A relação entre negócios jurídicos processuais e a boa-fé

Resumo: Analisa, inicialmente, os negócios jurídicos processuais, a partir de sua previsão no Código de Processo Civil de 1973 até a formalização do instituto no Novo Código de Processo Civil (Lei n° 13.105/2015), com o qual ganhou posição de destaque, caracterizando uma das mais relevantes inovações contidas na nova codificação. Com o surgimento do princípio do autorregramento das partes no processo civil, o qual renovou sua autonomia privada, os negócios processuais passaram a representar meio apto a gerar maior interação entre as partes e o processo, visando tornar mais efetiva a prestação jurisdicional. Para a sua celebração, os negócios processuais exigem a boa-fé na conduta das partes, de modo que o presente artigo analisa as possíveis consequências advindas da violação à boa-fé em sede de negócios jurídicos processuais, mediante abuso de direito – quando verificada violação à boa-fé objetiva – ou litigância de má-fé – quando afrontada a boa-fé subjetiva -.

Palavras-chave: Negócios jurídicos processuais. Novo Código de Processo Civil. Boa-fé objetiva. Boa-fé subjetiva.

Abstract: The procedural juristic acts are initially analyzed from the prediction of the Civil Procedure Code of 1973 until the formalization of the New Civil Procedure Code (Law n° 13.105/2015), which have been emphasized for their relevant innovation in the new codification. With the upcoming of the self-regulation principle of the parties in the civil process, which renewed the private autonomy of them, jurisdiction acts started representing the capacity to generate a greater interaction between the parties and the process, aiming to make the judgement more effective. For its occurrence, the juristic acts demand good faith from each of the parties. This article analyses the possible consequences derived from the violation of good faith in juristic acts through abuse of rights – when the violation to objective good faith is verified – or in litigious bad faith – when subjective good faith is affronted.

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Keywords: Procedural Juristic Acts. New Civil Procedure Code. Objective Good Faith. Subjective Good Faith.

Sumário: Introdução. 1. Negócios jurídicos processuais no Novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015. 2. A relação entre negócios jurídicos processuais e a boa-fé. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, também conhecida como Constituição Cidadã, em razão dos direitos e garantias fundamentais por ela assegurados, tem- se falado na constitucionalização de diversos ramos do Direito, tais como o Civil, o Processual Civil, o Penal, dentre outros. A constitucionalização do direito, todavia, nada mais é do que a garantia, pelo Poder Judiciário, de que seja prestada tutela jurisdicional que garanta a todos, indistintamente, o gozo dos mencionados direitos e garantias fundamentais.

Seguindo esta tendência, atualmente se fala em constitucionalização do direito processual civil, fenômeno que pode ser compreendido a partir do estudo do rito processualístico civil em consonância com os preceitos constitucionais, mormente aqueles que proporcionam determinadas garantias às partes litigantes, de modo a efetivar direitos, e não somente assegurar liberdades.

Deste modo, o que se busca no âmbito do ordenamento processual civil pátrio não é mais o estrito cumprimento de normas processuais rígidas, mas, quando necessário, a flexibilização destas regras para que seja garantido um processo justo, com o objetivo de aumentar, na atividade jurisdicional estatal, a participação das partes litigantes e dos terceiros interessados e, ademais, de promover a razoável duração do processo. Afinal, um dos principais obstáculos ainda enfrentados pelos jurisdicionados é o tempo de tramitação de processos no Poder Judiciário, o que muitas vezes dificulta o acesso à justiça.

Nesta senda, o Código de Processo Civil de 1973 previa situações em que os litigantes podem negociar determinadas questões processuais, conferindo-lhes, pois, mais liberdade no âmbito do processo. Contudo, é o Novo CPC – Lei nº 13.105/15 que traz concepções relevantes e inovadoras, buscando, com fulcro no princípio da cooperação, tornar o processo um espaço de amplo diálogo e reflexão, elevando referido instrumento a um espaço concreto de cidadania. Dentre as inovações contidas no novo código, está a possibilidade de as partes fixarem negócios jurídicos processuais, instituto apto a promover modificações no procedimento a fim de adequá-lo aos anseios dos litigantes.

