a mora foi equiparada ao inadimplemento para efeitos de resolução do contrato.

Este é o posicionamento do doutrinador Humberto Theodoro Júnior:

“Purga da mora: era admissível ao devedor escapar da busca e apreensão, no sistema do Dec.-Lei nº 911⁄69, recolhendo apenas as prestações vencidas, mas isto só se permitir caso já tivessem sido pagos pelo menos 40% da dívida. Pela nova sistemática implantada pela Lei nº 10.931⁄2004, não existe mais a antiga purga da mora. O devedor executado só escapa da busca e apreensão pagando o valor integral do saldo do contrato, e isto haverá de acontecer nos primeiros 5 dias após a execução da liminar.”[1]

Várias foram as decisões dos tribunais neste sentido, vejamos:

“EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO – BUSCA E APREENSÃO – DECRETO – LEI 911/69 – LIMINAR DEFERIDA – COMPROVAÇÃO DA MORA – SIMPLES PROPOSITURA DE AÇÃO REVISIONAL – SÚMULA 380 DO STJ – DEPÓSITO AUTORIZADO SEM AFASTAR OS EFEITOS DA MORA – PURGA DA MORA MEDIANTE O PAGAMENTO DAS PRESTAÇÕES VENCIDAS – IMPOSSIBILIDADE.

A existência de ação revisional de contrato, sem a elisão dos efeitos da mora, não impede o deferimento de liminar e a procedência da ação de busca e apreensão, uma vez que a simples propositura da ação não a descaracteriza, conforme súmula 380 do STJ.

De acordo com a nova redação do artigo 3º do Decreto-lei 911/69, não é mais possível a "purga da mora", devendo ser paga a integralidade da dívida pendente, ou seja, as prestações vencidas e as vincendas, para que o bem seja restituído livre de ônus ao devedor fiduciante.” (TJMG – Agravo de Instrumento-Cv  1.0701.13.032913-2/001, Relator(a): Des.(a) João Cancio , 18ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 17/12/2013, publicação da súmula em 19/12/2013) (grifo nosso)

“EMENTA: AGRAVO E INSTRUMENTO. DIREITO PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO. DECRETO LEI 911/69. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. LIMINAR DEFERIDA. LIMITAÇÕES À ALIENÇÃO DO BEM. DASCABIMENTO. PURGA DA MORA. PAGAMENTO DAS PARCELAS VENCIDAS E VINCENDAS. PRAZO DE RESPOSTA. QUINZE DIAS CONTADOS DA EXECUÇÃO DA LIMINAR. RECURSO PROVIDO.

– "De acordo com o art. 3º, §1º, do Decreto-lei 911/69, decorridos cinco dias da execução da liminar de busca e apreensão, consolidam-se a propriedade e posse plena em favor do credor fiduciário, independentemente de qualquer autorização judicial ou avaliação, caracterizando simples exercício regular do direito, de modo que, decorrido referido prazo, sem que o devedor purgue a mora, poderá a financeira alienar o bem apreendido sem que, para isso, seja necessária autorização judicial."

– "A purga da mora permitida pela lei possibilita ao devedor pagar a integralidade da dívida pendente, ou seja, o total do valor financiado composto pelas parcelas vencidas e vincendas do contrato. (§2º do art. 3º- Decreto-lei 911/69)."

– O § 3o do art. 3º do DL 911/69 é claro ao estabelecer que o prazo de quinze dias para o devedor apresentar resposta começa a fluir da execução da liminar, e não, da juntada aos autos do mandado de citação.” (TJMG – Agravo de Instrumento-Cv  1.0701.13.017467-8/002, Relator(a): Des.(a) José Flávio de Almeida , 12ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 30/10/2013, publicação da súmula em 08/11/2013) (grifo nosso)

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Há, no entanto, quem entenda, como é o caso do Professor Bezerra de Melo (MELO, 2008, p. 461), que o art. 3°, § 2°, do Decreto-Lei n° 911/69 não vedou a purgação da mora, mas apenas tratou do vencimento antecipado da dívida, que, todavia, deve ser compreendido como uma faculdade do devedor, conforme dispõe o art. 52, § 2°, do Código de Defesa do Consumidor, in verbis: “É assegurado ao consumidor a liquidação antecipada do débito, total ou parcialmente, mediante redução proporcional dos juros e demais acréscimos”.

