Resumo: O Poder Judiciário tem enfrentado recorrentemente a questão da usucapião em situações de separação de casais separados de fato há anos. A discussão não é remansosa e exige, destarte, a confluência de raciocínios tanto de ordem positivista quanto teleológica. É que deve ser feita importante distinção, pois a aplicação indiscriminada da norma e das correntes interpretativas poderia ocasionar injustiças de toda sorte.
Palavra-chave: Usucapião. Prescrição Aquisitiva. Prescrição extintiva. Separação de fato.
Abstract: The judiciary has repeatedly faced the issue of adverse possession in separate couples separation situations of fact for years. The discussion is not remansosa and requires Thus the confluence of reasoning both positivist as teleological. It is to be made important distinction because the indiscriminate application of the rule and interpretive trends could lead to injustices of all sorts.
Keywords: Adverse possession. Acquisitive prescription. Extinctive prescription. Facto separation.
Sumário: Introdução. 1. Da decomposição analítica e teórica acerca da distinção entre os institutos jurídicos da usucapião e da prescrição. 2. A usucapião entre cônjuges. 3. Aspectos da jurisprudência e doutrina. Conclusão. Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
O Poder Judiciário tem enfrentado recorrentemente a questão da usucapião em situações de separação de casais separados de fato há muitos anos. Diversas são as situações em que, por exemplo, um dos cônjuges ajuíza demanda judicial, objetivando partilhar o único imóvel adquirido conjuntamente no curso do matrimônio, passados muitos anos da separação de fato.
Em resposta, o outro cônjuge sustenta que o referido imóvel não pode ser partilhado, pois há muito exerce sobre ele posse exclusiva, com animus domini, sem qualquer oposição do demandante ou de terceiros, tendo-o, pois, adquirido pela via da usucapião.
A matéria defensiva encontra, de outro lado, resistência legal sob o fundamento do artigo 197, inciso I, do Código Civil que determina que os prazos de prescrição aquisitiva não correm entre cônjuges enquanto perdurar a sociedade matrimonial.
Por outro lado, a tese defensiva tem encontrado proteção e valia em muitos tribunais pátrios. A discussão não é remansosa e exige, destarte, a confluência de raciocínios tanto de ordem positivista quanto teleológica, merecendo o estudo dos institutos.
1. DA DECOMPOSIÇÃO ANALÍTICA E TEÓRICA ACERCA DA DISTINÇÃO ENTRE OS INSTITUTOS JURÍDICOS DA USUCAPIÃO E DA PRESCRIÇÃO
O cerne da controvérsia diz respeito à viabilidade de se reconhecer ou não, no caso, a usucapião como matéria de defesa, alegada à guisa de fato extintivo do direito do cônjuge que abandona o lar e/ou demora, e muito, para pleitear a partilha de bens, confrontando os fatos com a previsão normativa que impede a fluência do prazo de usucapião entre os cônjuges enquanto pendente o vínculo matrimonial.
Reza o artigo 197, inciso I, do Código Civil[1]:
“Art. 197. Não corre a prescrição:
I – entre os cônjuges, na constância da sociedade conjugal;
II – entre ascendentes e descendentes, durante o poder familiar;
III – entre tutelados ou curatelados e seus tutores ou curadores, durante a tutela ou curatela.”
Sob a ótica puramente pragmática, vale ressaltar que a decomposição analítica e teórica acerca da distinção entre os institutos jurídicos da usucapião e da prescrição (aquisitiva) antes de prosseguir com a discussão objeto do presente estudo.
O conceito da usucapião resta consolidado na doutrina, contudo, muitos autores divergem acerca da identidade de conceito entre a prescrição aquisitiva e a usucapião.
Neste sentido, verificam-se os conceitos de usucapião expostos por Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald[2]: “A usucapião é modo originário de aquisição de propriedade e de outros direitos reais, pela posse prolongada da coisa, acrescida de demais requisitos legais.”