1 NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (LEI N° 13.105/2015)

A manifestação da vontade, imprescindível para a realização de negócios jurídicos, ganhou novos contornos quando o Direito Processual Civil passou a ser compreendido para além da aplicação de regras e princípios constantes na Constituição Federal. A partir do surgimento das modernas concepções de Estado Democrático de Direito e da consequente constitucionalização do processo civil, tornou-se imperiosa a efetividade da solução dos conflitos e a concretização dos direitos e garantias fundamentais.

Busca-se, no âmbito do ordenamento processual civil, não mais o estrito cumprimento de normas processuais com um fim em si mesmas, mas, quando necessário e adequado, a flexibilização destas regras para garantir, de forma justa e célere, a pretensão almejada.  Assim, na atividade jurisdicional estatal, prestigia-se a participação dos interessados na lide.

O Código de Processo Civil de 1973 prevê certas situações em que as partes e os terceiros interessados podem modificar determinadas questões processuais, conferindo-lhes maior liberdade no âmbito do processo. Surgem, assim, negócios jurídicos processuais, definidos como o “fato jurídico voluntário em cujo suporte fático esteja conferido ao respectivo sujeito o poder de escolher a categoria jurídica ou estabelecer, dentro dos limites fixados no próprio ordenamento jurídico, certas situações jurídicas processuais” (NOGUEIRA, 2015, p. 84).

O CPC de 1973 fomentou a discussão acerca da possibilidade de as partes negociarem certas questões processuais, conferindo-lhes maior liberdade no procedimento, ao dispor, em seu artigo 158: “os atos das partes, consistentes em declarações unilaterais ou bilaterais de vontade, produzem imediatamente a constituição, a modificação ou a extinção de direitos processuais”. Além deste dispositivo, outros também refletem a possibilidade de as partes negociarem questões processuais, tais como a eleição de foro (artigo 111), a desistência do recurso (artigos 158 e 500, inciso III), as convenções sobre prazos dilatórios (artigo 181) e a convenção acerca da distribuição do ônus da prova (artigo 333, parágrafo único).

Embora predominasse a irrelevância da vontade das partes no processo, ganhou força a discussão sobre o princípio do respeito ao autorregramento da vontade no processo civil, que prega o direito de as partes se autorregularem no processo, exercendo sua autonomia privada sem restrições imotivadas. Nas palavras de Didier Jr. (2015, p. 22), “esse princípio visa tornar o processo jurisdicional um espaço propício para o exercício da liberdade”.

A autonomia privada abrange tanto a possibilidade de as partes participarem de relações jurídicas, através da formulação de contratos ou, de modo mais genérico, de negócios jurídicos, como o exercício de direitos. Assim, a autonomia privada significa espaço de liberdade dentro do qual as pessoas podem praticar determinados atos (CARVALHO, 2011, p. 593).

O que o princípio busca, portanto, é elevar as partes e os demais interessados à mesma condição de protagonismo do magistrado, quanto ao direito de participar ativamente da discussão do processo. A lógica de garantir esta liberdade às partes reside no fato de, uma vez dialogando e buscando a solução do conflito a partir da participação direta, estas construam resultado final mais satisfatório a partir do poder de negociar certas normas procedimentais.

2 A RELAÇÃO ENTRE NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS E A BOA-FÉ   

O Código de Processo Civil de 1973 contempla o princípio da boa-fé no artigo 14, inciso II, dispondo que é dever das partes litigantes e de todos aqueles que, de alguma maneira, atuarem no processo, a observância à boa-fé. Martins-Costa (1999, p. 411), quando distingue a boa-fé objetiva da boa-fé subjetiva, define aquela como um modelo de conduta social, para o qual “cada pessoa deve ajustar a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, probidade”. Diz, ainda, para a apuração da boa-fé objetiva, devem ser levados em consideração fatores como o “status pessoal e cultural dos envolvidos”. Já a boa-fé subjetiva diz respeito a um “estado de consciência”, no qual se observa a compreensão individual e a lucidez sobre a intenção da parte, sobre a sua vontade interna, que deve ser pautada na boa-fé.

