Resumo: enfocam-se algumas relações de conhecimento e poder, a partir do entendimento de Karl Popper, para então se refletir sobre a formação jurídica e seus pressupostos éticos ante as expectativas e demandas sociais, valendo-se, para tanto, de uma leitura conjugada de Konrad Hesse e de Ronald Dowrkin.
Uma legítima e válida reflexão para o estudante de Direito pode partir de uma das relevantíssimas contribuições de Karl Popper que, partindo do clássico Juramento de Hipócrates, discorre sobre a responsabilidade moral do cientista.
Disto, neste breve artigo, busca-se a ampliar o debate (já previsto por Popper, inclusive, em sua argumentação) para além do campo da Medicina, abarcando toda e qualquer ciência que venha a produzir conhecimento e, portanto, poder, o qual influi decisivamente na vida de milhares de pessoas. Destaca-se, assim, a ciência do Direito, tomando Popper como pressuposto de reflexão ao campo jurídico.
O ensaio do filósofo austríaco foi redigido em 1968, em razão de uma sugestão dos organizadores da Congresso Internacional de Filosofia realizado em Viena; portanto, o texto ora em apreço consistiu em curta comunicação lida pelo filósofo aos 3 de março daquele ano, e cuja sessão especial intitulou-se “Ciência e Ética: A Responsabilidade Moral do Cientista”.
A afirmação central, o mote do pensador, ou seja, o elemento que desencadeia toda a questão a ser refletida – e da qual podemos licitamente nos apropriar – é a de que “hoje, pode tornar-se ciência aplicada não só toda a ciência pura, mas também todo o conhecimento acadêmico puro” (1996, p. 153). Assim o era, assim o é, ainda mais, atualmente, com o aprimoramento das técnicas, dos processos sociais de resolução de conflitos, pode-se enfatizar, mas, especialmente, na sociedade de riscos em que nos encontramos embarcados.
Para Popper, falar em responsabilidade moral do cientista, especialmente em seu tempo de paranóia ante o risco plausível de guerra nuclear e biológica, consistia em um eufemismo, um modo de tornar mais agradável algo de fato gravoso, um jeito elegante de denunciar o óbvio nem sempre visto: do imperativo de responsabilidade moral do cientista.
E o problema persiste, podemos deduzir; e a questão continua tendo de ser pensada, seja no plano do ordenamento jurídico interno, com suas diferentes questões e problemas que requerem o posicionamento ativo e solucionador do jurista, seja no plano internacional, por certo, e no diálogo destas esferas da percepção jurídica das relações sociais.
Para o Direito enquanto ordenamento e para a sua ciência, pensando-se na relação dialética entre as formas de direito positivo e de produção científica em Direito e sobre o Direito, trata-se de uma questão central, dados os compromissos necessários de uma hermenêutica ampla e constitucionalmente engajada e que depende, ao que tudo indica, da consciência desta funcionalização direta da teoria à prática. Está-se com essa série de afirmações e interpretações partindo do pressuposto de que o cientista do Direito e o operador do Direito não precisam ser figuras cindidas e setorizadas entre si, mas sim dialetizadas no interior do mesmo indivíduo pensante e atuante.
O objetivo deste raciocínio todo, pois, concentra-se na tentativa de consecução daquilo que Konrad Hesse denominou, em “A Força Normativa da Constituição”, como “vontade de Constituição”, ou seja, uma intencionalidade do intérprete direcionada à aplicabilidade e à maximização dos valores, regras e princípios vigentes no texto constitucional (submetidos ao crivo crítico) que, ao invés de sucumbirem ante os “fatores reais de poder”, têm a capacidade de, pela própria característica deôntica inerente ao Direito, conformar a realidade aos objetivos jurídica e politicamente estabelecidos, gerando, portanto, mudanças nas relações fáticas, sempre rumo à dignidade da pessoa humana e a todos os outros objetivos de uma República e de um Estado Democrático de Direito, com destinações de proteção individual e coletiva, sem descuidar das prestações sociais, o que só vem a se enriquecer com a assimilação de uma mentalidade sintonizada com as perspectivas dos Direitos Humanos.