Afirma Caio Mário da Silva Pereira[3] que a “Usucapião é a aquisição da propriedade ou outro direito real pelo decurso do tempo estabelecido e com a observância dos requisitos instituídos em lei.”
Em contrapartida, alguns autores não vislumbram separação entre os institutos, como a exemplo, Antônio Macedo Campos[4]: “A palavra usucapião, origina-se no latim uso capere, significando tomar pelo uso, constituir prescrição aquisitiva, constitutiva ou positiva da propriedade e de certos direitos reais, mediante a ocorrência de determinadas condições previstas em lei”.
Apesar da inegável semelhança, a doutrina majoritária brasileira consolidou entendimento pela diferenciação entre a usucapião e a prescrição aquisitiva. Entre os expoentes desta corrente estão Tupinambá Miguel Castro do Nascimento[5] que explica:
“Não são conceitualmente idênticos os termos prescrição e usucapião. A doutrina tem demonstrado que, enquanto o primeiro tem como objetivo extinguir ações, o segundo objetiva a aquisição de direito real. Este critério dualista, defendido pelos juristas alemães teve aceitação de CLOVIS BEVILACQUA na elaboração do Código Civil. Com efeito, o diploma de 1916 localizou a prescrição em sua Parte Geral colocando o usucapião, topograficamente, no Direito das Coisas. E assim ficou mais clara a dualidade conceitual. Enquanto que naquela, a praescriptio, há o efeito extintivo do tempo no desestruturar as ações e, estando na Parte Geral do Código Civil, aplica-se a todas as áreas do Direito, nesta, a usucapio, prevista no Direito das Coisas, aplica-se somente nesta área. Em outras palavras, em nosso Código Civil, tratou-se autonomamente das hipóteses de prescrição e usucapião.”
Outrossim, Natal Nader[6] ensina que:
“Embora inegável a existência de pontos afins entre ambas, elas se distinguem em muitos outros, sendo que, no campo do direito positivo, o nosso Código Civil optou pela orientação do direito alemão, inserindo a prescrição extintiva na Parte Geral e a aquisitiva na Parte Especial no Livro II do Direito das Coisas.”
E Caio Mário da Silva Pereira[7] assevera:
“A nosso ver, e considerada cientificamente a matéria, a posição correta do usucapião (ou da usucapião, como prefere o Código de 2002), denominado impropriamente prescrição aquisitiva (como referem Lafayette, Ruggiero e Maroi), é entre as diversas modalidades de aquisição da propriedade, e conforme prometemos no nº 120 supra (vol.I destas Instituições) aqui promovemos o seu desenvolvimento e determinação dogmática.”
Afirmam, ainda, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald[8]:
“Clóvis Beviláqua, em sentido contrário, buscou a corrente dualista, diferenciando a prescrição da usucapião. Em sede legislativa, tanto no Código Civil de 1916 como o Código Civil de 2002 seguiram a orientação do Código Civil alemão e separaram a prescrição da usucapião, com a instalação da prescrição extintiva na parte geral e da usucapião do Livro do Direito das Coisas, como modo de aquisição de propriedade. Com efeito, veremos a seguir que é impróprio conceituar a usucapião como prescrição aquisitiva.”
Essencialmente, ainda que ambas as prescrições detenham o mesmo substrato do tempo, seus desígnios são dissentes, pois, enquanto a usucapião permite que alguém congregue ao seu patrimônio direito do qual desfruta há certo tempo; a prescrição extintiva, por sua vez, é a extinção da pretensão, em face do não exercício de certo direito, diante de transcurso temporal – diferentemente do que ocorre com os institutos da decadência, preclusão e perempção.
A prescrição extintiva aborda a pretensão, no sentido do experimento de impor, exigir ou obrigar alguém a submeter-se a aspiração do seu interesse. Para a sua configuração é indispensável a confluência de ação apropriada ao direito violado, bem como a inércia do titular do direito violado mediante o decurso do prazo que em geral é de 10 (dez) anos.