O Novo CPC, por sua vez, contempla a expressão “boa-fé” em, pelo menos, três oportunidades: a) no artigo 5º, prevê: “aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé”; b) no artigo 322, §2º, ao tratar da certeza do pedido, estabelece: “a interpretação do pedido considerará o conjunto da postulação e observará o princípio da boa-fé”; e c) no artigo 489, §3º, ao dispor sobre a sentença, enuncia: “a decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé”.

O artigo 5º, inserido no “Capítulo I – Das normas fundamentais do processo civil”, do Título Único, do Livro I, do Novo CPC, determina ao ator processual o dever de pautar sua conduta na boa-fé. Daí, ao realizar qualquer ato processual, deve observar os ditames da boa- fé, compreendida esta como norma fundamental norteadora do processo. Deste modo, na celebração de negócios jurídicos processuais, as partes negociantes devem agir com boa-fé, antes da celebração, durante o procedimento (execução) e após o cumprimento. Assim, cabe aos sujeitos expressar a verdade em suas manifestações, cooperando entre si para obter, em tempo razoável, solução justa e efetiva para o litígio, através de decisão judicial, consoante o artigo 6º, do Novo CPC.

Martins-Costa (1999, p. 411) ensina que “antiética à boa-fé subjetiva está a má-fé, também vista subjetivamente como a intenção de lesar a outrem”. Opostamente ao princípio do respeito à boa-fé subjetiva, encontra-se a má-fé, configurada quando as partes possuem, internamente, a vontade de lesar outrem, sem implicar, necessariamente, em violação à boa-fé objetiva. Neste ponto, é importante fazer uma distinção: a má-fé é a violação à boa-fé subjetiva, e não à boa-fé objetiva; a afronta à boa-fé subjetiva não necessariamente está ligada à violação à boa-fé objetiva, e vice-versa.

Logo, a boa-fé objetiva é a negocial, caracterizada pelos deveres de honestidade, lealdade e probidade, os quais devem circundar as atitudes das partes no processo.  Igualmente, nos negócios jurídicos processuais, é ideal que os litigantes ajam conforme os ditames da boa-fé subjetiva e da boa-fé objetiva, conforme ensinam alguns dos Enunciados do Fórum Permanente de Processualistas Civis. Nos dias 8 e 9 de novembro de 2013, os processualistas civis se reuniram na cidade de Salvador/BA, e aprovaram, dentre outros, o Enunciado nº 6, corroborando a necessidade de observância da boa-fé quando prevê: “o negócio jurídico processual não pode afastar os deveres inerentes à boa-fé e à cooperação”.

Seguindo a linha de raciocínio, outros Enunciados foram aprovados nos dias 25, 26 e 27 de abril de 2014, em reunião realizada no Rio de Janeiro/RJ. Dentre outras regulamentações, o Enunciado nº 132 estabelece que “além dos defeitos processuais, os vícios da vontade e os vícios sociais podem dar ensejo à invalidação dos negócios jurídicos atípicos do art. 190”, reiterando a boa-fé como balizadora da instituição dos negócios processuais.

Por fim, também em Vitória/ES, foi aprovado o Enunciado nº 407, o qual dispõe que quando da instituição dos negócios processuais, “as partes e o juiz são obrigados a guardar nas tratativas, na conclusão e na execução do negócio o princípio da boa-fé”, pautando a boa- fé como dever de conduta nas fases pré-negocial, durante a execução e pós-negocial.

Por outro lado, caso uma das partes aja com má-fé, devem ser analisadas as possíveis consequências deste ato para a parte. Atualmente, a litigância de má-fé é regida pelos artigos 16 a 19, do Código de Processo Civil de 1973, que regulam a responsabilidade das partes por danos processuais. Estes dispositivos responsabilizam atores processuais de má-fé como autor, réu ou interveniente por perdas e danos, na medida em que o órgão julgador, “de ofício ou a requerimento, condenará o litigante de má-fé a pagar multa não excedente a um por cento sobre o valor da causa e a indenizar a parte contrária dos prejuízos que esta sofreu, mais os honorários advocatícios e todas as despesas que efetuou”.

