Resumo: Trata-se de trabalho científico a respeito dos mútuos cuja prestação são adimplidas por desconto direto em folha de pagamento, os chamados empréstimos consignados. A pesquisa tem início com a análise de posições amplamente disponíveis aos interessados na grande rede de computadores, veiculadas por especialistas e entidades que tem como sua função principal formar opinião e/ou informar determinado público. Segue pesquisa legal, doutrinária e jurisprudencial rebatendo a tese de que o artigo 16 da Lei 1.046/50 (extinção da dívida do consignado pela morte do mutuário) continua em plena vigência, através de análise de contexto histórico da legislação, regras de hermenêutica, derrogação e derrotabilidade de normas, afirmando, ao fim, que a lei em debate só foi aplicável a público determinado, e, quanto a eles, vigeu no máximo até o ano de 1990, com o advento da lei 8.112/90.
Palavras-chave: Mútuo consignado; Hermenêutica legal; Análise de vigência.
Abstract: It is the scientific study of the sort of loans in which the payments are provided by direct discount on payroll, an increasingly popular loan in Brazil. The research begins with the analysis of widely available data to those interested in the matter, aired by experts and entities that have as their main function to form an opinion and / or report news to certain audience. It is followed by legal, doctrinal and jurisprudential research against the thesis that the article 16 of Law 1.046/50 (debt extinction because of the borrower's death) continues in full force, through analysis of historical context of the legislation, rules of hermeneutics, notwithstanding and defeasibility standards, stating at the end that the law at issue was only applicable to specific audience, and, as for them, only valid until the year 1990, with the enactment of law 8.112/90.
Keywords: loans; hermeneutics; notwithstandind.
1 INTRODUÇÃO
Os empréstimos consignados – contratos de mútuo que tem as parcelas quitadas através de desconto em folha de pagamento pelos responsáveis por estes, que repassam o montante aos mutuantes, são os mais procurados por qualquer pessoa que deseje tomar dinheiro emprestado sem finalidade específica. Os motivos são vários: as taxas de juros são mais baratas, porque o risco de inadimplência é considerado menor do que em outras modalidades, como no CDC (crédito direto ao consumidor) ou no uso do cartão de crédito; o desconto é sempre feito pela conveniada com o consignatário, portanto o mutuário não precisa se preocupar, a princípio, com o pagamento. Entretanto, a legislação brasileira, os órgãos/autarquias relacionados (INSS, PROCON) e o comportamento de consumidores e instituições financeiras tem gerado inúmeras dúvidas e conflitos judiciais a respeito destes empréstimos, sobretudo quanto à aplicação da Lei 1046/50 – que é amplamente favorável aos consumidores, que clamam por sua vigência e aplicação, sobretudo pela regra de extinção da dívida em caso de falecimento – o cerne principal deste trabalho – e limitação da taxa de juros. Este artigo demonstrará como esta lei dificilmente deve ser aplicada às atuais controvérsias judiciais.
2 A HISTÓRIA DA LEI 1046/50
A Lei 1046/50, primeiramente, não trata apenas do “empréstimo consignado”, e sim da “consignação em folha de pagamento”. Esta afirmação é essencial para o entendimento de que tal normativo disciplinava o ato de o consignante (elencados no artigo 4° de tal lei), que recebia o dinheiro através de instituições federais (artigo 5°), ter, em sua remuneração, descontada determinada quantia, e a mesma fosse repassada para outra pessoa – que poderiam ser de instituições financeiras a descendentes pensionistas, entre muitos outros exemplos. Mister faz-se esta breve explanação para que perceba-se que a Lei 1046/50 é uma lei acessória à que regulava a remuneração dos servidores públicos.
