1. Introdução
Na seara da responsabilidade civil no transporte aéreo, não há como descurar, diante da evolução tecnológica constante do setor aeronáutico, o papel relevante desempenhado pelo fabricante-construtor da aeronave e, fundamentalmente, tendo em vista a segmentação de serviços altamente especializados, a existência de vários fabricantes de componentes determinados.
Constata-se, ademais, com fulcro na responsabilidade ilimitada do produtor, em caráter dissonante com os diplomas legais uniformes, tuteladores do transportador aéreo, verdadeira busca do fato do fornecedor-produtor por vítimas de acidentes, com o escopo de obtenção de indenização ampla.[1]
Desse modo, cumpre tecer comentários quanto à responsabilidade do fabricante-construtor bem como do fabricante de componentes da aeronave e suas repercussões na responsabilidade civil no transporte aéreo.
2. O fabricante-construtor da aeronave e a responsabilidade extracontratual objetiva perante terceiros. A product liability e a strict liability no sistema da common law. A superação da denominada privity of contract e a influência no sistema romano-germânico. O princípio da prevenção. A inexistência de patamar-limite indenizável. Apreciação crítica aos ditames do Código Brasileiro de Aeronáutica na referida seara
Inicialmente, depreende-se que, na realidade cotidiana, por meio de efetiva inserção do produto em circulação, pode-se aferir eventual defeito da aeronave, ensejador do dano, notando-se, a partir disso, discrepâncias nas searas da imputação e do limite indenizável do fabricante-construtor em relação ao transportador e operador da aeronave.[2]
Com efeito, emergem fontes distintas, na medida em que em um mesmo dano-evento poderão surgir a responsabilidade do transportador, do operador e do fabricante-construtor. De fato, enquanto os dois primeiros se submetem, via de regra, às normas unificadoras de Direito Interno ou Internacional, tal não ocorre com o último. Este, sob nossa ótica, denota responsabilidade extracontratual objetiva, sem patamar-limite prévio, perante o passageiro e vítimas do evento, o que nos leva a discordar, nesse aspecto, do entendimento esposado por Videla Escalada, que fulcra a responsabilidade do construtor da aeronave na teoria da culpa. [3]
De fato, a teoria do risco do empreendimento alicerça a responsabilidade do fabricante-construtor da aeronave, uma vez que a atividade empreendedora constitui o pressuposto para a produção e inserção no comércio do produto defeituoso. Por via de consequência, podemos divisar a insuficiência do critério da culpa como pressuposto da responsabilidade daquele, inclusive no plano econômico e social.[4]
Ademais, o risco proveniente da atividade é suscetível de previsão antecipada, com a viabilidade de consecução de seguro pelo fabricante-construtor, ainda que, indiretamente, se possa objetar o repasse de referido custo no preço final, junto aos consumidores.[5]
Cumpre esclarecer, ademais, que a responsabilidade objetiva do produtor, com espeque na teoria do risco do empreendimento (products liability) é fruto de elaboração doutrinária norte-americana, destacando-se, a partir disto, a superação, para os fins de imputação da responsabilidade por produto, dos parâmetros contratuais tradicionais, no âmbito da simples relação vendedor-adquirente (privity of contract), considerando a insuficiência respectiva, para fins de garantir proteção ao consumidor, quando este último não for o adquirente direto do produto, ensejando, pois, a responsabilidade do produtor na colocação em circulação do produto defeituoso, que possa originar perigo para uma gama indeterminada de terceiros e, portanto, ser suscetível de enquadramento na responsabilidade extracontratual objetiva, superando, portanto, o elemento psicológico como pressuposto da obrigação ressarcitória.[6]
Sob o impulso da elaboração doutrinária, a jurisprudência dos Estados Unidos da América procedeu à imputação da responsabilidade do produtor não só independentemente de qualquer vínculo contratual entre produtor e vítima, como também independentemente de culpa, com gênese nos preceitos da strict liability, na matéria dos torts, como reflexo da proteção à pessoa e seus bens, danificados, com base no exercício de uma atividade empresarial produtiva de lucro.[7]
Conclui-se, com base na referida teoria, como bem analisa João Calvão da Silva, que “a responsabilidade civil do produtor perante o consumidor pelos danos causados por produtos defeituosos por si produzidos e lançados no comércio aparece como corolário do desenvolvimento industrial e tecnológico que, por um lado, vulgarizou a circulação no mercado de mercadorias ou produtos complexos e refinados, de preparação minuciosa mas com alta probabilidade de defeito causador de riscos consideráveis e, por outro, distanciou o fabricante do consumidor final”.[8]
Em virtude da nova concepção da responsabilidade do produtor, estribada em responsabilidade extracontratual objetiva, sem prévio patamar-limite, na seara do dano houve necessidade de racionalização da própria atividade, com o escopo reduzir o risco de colocação em circulação de produtos defeituosos.[9]
Sob nossa ótica, referida racionalização coaduna-se com o princípio da prevenção que norteia a responsabilidade civil moderna.[10]
Caracterizada, pois, a responsabilidade extracontratual objetiva, sem patamar-limite prévio quanto ao montante indenizável, o que robusteceu, inclusive, o princípio da prevenção, cumpre apreciar, na seara do ordenamento jurídico pátrio, a norma insculpida no art. 280, I, do Código Brasileiro de Aeronáutica. Deveras, referido dispositivo legal dispõe quanto à limitação do quantum indenizável, imposto ao construtor de produto aeronáutico brasileiro, por defeito do produto, nos mesmos moldes do transportador aéreo doméstico.