O Novo CPC – Lei nº 13.105/15, por sua vez, dispõe sobre a litigância de má-fé em seus artigos 79 a 81, tratando o instituto de forma semelhante ao que dispunha o CPC de 1973. Todavia, no tocante à multa aplicada ao litigante de má-fé, o valor da condenação foi elevado, pois deve ser superior a um por cento e inferior a dez por cento do valor corrigido da causa, além de impor ao litigante de má-fé suportar a indenização devida à parte contrária, os honorários advocatícios e as despesas efetuadas.

É importante a análise sobre a necessidade do dolo da parte para a configuração da litigância de má-fé, pois, como demonstrado, a má-fé é a antítese da boa-fé subjetiva, e esta, por sua vez, diz respeito a um estado de consciência, à intenção da parte. O Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento de imprescindibilidade da verificação do dolo do agente para consumação da litigância de má-fé, conforme o seguinte precedente:

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‘PROCESSUAL CIVIL. PEDIDO DE APLICAÇÃO DE MULTA POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. OMISSÃO CARACTERIZADA. […] 2.  A exegese   do art. 17 do CPC pressupõe o dolo da parte em impedir o natural trâmite processual. Essa conduta é manifestada de forma intencional e temerária, sem observância ao dever de lealdade processual. 3. No caso, não se tem notícia de atitude tendente a atrapalhar o andamento processual, mas denota-se apenas pela parte embargada o exercício regular do direito de defesa. Não houve nenhuma tentativa de alteração da verdade dos fatos ou utilização abusiva dos meios de defesa, tampouco o uso de artimanhas para atrasar o processamento da ação. Embargos acolhidos para sanar a omissão apontada, sem efeitos infringentes.” (EDcl nos EDcl no AgRg no AREsp 414.484/SC, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 22/05/2014, DJe 28/05/2014) (grifo nosso)

A litigância de má-fé não pode ser presumida, devendo existir, para sua configuração, o dolo da parte, no sentido de obstruir o regular trâmite processual. É este, também, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, consoante o seguinte precedente:

“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. JUROS MORATÓRIOS. TERMO INICIAL. CITAÇÃO NA FASE DE LIQUIDAÇÃO DE SENTENÇA. LITIGÂNCIA    DE   MÁ-FÉ.   AUSÊNCIA.    AGRAVO    REGIMENTAL NÃO PROVIDO. […] 3. A litigância de má-fé não pode ser presumida, sendo necessária a comprovação do dolo da parte, ou seja, da intenção de obstrução do trâmite regular do processo, nos termos do art. 17, VI, do CPC, o que não está presente neste feito até o momento. 4. Agravo regimental a que se nega provimento.” (AgRg no REsp 1374761/MS, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 20/02/2014, DJe 26/03/2014) (grifo nosso)

Analisando a evolução legislativa desde o Código de Processo Civil de 1939 até o Novo CPC de 2015, o Ministro Luís Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça, decidiu, em voto acompanhado de forma unânime pela Corte Especial, que, para a fixação da indenização devida pelo litigante de má-fé, não é necessária a comprovação do dano sofrido pela outra parte. O Relator considerou suficiente prejuízo potencial ou presumido, pois “a exigência de comprovação do prejuízo praticamente impossibilitaria a aplicação da norma e comprometeria a sua eficácia, por se tratar de prova extremamente difícil de ser produzida pela parte que se sentir atingida pelo dano processual”. Referido julgamento foi ementado da seguinte forma:

“PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. INDENIZAÇÃO POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. ARTIGO 18, CAPUT E § 2º, DO CPC. NATUREZA REPARATÓRIA. PROVA DO PREJUÍZO. DESNECESSIDADE. 1. No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, a indenização prevista no art. 18, caput e § 2º, do códex processual tem caráter reparatório (ou indenizatório), decorrendo de um ato ilícito processual. Precedente da Corte Especial, julgado pelo rito do artigo 543-C do CPC. 2. É desnecessária a comprovação do prejuízo para que haja condenação ao pagamento da indenização prevista no artigo 18, caput e § 2º, do Código de Processo Civil, decorrente da litigância de má-fé. 3. Embargos de divergência conhecidos e providos”. (EREsp 1133262/ES, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, CORTE ESPECIAL, julgado em 03/06/2015, DJe 04/08/2015) (grifo nosso)

Em relação aos negócios jurídicos processuais, poderia uma parte, por exemplo, pactuar com a outra e recusar-se ao cumprimento, alegando que o pacto foi realizado por adesão ou contra a sua vontade, de maneira forçada. Diante de situações como esta, em que configurada a má-fé e, por conseguinte, o dolo de uma das partes, deve ser aplicada a multa por litigância de má-fé, respeitados os patamares previstos no Novo CPC, e também a indenização decorrente da responsabilidade por danos processuais. A condenação é baseada no artigo 80, inciso V, do Novo CPC, que, reafirmando o artigo 17, inciso V, do CPC de 1973, considera litigante de má- fé aquele que “proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo”.

A responsabilidade da parte por danos processuais é considerada subjetiva, pois, para a teoria clássica, a culpa, em sentindo amplo, incluindo-se o conceito de dolo, é pressuposto da responsabilidade. A culpa também pode ser chamada de conduta culposa, pois o instituto da culpa, isoladamente considerado, tem relevância apenas conceitual. Deste modo, a conduta culposa é gênero que abrange as espécies ação e omissão, entendendo-se “por conduta o comportamento humano voluntário que se exterioriza através de uma ação ou omissão, produzindo consequências jurídicas” (CAVALIERI FILHO, 2012, p. 25).

Inobstante a necessidade de verificação de culpa ou dolo para a caracterização da litigância de má-fé, o Superior Tribunal de Justiça sedimentou o entendimento de que a violação à boa-fé objetiva é sancionada mesmo sem caracterização da litigância de má-fé, vedando, assim, o abuso de direito de praticar ato processual. É possível, portanto, a responsabilização sem aferição de culpa, por afronta à boa-fé objetiva.

O artigo 187, do Código Civil, estabelece configurar ato ilícito a prática de direito cujo titular, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé. Por isso, o abuso de direito pode ensejar a responsabilização do agente, independente de dolo ou culpa. Neste sentido, o Superior Tribunal de Justiça refuta a chamada “nulidade de algibeira”, caracterizada quando o exercício de um direito configura verdadeira manobra processual. Deste modo, o tribunal entende que o processo não pode servir de “instrumento difusor de estratégias”, conforme os precedentes a seguir transcritos e explicados.

Os Embargos de Declaração no Recurso Especial nº 1424304/SP tratam de alegação de suposta nulidade em razão de substabelecimento dos antigos advogados da parte recorrente para novos advogados. Suscita-se a ausência de intimação dos atos processuais realizados em nome dos novos advogados. No acórdão, a Ministra Nancy Andrighi, relatora do processo, conclui que, apesar de a ausência de intimação constituir nulidade, os novos procuradores da parte recorrente tomaram ciência dos atos praticados; assim, os atos atingiram o fim almejado, sem prejuízo à parte. Por fim, a relatora veda a argumentação de nulidade quando esta visa sustentar abuso de direito. O acórdão foi ementado nos seguintes termos:

“PROCESSO CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM RECURSO ESPECIAL. NULIDADE. SUBSTABELECIMENTO SEM RESERVA DE PODERES. REQUERIMENTO DE PUBLICAÇÃO EXCLUSIVA. PUBLICAÇÃO EM NOME DOS ANTIGOS ADVOGADOS. ACOMPANHAMENTO DO PROCESSO    PELOS    NOVOS   PATRONOS. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO.NULIDADE. INEXISTÊNCIA. […] 3. A jurisprudência do STJ, atenta à efetividade e à razoabilidade, tem repudiado o uso do processo como instrumento difusor de estratégias, vedando, assim, a utilização da chamada "nulidade de algibeira ou de bolso". 4. Embargos de declaração rejeitados.” (EDcl no REsp  1424304/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 12/08/2014, DJe 26/08/2014) (grifo nosso)

