A regulamentação do direito à privacidade na era da informação

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Autora: Dardivânia Feitosa Da Silva – Acadêmica de Direito na Universidade Unirg. E-Mail: [email protected]

Orientador: Prof. Adriano De Oliveira Resende – Pós-Graduação em Direito Processual Civil Pela Faculdade Damásio (2013), pós-Graduação em Processo E Direito Civil Pela Unitins/Esa (2021). E-Mail: [email protected]

Resumo: Este artigo objetiva analisar a regulamentação do direito à privacidade na era da informação. Para tanto, expõe o conceito de direitos da personalidade e sua relação com os direitos fundamentais; explica a liberdade de expressão e o direito à privacidade; e aborda situações de conflito entre o direito à liberdade de expressão e o direito à privacidade, bem como os critérios empregados na solução desses conflitos. De modo a explicitar os conceitos relacionados à temática do presente artigo, foi efetuado um levantamento teórico, recorrendo à pesquisa bibliográfica em livros, artigos e outras pesquisas científicas por fontes de acesso físico ou virtual que versavam sobre direitos da personalidade, liberdade de expressão/informação e direito à privacidade/intimidade. Foi visto que entre direitos fundamentais, não há relação de hierarquia. Assim, entende-se que quando o magistrado se vê diante de casos em que é observada a colisão de direitos fundamentais, deve orientar a formação da convicção do caso, a partir dos elementos da coerência e integridade, consubstanciados pelas razões da não arbitrariedade e da equanimidade, para, assim, alcançar a resposta correta para o conflito. No caso do conflito entre o direito à liberdade de expressão e o direito à informação, entende-se que para que a liberdade de expressão seja mitigada, esta deve representar verdadeiramente um risco para o Estado Democrático de Direito, devendo-se atentar para que a limitação a este princípio não seja banalizada. Assim, é importante saber distinguir o que realmente incentiva o ódio e viola direitos humanos, daquilo que apenas provoca incômodo e não é compartilhado pela maioria.

Palavras-chave: Liberdade de expressão. Direito à informação. Privacidade. Discurso de ódio. Colisão de princípios.

POSSIBLE SOLUTION CRITERIA FOR CONFLICTS BETWEEN THE RIGHT TO FREEDOM OF EXPRESSION AND THE RIGHT TO PRIVACY

Abstract: This article aims to analyze the regulation of the right to privacy in the information age. Therefore, it exposes the concept of personality rights and their relationship with fundamental rights; explains freedom of expression and the right to privacy; and addresses situations of conflict between the right to freedom of expression and the right to privacy, as well as the criteria used to resolve these conflicts. In order to clarify the concepts related to the theme of this article, a theoretical survey was carried out, using bibliographical research in books, articles and other scientific research by physical or virtual sources that deal with personality rights, freedom of expression/information and right to privacy/intimacy. It was seen that among fundamental rights, there is no hierarchical relationship. Thus, it is understood that when the magistrate is faced with cases in which the collision of fundamental rights is observed, he must guide the formation of the conviction of the case, based on the elements of coherence and integrity, substantiated by the reasons of non-arbitrary and equanimity, in order to reach the correct answer to the conflict. In the case of conflict between the right to freedom of expression and the right to information, it is understood that for freedom of expression to be mitigated, it must truly represent a risk for the Democratic Rule of Law, and care must be taken to ensure that the limitation to this principle is not trivialized. Thus, it is important to know how to distinguish what really encourages hatred and violates human rights, from what only causes discomfort and is not shared by the majority.

Keywords: Freedom of expression. Right to information. Privacy. Hate speech. Collision of principles.

 

Sumário: Introdução. 1. Direitos da personalidade. 2. A liberdade de expressão e de informação. 2.1. A liberdade de expressão na Constituição Federal de 1988. 2.2. Direito à privacidade 3.  Do conflito entre o direito à liberdade de expressão e o direito à privacidade . Conclusão. Referencias.

 

 Introdução

Nesse trabalho propõe-se um estudo sobre a contraposição entre a liberdade de expressão/informação e o direito à privacidade/intimidade, temas que sempre motivaram debates acerca de seus conceitos e implicações. A concepção de liberdade, especificamente a liberdade de expressão, teve seu embrião na Antiguidade Clássica. Já a tutela da privacidade ganhou os contornos atuais no Iluminismo. Seu principal expoente foi John Locke, que afirmava que o poder provinha dos indivíduos, os quais, por conseguinte, tinham o direito de ser protegidos das intervenções advindas do Poder Público, sendo assegurada uma série de direitos naturais a todos os cidadãos.

Ambos, liberdade de expressão e direito à privacidade são direitos fundamentais que, na atual sociedade da informação, com certa recorrência, entram em conflito. Com o intuito de conhecer como este conflito vem sendo enfrentado, este artigo objetivou analisar a regulamentação do direito à privacidade na era da informação.