Ora, como é cediço, com fulcro na atividade de risco empreendida, atrelada à inviabilidade de prévia regulamentação de interesses, a limitação prévia do dano, na seara da responsabilidade extracontratual objetiva, não se sustenta, tendo, in casu, ademais, nítido escopo de proteção à indústria nacional, em detrimento das vítimas do dano-evento, emergindo, nesse aspecto, antinomia manifesta com os ditames da Lei n. 8.078/90, que prepondera diante de normas incompatíveis com o Código em análise.[11]
Emerge, outrossim, que a menção exclusiva ao construtor nacional, se aceita, procederia a tratamento discriminatório em relação ao construtor-fabricante estrangeiro, gerando, e.g., situações paradoxais nas quais, em um mesmo dano-evento, tendo em vista a segmentação da produção no setor aeronáutico, poderia emergir responsabilidade solidária de vários fornecedores, propiciando ao construtor nacional manto injustificável de limitação do patamar indenizável, de modo análogo ao transportador, ao passo que o fabricante estrangeiro de determinado componente responderia integralmente pelo dano. A par, portanto, da insubsistência adrede referida, vislumbra-se que a aceitação de referido dispositivo legal fomentaria, sobremaneira, o forum shopping em relação ao fabricante estrangeiro.
Tecidas referidas considerações, ousamos divergir do entendimento esposado pelo eminente jurista José da Silva Pacheco,[12] que sustenta a aplicação do mencionado dispositivo legal.
3. Tipologia das imperfeições dos produtos, conceito de produto e a responsabilidade civil. A responsabilidade pelo fato do produto e o Código de Defesa do Consumidor. A periculosidade intrínseca da aeronave e de seus materiais. A obrigação de proteção e o dever de segurança
Tendo em vista a menção sucessiva ao termo “defeitos”, seguindo a doutrina moderna,[13] emergem três distinções básicas:
A) O defeito de produção ou de fabricação, que como bem ressalta José Reinaldo de Lima Lopes, “é aquele que atinge apenas alguns exemplares de um certo produto e não se deve à concepção geral do mesmo. Deve-se, ordinariamente, a eventos mais ou menos incontroláveis”.[14]
Sob nossa ótica, consiste, outrossim, na inserção comercial de um produto diverso do standard adotado pelo produtor, o qual, com fulcro no referido desvio, provoca danos ao consumidor (pessoa ou bens), ou ao usuário a ele equiparado, abarcando, portanto, os denominados bystanders, ou seja, “aquelas pessoas que, mesmo sem denotarem o status de partícipes de relações de consumo, seja na qualidade de adquirentes, seja de meros usuários, foram atingidas em sua saúde ou segurança, em virtude do defeito do produto, sendo despiciendo, destarte, para tal desiderato, o pré-requisito da destinação final”. [15]
Na seara aeronáutica, e.g., emergem múltiplas hipóteses quanto aos referidos defeitos, destacando-se, em desconformidade com o projeto, a falha na detecção de rachaduras em material forjado ou fundido ou curto-circuito em equipamento eletrônico e realização de furo em profundidade superior àquela prevista. [16]
Cumpre destacar o importante julgado que resultou de acidente com aeronave da empresa Turkish Airlines, ocorrido em Emeronville, em 3 de março de 1974, no qual, com a queda de um McDonnel Douglas DC-10, morreram 335 passageiros e 11 membros da tripulação. Constatou-se que a causa do dano-evento promanou de defeito de fabricação de uma portinhola de um dos vãos da área de transporte de bagagens. A abertura, de inopino, provocou descompressão, inviabilizando o controle da aeronave, o que ensejou o ajuizamento de ação, outrossim, em face do fabricante da aeronave e da porta em análise (McDonnel Douglas e General Dynamics), observando-se que, distintamente do conflito de interesses em face da companhia aérea, inexistia patamar-limite prévio do montante indenizável, ensejando, pois, condenação, no valor de US$ 140 milhões.[17]