A doutrina de Melhim Namem Chalhub, também, se posiciona nesse sentido:

“Na nova redação, o Decreto-lei nº 911/69 é omisso quanto à purgação da mora mediante pagamento das prestações vencidas, dispondo o § 2° do art. 3° que ‘o devedor fiduciante poderá pagar a integralidade da dívida pendente, segundo os valores apresentados pelo credor-fiduciário na inicial, hipótese na qual o bem lhe será restituído livre do ônus’.”

“A omissão, entretanto, não afasta a possibilidade de purgação da mora mediante pagamento das prestações vencidas, sobretudo considerando-se a estrutura e a função do contrato de financiamento para aquisição de bens de consumo duráveis e a prioridade que o direito confere à manutenção do contrato.

Com efeito, a par da prioridade que se confere à manutenção do contrato, até mesmo em caso de onerosidade excessiva (Código Civil, art. 479), a mora em contratos dessa espécie enseja a possibilidade de purgação, circunstância que faz convalescer o contrato, só se admitindo a resolução depois de esgotadas todas as oportunidades de emenda da mora.”[2]

De Plácido e Silva em sua obra Vocabulário Jurídico da editora Forense, preleciona:

“A purgação, portanto, na acepção jurídica, é sempre o ato que vem reparar ou corrigir a falta cometida, para que se isente o faltoso da imputação, que lhe é atribuída por lei, livrando-o das consequências que lhe traria a falta cometida ou cumprindo o castigo que lhe foi imposto". "… É assim que a purgação da mora entende-se a reparação ou emenda dela, em virtude do que se fica livre ou isento da falta e das consequências que dela advêm.”[3]

Nesta linha é que permite-se a aplicação do inciso I, do artigo 401, do Código Civil de 2002, que prevê a possibilidade da purga da mora, como forma do devedor regularizar sua situação e restabelecer o equilíbrio contratual, evitando o rompimento da relação jurídica:

“Art. 401 – Purga-se a mora:

I – por parte do devedor, oferecendo este a prestação mais a importância dos prejuízos decorrentes do dia da oferta;”

O Código de Defesa do Consumidor, por sua vez, também admite a purgação da mora, quando, no parágrafo 2º, do artigo 54, aprova a inserção de cláusula resolutória nos contratos de adesão, mas desde que alternativa, cabendo ao consumidor a escolha, entre a manutenção do contrato ou a rescisão.

“Art. 54 – Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo. (omissis)

§ 2° – Nos contratos de adesão admite-se cláusula resolutória, desde que a alternativa, cabendo a escolha ao consumidor, ressalvando-se o disposto no § 2° do artigo anterior.”

O princípio da especialidade, estabelece que lei especial se sobrepõe a geral, entretanto quando aquela não disciplina a matéria, permite-se a aplicação subsidiária de uma outra lei ao caso concreto.

Assim a jurisprudência ao autorizar a purga da mora nas ações de busca e apreensão em alienação fiduciária passou-se a aplicar o artigo 401, inciso I, do Código Civil de 2002 cumulado com o parágrafo 2º, do artigo 54, do Código de Defesa do Consumidor. Colaciono:

“EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO – PURGA DA MORA – DEPÓSITO DAS PARCELAS VENCIDAS NO CURSO DO PROCESSO.

-Embora o Decreto-lei n. 911/69, com as alterações introduzidas pela Lei n. 10.931/04, seja omisso quanto à possibilidade de purga da mora, está se constitui direito subjetivo do devedor, nos termos do art. 401, do CC/2002 e do art. 54, §2º, do CDC, o que não prejudica o credor, que receberá as prestações atrasadas devidamente corrigidas, além dos prejuízos decorrentes da mora (art. 401, I, do CC/2002).