No julgamento dos Embargos de Declaração no Agravo em Recurso Especial nº 258639/RS, a parte recorrente alegou o caráter de bem público do imóvel objeto da lide; contudo, só o fez na interposição do recurso. O Ministro Luís Felipe Salomão, relator, compreendeu não haver nulidade a ser reconhecida quando a parte permanece silente durante todo o trâmite processual e somente suscita a suposta nulidade em momento conveniente. O acórdão foi ementado da seguinte forma:

“EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECEBIDO COMO AGRAVO REGIMENTAL. NULIDADE. QUESTÃO DE ORDEM PÚBLICA. NECESSIDADE DE PREQUESTIONAMENTO. INOVAÇÃO RECURSAL. PROCESSO UTILIZADO COMO DIFUSOR DE ESTRATÉGIAS. IMPOSSIBILIDADE DO MANEJO DA CHAMADA "NULIDADE DE ALGIBEIRA".  AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO COM APLICAÇÃO DE MULTA. […] 4. "A jurisprudência do STJ, atenta à efetividade e à razoabilidade, tem repudiado o uso do processo como instrumento difusor de estratégias, vedando, assim, a utilização da chamada "nulidade de algibeira ou de bolso"" (EDcl no REsp 1424304/SP, Rel. Ministra NANCY   ANDRIGHI, TERCEIRA   TURMA, julgado   em   12/08/2014, DJe 26/08/2014). 5. Embargos de declaração recebidos como agravo regimental a que se nega provimento, com aplicação de multa.” (EDcl no AREsp 258.639/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 14/04/2015, DJe 20/04/2015) (grifo nosso)

Como último exemplo, mencione-se o Recurso Especial nº 1372802/RJ, no qual o recorrente alegou nulidade relativa à suposta ausência de intimação para contrarrazoar recurso em instância inferior. O relator, Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, compreendeu que a parte permaneceu silente, vindo a suscitar a nulidade somente em momento posterior, o que é rechaçado pelo tribunal. O acórdão foi ementado do seguinte modo:

“RECURSOS ESPECIAIS. PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO. SUBSTITUIÇÃO DA PENHORA. EQUIVOCADA CERTIFICAÇÃO DO TRÂNSITO EM JULGADO. NULIDADE. SANEAMENTO DO PROCESSO. PRAZO PARA CONTRAMINUTA     AO     AGRAVO     DE    INSTRUMENTO.    NULIDADE SANÁVEL. PRECLUSÃO OCORRÊNCIA. […] 4. Inadmissibilidade da chamada "nulidade de algibeira". Precedente específico. […] 8. RECURSO ESPECIAL RETIDO PROVIDO, PREJUDICADO O RECURSO PRINCIPAL.” (REsp   1372802/RJ, Rel.    Ministro   PAULO   DE    TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 11/03/2014, DJe 17/03/2014) (grifo nosso)

Defende-se, pois, a responsabilização civil daquele que, de algum modo, obstar o cumprimento dos negócios jurídicos processuais, sem que seja necessária a comprovação, pela outra parte, do dano suportado, na esteira do entendimento do Superior Tribunal de Justiça, seja por litigância de má-fé, quando configurado o dolo ou a culpa, seja por abuso de direito, quando caracterizada violação à boa-fé objetiva, ainda que com – ou sem – a aferição de dolo ou culpa.