O artigo 188 do decreto-lei n° 1.713/39, então marco regulatório do regime jurídico dos servidores civis da União – bem como dos estados-membros e municípios, no que e se coubesse, subsidiariamente, e dos membros dos poderes Legislativo, Judiciário, Ministério Público e magistério, excepcionalmente – dispôs que ficaria a cargo de lei posterior a regulação dos descontos em folha de pagamento. Este decreto-lei foi posteriormente revogado pela Lei 1.711/52, que passou a tratar da matéria. Entretanto, continuou sendo a questão da consignação regulada pela lei específica que está em debate, editada dois anos antes: a 1046/50, sendo esta agora acessória ao novo regimento formulado.
3 POSIÇÕES AMPLAMENTE DIVULGADAS – REPORTAGENS (ACESSO DO CONSUMIDOR À INFORMAÇÃO), DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA
A facilidade de conseguir crédito consignado impulsiona o endividamento pessoal dos brasileiro. A possibilidade, sobretudo em local de cultura financeira tendente a preocupar-se com a capacidade de pagamento de parcelas e não com o total da dívida ao final do contrato, de ter parcelas baixas para adimplir obrigações não vinculadas (como o financiamento para investimento ou imobiliário), favorece o superendividamento individual. Quando o devedor se dá conta de que o empréstimo está mais caro do que poderia pagar ou, principalmente, quando falece e a dívida ameaça o ativo do espólio, a Lei 1046/50 invariavelmente é trazida à tona – seja em reportagens que buscam orientar consumidores, em doutrina ou posições judiciais.
As vantagens seriam muitas: extinção da dívida em caso de falecimento do devedor (desde que não haja outra garantia para o empréstimo – artigo 16); juros de 12% ao ano (artigo 7°); margem consignável máxima de 30% sobre a remuneração do devedor. Nos ateremos, neste trabalho, à discussão sobre a extinção da dívida.
Agindo como um interessado o faria, buscamos informações na internet sobre a aplicação desta lei. O resultado é decepcionante para quem defende a sua revogação tácita.
Em consulta a fóruns de assuntos judiciários – onde muitos potenciais clientes fazem consultas antes de realmente procurar um advogado -, como da revista Jus Navigandi, vê-se que é corrente a informação de que a Lei 1046/50 está plenamente em vigor, não foi revogada, alterada ou está incompatível com regras atuais do Direito brasileiro. A procura é sempre maior quando se trata de herdeiros buscando fuga legal da regra dos artigos 1.792 do Código Civil, e 591 e 597 do Código de Processo Civil, que severamente estabelece a responsabilidade sobre o ativo do devedor, e, posteriormente, seu espólio, advinda do seu passivo. Tal regra é lógica: não há motivo realmente justo para que uma pessoa tenha reconhecido como perfeitos os atos que eventualmente formaram o seu ativo, e, ao mesmo tempo, o ordenamento jurídico expurgue do reino existencial os atos de endividamento – seria um inescrupuloso (e mórbido) locupletamento sem causa por parte, primeiro, de quem usufruía do dinheiro (devedor), e, depois, de seus herdeiros – que poderiam muito bem terem se apresentado ao de cujus e oferecido o mútuo ou ajuda financeira.
Outro fato interessante, trazido, por exemplo, em matéria do Estado de Minas de 22 de maio de 2010 é a reclamação de que os bancos deveriam fazer seguros para estes empréstimos. A imposição de contratação deste seguro pelas instituições financeiras é chamada de venda casada, prática abusiva expressamente proibida pela artigo 39, I do Código de Defesa do Consumidor, e que, quando feita, é duramente criticada pelos próprios mutuários, protegidos pela disposição legal. A reportagem também traz entrevistas com diversos especialistas defendendo veementemente a ilegalidade da cobrança de dívidas do espólio. Outro entendimento confuso trazido na reportagem é sobre a impenhorabilidade de dinheiro guardado em caderneta de poupança, pela regra do Código de Processo Civil. Pelo contexto, a reportagem refere-se ao que deverá integrar o conjunto de bens a inventariar, quando a bem da verdade o legitimado para arguir a impenhorabilidade do artigo 649, X do CPC é o devedor quando ainda vivo. A Folha Pernambuco também já publicou reportagem com especialistas afirmando a certeza de extinção das obrigações tal qual o artigo 16 da Lei 1.046/50 estabelecia.