Brevemente pode-se fazer referência a Hesse, que embora não seja o objeto desta discussão, poderá enriquecer a reflexão sobre o conjunto de idéias propostas
“Aquela posição por mim designada vontade de Constituição (Wille zur Verfassung) afigura-se decisiva para a práxis constitucional. Ela é fundamental, considerada global ou singularmente. O observador crítico não poderá negar a impressão de que nem sempre predomina, nos dias atuais, a tendência de sacrificar interesses particulares com vistas à preservação de um postulado constitucional; a tendência parece encaminhar-se para o malbarateamento no varejo do capital que existe no fortalecimento do respeito à Constituição. Evidentemente, essa tendência afigura-se tanto mais perigosa se se considera que a Lei Fundamental não está plenamente consolidada na consciência geral, contando apenas com apoio condicional” (HESSE, 1991, p. 29).
Vencido isto, ao menos por ora, retoma-se Popper, que levanta uma série de questões de fundo ético, dado o contexto de sua fala, tais como a aplicação ética das teorias científicas, construídas estas mesmas sob os parâmetros de controle ético; o compromisso e a cooperação que deve se estabelecer entre professores e alunos na construção da pesquisa e de seus objetos; o nefasto culto da violência nas culturas de massa e como isso se relaciona com fenômenos de “agressividade humana” e ciclos de “resistência à agressão”, “medo da agressão”, “confusão mental” e “falta de flexibilidade intelectual” (1996, p. 157-158), segundo termos do próprio autor. Todas questões atuais, pode concluir o leitor contemporâneo.
O grande mote empírico que reforça a urgência da responsabilidade moral do cientista, segundo se pode entender na explanação de Popper, mas sem querer com essa afirmação esgotar o texto, consiste na herança histórica advinda das guerras mundiais, especialmente no que se travou em termos de armamento nuclear e de violações em larga escala dos direitos humanos, do Direito legítimo, de parâmetros mínimos de humanidade e quaisquer outras denominações que se queira dar.
Para o autor, os julgamentos do Tribunal de Nuremberg “reconheceram que a consciência de cada ser humano é o derradeiro tribunal de apelo no tocante à questão de dever ou não desobedecer uma determinada ordem” (1996, p. 159). Afirmação poderosa, mas ainda olvidada em uma sociedade em que muitas vezes não se tem pudor em “lavar as mãos” ou esconder-se por detrás de procedimentos obscuros ou quaisquer outros argumentos de fuga e de tergiversação, que podem se revelar mesmo nos mais superficiais preconceitos teóricos e repulsas imediatas às teorias diversas e que tanto se pode ver mesmo (e com mais força, é lógico) nas pessoas com acesso à educação formal de qualidade (justamente as que, por força da responsabilidade moral, deveriam buscar as soluções, em vez de se renderem ao diletantismo, vaidade intelectual e afins, por um lado, e ao preconceito, por outro).
Portanto, subsiste, mesmo em cenários de regramento legal, a necessidade de o sujeito posicionar-se perante a regra, avaliando-a, inserindo-a em um ordem de princípios e de valores que orientem o processo de interpretação e de decisão. Ou seja, mesmo havendo uma ordem objetiva das coisas, o universo da subjetividade tem cabal papel nos resultados obtidos com a ação humana. Talvez seja nisto que a Filosofia do Direito está mais aprimorada em nos ensinar: a pensar o Direito Positivo e a interpretá-lo segundo raciocínios mais complexos, elaborados argumentativamente e enriquecidos axiologicamente, o que afasta o mito de que a realidade está posta, correta e da melhor forma possível estabelecida.