B) O defeito de concepção, do projeto ou criação, consistente na escolha do projeto, dos materiais empregados e da adoção das medidas de segurança, o qual impõe o mesmo standard adotado pelo fabricante e que, portanto, é suscetível de repercussões sobre todos os produtos (exemplares) produzidos. [18] Na seara aeronáutica, como ressalta Carlos Américo Barbosa de Oliveira, emergem, e.g., a resistência insuficiente do material à fadiga e a incorreta dosagem de tinta para fins de elidir corrosão.[19]
C) O defeito de informação, consistente na omissão de avisos, informações e esclarecimentos sobre as modalidades de uso do produto. [20]
Ademais, considerando a periculosidade intrínseca da aeronave e de seus materiais, como bem elucida Andreas Schubert, a prevenção escudada em testes sucessivos dos produtos componentes, isolada e conjuntamente com aquela, impõem, outrossim, modernamente, na fase de projeto, existência de espaço ou área na cabine de passageiros mais resistente a impactos na fuselagem ou incêndios, elidindo, e.g., emissão de gases tóxicos asfixiantes para a cabine. Trata-se dos princípios conhecidos no jargão técnico como fail-safe e crashworthiness, definidos, portanto, como a aptidão da estrutura da aeronave de manter espaço mais seguro aos ocupantes, possibilitando-lhes sobrevivência, na hipótese de acidente. Conclui-se, pois, que a ausência de crashworthiness coaduna-se com concepção de projeto de aeronave, apta a agravar os danos na hipótese de acidentes.[21]
Elucidada a classificação moderna dos defeitos do produto, cumpre destacar, outrossim, o sentido amplo, flexível e tipológico de produto, em nosso ordenamento jurídico, como sendo qualquer bem móvel ou imóvel, material ou imaterial, ex vi do que preceitua o art. 3.º, § 1.º, da Lei n. 8.078/90.[22]Ainda com fundamento nos ditames da Lei n. 8.078/90, como bem esclarece Eduardo Arruda Alvim, para que emerja responsabilidade do fornecedor pelo fato do produto, “não basta, pois, a ocorrência do dano. A responsabilização objetiva prevista no art. 12 do Código pressupõe a ocorrência de dano decorrente de defeito no produto, impondo-se, outrossim, que se trate de produto defeituoso”. Fato do produto, por outro lado, segundo o mesmo autor, “significa dano causado por defeito apto a ensejar a responsabilidade do fornecedor. O fato do produto, de conseguinte, não se confunde com o mero defeito. Sem dano, não há fato do produto, mas mero vício do produto”. [23]
No que concerne ao passageiro, sob o influxo da common law, sua proteção se caracteriza como preceito de ordem pública, sujeitando-se, pois, ao regime da responsabilidade extracontratual objetiva, com os reflexos correlatos em face do produtor.[24]
Por outro lado, no que tange à responsabilidade do produtor-construtor, tendo em vista a circulação de produto defeituoso, leva-se em consideração uma unidade de critério para cada tipo de defeito, respectivamente correlacionados com a fabricação, o projeto e ou a falta de informações adequadas. Tal entendimento tem estribo no sistema da common law, bem como no Direito Continental, com paulatina tendência visando maior proteção à vítima no âmbito de obrigação de segurança.[25]
Deveras, referida tendência é destinada a robustecer a tutela do crédito e a incolumidade individual, tendo em vista a exigência, sempre em caráter crescente, dos vínculos jurídicos correlacionados com elementos obrigatórios de proteção à integridade humana, com espeque em valores constitucionais condizentes com os deveres de solidariedade social e de proteção à pessoa. Nota-se, ademais, a objetivação da conduta, reduzindo-se, pois, progressivamente, a importância geral do perfil psicológico no tipo geral caracterizador da responsabilidade.[26]
Sem prejuízo de referidas considerações, cumpre ressaltar que, no que concerne ao produtor-construtor, aplicam-se-lhe no defeito da aeronave, os critérios gerais de responsabilidade derivada de produto defeituoso, pondo em evidência, outrossim, que, na referida hipótese, a obrigação ressarcitória tem esteio em um standard, obedecendo aos preceitos da responsabilidade extracontratual objetiva, na medida em que o desvio do referido padrão qualitativo ensejará a reparação.