Um último entendimento importantíssimo vem do IDEC – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, que por mais de uma vez propugnou pela extinção da dívida, também pela regra da Lei 1046/50. Traz, também, a Instrução Normativa 39/2009 do INSS, que estabeleceu a mesma extinção – uma anomalia jurídica por tratar-se de norma regulamentadora contrariando preceito de leis federais ordinárias – bem como extrapolando a competência prevista pelo artigo 6°, §1° da Lei 10.820/2003 (lei de consignados que será estudada adiante) ou pela Lei 7.556/2011, que normatiza as atribuições e competências gerais do INSS.
Tribunais acolheram o pedido de extinção da dívida por algumas vezes. Foi o caso do TJRS, como podemos ver nesta ementa:
“APELAÇÃO CÍVEL. NEGÓCIO JURÍDICO BANCÁRIO. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE ACOLHIDA. SENTENÇA MANTIDA. O excepto não possui título em que figure como devedora a excipiente – a Sucessão -, vez que com o falecimento da consignante, restou extinta a dívida (art. 16, da lei 1046/50). APELO DESPROVIDO. UNÂNIME. (Apelação Cível Nº 70041698366, Vigésima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rubem Duarte, Julgado em 09/11/2011)”
Pior ainda andou o TRF da 5ª região e a Vara do Juizado Especial Cível e Criminal da Comarca de Santa Bárbara D’Oeste, que expressaram entendimentos completamente equivocados a respeito do instituto da derrogação legal nos seguintes julgados:
“EMENTA. CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. CONTRATO DE EMPRÉSTIMO CONSIGNADO. MORTE DO MUTUÁRIO. PERECIMENTO DO CONTRATO. ART. 16 DA LEI 1.046/50 E LEI 10.820/03. INEXIGIBILIDADE DO TÍTULO. DESONERAÇÃO DOS SUCESSORES. EXTINÇÃO DA EXECUÇÃO
1. Apelação desafiada pela Caixa Econômica Federal- CEF – em face da sentença que julgou parcialmente procedente o pedido, reconhecendo a inexistência de obrigação de o espólio de Wilton Machado Carneiro pagar a dívida decorrente de Contato de Empréstimo Consignação Caixa, tendo em vista a extinção da dívida operada com o falecimento do consignante, nos termos do artigo 16 da Lei nº 1046/50.
2. O artigo 16 da Lei 1.046/50 determina que os Empréstimos Consignados em folha de pagamento se extinguem quando o consignante falece.
3. Nada obstante, tais disposições não estejam insertas nos instrumentos de Contratos de Empréstimo celebrados junto a grandes instituições financeiras, tal determinação se mantém em vigor, porquanto a novel Lei nº 10.820/03, que trata do crédito consignado, não regulou a hipótese de falecimento do mutuário.