Veja-se a passagem do autor que reforça o entendimento exposto acima em conjunto, na defesa da liberdade pautada pelos critérios éticos, levando mesmo a uma eventual desobediência,
“A liberdade pela qual devemos estar preparados para lutar é precisamente a liberdade de desobedecer a uma ordem que, segundo pensamos, é criminoso obedecer. É dever inelutável de qualquer político leal numa democracia compreender a situação terrível em que pode vir a encontrar-se um cientista e lutar pelos direitos do objector de consciência, seja este cientista ou soldado” (1996, p. 159).
A defesa da liberdade de pensamento (para nossa sorte erigida à direito fundamental, constitucionalmente estabelecida no artigo 5°, VI) é ressaltada por Popper, que partindo do argumento de nossa infindável ignorância, do que decorre a inafastável humildade intelectual, orienta a compreensão de que o cientista, ao produzir conhecimento, produz poder e, tendo em vista que ” […] o poder tende a corromper e que o poder absoluto corrompe de modo absoluto […]” (1996, p. 160) a obrigação moral essencial do cientista reside justamente no controle, por meio da prevenção e da precaução quanto aos resultados do conhecimento produzido, em relação ao quanto tal conhecimento poderá ou não “perigar a liberdade” das pessoas.
Para o campo jurídico, que deve investigar as relações público-privadas na efetivação dos direitos fundamentais de todas as pessoas (segundo distintos regimes jurídicos, corpos de regras e de princípios, atividades de interpretação e de aplicação por meio de argumentações consistentes, em suma: atitudes, como se verá na próxima citação), a questão fica centralmente relevante, visto que o campo jurídico é aquele fortemente íntimo às esferas Legislativa, Executiva e Judiciária, as quais consistem em e darão organização às instituições sociais, dando vida aos textos das leis, por meio de seus agentes, além da orientação que o Direito proporciona às práticas privadas, tudo isto entendido no contexto do “Império do Direito”, conforme o pensador Ronald Dworkin.
Brevemente e de modo complementar pode-se rememorar alguns entendimentos do filósofo estadunidense, que após argutos reptos dirigidos aos seus leitores, em extensa obra em que pretende responder as razões da ascendência do direito sobre a sociedade e mesmo dos porquês de sermos “súditos do império do direito”, entendendo que “o raciocínio jurídico é um exercício de interpretação construtiva, de que nosso direito constitui a melhor justificativa do conjunto de nossas práticas jurídicas, e de que ele é a narrativa que faz das nossas práticas as melhores possíveis” (1999, p. XI), Ronald Dworkin remata com a sua concepção (um tanto instigante, prospectiva e convidativa) da resposta ao que é o direito: “o que é o direito? Ofereço, agora, um tipo diferente de resposta” (DWORKIN, 1999, p. 492).
Diferente daquela primeira resposta que o autor dera no início de seu epílogo, momento em que considerou ser o direito “um conceito interpretativo” (DWORKIN, 1999, p. 488), ou seja, uma interpretação das interpretações pretéritas (sobretudo no sistema common law), segundo a idéia de direito como integridade – rejeitando o convencionalismo e o pragmatismo –, compreendendo doutrina e jurisdição, de modo que o conteúdo do direito dependa “de interpretações mais refinadas e concretas da mesma prática jurídica que começou a interpretar” (DWORKIN, 1999, p. 489). Continua o autor:
“o direito não é esgotado por nenhum catálogo de regras ou princípios, cada qual com seu próprio domínio sobre uma diferente esfera de comportamentos. Tampouco por alguma lista de autoridades com seus poderes sobre parte de nossas vidas. O império do direito é definido pela atitude, não pelo território, o poder ou o processo. Estudamos essa atitude principalmente em tribunais de apelação, onde ela está disposta para a inspeção, mas deve ser onipresente em nossas vidas comuns se for para servir-nos bem, inclusive nos tribunais. É uma atitude interpretativa e auto-reflexiva, dirigida à política no mais amplo sentido. É uma atitude contestadora que torna todo cidadão responsável por imaginar quais são os compromissos públicos de sua sociedade com os princípios, e o que tais compromissos exigem em cada nova circunstância. O caráter contestador do direito é confirmado, assim como é reconhecido o papel criativo das decisões privadas, pela retrospectiva da natureza judiciosa das decisões tomadas pelos tribunais, e também pelo pressuposto regulador de que, ainda que os juízes devam sempre ter a última palavra, sua palavra não será a melhor por essa razão. A atitude do direito é construtiva: sua finalidade, no espírito interpretativo, é colocar o princípio acima da prática para mostrar o melhor caminho para um futuro melhor, mantendo a boa-fé com relação ao passado. É, por último, uma atitude fraterna, uma expressão de como somos unidos pela comunidade apesar de divididos por nossos projetos, interesses e convicções. Isto é, de qualquer forma, o que o direito representa para nós: para as pessoas que queremos ser e para a comunidade que pretendemos ter” [grifou-se] (DWORKIN, 1999, p. 492).