O presente estudo examina, sob a perspectiva da teoria dos direitos fundamentais e dos direitos da personalidade, os conflitos potenciais entre a liberdade de expressão, em especial a liberdade de imprensa, e a tutela da vida privada, honra e imagem. Insere-se o estudo na perspectiva da área de concentração direito constitucional nas relações privadas.

Sabe-se que a solução de colisões entre Direitos Fundamentais ainda gera dúvidas, e exige um profissional da área jurídica que tenha uma visão dinâmica que se adeque inclusive com a constitucionalização do Direito Civil, desde a qual os princípios constitucionais pautam as relações entre as pessoas e o Estado e entre relações simplesmente privadas.

Assim, o estudo se mostra relevante, pois, o trabalho, sem a pretensão de esgotar o tema, faz uma análise da atuação do poder judiciário e seu papel na harmonização da liberdade de expressão com a tutela dos direitos da personalidade, obedecendo às determinações previstas na Constituição Federal de 1988 e protegendo a dignidade humana, ou seja, permitindo a integridade com o ordenamento jurídico.

De modo a explicitar os conceitos relacionados à temática do presente artigo, foi efetuado um levantamento teórico, recorrendo à pesquisa bibliográfica em livros, artigos e outras pesquisas científicas por fontes de acesso físico ou virtual que versavam sobre direitos da personalidade, liberdade de expressão/informação e direito à privacidade/intimidade.

 

1. Direitos da Personalidade

Consagrando em seu texto a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental, a Constituição Federal reconheceu que a pessoa é detentora de direitos inerentes à sua personalidade. É justamente a personalidade que nos identifica como pessoa, como ser humano que integra a sociedade e o gênero humano.

A personalidade consiste em caracteres inerentes à pessoa. Pela personalidade, que é um atributo jurídico reconhecido aos seres humanos, podemos adquirir, aferir e ordenar outros bens. Contudo, não é a personalidade o objeto dos direitos da personalidade, mas algumas qualidades, expressões ou projeções dela, já que a personalidade não é propriamente um direito, mas sim um conceito básico em torno do qual se sustentam os direitos. Consiste, pois, na parte intrínseca da pessoa humana, no conjunto de caracteres inerentes ao próprio indivíduo. Pela personalidade, a pessoa pode adquirir e defender os demais bens (Kallajian, 2019).

São, portanto, no magistério de Bittar Filho (2002), os direitos decorrentes da personalidade humana, que protegem o que é próprio da pessoa, como a vida, a integridade física ou psíquica, o corpo, a intimidade, a liberdade, a privacidade, a imagem, a honra, o nome, dentre outros que tenham por objeto fazer menção às projeções físicas, psíquicas e morais do homem, considerado em si mesmo, e em sociedade. São objetos cuja proteção constitui o problema fundamental de toda a ordem jurídica.

É comum, pois, que no cotidiano ocorram situações novas que clamam por proteção jurídica aos direitos da personalidade. Segundo Bittar (2015), não se pode afirmar que o rol de direitos previsto na Constituição Federal de 1988 (CRFB/1988) e no Código Civil de 2002 (CC/2002) seja taxativo, mas somente exemplificativo. Isso ocorre não apenas pelo fato de estar-se em constante mutação social, mas principalmente porque a Constituição Federal, em seu art. 5º, § 2º, dispõe que os direitos e as garantias que ali encontram-se previstos não excluem outros que eventualmente possam vir a ser reconhecidos.

Dentre os direitos da personalidade estão o direito à liberdade de expressão e de informação.

 

  1. A liberdade de expressão e de informação

A liberdade de expressão representa o triunfo no movimento liberal do século XVIII, reconhecida na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e na primeira Emenda à Constituição Federal dos Estados Unidos em 1791, restando consolidada como um direito fundamental na formação do Estado Democrático de Direito. Foi admitida, posteriormente, no art. 19º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH) de 1948, da mesma forma no art. 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) de 1950, uma das precursoras na efetivação do direito à liberdade de expressão, no art. 13º da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) de 1969, dentre outros institutos, exercendo, complementarmente, forte influência em diversas ordens constitucionais de origem democrática.

A partir do desenvolvimento dessa concepção moderna, na doutrina constitucional, prevalece o entendimento de que em um sentido mais amplo, o direito fundamental à liberdade de expressão engloba um aglomerado de direitos fundamentais, que alguns designam como liberdades de comunicação, engloba o direito à liberdade em sentido estrito, às vezes, nomeada liberdade de opinião, o direito à informação, à liberdade de imprensa, à liberdade de comunicação social e à liberdade de comunicação individual. “As liberdades de criação artísticas e científicas, as formas de exteriorização cultural e linguística de ideias, sentimentos, convicções religiosas, filosóficas ou políticas também possuem um valor social inegável, em um sistema de comunicação livre e plural”. (MACHADO; BRITO, 2014).