4. É fato comezinho que os Bancos ao elaborarem os Contratos com desconto em folha, mencionem expressamente apenas a Lei 10.820/03, omissa quanto à hipótese de falecimento do mutuário. Entretanto, o artigo 16 da Lei 1.046/50 elucida tal questão revelando que a cobrança, levada a efeito nos presentes autos, entremostra-se abusiva, pois com a morte do mutuário, extingue-se o débito, cuja liquidação ocorre mediante a utilização de Seguro celebrado pelo Banco para este tipo específico de operação
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 5ª REGIÃO. Diário da Justiça Eletrônico TRF5 Nº 142.0/2012 Recife – PE Disponibilização: Segunda-feira, 23 Julho 2012 AC – 536751/CE – 0008873-74.2011.4.05.8100 RELATOR : DESEMBARGADOR FEDERAL GERALDO APOLIANO. ORIGEM : 8ª Vara Federal do Ceará”
E ainda:
“533.01.2011.009773-9/000000-000 – nº ordem 1033/2011 – Procedimento do Juizado Especial Cível – Obrigação de Fazer / Não Fazer – ELIANA APARECIDA CAMARGO VALENTE SCHWARTZ X BANCO SANTANDER – Sentença nº 664/2012 registrada em 23/05/2012 no livro nº 135 às Fls. 60/62: VARA DO JUIZADO ESPECIAL CÍVEL E CRIMINAL COMARCA DE SANTA BÁRBARA D?OESTE Processo nº 1.033/2011 VISTOS. Dispensado o relatório nos termos do artigo 38 da Lei no 9.099/95. Os pedidos iniciais serão julgados procedentes. Em que pesem as considerações feitas pelo banco réu na contestação, ocorrido o falecimento do consignante, nos termos do artigo 16 da Lei nº 1046/50, ficará extinta a dívida do empréstimo feito mediante simples garantia da consignação em folha e, portanto, extinta a dívida, o réu não tem direito de continuar cobrando o empréstimo como vinha fazendo. O disposto no artigo 16 da Lei nº 1046/50 continua em vigor porque a atual legislação do crédito consignado (Lei nº 10.820/2003), não aborda questões relativas à morte do mutuário. Assim, como não houve revogação tácita ou expressa do referido dispositivo pela legislação atual, ele contina em vigor. O INSS vem adotando esse mesmo posicionamento, no sentido de que os empréstimos consignados contraídos por beneficiários da Previdência Social se extinguem quando da morte do titular e que, portanto, a consignação não persistirá por sucessão, em relação aos respectivos pensionistas e dependentes. Assim, o réu deverá ser condenado a restituir em dobro o valor descontado da contacorrente da autora, nos termos do artigo 42, parágrafo único, do CDC, já que o desconto foi ilegal, devendo ainda abster-se de reativar a conta bancária da autora e de realizar de qualquer forma a cobrança da dívida relacionada ao empréstimo consignado que havia sido contraído por seu falecido marido, abstendo-se ainda de incluir o nome da autora em órgãos de restrição ao crédito por conta dessa dívida, que foi extinta pelo falecimento do consignante, nos termos do artigo 16 da Lei nº 1.046/50. Isto posto, e pelo mais que dos autos consta, JULGO PROCEDENTE a ação, fornando definitiva a liminar concedida, para declarar extinta a dívida relacionada ao empréstimo consignado que havia sido contraído pelo marido da autora junto ao banco réu, em virtude do seu falecimento, nos termos do artigo 16 da Lei nº 1.046/50, devendo ainda a instituição financeira ré abster-se de reativar a conta bancária da autora ou realizar de qualquer forma a cobrança da dívida relacionada ao mencionado empréstimo, ou até mesmo de incluir o nome da autora em órgãos de restrição ao crédito por conta dessa dívida já extinta nos termos da lei, sob pena de multa diária de R$ 200,00 (duzentos reais) até o limite de R$ 15.000,00 (quinze mil reais). Finalmente, com base no artigo 42, parágrafo único, do CDC, também condeno o banco réu a restiutir à autora o dobro do que foi descontado de sua conta corrente por conta dessa dívida, no valor total de R$ 1.996,04 (um mil novecentose noventa e seis reais e quatro centavos), com juros de mora de 1% ao mês desde a data da citação e correção monetária desde a data do ajuizamento da ação. Sem sucumbência nesta fase do Juizado, salvo má-fé. P.R.I. – ADV MARCIA REGINA PETRINI DELLA PIAZZA OAB/SP 157317 – ADV EDGAR FADIGA JUNIOR OAB/SP 141123 – ADV FABIO ANDRE FADIGA OAB/SP 139961 – ADV EVANDRO MARDULA OAB/SP 258368”
As razões para tais julgados assim o serem são muitas. A primeira é que a Lei 1.046/50 é pouco conhecida no Direito Bancário, então os advogados tendem a não ter conhecimento suficiente para atuar contra a mesma quando com ela de repente deparam-se. A sua não revogação expressa causa inúmeros problemas nesse sentido, trazendo grande insegurança jurídica. Alegações que resguardariam a dívida provavelmente não são feitas nas peças, e, em um atribulado dia no ofício judiciário, um juiz dificilmente terá preocupação em pesquisar sobre determinado dispositivo, também desconhecido dele, se o próprio advogado da instituição financeira, teoricamente conhecedor do assunto, não pode elaborar nada convincente – as alegações tendem a basear-se na falta de disposição contratual a favor da extinção ou na previsão de cobrança do espólio, bem como fundamentar-se em disposições de lei ordinárias (Código Civil e Código de Processo Civil), que não são suficientes, por si só, para solucionar o conflito aparente de normas a favor da instituições bancárias, dado o caráter de norma especial da Lei 1046/50.
