Tema clássico no direito administrativo, a requisição administrativa era até pouco tempo atrás objeto de poucos debates na doutrina e de parca delimitação na jurisprudência, e a explicação para isso repousava no fato de que era instituto pouco usado. Mesmo o tratamento normativo conferido à requisição administrativa está longe de ser exaustivo. Com a recente onda de requisições administrativas empreendidas pela Administração Pública em decorrência da crise sanitária provocada pela pandemia de coronavírus o instituto forçosamente entrou no centro dos debates.
Pois bem, nos termos do inciso XXV do art. 5º da CF/88, no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano.
Tal previsão constitucional traduz o instituto da requisição administrativa que, a grosso modo, trata-se de uma medida coercitiva adotada pelo Poder Público em caráter emergencial, na qual, intervindo na propriedade privada, o Estado se assenhora de bens móveis e imóveis de particulares para atender o interesse público[1].
O Código Civil trata da requisição no art. 1.228, § 3º[2], in fine, admitindo-a em casos de perigo público iminente.
Já o Decreto-Lei nº 4.812/1942, ao regulamentar as requisições militares determina em seus artigos 13 e 14 que a “requisição só obriga o requisitado a satisfazê-la e só tem valor para o efeito do recebimento da indenização respectiva, quando for feita por escrito e assinada por extenso e com clareza pela autoridade requisitante, com a declaração do posto, cargo, qualidade ou função que lhe confere o direito de fazê-la” e que o “requisitante é obrigado a dar ao requisitado recibo das coisas requisitadas e recebidas ou dos serviços prestados”.
No âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) a Lei Federal nº 8.080/1990 prevê que para atendimento de necessidades coletivas, urgentes e transitórias, decorrentes de situações de perigo iminente, de calamidade pública ou de irrupção de epidemias, a autoridade competente da esfera administrativa correspondente poderá requisitar bens e serviços, tanto de pessoas naturais como de jurídicas, sendo-lhes assegurada justa indenização (inciso XIII do art. 15).
Tem-se, assim, que a partir do momento que o Ministério da Saúde declarou Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) em decorrência da Infecção Humana pelo novo Coronavírus (2019-nCoV, COVID-19 ou ainda SARS-coV-2) por meio da Portaria nº 188/2020, deu-se início ali a um verdadeiro regime jurídico excepcional de emergência sanitária, que vem sendo complementado por inúmeras normas federais de alcance nacional como a Portaria nº 356/2020 do MS, como a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020 e como o Decreto Federal nº 10.282, de 20 de março de 2020.
Como linha-mestra deste regime jurídico excepcional de emergência sanitária, a Lei Federal nº 13.979/2020 dispôs sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública, e, dentre tais medidas, está a possibilidade de a Administração Pública promover “a requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa” (inciso VII do art. 3º).
Regulamentando a operacionalização das medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do novo coronavírus (COVID-19) estabelecidas na Lei nº 13.979/2020, o Ministério da Saúde editou a Portaria nº 356, de 11 de março de 2020, que, em seu artigo 7º, estabelece que “a medida de requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus Covid-19 será determinada pela autoridade competente da esfera administrativa correspondente, assegurado o direito à justa indenização”.
Além das normas de alcance nacional acima mencionadas, os entes subnacionais têm editado (dentro desse regime jurídico excepcional de emergência sanitária) normas de alcance local que determinam quarentena, isolamento social e suspensão do exercício de atividades comerciais e dentre outras medidas, preveem a possibilidade de adoção de requisições administrativas.