4. O fabricante-construtor, o fabricante de materiais da aeronave, o importador, o responsável pela montagem, o vendedor de determinadas peças da aeronave e a responsabilidade civil perante terceiros pelo fato do produto
Ulterior problemática coaduna-se com a segmentação de atividades produtivas, máxime para fins de construção de aeronave, com vários fornecedores, altamente especializados.
Deveras, diante de dano-evento, malgrado reconhecida a responsabilidade extracontratual objetiva e sem patamar-limite prévio do fabricante-construtor, afigura-se assaz penosa para a vítima, diante de sua hipossuficiência técnica, a exata aferição do fato do fabricante de determinada peça, para fins de eclosão do dano-evento, com espeque na teoria da causalidade adequada.
Diante disso, impor-se-á, inicialmente, ao fabricante-construtor da aeronave, a prova inconteste e exclusiva do fato de terceiro, não se afigurando suficiente, para fins de elisão da solidariedade passiva, a alusão à concausa para a eclosão do evento. Ademais, com estribo na coordenação da produção, poderá emergir fortuito interno inescusável do produtor-construtor da aeronave diante do fato do fabricante de alguma peça, com gênese na atribuição e delegação de funções imponíveis originalmente ao primeiro, possibilitando, destarte, à vítima do evento maior viabilidade de ressarcimento em efetiva responsabilidade solidária de fornecedores.[27]
De fato, como elucida João Calvão da Silva, sustentando a responsabilidade solidária em questões deste jaez, “se o produto acabado, a parte componente e a matéria-prima apresentarem qualquer defeito – pense-se no acidente causado pela porta do avião que abre em pleno vôo porque a matéria-prima empregada no seu fabrico era defeituosa, de má qualidade –, a responsabilidade pelos danos causados à vítima recairá sobre todos os participantes no processo de produção. No exemplo dado, o fabricante do avião, o fabricante da porta e o produtor da matéria-prima. E isto bem se compreende, pois, no complexo e intrincado processo da contemporânea produção industrial, os ‘produtores’ envolvidos no fabrico de um produto são em número crescente, não passando o produto final (o avião, o automóvel, o eletrodoméstico, etc.) de um composto de partes constitutivas, substâncias e materiais desenvolvidos, fabricados e fornecidos por empresas as mais diversas”.[28]
Sem prejuízo das referidas ponderações, abarcadoras do gênero fornecedor real, do qual poderão derivar as espécies produtor, construtor, fabricante, como observa Roberto Senise Lisboa,[29] por vezes a segmentação da produção implica a utilização de logotipo ou marca notória, em determinado produto, que, no entanto, foi produzido por outro fornecedor. Por óbvio, na referida hipótese, com fulcro na teoria da aparência, correlacionada com a boa-fé objetiva e a teoria do risco criado, o fornecedor aparente será considerado responsável. Por derradeiro, visando tutelar o consumidor, criou-se, outrossim, a figura do fornecedor presumido (importador), responsável solidariamente pela reparação do dano em acidentes de consumo representados pelo fato do produto. [30]
Na seara aeronáutica, como bem elucida Andreas Schubert, a segmentação da produção é incontroversa, possibilitando, na hipótese de dano-evento, responsabilidade solidária do construtor-fabricante da aeronave, fabricantes de determinados produtos, considerados componentes do avião, do responsável pela montagem final do aparelho (Assembler), do importador, bem como do vendedor de determinadas peças fabricadas.[31]
Cumpre elucidar, ademais, que a responsabilidade extracontratual objetiva do fabricante-construtor, bem como do fabricante de algum componente da aeronave, não excluem, por si sós, a responsabilidade contratual e concorrente do transportador, máxime na seara aeronáutica, na qual poderão emergir concausas denotadoras, e.g., de defeito no produto, jungidas a condutas insuficientes do transportador, para a elisão do dano em circunstâncias concretas, de modo a descaracterizar o fato exclusivo de terceiro.[32]
5. Eximentes da responsabilidade. A ilimitação da responsabilidade. O risco de desenvolvimento de produto. A procura pelo forum shopping em face do produtor, tendo em vista a limitação da reparação do dano em face do transportador
No que concerne às eximentes do dever de indenizar, com fulcro na responsabilidade extracontratual objetiva do produtor-fornecedor, Guido Rinaldi Baccelli sustenta, com acuidade, que, tendo em vista a realidade fática vigente de uso impróprio da aeronave, em atentados à segurança do equipamento, impõe-se ao produtor levar em conta referida circunstância cotidiana, com fundamento no princípio da prevenção.[33]
Cumpre observar, por outro lado, que tal assertiva não implica adoção da teoria do risco integral, na medida em que, como é cediço, poderão emergir circunstâncias insuperáveis e objetivamente imprevisíveis para o construtor, mesmo diante da adoção de medidas preventivas, como ocorreu, e.g., com o seqüestro de aeronave no evento de 11 de setembro, com lançamento do equipamento contra edificação, tornando insuperável e irresistível a explosão. No entanto, com fulcro no princípio da prevenção, a blindagem da cabine do comandante, elidindo o acesso de terroristas no local, tendo em vista a ocorrência de eventos pretéritos, afigurar-se-á exigível ao fabricante-construtor de novas aeronaves.