Mas o que realmente assusta nestes dois últimos julgados é a interpretação dispensada à consequência da existência da Lei 10.820/2003, que hoje regula o empréstimo consignado como um todo. Afirmam os eméritos julgadores que, por não regular a sucessão do passivo do empréstimo consignado, o novo livro normativo deixou a cargo da antiga legislação fazê-lo. É um absurdo jurídico.
A Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, antiga Lei de introdução ao Código Civil, enfatiza, em seu artigo 2°, §1°, que a lei posterior revoga a anterior quando, entre outas hipóteses, regular inteiramente a matéria de que tratava a mais antiga ou for com ela incompatível. Este dispositivo deixa claro que, regulando inteiramente a nova lei os “empréstimos consignados”, não há possibilidade jurídica de a primeira norma regulá-los mais. A não revogação expressa do inteiro conteúdo normativo do diploma legal da década de 50 deve-se ao fato de que o mesmo não regula “empréstimos consignados”, e sim “consignações em folha de pagamento”, incluindo hipóteses tais como a do desconto e repasse de pensão alimentícia (segue aprofundamento à frente). Entretanto, quanto ao mútuo, a matéria foi inteiramente tratada, tornando a lei antiga incompatível com a nova.
Quando a nova legislação deixa de regular a sucessão do passivo o faz por não precisar de letrar esta hipótese. É o que grandes autores chamam de silêncio eloquente (notadamente Pedro Lenza, em sua obra de Direito Constitucional, ano de 2012, discorrendo sobre assunto diverso): o tema não é tratado de forma específica porque o legislador decidiu serem as normas gerais o bastante, e estas deverão ser observadas. Do contrário, todo diploma novo que derrogasse parcialmente lei anterior teria que fazer uma espécie de quadro comparativo com esta.
Para rememorar um caso recente e já clássico: quando a emenda constitucional número 66 retirou o requisito temporal da separação de fato ou judicial para o pedido de divórcio, não precisou de expressamente declarar que o divórcio poderia ser pedido independentemente de separação – a norma antiga é letra morta, e não deverá influenciar a nova redação legiferante, vez que solenemente extirpada da harmonia jurídica global. Outrossim, o Código Civil não precisou regular cada preceito material da Lei do Divórcio (Lei 6015/73) ou da antiga Lei de Condomínio e Incorporação no que tange às disposições condominiais (Lei 4591/1967) (TARTUCE, 2012) para que a doutrina e jurisprudência aceitassem que o que hoje é pacificamente considerado derrogado tacitamente, mesmo que não tivesse tratamento em tipo legal específico, expresso na nova legislação, assim o era. Quando o legislador deixa de assentar sobre uma hipótese específica que antes merecia proteção legal, presume-se que o fez com tal intenção.
E apesar de a crítica à prestação jurisdicional pautada no artigo 16 da Lei 1046/50 já parecer bastante dura, fica agora ainda mais gravosa.
4 VIGÊNCIA E ABRANGÊNCIA ORIGINAIS E ATUAIS
Partamos de um ponto já citado para que o silogismo seja mais bem compreendido. Conforme pode ser consultado no sítio oficial do Planalto Central, a Lei 1046/50 continua formalmente vigente, não havendo revogação expressa do tipo legal aqui analisado como um todo. A aplicabilidade de uma norma, entretanto, não deve ser analisada apenas sob o âmbito da vigência ou não de um texto legal, uma vez que a correta subsunção do fato à norma percorre caminho mais intrincado, como a análise do tempo de concepção da lei, a real intenção do legislador – elementos histórico e teleológico do método hermenêutico clássico (LENZA, 2012), bem como critérios de competência e especificidade.