Na esteira da Lei Federal nº 13.979/2020, foram por exemplo editados os seguintes decretos: Decreto Estadual nº 5.465/2020 (AC); Decreto Municipal nº 228/2020 (Rio Branco – AC); Decreto Municipal nº 533/2020 (Bujari – AC); Decreto Estadual nº 69.530/2020 (AL); Decreto Estadual nº 42.061/2020 (AM); Decreto Estadual nº 19.529/2020 (BA); Decreto Municipal nº 32.287/2020; Decreto Estadual nº 33.510/2020 (CE); Decreto Estadual nº 4593-R/2020 (ES); Decreto Estadual nº 9.633/2020 (GO); Decreto Estadual nº 35.672/2020 (MA); Decreto Estadual nº 407/2020 (MT); Decreto Estadual nº 15.396/2020 (MS); Decreto Estadual nº 113/2020 (MG); Decreto Estadual nº 619/2020 (PA); Decreto Estadual nº 40.155/2020 (PB); Decreto Estadual nº 4.315/2020 (PR); Decreto Estadual nº 48.809/2020 (PE); Decreto Estadual nº 18.884/2020 (PI); Decreto Estadual nº 46.966/2020 (RJ); Decreto Estadual nº 29.513/2020 (RN); Decreto nº 55.128/2020 (RS); Decreto Estadual nº 525/2020 (SC); Decreto Estadual nº 40.560/2020 (SE) e Decreto Estadual nº 6.072/2020 (TO), todos prevendo a possibilidade do uso de requisições administrativas incidentes sobre bens, serviços e produtos de pessoas naturais e jurídicas.
Pois bem, especificamente sobre as requisições administrativas que incidem sobre bens móveis, cumpre destacar a lição de Diogo de Figueiredo Moreira Neto[3] no sentido de que “a requisição de um bem consumível torna-a permanente pela fruição, devendo o Estado indenizar ulteriormente o seu valor.”
Segundo Rafael Carvalho Rezende Oliveira[4], “após a utilização do bem será possível averiguar a existência e a amplitude do prejuízo eventualmente causado, sendo certo que a indenização não poderá acarretar enriquecimento sem causa”.
Ainda sobre o ressarcimento devido quando da ocorrência de uma requisição administrativa, José dos Santos Carvalho Filho[5] leciona que “a indenização pelo uso dos bens e serviços alcançados pela requisição é condicionada: o proprietário somente fará jus à indenização se a atividade estatal lhe tiver provocado danos”.
No caso de quem sofre uma requisição administrativa de bens móveis[6], o prejuízo passível de indenização resta evidente, haja vista que os bens que poderiam ser comercializados ou utilizados por quem os detém findam por ser objeto de um assenhoramento por parte do Poder Público quando da execução desta medida de intervenção do Estado na propriedade.
E qual o valor da chamada “justa indenização” a ser paga a quem teve seus bens móveis alvo de uma requisição administrativa? Nenhuma das legislações aqui citadas que regulamentam o instituto[7] definem a base de cálculo da indenização e tampouco o prazo para o seu pagamento, de modo que, neste vácuo legislativo resta a nós, operadores do direito, por meio da doutrina provocar o debate e sugerir soluções[8].
Bom, no caso de quem detinha tais produtos para fins de comercialização entendemos que a indenização deve ser calculada com base no “preço cheio de prateleira”, vez que os produtos requisitados pelo Poder Público estavam à disposição do consumidor e não tinham destinação para licitação, de modo que a margem de lucro dos mesmos não está regida pela equação econômico-financeira de quem planejava previamente participar de licitações. Desta feita, entendemos que não devem ser utilizados índices oficiais ou tabelas referenciais para parametrizar o quantum indenizatório. Em resumo: o preço sequer é o da nota fiscal e sim o preço que estava disponível para o consumidor final.
Já no caso de quem não detinha os produtos objeto da requisição administrativa para fins de comercialização (exemplo: alugava os produtos ou os utilizava em suas operações) entendemos que é possível calcular a indenização com base em processos de avaliação como os realizados pela Administração por força do art. 17 da Lei nº 8.666/93 ou mesmo aplicando-se supletiva e subsidiariamente ao processo administrativo os procedimentos de liquidação por arbitramento previstos nos artigos 509 e 510 do CPC/2015.