Dessa forma, o direito à liberdade de expressão traz em seu bojo um conjunto de fundamentos que justificam a posição de destaque que ocupa nas democracias contemporâneas. Porém, existe uma zona de conflito entre a defesa da livre manifestação de pensamento e a legitimação de discursos que, mesmo ultrapassando seu raio de abrangência, nela buscam refúgio.

Rosenfeld (2003, p. 1523) define o discurso do ódio, também denominado “hate speech” como o discurso destinado a promover o ódio com base em elementos inerentes à raça, religião, origem étnica ou nacional. Sarmento (2009) acrescenta ainda a intolerância voltada às questões de gênero, orientação sexual e deficiência física ou mental. Os grupos vitimados são, em grande parte, vulneráveis e, de acordo com Meyer-Pflug (2009), minoritários, sendo que as práticas contra eles dirigidas negam a alteridade, pois objetivam sua redução, ao promoverem rivalidade e desprezo.

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Apesar da importância dada às diversas formas de manifestação de pensamento, com a imposição de determinados limites, Rosenfeld (2003) afirma que a Alemanha trata a liberdade de expressão como um direito fundamental dentre vários outros, em vez de considerá-la como um direito primordial, a exemplo da tradição estadunidense, sendo equilibrada com a busca pela dignidade e pelos interesses de determinados grupos.

Além disso, o autor assinala que a garantia é, por um lado, um direito negativo, isto é, um direito contrário ao Estado, e, por outro, um direito positivo, ou seja, um direito a defesa da liberdade de expressão pela via estatal.

De toda forma, compreender o conteúdo da liberdade de expressão não é uma questão de todo pacífica, não somente por sua forma conceitual, mas, especialmente, pela pluralidade de valores e bens jurídicos envolvidos.

No Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e, igualmente na Declaração Universal dos Direitos do Homem e na Convenção Americana sobre direitos humanos a liberdade de expressão constitui: “(i) o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões; (ii) o direito de investigar; (iii) o direito de receber informações e opiniões; e (iv) o direito de difundir, sem consideração de fronteiras, tais informações e opiniões (ou ideias).” (RODRIGUES JR., 2008, p. 59).

Assinale-se que a liberdade de expressão traz também uma conotação negativa, de não interferência do Estado e da sociedade quanto à livre manifestação de todo e qualquer tipo de opinião ou ideia, excetuando-se os casos de abuso, como se observa no discurso do ódio. Entretanto, ela deve ser vista também em sua conotação positiva, ou seja, no livre acesso das pessoas aos meios de expressão, com o objetivo de salvaguardar a todos a possibilidade do seu exercício e de uma melhor qualidade do debate público (SARMENTO, 2007).

Dessa forma, é possível afirmar que a proteção dada à liberdade de expressão pela CRFB/1988 refere-se à sua feição negativa, ao mesmo tempo em que a proteção da liberdade de imprensa, encontra-se inserida nesse aspecto positivo concernente ao direito de informar.

Acrescente-se que, inserido na liberdade de expressão, está o direito à informação, este subdividido em três aspectos: o direito de informar, de se informar e o direito de ser informado. No magistério de Carvalho (2017), estes aspectos, juntos, traduzem a liberdade de imprensa, tendo em mente que é por meio dela que a liberdade de expressão é concretizada por qualquer meio técnico empregado pela comunicação.

O direito de informar fundamenta-se na faculdade de veicular informações irrestritas a terceiros, sendo prevista na CRFB/1988 em sua forma individual e na comunicação social, realizada pela mídia. Segundo Nunes Junior (2011), na comunicação social o direito de informar é exercido pelos detentores mídia televisiva, escrita, radiofônica e virtual. Já o direito de se manter informado está relacionado à faculdade de obter informações sem óbices por parte do Estado. Por derradeiro, o direito de ser informado diz respeito à liberdade para receber informações plenas e sem restrições, além de ser resguardado por proteção constitucional.

Para Nunes Junior (2011), esses três níveis do direito de informação apresentam elevado grau de interdependência, os quais são fundamentais para que a liberdade de imprensa seja exercida.

 

2.1 A liberdade de expressão na Constituição Federal de 1988

Em uma ordem constitucional livre e democrática, a liberdade da comunicação, que inclui as liberdades de expressão, informação, imprensa, radiodifusão e dos novos mídia possui fundamental papel na garantia do bom funcionamento dos sistemas político, econômico, científico, cultural, artístico, religioso e desportivo (MACHADO; BRITO, 2016).

Atualmente a informação enquanto bem jurídico é tutelada, tanto pelo Direito Internacional Público através de Tratados e Convenções, como no Direito Interno pela recepção de princípios pela ordem constitucional de cada país.