Encontra-se aqui limitação à aplicabilidade da Lei 1046/50, que, como visto, vários defendem sem ressalvas: ela tinha como destinatários apenas pessoas ligadas à folha de pagamento da União e seus entes da administração direta e indireta. Veja-se que tal lei era o resultado de determinação de decreto-lei federal, que tratava exclusivamente de seus destinatários, e deveria complementar regras a eles aplicadas. Não por coincidência, a lei 1046/50 faz referência apenas a qualificações que existem no âmbito federal (artigo 4°), deixando clara a sua aplicação a somente este público quando explicita, por exemplo, que o corpo de bombeiros e a polícia militar do Distrito Federal, e somente eles, entre seus pares por todo o Brasil, poderão consignar em folha – justo as únicas corporações que pertencem ao âmbito federal. É por isso, também, que todos os consignatários tem ligação exclusivamente com a União. O arremate a este raciocínio pode ser dado na mensagem de veto do então presidente Eurico Gaspar Dutra, quando o mesmo fala em “servidores do Estado”, referindo-se clara e exclusivamente à União. Reforçando: trata-se de lei direcionada a público específico, legislada de forma acessória a outra que também possuía sua restrita diretriz de aplicabilidade a pessoas naturais (não ao acaso, tais direcionamentos eram coincidentes).
A espécie normativa em questão, portanto, em nosso entendimento, nunca foi aplicável a servidores públicos e pensionistas estaduais, municipais ou celetistas da iniciativa privada em geral. A jurisprudência até andaria bem, considerando o princípio da boa-fé objetiva, se limitassem os descontos desse pessoal a 30% da remuneração, caso estes empréstimos já fossem feitos (entendemos não haver necessidade de lei específica para os empregados dos setor privado, e a legislação para o pessoal ligado às fazendas públicas só seria necessária para regular a execução dos descontos, pelo princípio da legalidade estrita que rege a administração pública), mas aplicando o regramento do século passado por analogia, ou como um parâmetro de razoabilidade e proteção à dignidade da pessoa humana, tendo em vista a natureza alimentícia dos salários, mas não diretamente ao caso desses indivíduos.
Quanta às duas primeiras classes supracitadas, à época, respeitando o federalismo brasileiro, já estava consagrada a atual regra de que compete aos estados-membros dispor sobre o seu funcionalismo público, seguindo as regras maiores da Constituição Federal, incluindo sobre remuneração e suas disposições complementares (o mesmo vale aos municípios). Vejam-se lições do Supremo Tribunal Federal quanto à regra do pacto federativo:
"(…) Anistia de infrações disciplinares de servidores estaduais: competência do Estado-membro respectivo. Só quando se cuidar de anistia de crimes – que se caracteriza como abolitio criminis de efeito temporário e só retroativo – a competência exclusiva da União se harmoniza com a competência federal privativa para legislar sobre Direito Penal; ao contrário, conferir à União – e somente a ela – o poder de anistiar infrações administrativas de servidores locais constituiria exceção radical e inexplicável ao dogma fundamental do princípio federativo – qual seja, a autonomia administrativa de Estados e Municípios – que não é de presumir, mas, ao contrário, reclamaria norma inequívoca da Constituição da República (precedente: Rp 696, 6-10-1966, Rel. Baleeiro). Compreende-se na esfera de autonomia dos Estados a anistia (ou o cancelamento) de infrações disciplinares de seus respectivos servidores, podendo concedê-la a Assembleia Constituinte local, mormente quando circunscrita – a exemplo da concedida pela Constituição da República – às punições impostas no regime decaído por motivos políticos. (ADI 104, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 4-6-2007, Plenário, DJ de 24-8-2007.)”