Neste sentido, já afirmou Tupinambá Miguel Castro do Nascimento[9]: “Assim, usucapião não tem o mesmo conteúdo da prescrição, embora haja ponto comum, detectável em ambos, que é o decurso do tempo. Este se reflete na natureza criativa, fazendo nascer direitos reais, e no outro para extinguir a pretensão à acionabilidade.”
Vale recortar os dizeres de Cristiano Chaves e de Nelson Rosenvald[10] sobre o tema:
“Apesar da confluência entre as causas interruptivas e suspensivas nos universos da prescrição e da usucapião, não recomendamos ao operador do direito a adoção da expressão prescrição aquisitiva como sinônimo de usucapião. A prescrição é forma de extinção de pretensões reais e obrigacionais pela inércia do titular no exercício do direito sujeito pelo decurso do tempo. A usucapião é simplesmente um modo de aquisição de propriedade.”
Portanto, possível concluir ser equivocado ponderar a usucapião como prescrição aquisitiva, tendo em vista o condão histórico e evolutivo acima descrito. Ocorre que a dissensão, como visto, é inegável, enquanto determinados não somente por parâmetros do próprio ordenamento jurídico, mas também pelos conceitos doutrinários de cada instituto.
2. A USUCAPIÃO ENTRE OS CONJUGES
Neste ponto, importa destacar o que reza a legislação composta pelo artigo 1.244 do Código Civil[11] ao aplicar também a usucapião às causas que obstam, suspendem e interrompem a prescrição em geral (art. 197).
“Art. 1.244. Estende-se ao possuidor o disposto quanto ao devedor acerca das causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição, as quais também se aplicam à usucapião.”
Diante disto, resta perquirir qual a extensão e aplicabilidade da norma que encerra causa impeditiva da prescrição (e da usucapião) entre os cônjuges na pendência da sociedade conjugal, se absoluta, de um lado, enquanto não dissolvido formalmente o matrimônio pelo divórcio.
A discussão não é remansosa e exige, destarte, a conjectura de raciocínios tanto de ordem positivista quanto teleológica, devendo ser realizada diferenciação entre as possibilidades conjunturais apresentadas em cada caso concreto, sob pena da aplicação indiscriminada da norma e das correntes interpretativas ocasionar injustiças de toda sorte.
Neste contexto, vale lembrar que o espírito da norma contida no art. 197, inc. I, do Código Civil possui origem na preservação do ente familiar e do patrimônio conjugal enquanto perdurar a affectio maritalis, fazendo com que entre os cônjuges não se extingam direitos enquanto remanescer a comunhão de propósitos e unicidade de interesses que ensejou, em primeiro plano, o casamento.
Sabe-se que a sociedade conjugal termina, por definição legal, com a morte de um dos cônjuges, com a anulação do casamento, com a separação judicial ou com o divórcio (art. 1.571, incisos I a IV, do Código Civil[12]), de modo que a aplicação literal e sistemática dos dispositivos poderia ensejar a equivocada conclusão de que enquanto não sobrevier a separação judicial ou divórcio – hoje unificados pela EC n. 66/2009 -, não corre, entre os cônjuges, em nenhuma hipótese, os prazos de prescrição e usucapião.
“Art. 1.571. A sociedade conjugal termina:
I – pela morte de um dos cônjuges;
II – pela nulidade ou anulação do casamento;
III – pela separação judicial;
IV – pelo divórcio.”
Todavia, vigora com preponderância a corrente interpretativa, encampada pela jurisprudência e pela doutrina majoritarias a qual confere maior importância prática à separação de fato, fazendo com que o art. 197, inc. I, do CC seja lido sob outra ótica, admitindo que, conforme forem as circunstâncias da ruptura fática do matrimônio, possam os efeitos jurídicos e patrimoniais do divórcio incidirem desde o momento da separação de fato do casal.