No Brasil, em outubro de 1988, foi promulgada a atual Constituição Federal, com as garantias individuais, dentre elas, a de direito à liberdade. A Constituição atual confirma uma evolução da estrutura constitucional, refletindo a ordem democrática que a inspirou, além dos valores extraídos da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Conforme disposto no art. 5º, inc. IX, de nossa Lei Maior, “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (BRASIL, 1988, s.p).

Também, o art. 220, da CRFB/1988, inserido no Capítulo relativo à comunicação social, declara que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição” (BRASIL, 1988, s.p).

Complementarmente, o § 2º do mesmo art. 220 da CRFB/1988, veda toda e qualquer tipo de censura de natureza política, ideológica e artística, tendo-se por censura, a verificação, anterior à publicação, da compatibilidade entre um pensamento que se quer exprimir e o ordenamento jurídico vigente.

Porém, como está exposto na própria Constituição (art. 220, § 3º), o Poder Público pode regular as diversões e espetáculos, valendo-se da edição de legislação federal, fornecendo informações acerca da natureza destes eventos, as faixas etárias às quais se destinam, além de locais e horários em que a apresentação poderá ser realizada. Também, consoante o art. 221, inc. IV, da CRFB/1988, a programação das emissoras de rádio e de televisão deverão respeitar os valores morais e éticos da sociedade, da família e do indivíduo.

Conflitando com a liberdade de expressão, encontra-se o direito à privacidade, que será abordado a seguir.

 

2.2 Direito à Privacidade

Cabe ao Estado respeitar e proteger a privacidade dos indivíduos, assim como estabelecido no art. 11[1] da Convenção Americana dos Direitos do Homem (CADH).

O princípio da privacidade tem como base o mesmo fundamento, porém, quando o assunto é respeito à privacidade na era digital, estamos diante de uma tarefa delicada de ser concretizada pelo Estado, uma vez que esse tem o dever de proteger os dados e informações dos usuários, devendo, por outro lado, evitar a todo custo intervenções arbitrárias nas atividades de empresas provedoras de acesso, além de garantir que outros também não o façam.

Dessa forma, a proteção à privacidade deve ser garantida com vistas a critérios razoáveis e proporcionais. Além dos princípios estabelecidos no artigo 13 da CADH, foram definidas condições mínimas a serem observadas para o pleno gozo da liberdade de expressão na Internet.

A título de exemplificação, em declaração comum firmada entre a Organização das Nações Unidas (ONU), Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos (CADPH), a Organização dos Estados Americanos (OEA), e a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), restou estabelecido que a neutralidade da rede deve ser garantida a todos os usuários, ou seja, seus dados transmitidos não podem estar sujeitos a quaisquer tipos de bloqueio, filtros ou ainda intervenções, não podendo ainda ser direcionados, redirecionados ou restringidos.

A neutralidade da rede representa o ideal sobre o qual se construiu a Internet, sendo um elemento fundamental para garantir a diversidade de informações que circulam no meio digital. Só será permitida a restrição ou o bloqueio de informações quando estritamente necessário e, mesmo dentro dessas condições, a liberdade de expressão em sua forma mais plena só estará verdadeiramente garantida com o acesso sem interferências à Internet (COSTA, 2021). Para tal, faz-se necessária a observação sistemática de três medidas, quais sejam: as políticas de inclusão e de democratização do acesso à Internet; a realização de investimentos em infraestrutura para garantir a médio e longo prazo o acesso universal; e, por fim, políticas que visem impedir restrições ou bloqueios arbitrários de acesso aos meios de comunicação digital.

No Brasil, a neutralidade de rede está prevista no Marco Civil da Internet (MCI) – Lei no 12.965/2014, no Capítulo III, seção I, e foi regulamentada pelo Decreto no 8.771/2016, em seu capítulo II. Tal decreto relacionou de forma objetiva – e exaustiva – quais seriam as hipóteses de exceção permitida à neutralidade de rede.

A liberdade de expressão figura no rol de direitos e garantias fundamentais previstos no art. 5º da CRFB/1988 em diversos de seus incisos, destacando-se em especial os de número IV e X. Além do mais, a liberdade de expressão também possui especial proteção no art. 220 da Carta Magna, ao proteger a manifestação de pensamento, expressão e informação sob todas as formas. Neste diapasão, é vedado ao poder público estabelecer meios de censura ou controle prévio de informações que circulem em quaisquer meios, incluindo os eletrônicos (GABINA, 2020).

Ao proteger a liberdade de expressão, e concomitantemente vedar o anonimato, a CRFB/1988 estabelece que o autor deve ser identificado, ainda que por meio de um pseudônimo, de forma que responda por eventuais abusos perpetrados no exercício dessa garantia – conforme estabelece o inciso X do art. 5º da CRFB/1988, ressalvadas as hipóteses do art. 19 do CC/2002.