E quanto ao prazo para o pagamento desta justa indenização? Diante da ausência de previsão nas normas que regulamentam as requisições administrativas, entendemos que, por analogia, o pagamento se dê em até 30 (trinta) dias, conforme previsto no art. 40, inciso XIV, alínea “a” da Lei nº 8.666/93, e que mesmo seja precedido do devido empenho e liquidação na forma da Lei Federal nº 4.320/1964 ou na forma de eventuais leis locais que disponham sobre administração financeira. Todavia, reconheça-se que o prazo é meramente referencial, haja vista a presumível dificuldade que a Administração Pública terá para processar tais pedidos e ressarcimento. Outra alternativa seria simplesmente pagar imediatamente após o Ministério da Saúde declarar o fim da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), conforme defende Jorge Ulisses Jacoby Fernandes:
“A lei não definiu o prazo para pagamento da indenização, mas a despesa deve ser liquidada e paga, imediatamente após o período de emergência em saúde pública de importância nacional.” (JACOBY FERNANDES, Jorge Ulisses, Direito provisório e a emergência do Coronavírus: ESPIN – COVID-19: critérios e fundamentos: Direito Administrativo, Financeiro (Responsabilidade Fiscal), Trabalhista e Tributário: um mundo diferente após a COVID-19 / Jorge Ulisses Jacoby Fernandes …[et al.]., Belo Horizonte: Fórum, 2020, E-book, pág. 123)
Para viabilizar o pagamento de quem teve seus bens móveis requisitados pela Administração Pública, entendemos ser perfeitamente possível a celebração de um termo de compromisso nos moldes do artigo 26[9] da LINDB ou mesmo a instauração de procedimentos de mediação perante as Câmaras de Negociação, Conciliação e Mediação da Administração Pública previstas no artigo 174[10] do CPC (nos locais que dispuserem de tal estrutura).
Entendemos que a avaliação por parte da Administração Pública dos requerimentos indenizatórios de quem teve seus bens móveis requisitados deve observar o prazo previsto no artigo 49[11] da Lei Geral de Processo Administrativo Federal, a Lei Federal nº 9.784/1999 (desde que não haja disposição específica designando prazo diverso nas leis locais de processo administrativo), sem prejuízo da implementação de uma calendarização processual nos termos do art. 191 do CPC que já deixe pré-determinado o prazo de conclusão do processo administrativo.
É oportuno destacar que a requisição administrativa deve ser utilizada pela Administrativa como última ratio, haja vista que especificamente no caso dos bens móveis não duráveis, a Lei nº 13.979/2020 possibilita a realização de contratações diretas céleres e que são capazes de atender o interesse pública de uma forma menos traumática que a requisição. Neste sentido, vejam-se as lições de Marçal Justen Filho e de Jorge Ulisses Jacoby Fernandes:
“É inconstitucional requisitar bens e serviços de particulares como solução rotineira para enfrentar a pandemia. A medida, prevista na Lei 13.979, apresenta natureza excepcional e deve ser acompanhada de imediata indenização ao prejudicado. Em face da Constituição, a satisfação das necessidades da Administração Pública faz-se preferencialmente por via consensual. O contrato administrativo é a solução quando a Administração necessitar de bens ou serviços privados. Cabe ao Estado negociar com a iniciativa privada para obter a prestação pretendida.” (JUSTEN FILHO, Marçal, Um novo modelo de licitações e contratações administrativas? A MP 926 pode funcionar como experimento para a reforma das licitações, Covid-19 e o direito brasileiro, Marçal Justen Filho [et al.], Curitiba: Justen, Pereira, Oliveira & Talamini, 2020 (E-book – Edição do Kindle)
“não pode o gestor público substituir o processo de compra e contratação pelo processo de requisição. O confisco, a requisição e a desapropriação são instrumentos que violam o princípio da propriedade, uma das cláusulas pétreas do país capitalista. (…) Diferentemente de compras públicas, a requisição de bens não passa pelos procedimentos de estudos técnicos preliminares, termo de referência, matriz de risco e reserva de dotação orçamentária. A requisição também não incide, necessariamente, sobre bens novos. É fundamental, porém, que o gestor público demonstre, previamente e à exaustão não ter outro meio para satisfazer o interesse público diretamente relacionado à Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional.” (JACOBY FERNANDES, Jorge Ulisses, Direito provisório e a emergência do Coronavírus: ESPIN – COVID-19: critérios e fundamentos: Direito Administrativo, Financeiro (Responsabilidade Fiscal), Trabalhista e Tributário: um mundo diferente após a COVID-19 / Jorge Ulisses Jacoby Fernandes …[et al.]., Belo Horizonte: Fórum, 2020, E-book, págs. 123 e 125)
Por fim, é preciso que fique claro que diante da excepcionalidade não só da requisição administrativa em si mesma, mas da excepcionalidade do contexto em que ela está inserida na Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) e no regime jurídico excepcional de emergência sanitária, uma vez que, não se pode descurar que na literalidade da Lei n° 13.979/2020 é assegurado o pleno respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais das pessoas afetadas pelas medidas de enfrentamento ao coronavírus e determina-se ainda que tais medidas deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública e determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde.