Cabe ressaltar, porém, que as falhas de fiscalização aeroportuária não excluem os pressupostos da responsabilidade do construtor. O mesmo se diga quanto à expedição de Certificado de Registro de Aeronavegabilidade pela autoridade competente, que, sob nossa ótica, nas hipóteses de não fiscalização adequada, poderá dar gênese, outrossim, à responsabilidade pelo dano-evento junto a terceiros, naturalmente em caráter extracontratual.[34]
No que concerne às excludentes do dever de indenizar, segue-se a regra geral ínsita à responsabilidade objetiva, na medida em que não se trata de adoção da teoria do risco integral. Deveras, o fato da vítima, o fato de terceiro, bem como o caso fortuito e força maior, aqui entendidos como fortuito externo, elidirão o dever de indenizar. Cumpre asseverar, outrossim, que a não inserção do produto em circulação não propiciará o dever de indenizar.[35]
Na seara aeronáutica, como ressalta Rinaldi Baccelli, emergem, e.g., como excludentes do fato do produtor-fornecedor, a desordem civil, com destruição sucessiva da aeronave e a posse arbitrária e insuperável desta por parte de seqüestradores.[36]
Ousamos discordar, no entanto, do entendimento de referido autor quanto à tese de limitação do montante indenizável, na seara da responsabilidade extracontratual objetiva do fabricante-construtor, uma vez que seu fundamento legal, escudado no art. 22, 1A, do Protocolo da Guatemala, não prospera diante da não entrada em vigor do mencionado diploma legal, sequer se antevendo ratificação futura, com fulcro na substituição do Sistema de Varsóvia pela Convenção de Montreal.
Ademais, não se antevê nexo automático entre limitação do quantum debeatur e responsabilidade objetiva, máxime na seara extracontratual.
Ulterior questão polêmica refere-se ao risco de desenvolvimento de produto cujos efeitos se desconhecem previamente, na medida em que parte da doutrina propende pela existência de eximente do dever de indenizar, visto que não haveria inserção factível no rol taxativo dos defeitos de criação, produção ou informação.
Malgrado referido entendimento, sob nossa ótica, tendo em vista a teoria do risco do empreendimento, em cotejo com o dever de proteção e segurança ao usuário do transporte, discordamos da premissa, que sustenta a exclusão do dever de indenizar, por não inserção dentre os defeitos juridicamente relevantes.
Com efeito, não se trata de obstar o desenvolvimento da ciência, mas de impor, primordialmente, em setor sob evolução tecnológica constante, a tomada de medidas acautelatórias por meio de exaustivos ensaios concretos, factíveis no setor aeroespacial, em obediência aos princípios da prevenção e precaução, ínsitos à responsabilidade civil moderna.[37] Entendimento contrário teria o condão de transferir os riscos do desenvolvimento às vítimas, como ressaltam Baudouin e Deslauriers.[38] Não se observa, ademais, em nenhum momento, qualquer iniciativa para tal desiderato por parte do legislador pátrio.[39]
Por derradeiro, observa-se não só constante preocupação das vítimas com a responsabilidade do fabricante-construtor, fulcradas na inexistência de patamar prévio indenizável, como também com a busca de forum shopping, máxime nos Estados Unidos da América, na medida em que no quantum indenizável há inclusão no pedido, com freqüente condenação do fornecedor, nos denominados punitive damages, superadores do escopo meramente compensatório do dano, que vige em outros ordenamentos que também não limitam previamente o dano.[40]
Informações Sobre o Autor
Marco Fábio Morsello
Juiz de Direito em São Paulo. Bacharel e Doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Professor da Escola Paulista da Magistratura e do Centro de Extensão Universitária (CEU). Membro pleno da Asociación Latino Americana de Derecho Aeronáutico y Espacial- ALADA e Istituto di Diritto dei Trasporti-ISDIT. Membro da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial- SBDA.