Estes limites também devem ser observados e respeitados no ambiente digital, uma vez que uma liberdade isenta de consequências para que o indivíduo se expresse como quiser teria potencial de atentar diretamente contra bens jurídicos protegidos de outrem, a exemplo da honra e da privacidade.

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O art. 220 da CRFB/1988, por conseguinte, aprofunda a proteção à liberdade de expressão trazendo as já mencionadas vedações de políticas de censura e controle de informações, cabendo ressaltar que sua eficácia é plena, sendo, portanto, autoaplicável sem a necessidade de uma legislação esparsa que o regulamente.

Pode-se então notar que a CRFB/1988, ao tratar da liberdade de expressão, preocupou-se num primeiro momento em construir essa garantia e em todos os prismas disponíveis, para somente num segundo momento estabelecer camadas extras de proteção para evitar a relativização arbitrária desse direito, reconhecendo, de forma objetiva, as hipóteses em que o sujeito que extrapolasse os limites responderia pelos danos causados – mas sempre vedando a censura prévia sob todas as formas.

A sociedade de informação evoluiu, e com isso a humanidade entrou na era da sociedade digital, por meio de mudanças de paradigmas sociais que ensejam a evolução da própria norma, uma vez que os meios de manifestação de pensamento tornaram-se não apenas mais céleres, mas também mais amplos, com ferramentas que permitem a fácil replicação da informação em escala geométrica com o simples clique de um botão. “A lei, sendo uma construção social, precisa acompanhar a evolução da sociedade e dos meios de comunicação, razão pela qual, leis como o MCI foram aprovadas”. (WARBURTON, 2020).

Tanto a liberdade de expressão quanto o direito à privacidade são garantias fundamentais protegidas e asseguradas expressamente tanto na CRFB/1988, quanto na Lei no 12.965/2014. No contexto dos meios de comunicação digitais, a liberdade de expressão sem um elemento regulador – a exemplo do inciso X da Carta Magna brasileira –, infelizmente, pode representar um instrumento de violações sistemáticas de direitos de terceiros, cabendo ao poder público encontrar o ponto de equilíbrio entre o direito individual e coletivo, uma vez que as novas tecnologias passaram a afetar profundamente o exercício da liberdade de pensamento e a proteção à privacidade do indivíduo. O nascimento da sociedade digital trouxe consigo a necessidade de repensar o papel do Estado como conformador de comportamentos por meio de seu poder de polícia (JACOB, 2021).

Exatamente por isso o MCI fundou-se em três pilares essenciais: a) neutralidade da rede; b) privacidade dos usuários e; c) liberdade de expressão e de pensamento. A privacidade e a liberdade de expressão buscam ser protegidas de forma especial no espaço digital no artigo 8º da lei. O aspecto formal estava plenamente garantido, restando agora a aplicação material da norma aos casos concretos, tarefa a ser desempenhada tanto pelo poder público, quanto pela própria sociedade, de forma a equilibrar essas duas garantias visando evitar abusos e violações indevidas.

 

  1. Do conflito entre o direito à liberdade de expressão e o direito à privacidade

A ponderação de princípios é uma atividade fundamental para solucionar o problema da colisão de princípios e que justificam a existência dos direitos fundamentais. Outra denominação dada a essa atividade é o sopesamento. Para Ávila (2018, p. 143) “consiste num método destinado atribuir pesos a elementos que se entrelaçam”. O conflito entre o direito à informação, decorrente da liberdade de expressão e de manifestação do pensamento, e direito à privacidade enquanto abrangente da intimidade e da vida privada é uma constante em razão das características da sociedade da informação.

As possibilidades oferecidas pelos recursos tecnológicos permitem a captação de fatos e obtenção de dados que ficam armazenados em bancos de dados, cujo acesso pode ocorrer de forma imperceptível, por quem seja objeto desse registro. Outra característica ressaltada foi a maneira multidirecional como a informação passou a ser produzida, e a Internet se tornou a ferramenta principal dessa dinâmica. Um segmento significativo de pessoas que têm acesso à Internet deixou de ser somente consumidor de informação e passou também a produzir notícias.

Por esta razão “é necessário realizar balanceamentos mais complexos entre os interesses em jogo, para assegurar a coexistência da garantia dos direitos individuais com a progressiva abertura da sociedade” (RODOTÀ, 2008, p. 48).

Essas facilidades de captação e obtenção de informações se expandem pelo avanço da tecnologia e das políticas de expansão do consumo, que consiste em pôr à disposição das pessoas, enquanto consumidoras de produtos, usuárias de serviços públicos ou privados, e das instituições públicas e privadas, recursos tecnológicos cada vez mais atraentes para os interesses pessoais e institucionais. Porém, como alerta Cebrián (1999) a rede tem um potencial avassalador para violar a privacidade de uma forma irrevogável.