Aldem Johnston Barbosa Araújo, advogado de Mello Pimentel Advocacia.
E-mail: [email protected].
[1] “Segundo leciona Hely Lopes Meirelles, ‘requisição é a utilização coativa de bens ou serviços particulares pelo Poder Público por ato de execução imediata e direta da autoridade requisitante e indenização ulterior, para atendimento de necessidades coletivas urgentes e transitórias’” (Meirelles, Hely Lopes, Direito administrativo brasileiro, 26ª ed., São Paulo: Malheiros, 2001, pág. 590, Apud, Miranda, Henrique Savonitti, Curso de direito administrativo, 3ª ed., rev., Brasília: Senado Federal, 2005, pág. 242)
[2] Art. 1.228. (…)
- 3 O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente.
[3] Moreira Neto, Diogo de Figueiredo, Curso de direito administrativo: parte introdutória, parte geral e parte especial, 16ª. ed. rev. e atual., Rio de Janeiro: Forense, 2014, pág. 507.
[4] Oliveira, Rafael Carvalho Rezende, Curso de Direito Administrativo, 5ª ed. rev., atual. e ampl., Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017, pág. 728.
[5] Carvalho Filho, José dos Santos, Manual de direito administrativo, 32ª. ed. rev., atual. e ampl., São Paulo: Atlas, 2018, pág. 922.
[6] No caso de bens móveis duráveis o dano não é presumível como no caso dos bens imóveis não duráveis, devendo o prejuízo sofrido pelo particular ser devidamente comprovado. Basta pensar num exemplo, uma requisição administrativa que incide sobre um veículo e outra requisição administrativa que incide sobre produtos de uma loja de equipamentos médicos tem consequências distintas quanto à possibilidade de o proprietário ter seus bens devolvidos pelo Estado.
[7] Cumpre lembrar que, de acordo o art. 22, III, da CF/88, compete privativamente à União Federal legislar sobre requisições civis e militares em caso de iminente perigo e em tempo de guerra.
[8] As legislações também não definem qual autoridade é competente para exercer o direito de requisitar, só fazendo o Decreto-Lei nº 4.812/1942 com relação às requisições militares e não às requisições civis. Uma interpretação possível decorre da conjunção do § 3º do art. 10 do Decreto Lei nº 200/1967 (que determina que além da obrigatoriedade de a execução das atividades da Administração ser amplamente descentralizada, a competência, em princípio, pertence ao nível de execução quanto a decisão de casos individuais, em especial nos serviços de natureza local, que estão em contato com os fatos e com o público) com o inciso III do § 7º do art. 3º da Lei nº 13.979/2020, o que nos levaria a conclusão de que a competência para requisitar repousaria genericamente aos chamados gestores locais de saúde.
[9] Art. 26. Para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial.
[10] Art. 174. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios criarão câmaras de mediação e conciliação, com atribuições relacionadas à solução consensual de conflitos no âmbito administrativo, tais como:
I – dirimir conflitos envolvendo órgãos e entidades da administração pública;
II – avaliar a admissibilidade dos pedidos de resolução de conflitos, por meio de conciliação, no âmbito da administração pública;
III – promover, quando couber, a celebração de termo de ajustamento de conduta.
[11] Art. 49. Concluída a instrução de processo administrativo, a Administração tem o prazo de até trinta dias para decidir, salvo prorrogação por igual período expressamente motivada.