“O nascituro não é uma simples massa orgânica, uma parte do organismo da mãe, ou, na clássica expressão latina, uma portio viscerum matris, mas um ser humano, com dignidade de pessoa humana, independentemente de as ordens jurídicas de cada Estado lhe reconhecerem ou não personificação jurídica”. (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal – Processo: 436/07.6TBVRL.P1.S1)
Qualquer reflexão que façamos no tocante à tutela da vida humana biológica, no âmbito dos direitos da personalidade, não pode deixar de tomar partido sobre a extensão dessa tutela, a abranger apenas as pessoas já nascidas ou se abarcaria também o embrião. Em outras palavras, quando a Constituição assegura o “direito à vida”, garantiria o direito à vida desde a concepção?
As ponderações a seguir feitas passarão ao largo de todas as discussões que envolvem a personalidade jurídica do nascituro e do embrião. Não defenderemos aqui nem a corrente natalista, nem a concepcionista, mesmo porque pouco nos importará, para fins do nosso estudo, ser ou não o embrião dotado de personalidade jurídica. O que nos interessa saber é se esse embrião pertence ou não à espécie humana.
Tal questão, como sustentamos há muito tempo, somente comporta uma única resposta e tal resposta somente pode ser afirmativa, quer se trate de embrião corpóreo ou extra corpóreo. Afinal de contas, tratando-se de embrião humano, a nenhuma outra espécie poderia pertencer senão à espécie humana.
Respondida a essa primeira questão, resta a segunda e mais tormentosa: o direito da personalidade, fundamentado em cláusula pétrea constitucional (art 5º), ou seja o direito à vida, tutelaria também o embrião?
Para a Ministra Carmen Lúcia Antunes Rocha, “se a proteção constitucional do direito à vida refere-se ao ser humano, ao humanum genus, nem se há duvidar que o embrião está incluído na sua proteção jurídica. O embrião é ser e é humano”[1].
Entretanto muitas são as posições em sentido contrário, havendo quem defenda não haver o constituinte se manifestado sobre o termo “a quo” dessa cláusula constitucional pétrea, o que permitiria à legislação infraconstitucional definir quais seriam os termos iniciais do direito fundamental à vida, possibilitando, assim, a título exemplificativo, a edição de normas permissivas ou descriminalizantes do aborto, como, aliás, já o faz o nosso atual Código Penal em certas hipóteses excepcionais.
Para que possamos nos manifestar sobre o tema, antes de mais nada, é preciso que estejamos atentos à exata dicção constitucional:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”
A priori o vocábulo todos parece compreender, não apenas as pessoas já nascidas, mas também o embrião e o feto. O que implicaria sustentar a existência de um “direito à vida”, ou “direito de nascer”, como direito da personalidade, o que nos levaria à conseqüência lógica de que o aborto terapêutico “violenta o sentimento filosófico do ordenamento jurídico, é inconstitucional e contradiz o direito civil”[2].
Reforçam esse entendimento as normativas do direito internacional. O Pacto de São José de Costa Rica, por exemplo, estabelece que para os efeitos dessa Convenção “pessoa é todo ser humano”, e que toda pessoa tem direito a que se respeite sua vida “a partir do momento da concepção” (art. 1º, § 2º, e art. 4º).
Nesse sentido destaca, com propriedade, Carmen Lúcia Antunes Rocha no trabalho já citado anteriormente:
“Em geral, os sistemas jurídicos afirmam que ser considerado pessoa em direito, vale dizer, dotar-se de personalidade para os fins de titularizar direitos, depende do nascimento com vida. Todavia, quanto aos direitos humanos, os direitos que cada ser humano titulariza não se há fazê-los depender da personalidade[…] Há que se distinguir, portanto, ser humano de pessoa humana. E, de pronto, há que se antecipar que o princípio da dignidade, que se expressa de maneira relevante quanto à pessoa humana, não se circunscreve a ela, senão que haverá que ser respeitado para a espécie humana, tomada esta em sua integralidade.[…] O embrião é, parece-me, inegável, ser humano, ser vivo, obviamente, que se dota da humanidade que o dota de essência integral, intangível e digno em sua condição existencial. Não é, ainda, pessoa, vale dizer, sujeito de direitos e deveres, o que caracteriza o estatuto constitucional da pessoa humana”.