-A purga da mora se realiza com o depósito das parcelas vencidas, incluindo as vencidas no curso do processo, sendo inexigível o pagamento integral, sob pena de desequilíbrio do ajuste em prejuízo demasiado para a parte mais fraca, no caso, o consumidor.” (TJMG –  Agravo de Instrumento-Cv  1.0035.12.015619-1/001, Relator(a): Des.(a) Valdez Leite Machado , 14ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 18/04/2013, publicação da súmula em 26/04/2013) (grifo nosso)

Por anos o entendimento perfilhado pelos Tribunais inferiores divergiram pendulando, ora para um lado, ora para outro, o que levava o Superior Tribunal de Justiça, por diversas vezes, a se manifestar sobre o assunto.

4.3. Consolidação do entendimento: julgamento do recurso representativo de controvérsia, REsp nº1.418.593

Verificando a multiplicidade de recursos a versarem sobre a mesma controvérsia, foi submetida a matéria à apreciação da Egrégia Segunda Seção para julgamento do REsp nº 1.418.593, na forma do que preceitua o artigo 543-C do CPC, também denominado recurso repetitivo.

O referido recurso foi interposto contra decisão que autorizou a purga da mora, com base, apenas, nas prestações vencidas. A instituição financeira, em suas razões recursais, defendeu que não existe mais a possibilidade de purgação da mora pelo pagamento somente das parcelas vencidas, devendo ser paga a integralidade do débito.

O Ministro Luis Felipe Salomão do STJ, relator do recurso, determinou a suspensão, em todo o país, da tramitação dos processos em que a questão tratada no recurso representativo de controvérsia tenha sido estabelecida.

Após a manifestação dos amicus curiae, houve, no dia 14 de maio de 2014, o julgado do recurso, sendo o Acórdão paradigma publicado no dia 27 de maio de 2014, cuja ementa transcrevo:

“ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DO CPC. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO.

DECRETO-LEI N. 911/1969. ALTERAÇÃO INTRODUZIDA PELA LEI N. 10.931/2004. PURGAÇÃO DA MORA. IMPOSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE PAGAMENTO DA INTEGRALIDADE DA DÍVIDA NO PRAZO DE 5 DIAS APÓS A EXECUÇÃO DA LIMINAR.

1. Para fins do art. 543-C do Código de Processo Civil: "Nos contratos firmados na   vigência da Lei n. 10.931/2004, compete ao devedor, no prazo de 5 (cinco) dias após a execução da liminar na ação de busca e apreensão, pagar a integralidade da dívida – entendida esta como os valores apresentados e comprovados pelo credor na inicial -, sob pena de consolidação da propriedade do bem móvel objeto de alienação fiduciária".

2. Recurso especial provido.” (STJ. REsp 1418593/MS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 14/05/2014, DJe 27/05/2014) (grifo nosso)

Em seu voto o Ministro Relator Luis Felipe Salomão, ao argumentar que o texto dos parágrafos 1º e 2º, do artigo 3º, do Decreto-Lei nº 911/69 é claro no tocante à necessidade de pagamento de todo o débito, alinhavou:

“Dessarte, não se pode presumir a imprevidência do legislador que, democraticamente eleito, em matéria de competência do Poder Legislativo, presumivelmente sopesando as implicações sociais, jurídicas e econômicas da modificação do ordenamento jurídico, vedou, para alienação fiduciária de bem móvel, a purga da mora, sendo, pois, matéria insuscetível ao controle jurisdicional (infraconstitucional).”…

“Com efeito, embora respeitando o entendimento contrário, penso que, sob pena de se criar insegurança jurídica e violação ao princípio da tripartição dos poderes, não cabe ao Judiciário, a pretexto de interpretar a norma, terminar por, mediante engenhosa construção, criar hipótese de purgação da mora não contemplada pela Lei.”