A relevância dessa linha exegética reside na conformação dos institutos jurídicos à realidade representada pelas escolhas do casal, pois, evidenciando-se não mais existir relação de afetividade a ser protegida pelos expedientes legais de blindagem patrimonial, falece de sentido a aplicação indiscriminada de seus comandos.
Ou seja, se a situação fática demonstrar, às claras, a ruptura da comunhão de vida sem resquício de qualquer unidade de interesses, não há que se impor a vontade da lei de preservar a unicidade patrimonial.
A posse exercida exclusivamente pelo cônjuge separado de fato sobre o imóvel que serve de residência à família pode, excepcionalmente, dar ensejo à usucapião, a depender das circunstâncias (por exemplo, se esta posse não se qualificar como mera tolerância do outro cônjuge enquanto pendente a partilha definitiva dos bens, ou quando o tendo deixado por opção, convenção, ou imposição).
Recorta-se o seguinte precedente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo sobre o tema:
"PARTILHA BENS. REGIME DA COMUNHÃO UNIVERSAL DE BENS. ÚNICO IMÓVEL A SER PARTILHADO, ADQUIRIDO NA CONSTÂNCIA DO CASAMENTO. Separação judicial das partes em 1991 com a determinação, em sentença proferida nos autos, de que o requerente se afastasse do imóvel. Ré que alega prescrição aquisitiva sobre o imóvel comum, pois o mesmo fora abandonado pelo autor por quase 20 anos. Alega, ainda, a ré desídia do requerente em relação à propriedade, pois o mesmo deixou de pleitear a partilha do bem no prazo determinado na r. sentença proferida nos autos da ação de separação judicial das partes. Ausência de abandono do imóvel, diante da desocupação forçada. Requerente que mantinha a posse indireta sobre o imóvel, pois se afastara do mesmo apenas por determinação judicial. Demora no ajuizamento da partilha não serve para conferir à requerida o domínio da meação do requerente, pois se trata de direito potestativo, não que pode ser exercido a qualquer tempo."[13]
Ademais, podem-se caracterizar hipóteses outras em que a posse exercida unilateralmente por um dos consortes não se reveste de natureza mancomunhal, mas sim de exercício levado a efeito já na condição de pessoa que não mais guarda vínculo afetivo ou consorcial algum com o outro indivíduo, situação que, a bem da verdade, não difere, em absoluto, da vivência experimentada pelas pessoas já separadas ou divorciadas.
Desta forma, nos casos de prolongado abandono do lar familiar por um dos cônjuges é que a doutrina e a jurisprudência pátrias vêm procurando consolidar o entendimento de ser possível, para aquele que restou exercendo a posse sobre o imóvel residencial, adquirir-lhe a propriedade plena pela via da usucapião, excetuando-se, para tanto, nesse contexto, a aplicação do art. 197, inc. I, do CC, o qual, no plano literal, impedir-lhe-ia a aquisição em razão da pendência de causa obstativa da prescrição/usucapião – qual seja, o casamento.
Tal raciocínio, outrossim, foi determinante para a promulgação da Lei n.12.424/2011[14] – a qual, conquanto inaplicável, por requisitos temporais de vigência, traça-lhe importantes luzes interpretativas -, fazendo com que o cônjuge ou companheiro adquira, após 2 (dois) anos de posse ad usucapionem com fins de moradia, a propriedade exclusiva do imóvel abandonado pelo outro consorte.
Essa inovadora disposição, aliás, foi inserida no bojo do capítulo do Código Civil que regula a usucapião (art. 1.240-A), de forma que, não se há negar, operou-se verdadeira positivação da teoria acima lançada, ou seja, de que o abandono do lar por um dos cônjuges e a consequente separação de fato do casal faz iniciar, ao consorte remanescente, a pretensão de usucapi-lo, não sendo indispensável, para que se tenha início o prazo, a dissolução formal do vínculo matrimonial por intermédio do divórcio, como se poderia erroneamente concluir através da interpretação literal do art. 197, inc.I, do CC.
“Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.”
É que, aprofundando ainda mais a argumentação, a relação da esposa (ou esposo) abandonado(a) em relação ao imóvel que lhe serve de residência não é aquela que caracteriza a detenção decorrente de mera tolerância – tal como é, repita-se, nos casos em que o varão a autoriza a permanecer na posse da casa enquanto não dividido o patrimônio -, mas passa a ser ela possuidora exclusiva do bem, conferindo-lhe função social e impedindo, pois, que se torne res derelicta.
Aliás, a depender do comportamento do cônjuge que o abandonou, o imóvel desditosamente sujeitar-se-ia à arrecadação pelo município (se urbano) ou pela União (caso rural), na forma do art. 1.276, caput e § 1º, do Código Civil, dando azo à extinção do direito de propriedade, a teor do art.1.275, inc. IV, do mesmo Diploma, pois a presunção legal nesses casos é manifesta de que o titular não pretende conservá-lo em seu patrimônio (art. 1.276, § 2º).
“Art. 1.276. O imóvel urbano que o proprietário abandonar, com a intenção de não mais o conservar em seu patrimônio, e que se não encontrar na posse de outrem, poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, três anos depois, à propriedade do Município ou à do Distrito Federal, se se achar nas respectivas circunscrições.
§ 1o O imóvel situado na zona rural, abandonado nas mesmas circunstâncias, poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, três anos depois, à propriedade da União, onde quer que ele se localize.
§ 2o Presumir-se-á de modo absoluto a intenção a que se refere este artigo, quando, cessados os atos de posse, deixar o proprietário de satisfazer os ônus fiscais.”
Ora, se nesses casos o ente federativo pode arrecadar para si o imóvel abandonado – desde, claro, cumpridos os requisitos legais e administrativos -, com mais razão ainda está autorizada a perda da propriedade do desertor em favor do seu consorte que permaneceu habitando e dando destinação social ao bem.
Não é demais pontuar, outrossim, que desde a promulgação da Lei n.6.515/77 (Lei do Divórcio)[15], a separação de fato por 1 (um) ano servia de causa suficiente para a decretação da separação judicial, e, logo, à extinção da sociedade conjugal, de modo que, então, a separação de fato prolongada adquire, mesmo dentro da sistemática do próprio Diploma, contornos relevantes para a mitigação da regra prevista no art. 197, inciso I, do Código Civil, que obsta a fluência da prescrição entre cônjuges. Neste sentido, aliás, é a lição de Cezar Peluso e Nestor Duarte[16]:
"Razões de ordem moral impedem que o prazo prescricional corra entre cônjuges na constância da sociedade conjugal (…), porquanto, no dizer de Clóvis Beviláqua, a afeição e confiança, que devem existir entre as pessoas a que o Código se refere, não permitiriam que se criasse a situação jurídica da prescrição.
A dissolução da sociedade conjugal se dá nas hipóteses do art. 1.571, em que não se encontra o caso da separação de fato, contudo, sendo esta separação voluntária, não se deve dar por suspenso ou impedido o curso do prazo prescricional depois de um ano do rompimento da convivência sem ânimo de reconciliação, pois já seria causa de separação judicial (art. 1.573, IV, CC), além do que se presume o desaparecimento da afeição que era o fundamento da regra legal (art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil)".
Apenas para reforçar essa linha de raciocínio, merece apontar que a separação de fato acarreta, como bem salientou a sentença, importantes e inegáveis efeitos patrimoniais, tais como da cessação do regime de bens.
Por exemplo, os bens e dívidas adquiridos e contraídos por um dos cônjuges após a separação fática não se comunicam com o outro, assim como um pode pleitear em face do outro o ressarcimento pelo uso exclusivo do bem comum após a segregação.
Deste modo, a argumentação ora empreendida, caracterizando-se como simples consequência dessa premissa, não destoa da orientação dominante sobre o tema.