E ainda:
"Esta Corte fixou o entendimento de que se configura inconstitucionalidade formal quando o vício se concentra na inobservância, pelo constituinte estadual, do princípio da reserva constitucional em favor do chefe do Poder Executivo para a iniciativa privativa das leis que disponham sobre funcionalismo público (art. 61, § 1º, II, da CF). (…) Inexistência de violação ao art. 37, II, da Carta Política Federal, na disposição local que, ao conceder estabilidade de natureza financeira para servidores públicos, mediante incorporação de comissão ou gratificação ao vencimento, respeita o livre provimento e a exonerabilidade dos cargos comissionados, sem a efetivação de seus ocupantes. Descaracteriza-se hipótese de quebra da independência entre os Poderes (art. 2º c/c art. 25, § 1º, da CF), lei de iniciativa de ex-Governador disciplinadora de formas remuneratórias de servidores públicos inseridas, ex radice, no elenco das competências do chefe do Executivo estadual, com base no modelo federal. Inaplicabilidade, na espécie, da norma do art. 18 do ADCT/1988, por não se cuidar de servidor admitido sem concurso publico. (ADI 1.279-MC, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 27-9-1995, Plenário, DJ de 15-12-1995.)”
Este último julgado, de efeito erga omnes dado o seu caráter de decisão em controle concentrado de constitucionalidade, expõe a reserva de competência legislativa necessária para as disposições regulatórias acessórias da principal quando dispõe sobre esta última (remuneração), até por dedução lógica. Se a lei que dispõe sobre consignações em folha de pagamento é, expressamente, no plano federal, acessória à lei de regime jurídico dos servidores civis, não poderá, por invadir competência legislativa estabelecida constitucionalmente pelo princípio da simetria e disposições expressas referentes à autonomia do estado-membro (artigos 18 e 25 da Constituição Federal), ser também acessória à legislação estadual ou municipal. Vejamos um exemplo de utilização do princípio da simetria e da autonomia legislativa estadual para conceber regimes jurídicos de servidores e pensionistas – destaque à ampla citação de precedentes no próprio STF:
"Já se firmou na jurisprudência desta Corte que, entre os princípios de observância obrigatória pela Constituição e pelas leis dos Estados-membros, se encontram os contidos no art. 40 da Carta Magna Federal (assim, nas ADI 101, ADI 178 e ADI 755).”(ADI 369, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 9-12-1998, Plenário, DJ de 12-3-1999.) No mesmo sentido: ADI 4.698-MC, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 1º-12-2011, Plenário, DJE de 25-4-2012; ADI 4.696-MC, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 1º-12-2011, Plenário, DJE de 16-3-2012”
Além do mais, ainda que um dia esta lei tenha sido aplicável aos servidores e pensionistas não federais, pode-se considerar que, por via oblíqua, o entendimento prevalente dos nossos tribunais já é o de que a Lei 1046/50 não se subsumi a casos com eles relacionados – quanto aos federais, esse é o entendimento expressamente consagrado. Segue posicionamento do STJ:
“RECURSO ESPECIAL. PROCESSO CIVIL. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. CONSIGNAÇÃO. LEIS NºS 1.046/50 E 2.339/54. REVOGAÇÃO NO ÂMBITO DA LEI Nº 8.112/90.
Após a edição da Lei nº 8.112/90, encontra-se revogada, no âmbito das entidades e dos servidores sujeitos ao seu regime, a disciplina de consignação em folha de pagamento disposta pelas Leis nºs 1.046/50 e 2.339/54. Recurso desprovido.