Não temos dúvida que o direito à vida é objeto de autônoma e específica tutela constitucional, abarcando sob o seu manto protetor todo aquele que pertencer à espécie humana, donde se conclui, realmente, pela existência de um “direito de nascer”, de que é titular todo ser humano como tal concebido, não havendo como se admitir qualquer vulneração ao embrião e ao nascituro. Por isto, ressalta Lorenzetti, “tem se reconhecido a proibição de procedimentos experimentais que tenham como objeto os embriões, salvo os que tenham por finalidade o benefício do próprio embrião, ou os estudos que não o danem. Uma afirmação correta, é a predominância que tem o direito relativo à vida íntima, e o início da vida é um aspecto dela, dentro do ordenamento”[3]. É praticamente consenso na doutrina que a dignidade da pessoa humana é atingida sempre que o ser humano for rebaixado a objeto, tratado como uma coisa. E as coisas têm preço e não dignidade, máxima kantiana já repetida à exaustão em todos os trabalhos que tratam do princípio da dignidade da pessoa humana[4]. Daí falar-se em coisificação do ser humano como antítese da dignidade.
Confrontando o direito do concepto ao nascimento em oposição ao direito ao aborto, em princípio não hesitaremos em sustentar a prevalência do primeiro, salvo quando estiverem em jogo outros interesses maiores.
Todos os princípios, positivados ou não no texto constitucional, podem ser limitados por outros princípios com os quais entrem em colisão, exigindo-se, portanto, que sejam submetidos a regras de ponderação, sobre as quais remetemos o leitor à clássica obra de Robert Alexy[5]. Havendo colisão entre princípios ou entre garantias fundamentais, além da operação de ponderação, cabe ao intérprete recorrer também a um outro princípio como critério solucionador, que é exatamente o “princípio da proporcionalidade”, também chamado de “princípio dos princípios”[6]. Comparando o peso de cada bem jurídico e de cada um dos princípios em jogo, o legislador ou o intérprete decidirá, no caso concreto, a qual deles dará prioridade[7].
Voltando à questão específica do aborto, e aproveitando as lições de Lorenzetti sobre o direito argentino, podemos afirmar que “em nosso Direito Penal, o aborto está penalizado porque se atenta contra o bem personalíssimo da vida do óvulo fecundado, ou do embrião, ou do feto, segundo seja. Não o é quando seja praticado por um médico diplomado, com o consentimento da mulher grávida, se é feito com a finalidade de evitar um perigo para a vida ou a saúde da mãe, e se este perigo não pode ser evitado por outros meios […] Também não é punível o aborto, se a gravidez provém do uso de violência ou de um atentado ao pudor cometido sobre a mulher retardada ou demente”[8].
Nessas hipóteses excepcionais, teremos de um lado o direito à vida do concepto e de outro o direito à saúde física ou psíquica da mãe, emanação direta do direito à vida. Realizando uma operação de ponderação e balizamento, para a correta aplicação de cada um desses direitos, o intérprete fará prevalecer o direito (à vida e à saúde) da mãe sobre o direito do concepto. A “primazia do direito à vida do vivente sobre o direito de nascer do nascituro”, como bem coloca Franco Modugno. O direito à integridade física, operando a combinação direito à vida – direito à saúde, justifica a interrupção da gravidez, nas situações de risco à saúde da mãe, ainda que apenas à saúde psíquica[9].
O mesmo entendimento pode ser aplicado à interrupção da gestação de fetos anencefálicos, como, aliás, decidiu o STF no julgamento da ADPF 54. Não se podendo, todavia, confundir com a situação do “aborto eugênico“[10], que atenda a interesses particulares e egoísticos da gestante e que não pode ser tolerado em hipótese alguma[11], por infringir, não somente o direito à vida do concepto, mas também o próprio princípio da dignidade da pessoa humana.
Já o aborto por razões econômicas não encontra justificativa na seara ético-jurídica, pois na operação de balanceamento teríamos de um lado uma situação existencial do ser humano concebido e de outro uma situação patrimonial da gestante, sendo certo e indubitável a primazia dada pelo ordenamento às situações existenciais. Agora se a situação econômica comprometer a saúde psíquica da mãe, aí estaremos diante de outra situação concreta, a merecer adequado e particularizado exame para que se conclua pela possibilidade de interrupção ou não da gravidez.
Informações Sobre o Autor
Mário Luiz Delgado
Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP) e Mestre em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). É Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).Atualmente é advogado em São Paulo, Brasilia e Pernambuco, Professor de Direito Civil na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e na Escola Paulista de Direito (EPD), Diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo-IASP, Presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito de Família-IBDFAM, Membro da Comissão de Acompanhamento Legislativo do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e Membro da Academia Brasileira de Direito Civil – ABDC.