3. DOS ASPECTOS DA JURISPRUDÊNCIA E DA DOUTRINA
Sobre o tema em debate, já decidiu a Corte Estadual Catarinense pela possibilidade da contagem do prazo de usucapião entre cônjuges desde a ocorrência da separação de fato, nos casos de abandono do lar familiar por parte de um deles.
Recorta-se, por oportuno, as ementas de julgados, com a ressalva de que não há qualquer impossibilidade de se manusear, na usucapião, as causas impeditivas da prescrição (art. 197), como decidiu o acórdão transcrito, pois, como visto, embora diversos os institutos, a opção do Código Civil se deu por aplicá-la a ambas as matérias (art. 1.244). Segue:
“APELAÇÃO CÍVEL. REAIS E FAMÍLIA. USUCAPIÃO ENTRE CÔNJUGES. SEPARAÇÃO DE FATO. SENTENÇA EXTINTIVA, SEM RESOLUÇÃO DE MÉRITO. – RECURSO DA AUTORA. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. SITUAÇÃO EXCEPCIONAL CARACTERIZADA. ALEGADO ABANDONO DA FAMÍLIA E PATRIMÔNIO PELO MARIDO HÁ MAIS DE 20 ANOS. PRESCRIÇÃO E PRAZO PARA O USUCAPIÃO. NATUREZAS JURÍDICAS DISTINTAS. INAPLICABILIDADE LITERAL DO ART. 168, I, DO CC/16 OU ART. 197, I, DO CC/02. INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA DOS DISPOSITIVOS INVIÁVEL. FIM DA NORMA DE SUSPENSÃO NÃO ATENDIDO. POSSE APARENTEMENTE EXERCIDA EXCLUSIVAMENTE E NÃO EM RAZÃO DA MANCOMUNHÃO. CARÊNCIA DE AÇÃO AFASTADA. – SENTENÇA CASSADA. RECURSO PROVIDO. A considerar a natureza jurídica distinta da prescrição e do prazo para aquisição propriedade por usucapião, sendo equívoca a utilização da expressão "prescrição aquisitiva" como ensinam Clóvis Beviláqua, Caio Mário da Silva Pereira e Orlando Gomes, não há aplicar, em razão da interpretação literal, as causas de suspensão da prescrição previstas no art. 168, I, do CC/16 ou no art. 197, I, do CC/02. Não obstante se reconheça a possibilidade de aplicação extensiva dos dispositivos citados, por meio de interpretação teleológica, ao prazo da usucapião, inviável utilizar desse expediente quando, em tese, não há relação afetiva familiar ou harmonia entre as partes a serem preservadas – fim precípuo da causa de suspensão da prescrição entre os consortes. Nessas hipóteses excepcionais, se a posse exercida por um dos cônjuges sobre o bem não decorre da mancomunhão (como acontece, e.g., na mera tolerância do outro enquanto não realizada a partilha ou somente em razão da medida de separação de corpos), mas sim de forma exclusiva em virtude do abandono pelo esposo da família e bens há mais de 20 anos, não se vê impossibilidade jurídica do pleito de usucapião entre cônjuges.”[17]
“APELAÇÃO CÍVEL. REAIS E FAMÍLIA. USUCAPIÃO ENTRE CÔNJUGES. SEPARAÇÃO DE FATO. SENTENÇA EXTINTIVA, SEM RESOLUÇÃO DE MÉRITO. – RECURSO DA AUTORA. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. SITUAÇÃO EXCEPCIONAL CARACTERIZADA. ALEGADO ABANDONO DA FAMÍLIA E PATRIMÔNIO PELO MARIDO HÁ MAIS DE 20 ANOS. PRESCRIÇÃO E PRAZO PARA O USUCAPIÃO. NATUREZAS JURÍDICAS DISTINTAS. INAPLICABILIDADE LITERAL DO ART. 168, I, DO CC/16 OU ART. 197, I, DO CC/02. INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA DOS DISPOSITIVOS INVIÁVEL. FIM DA NORMA DE SUSPENSÃO NÃO ATENDIDO. POSSE APARENTEMENTE EXERCIDA EXCLUSIVAMENTE E NÃO EM RAZÃO DA MANCOMUNHÃO. CARÊNCIA DE AÇÃO AFASTADA. ¿ SENTENÇA CASSADA. RECURSO PROVIDO. – A considerar a natureza jurídica distinta da prescrição e do prazo