A grande maioria das pessoas entende que tem o direito de decidir que informações pessoais divulgar, a quem e para quê. Aceita-se sem perceber ou questionar que é preciso fornecer às instituições públicas e privadas algumas informações sobre suas vidas, a fim de que possam obter informações, serviços etc. Mas sabe-se que há o risco de que essas informações não sejam usadas apenas para a finalidade a que a princípio se destina, muitas vezes sendo vendidas a terceiros.

Ante a essas circunstâncias, com o intuito de que seja possível que se confira proteção aos dados pessoais dos cidadãos, tendo em vista a constitucionalização do direito à privacidade e, principalmente em face do avanço tecnológico, é necessário, além de uma legislação que contemple as situações que essa modernidade desafia (tal como já o fez recentemente a Lei n° 13.709/2018 – Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD), a observância constante do princípio da proporcionalidade e a utilização do critério da ponderação de forma racionalizada, considerando-se a complexidade da sociedade atual e a maneira com que a informação e a comunicação se dinamizam.

Essa nova legislação é importante, pois, diante das circunstâncias hodiernas em que as informações que guardam relação com as pessoas podem ser capturadas, classificadas, arquivadas e tratadas de formas diversas pelas tecnologias informacionais, onde a produção da informação e a sua comunicação passaram por uma virada significativa com a Internet, no sentido de ser multidirecional, a insuficiência de legislação específica sobre a matéria e a constante conflituosidade desses princípios criava um desafio também significativo para todos os profissionais do Direito e da Política, o que espera-se que seja resolvido com a novel legislação.

Sabe-se que não há princípios absolutos e não havendo colisões de princípios, um princípio cede lugar quando lhe é conferido peso maior que ao princípio antagônico. Por sua vez, havendo uma contradição com uma regra jurídica, esta não é superada simplesmente quando se atribui, em determinado caso concreto, um peso mais significativo ao princípio que contraria um outro princípio que sustenta a própria regra. Assim, resulta da ideia de que, na colisão entre princípios diante de um caso concreto, um princípio deve preceder sobre o outro, o que não resultará na invalidação do princípio cedente, o qual permanecerá válido no sistema constitucional (SARLET, 2018).

Assim, nas hipóteses de colisão entre princípios, o juízo que prevalece é o de sopesamento, a ser efetuado ante às circunstâncias específicas envolvendo o caso concreto. Por tal motivo é que o princípio prevalente em um determinado caso, poderá ser o princípio que irá ceder em caso concreto diverso, desde que tenha ocorrido alteração nas circunstâncias fáticas específicas que resultaram na prevalência desse princípio no primeiro caso.

Dentre as condutas passíveis de punição, que reforçam a primazia do princípio da dignidade humana em detrimento do direito a expressar ideias odiosas, destaca a criminalização do negacionismo ao Holocausto, por esta prática ser uma forma de incitação ao ódio, o que no Brasil pode ser exemplificado pelo caso Ellwanger em que a Suprema Corte decidiu ao julgar o Habeas Corpus nº 82.424-2[2] que a discriminação contra judeus, cometida pelo réu, deveria ser tratada como racismo, determinando a consequente imposição de tratamento mais estrito ao mandado constitucional de crime. Assim, no caso Ellwanger não houve qualquer restrição à liberdade de expressão do arguido, tendo em conta que a prática foi considerada crime doloso.

Sendo a liberdade de expressão um direito basilar para a constituição da democracia, suas limitações apenas são legítimas na medida em que resguardam a dignidade de outrem, por meio do respeito à honra, à intimidade, à privacidade e da proibição ao discurso de ódio (WARBURTON, 2020).

Importa ressaltar que não se deve enquadrar qualquer manifestação divergente ou espinhosa em discurso de ódio, pois é necessário assegurar-se a liberdade de expressão de crença, de consciência que, ainda que provoquem desconforto, precisam ser toleradas quando não discriminam e não ultrapassam a esfera da comunicação de opinião.

Num reinado da tolerância e do respeito, em que as pessoas tenham empatia umas pelas outras e sejam compassivas em relação às diferenças de pensamento, comportamento e estilos de vida, não haveria discurso de ódio e a liberdade de expressão estaria autolimitada por essa concepção moral da tolerância e por um comportamento ético e respeitoso (JÓRIO, 2016).

Verdadeiramente, a maneira mais eficiente de obstaculizar a discriminação, o ódio e a intolerância é por meio do debate, numa lógica de argumento e contra-argumento, visando, assim, esgotar a incoerência desses tipos de discursos, de forma que uma parcela cada vez maior da sociedade passe a enfrentar seus argumentos, criticá-los, repeli-los e condená-los moralmente (JACOB, 2021).