REsp 688286 / RJ; Ministro JOSÉ ARNALDO DA FONSECA (1106); T5 – QUINTA TURMA; 17/11/2005; DJ 05/12/2005 p. 367”
A lei 8.112/90 é justamente a que seguiu à lei 1.711/52, revogando-a expressamente, bem como a suas normas complementares (artigo 253 da Lei 8.112/90). Cabe, portanto, o raciocínio: se a lei que trata, agora, do regime jurídico dos servidores públicos da União, revogou a legislação complementar à Lei 1.711/52, a lei estadual que tratar do regime jurídico dos servidores públicos estaduais impede que vigore tais normas complementares também no que tange a seu público (o mesmo raciocínio serve para o município). Lembre-se, mais uma vez, que é de competência estadual a tratativa das questões de seu funcionalismo, e municipal o do seu. Quanto ao pessoal vinculado à União, então, já resta indubitável a inaplicabilidade da Lei 1046/50 desde o ano de 1990 – tais mútuos são regulados hoje pelo decreto número 6386/2008, conforme determina, expressamente, o artigo 45 da Lei 8.112/90.
A propósito, cabe lembrar as importantíssimas considerações de Alice Monteiro de Barros em seu Manual de Direito do Trabalho (2012), que relembra diversos casos em que, atuando como desembargadora do TRT da 3ª região, fazia a ressalva de seu pensamento quanto a determinado assunto, mas acatava a jurisprudência superior para não criar falsas expectativas de direito e assegurar segurança jurídica ao ordenamento brasileiro. Ainda que o juiz seja independente, faz parte do respeito ao princípio constitucional da segurança jurídica respeitar entendimento de tribunais superiores, finais intérpretes de determinados assuntos, como o STJ é, em recurso especial, de interpretação de leis federais e sua vigência (artigo 105, III, a da Constituição Federal).
No caso de Minas Gerais, apenas para ilustrar, o estatuto jurídico do funcionalismo público foi, à época da Lei 1046/50, estabelecido pela Lei 869/52, o Estatuto dos Servidores Civis do Estado de Minas Gerais (já bastante alterado em relação à disposição original). Sendo assim, o estado-membro, único competente para legislar sobre a matéria, regula com a lei estadual 19.490/2011 “as consignações em folha de pagamento de servidor público civil ou militar, ativo ou inativo e de pensionista da administração direta, autárquica e fundacional dos Poderes do Estado, do Ministério Público e do Tribunal de Contas” (art. 1° da Lei 19.490/11 do Estado de Minas Gerais). Ainda há um decreto regulamentador, de número 45.548/2011, subordinado a esta lei.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por todo o exposto, podemos unicamente ser desfavoráveis quanto à aplicação do artigo 16 da Lei 1046/50 (e de suas disposições sobre empréstimo consignado em geral) entendendo, primeiramente, que tal lei nunca foi aplicável à servidores públicos estaduais, municipais e celetistas privados; e, ainda, que se acaso o tivesse sido, a existência de lei locais regulando o regime jurídico de seus servidores públicos e, complementarmente, a consignação em folha de pagamento no caso de empréstimos, além de prevalência pelo critério da especificidade, afasta a possibilidade de aplicação de legislação federal, sob pena de indevido desrespeito ao pacto federativo e à competência legislativa exclusiva dos Estados-membros, nos termos do artigo 25, caput, e seu §1° da Constituição Federal e jurisprudência assente do Supremo Tribunal Federal.
E quanto a diverso pessoal do citado no parágrafo anterior, referida lei deverá ser interpretada como revogada em suas disposições sobre mútuo com desconto em folha de pagamento, por ter regulado tal direito exclusivamente aos entes ligados à União, e ter por isto sua vigência findada com o advento da Lei 8.112/90, conforme interpretação superior e constitucionalmente considerada como final, irradiante aos juízos inferiores por questão de segurança jurídica e respeito à competência jurisdicional estabelecida na Magna Carta.
A restritíssima aplicabilidade da lei 1046/50 remanesce, portanto, apenas quanto aos atos jurídicos considerados perfeitos anteriores à lei 8112/90, quando (como condição de perfeição) tiverem sido realizados pelo legitimado público a quem foi direcionada aquela legislação.
Informações Sobre o Autor
Luís Mário Leal Salvador Caetano
Advogado militante pós-graduando em Direito Civil pela Universidade Anhanguera bacharel em Direito pela Universidade de Uberaba ex-economiário da Caixa Econmica Federal colaborador em diversas publicações especializadas