para aquisição propriedade por usucapião, sendo equívoca a utilização da expressão "prescrição aquisitiva" como ensinam Clóvis Beviláqua, Caio Mário da Silva Pereira e Orlando Gomes, não há aplicar, em razão da interpretação literal, as causas de suspensão da prescrição previstas no art. 168, I, do CC/16 ou no art. 197, I, do CC/02. – Não obstante se reconheça a possibilidade de aplicação extensiva dos dispositivos citados, por meio de interpretação teleológica, ao prazo da usucapião, inviável utilizar desse expediente quando, em tese, não há relação afetiva familiar ou harmonia entre as partes a serem preservadas ¿ fim precípuo da causa de suspensão da prescrição entre os consortes. – Nessas hipóteses excepcionais, se a posse exercida por um dos cônjuges sobre o bem não decorre da mancomunhão (como acontece, e.g., na mera tolerância do outro enquanto não realizada a partilha ou somente em razão da medida de separação de corpos), mas sim de forma exclusiva em virtude do abandono pelo esposo da família e bens há mais de 20 anos, não se vê impossibilidade jurídica do pleito de usucapião entre cônjuges”.[18]
Outrossim, sobre o tema em debate já decidiu a Corte Estadual do Rio Grande do Sul:
“DIVÓRCIO LITIGIOSO. PARTILHA DE BENS. USUCAPIÃO FAMILIAR. 1. Sendo o casamento regido pelo regime da comunhão parcial, todos os bens adquiridos a título oneroso na constância da vida conjugal se comunicam e devem ser partilhados de forma igualitária, independentemente de qual tenha sido a contribuição individual de cada cônjuge para a consecução do resultado patrimonial, pois se presume que a aquisição seja produto do esforço comum do par. inteligência dos art. 1.658 a 1.660 do CCB. 2. Considerando que o imóvel onde a ré permaneceu residindo após a separação fática do casal pertence exclusivamente ao autor, inviável o reconhecimento da usucapião familiar, que pressupõe a propriedade comum do b em. Inteligência do art. 1.240-A do Código Civil. 3. Se o imóvel pertence ao varão, também se mostra inviável a sua partilha. Recurso desprovido”.[19]
CONCLUSÃO
Como visto no presente estudo, a matéria defensiva encontra, de outro lado, resistência legal sob o fundamento do artigo 197, inciso I, do Código Civil que determina que os prazos de prescrição aquisitiva não correm entre cônjuges enquanto perdurar a sociedade matrimonial.
Por outro lado, a tese defensiva tem encontrado proteção e valia em muitos tribunais pátrios. A discussão não é remansosa e exige, destarte, a confluência de raciocínios tanto de ordem positivista quanto teleológica, merecendo o estudo dos institutos.
Isto posto, em situações como estas, em que o Poder Judiciário tem enfrentado em separação de fato há muitos anos, com discussão da partilha de bens e abandono de lar muito tempo depois, recomenda-se que a usucapião, como matéria de defesa, seja reconhecida e eventual pretensão de partilha do imóvel indeferida.
Informações Sobre o Autor
Gisele Amorim Sotero Pires
Advogada militante em Direito de Família, graduada pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL), Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI) em convênio com a Associação Catarinense do Ministério Público (ACMP) e Especialista em Direito Cível e Empresarial pela Universidade Anhanguera em convênio com o Grupo Luiz Flávio Gomes