Nesse trilhar, entende-se que cabe ao Estado atuar no estabelecimento de políticas públicas de educação de forma que fomentem a tolerância e o respeito às diferenças e de políticas que assegurem direitos e oportunidades para todos os indivíduos. Por fim, foi possível concluir que para além das linhas argumentativas adotadas por cada ordenamento jurídico, as ações mais eficazes para minimizar a discriminação, o ódio e a intolerância, são as que atingem a raiz do problema, traduzindo no pluralismo, no respeito as diferenças, na tolerância, no reconhecimento de que todos são iguais em direitos e respeito e salvaguardando, ao mesmo tempo, um debate livre, plural e aberto.

 

 Conclusão

 

O ser humano é um ser comunicativo em sua essência e uma de suas principais características é a necessidade de se expressar. Com isso, é importante atentar para a escolha da linguagem que melhor retrate o significado da expressão, seja ela individual ou coletiva e esta é a razão para que a liberdade de expressão tenha se tornado um dos símbolos mais importantes da própria proteção aos direitos humanos. Mas, com ela, vêm   os abusos, como é o caso do discurso de ódio. Nesse contexto surge  a colisão entre o direito à liberdade de expressão e o direito à informação.

Sabe-se que abusos acontecem, sendo muitos os casos em que a liberdade de expressão é empregada para proferir ofensas de grande gravidade ou mesmo para distorcer fatos e notícias, podendo gerar consequências negativas, tais como: crimes contra a honra, preconceito, racismo, ódio, desinformação ou mesmo alteração de resultados sociais como eleições e círculo de amizades ou trabalho. Daí que surge a necessidade de se analisar qual a proteção existente quanto à liberdade de expressão no Brasil e quando ela pode ou não ser mitigada.

A liberdade de expressão é cláusula pétrea que opera como um dos pilares do Estado Democrático de Direito. A sua prevalência decorre da vedação à censura e pode encontrar eventual limitação apenas quando houver anonimato ou conflito com outros direitos e garantias de mesma hierarquia como o direito à honra, à imagem e à dignidade da pessoa humana – ainda assim a depender do devido sopesamento de princípios.

Foi visto que entre direitos fundamentais, não há relação de hierarquia. Assim, entende-se que quando o magistrado se vê diante de casos em que é observada a colisão de direitos fundamentais, deve orientar a formação da convicção do caso, a partir dos elementos da coerência e integridade, consubstanciados pelas razões da não arbitrariedade e da equanimidade, para, assim, alcançar a resposta correta (melhor resposta) para o conflito, representando um impulso de continuidade no livro do direito, o que denota que a resposta revelada deve ser considerada quando de novos casos.

No caso do conflito entre o direito à liberdade de expressão e o direito à informação, entende-se que para que a liberdade de expressão seja mitigada, esta deve representar verdadeiramente um risco para o Estado Democrático de Direito.

Vale destacar que a liberdade de expressão não engloba apenas as opiniões inofensivas ou favoráveis à maioria da opinião pública, mas também aquelas que causam inquietações ou transtornos para as pessoas, pois a democracia está assentada exatamente no pluralismo de ideias e de pensamentos.

Do exposto depreende-se que deve-se considerar as adversidades das limitações, porque há que se ter cautela no percurso desse caminho, a fim de que não se incorra no risco de a nova liberdade se estender para a velha censura e a tolerância e a luta pelos direitos humanos sejam preteridos.

Assim, sabendo-se que a liberdade de expressão é um direito indispensável à constituição da democracia, suas restrições somente podem ser consideradas legítimas quando resguardam a dignidade das pessoas, sua honra, intimidade e privacidade.

Ressalte-se, por fim, que não se pode banalizar a limitação do princípio da liberdade de expressão. À guisa de exemplo, sabe-se, que a Alemanha é um país marcado pelas discriminações que culminaram no Holocausto, que externa uma posição mais extrema ao vedar a teoria revisionista, pois, ao considerar a mera negação ao Holocausto um incitamento ao ódio, dessora o exercício do direito à liberdade de expressão, fundamental para garantir um discurso livre e democrático. Eventualmente, a simples negação de fatos históricos, tem como objetivo fomentar um debate para a busca da verdade e não propagar a discriminação.

Esta é, pois, uma distinção importante e necessária: saber distinguir o que realmente incentiva o ódio e viola direitos humanos, daquilo que apenas provoca incômodo e não é compartilhado pela maioria.

 

REFERÊNCIAS

ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2018.

 

BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

 

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[1]    Artigo 11. Proteção da honra e da dignidade. 1. Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade. 2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação. 3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas.