Ainda em seu voto o Ministro Relator informar que o Código de Defesa do Consumidor e do Código Civil poderão ser aplicados, desde que este não contrarie a norma especial aplicada à matéria. Estas foram suas palavras:

“Dessarte, é inegável que, com a vigência da Lei n. 10.931/2004, o art. 3º, parágrafos 1º e 2º, do Decreto-Lei 911/1969, para os casos de alienação fiduciária envolvendo bem móvel, é mitigado o princípio da conservação dos contratos consagrado pelo ordenamento jurídico brasileiro, notadamente pelo afastamento, para esta relação contratual, do art. 401 do CC.

Nesse particular, ademais, cumpre consignar que, evidentemente, naquilo que compatível, aplicam-se à relação contratual envolvendo alienação fiduciária de bem móvel, integralmente, as disposições previstas no Código Civil e, nas relações de consumo, o Código de Defesa do Consumidor.”

Seguindo o voto do Sr. Ministro Relator, a Seção, por unanimidade, deu provimento ao recurso especial, ficando decidido que não mais existe a possibilidade de purga da mora, devendo o devedor fiduciante a pagar a integralidade da dívida pendente, incluindo as parcelas vencidas e vincendas, conforme os valores apresentados e comprovados pelo credor na inicial.

Assim, o entendimento consignado pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento submetido à sistemática dos recursos repetitivos, deverá ser adotado pelos Tribunais inferiores, em observância ao que dispõe do parágrafo 7º do artigo 543-C do Código de Processo Civil.

Conclusão

Diante de todo o exposto no presente trabalho, verifica-se que ficou pacificado pelo Superior Tribunal de Justiça o entendimento de que a possibilidade de purga da mora por parte do devedor fiduciante foi excluída do texto legal, passando a existir apenas a faculdade do devedor pagar a integralidade da dívida pendente, entendida como as parcelas vencidas e vincendas, conforme os valores apresentados e comprovados pelo credor.

Em seu voto o Min. Rel. Luis Felipe Salomão aduziu que não cabe ao judiciário criar hipótese de purgação da mora não prevista na lei, sob pena de se criar insegurança jurídica e violação ao princípio da tripartição dos poderes. E acrescentou, que para os casos de alienação fiduciária envolvendo bem móvel, o princípio da conservação dos contratos deve ser mitigado, aplicando o Código Civil e Código de Defesa do consumidor somente no que compatível.

Assim, se o contrato prevê cláusula de vencimento antecipado da dívida e o credor fiduciário informar como débito as parcelas vencidas e vincendas, ao devedor somente, caberá, o direito de pagar a integralidade do contrato para reaver o bem dado em garantia, sob pena de perda deste para o credor.

Insta consignar que não há na legislação atual previsão legal que obrigue os tribunais inferiores adotarem o mesmo entendimento. Entretanto os recursos especiais que versarem sobre a matéria terão o seguimento denegado na hipótese de o acórdão recorrido coincidir com a orientação do Superior Tribunal de Justiça, ou o Tribunal de Justiça de origem apreciará novamente a matéria na hipótese de o acórdão recorrido divergir do seu posicionamento, e, se mantida a decisão divergente pelo Tribunal de Origem, far-se-á o exame de admissibilidade do recurso especial.

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Notas:
[1] (THEODORO JÚNIOR, Humberto, 2010, vol 3, p. 575)

[2] CHALHUB, Melhim Namem, 2006, p. 204/212

[3] SILVA, De Plácido, 2004, p. 1.135


Informações Sobre o Autor

Ancylla Marques Gonçalves

Bacharel em Direito pela Faculdade de Sabará, Pós-Graduada em Direito Processual Civil e Direito Civil pelo Centro Universitário Newton Paiva, Advogada atuante na área de Direito Civil Empresarial e Bancário


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