Neste contexto que se construiu, de correlação dos entendimentos epistemológicos de Popper com problemas do Direito, seu poder e pretensões ante a sociedade, se pode e deve destacar outro ponto caro, levantado por Popper, que é o do “sofrimento evitável” e da felicidade humana promovida nas esferas pública e privada. Para o autor, em duas passagens distintas,
“[…] as discussões centradas numa revisão do Juramento de Hipócrates podem levar à reflexão sobre problemas morais tão fundamentais como a prioridade do alívio do sofrimento.
Há muitos anos, propus que a ordem de trabalhos para a política pública consistisse, em primeiro lugar, em encontrar maneiras e modos de aliviar o sofrimento, até onde fosse possível aliviá-lo. Contrastando isso com o princípio utilitário de maximizar a felicidade, propus que, no essencial, a felicidade deveria ser, e apenas pode ser, deixada à iniciativa privada, enquanto o alívio do sofrimento evitável constitui um problema de política pública” (1996, p. 157).
Referindo-se à ciência em especial,
“Embora muitos tenham questionado se o avanço tecnológico contribui sempre para o aumento de nossa felicidade, poucos consideram ser tarefa sua descobrir quanto sofrimento evitável é conseqüência inevitável, embora involuntária, do avanço tecnológico” (1996, p. 161).
O texto do autor permite uma série de reflexões que perpassam os modelos políticos que temos adotado, como os temos interpretado ou não e quais os seus efeitos sobre a vida de todos (e não apenas de alguns setores da vida social), consideradas as desigualdades sociais e as posições que os sistemas vigentes delegam a cada agrupamento de pessoas.
Por estar em pauta a questão do avanço tecnológico, Popper considera que o tecnicismo consiste em um problema na relação docente e na produção científica,
“São necessários cada vez mais técnicos e, em consequência, cada vez mais doutorados se treinam apenas como técnicos. Com frequência, só são treinados em técnicas de medição. E nem seque se lhes diz que problemas fundamentais há para resolver pelas medições que efectuam em vista da sua tese de doutoramento. Considero esta situação indesculpável e irresponsável. Vejo-a como uma espécie de quebra do juramento de Hipócrates por parte do professor universitário. Pois a sua tarefa é iniciar o estudante numa tradição e explicar-lhe os grandes novos problemas suscitados pelo crescimento do conhecimento e que, por seu lado, inspiram e motivam todo o crescimento subsequente” (1996, p. 156).
As questões tocadas por Popper, como já afirmado, mantém sua atualidade para pensarmos os problemas caros ao Direito, deste a formação nos bancos universitários, preparando às carreiras jurídicas, como no exercício profissional materializado tanto quando do ingresso nas carreiras como no próprio momento do estágio.
A responsabilidade moral do cientista, seja este entendido como profissão, seja este momento entendido como preparatório ao exercício profissional, é um problema constante para todo o ser humano que trabalha com conhecimento e que, portanto, veicula poder.
Informações Sobre o Autor
Eliseu Raphael Venturi
advogado em Curitiba, especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná e mestrando em Direitos Humanos e Democracia pela UFPR