[2] HABEAS-CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVROS: ANTI-SEMITISMO. RACISMO. CRIME IMPRESCRITÍVEL. CONCEITUAÇÃO. ABRANGÊNCIA CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. LIMITES. ORDEM DENEGADA. 1. Escrever, editar, divulgar e comerciar livros “fazendo apologia de idéias preconceituosas e discriminatórias” contra a comunidade judaica (Lei 7716/89, artigo 20, na redação dada pela Lei 8081/90) constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII). 2. Aplicação do princípio da prescritibilidade geral dos crimes: se os judeus não são uma raça, segue-se que contra eles não pode haver discriminação capaz de ensejar a exceção constitucional de imprescritibilidade. Inconsistência da premissa. 3. Raça humana. Subdivisão. Inexistência. Com a definição e o mapeamento do genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer outras características físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas entre os seres humanos. Na essência são todos iguais. 4. Raça e racismo. A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista. 5. Fundamento do núcleo do pensamento do nacional-socialismo de que os judeus e os arianos formam raças distintas. Os primeiros seriam raça inferior, nefasta e infecta, características suficientes para justificar a segregação e o extermínio: inconciabilidade com os padrões éticos e morais definidos na Carta Política do Brasil e do mundo contemporâneo, sob os quais se ergue e se harmoniza o estado democrático. Estigmas que por si só evidenciam crime de racismo. Concepção atentatória dos princípios nos quais se erige e se organiza a sociedade humana, baseada na respeitabilidade e dignidade do ser humano e de sua pacífica convivência no meio social. Condutas e evocações aéticas e imorais que implicam repulsiva ação estatal por se revestirem de densa intolerabilidade, de sorte a afrontar o ordenamento infraconstitucional e constitucional do País. 6. Adesão do Brasil a tratados e acordos multilaterais, que energicamente repudiam quaisquer discriminações raciais, aí compreendidas as distinções entre os homens por restrições ou preferências oriundas de raça, cor, credo, descendência ou origem nacional ou étnica, inspiradas na pretensa superioridade de um povo sobre outro, de que são exemplos a xenofobia, “negrofobia”, “islamafobia” e o anti-semitismo. 7. A Constituição Federal de 1988 impôs aos agentes de delitos dessa natureza, pela gravidade e repulsividade da ofensa, a cláusula de imprescritibilidade, para que fique, ad perpetuam rei memoriaN, verberado o repúdio e a abjeção da sociedade nacional à sua prática. 8. Racismo. Abrangência. Compatibilização dos conceitos etimológicos, etnológicos, sociológicos, antropológicos ou biológicos, de modo a construir a definição jurídico-constitucional do termo. Interpretação teleológica e sistêmica da Constituição Federal, conjugando fatores e circunstâncias históricas, políticas e sociais que regeram sua formação e aplicação, a fim de obter-se o real sentido e alcance da norma. 9. Direito comparado. A exemplo do Brasil as legislações de países organizados sob a égide do estado moderno de direito democrático igualmente adotam em seu ordenamento legal punições para delitos que estimulem e propaguem segregação racial. Manifestações da Suprema Corte Norte-Americana, da Câmara dos Lordes da Inglaterra e da Corte de Apelação da Califórnia nos Estados Unidos que consagraram entendimento que aplicam sanções àqueles que transgridem as regras de boa convivência social com grupos humanos que simbolizem a prática de racismo. 10. A edição e publicação de obras escritas veiculando idéias anti-semitas, que buscam resgatar e dar credibilidade à concepção racial definida pelo regime nazista, negadoras e subversoras de fatos históricos incontroversos como o holocausto, consubstanciadas na pretensa inferioridade e desqualificação do povo judeu, equivalem à incitação ao discrímen com acentuado conteúdo racista, reforçadas pelas conseqüências históricas dos atos em que se baseiam. 11. Explícita conduta do agente responsável pelo agravo revelador de manifesto dolo, baseada na equivocada premissa de que os judeus não só são uma raça, mas, mais do que isso, um segmento racial atávica e geneticamente menor e pernicioso. 12. Discriminação que, no caso, se evidencia como deliberada e dirigida especificamente aos judeus, que configura ato ilícito de prática de racismo, com as conseqüências gravosas que o acompanham. 13. Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. 14. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o “direito à incitação ao racismo”, dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica. 15. “Existe um nexo estreito entre a imprescritibilidade, este tempo jurídico que se escoa sem encontrar termo, e a memória, apelo do passado à disposição dos vivos, triunfo da lembrança sobre o esquecimento”. No estado de direito democrático devem ser intransigentemente respeitados os princípios que garantem a prevalência dos direitos humanos. Jamais podem se apagar da memória dos povos que se pretendam justos os atos repulsivos do passado que permitiram e incentivaram o ódio entre iguais por motivos raciais de torpeza inominável. 16. A ausência de prescrição nos crimes de racismo justifica-se como alerta grave para as gerações de hoje e de amanhã, para que se impeça a reinstauração de velhos e ultrapassados conceitos que a consciência jurídica e histórica não mais admitem. Ordem denegada (BRASIL. Supremo Tribunal Federal – STF – Habeas Corpus nº 82.424-2 – RS. Relator: Ministro Moreira Alves. Julgado em: 17.09.2003. Tribunal Pleno. Publicado em: 19.03.2004).

 

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