Independente da sanção legal imputada à parte que faltar com a boa-fé na instituição dos negócios jurídicos processuais, é importante ressaltar a possibilidade de as partes estabelecerem, no próprio negócio, deveres e sanções para o caso de descumprimento da convenção pactuada, conforme ensina o Enunciado nº 17, do Fórum Permanente de Processualistas Civis. Essa disposição busca conferir mais efetividade ao processo, pois permite a fixação, de antemão, em comum acordo, de sanção (cláusula penal) a ser aplicada quando do descumprimento do negócio pactuado pelos próprios litigantes, acelerando, pois, a resolução do conflito surgido a partir do inadimplemento.

CONCLUSÃO

O surgimento de uma nova ordem constitucional, advinda do neoconstitucionalismo, constatado no Brasil após o período da ditadura militar, culminou na relevância do estudo do Direito Constitucional e as suas implicações nos diversos ramos do ordenamento jurídico, haja vista o protagonismo da Constituição Federal.

Diante deste quadro, o Direito Constitucional passou a influenciar o Direito Processual Civil, fazendo com que o maior desafio do Poder Judiciário passasse a ser a tutela não só de regras e princípios constitucionais, mas da própria Constituição, enquanto norma máxima do sistema jurídico brasileiro. É por isso que hoje se busca garantir o processo justo, e não somente a observância ao devido processo legal. Percebe-se, pois, evidente relação entre o protagonismo da Constituição Federal, surgido após a redemocratização da sociedade, e o estudo das normas processuais civis, o que gera a constitucionalização do Direito Processual Civil.

Nesta conjuntura, surgiu a necessidade de reformar o Código de Processo Civil de 1973, anterior à Constituição Federal de 1988, razão pela qual foram iniciadas as discussões que culminaram na sanção, em 16 de março de 2015, da Lei nº 13.105/15, a qual institui o Novo CPC. Com o código, nasce no Brasil um sistema processual que busca ser instrumento viabilizador da concretização dos direitos e garantias e fundamentais, com fundamento na simplificação do processo obtido através da cooperação entre os litigantes e o magistrado, de modo a assegurar, em última instância, a efetividade da prestação jurisdicional.

Entre as inovações contidas no novo texto, uma das mais significantes são os negócios jurídicos processuais, em decorrência do princípio do autorregramento da vontade das partes no processo civil, como instrumento apto a viabilizar maior interferência dos litigantes no processo, a fim de gerar, inclusive, maior satisfação quando da prolação de decisão final.

Para a celebração dos negócios processuais, constatou-se ser imprescindível a presença da boa-fé, em seus aspectos subjetivo e objetivo. Diante disso, o presente artigo analisou as possíveis consequência advindas do não cumprimento dos negócios jurídicos processuais firmando por caracterização de violação à boa-fé objetiva ou à boa-fé subjetiva.

Quando configurada a litigância de má-fé, que se encontra oposta à boa-fé subjetiva, o Código de Processo Civil prevê a possibilidade de aplicação, pelo magistrado, de multa a ser fixada com base no valor da causa. O montante da multa, por sua vez, foi majorado pelo Novo CPC, em relação à previsão do CPC de 1973.

Contudo, defende-se que esta não é a única possibilidade de sanção quando descumprida a boa-fé subjetiva, pois, nos termos da jurisprudência e da doutrina, pode ser admitida a responsabilização civil por danos processuais, desde que presente a culpa lato sensu – englobando dolo ou culpa stricto sensu -, independente de comprovação do dano efetivamente suportado pela parte.

Defende-se, também, a incidência da responsabilidade civil quando violada a boa-fé objetiva, isto é, quando caracterizado o abuso de direito, possibilidade inserida nos critérios de reparação devida à parte lesionada. Tal hipótese se concretiza na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o qual, por não reconhecer a “nulidade de algibeira”, entende que a parte não pode utilizar-se do processo como meio difusor de estratégias, argumento suficiente para fundamentar a aplicação de reparação pelo dano suportado pelo litigante.

 

Referências
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BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil.  Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 mar. 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm>. Acesso em: 20 jun. 2015.
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Informações Sobre o Autor

Júlia d’Alge Mont’Alverne Barreto

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Bacharel em Direito pela Universidade de Fortaleza UNIFOR. Pesquisadora bolsista da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico FUNCAP. Advogada.


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