Não, o abandono de lar continua existindo no direito brasileiro, mas seu significado jurídico foi modificado e melhor delimitado ao longo do tempo. Atualmente, o abandono de lar é tratado com implicações principalmente no âmbito do direito de família e da posse de imóveis, e não mais como causa automática de perda de direitos patrimoniais ou da guarda de filhos, como era entendido antigamente. Ao longo deste artigo, vamos explicar em detalhes como o abandono de lar é visto hoje na legislação e na prática judicial, quais são seus efeitos, quando pode ser alegado e quais cuidados devem ser observados.
O que era considerado abandono de lar antigamente
Historicamente, abandono de lar era uma expressão popularmente utilizada para descrever a saída de um dos cônjuges da residência familiar, interpretada como uma grave falta conjugal. Isso gerava efeitos profundos: o cônjuge que abandonava o lar podia perder o direito ao usufruto dos bens do casal, ser prejudicado na disputa pela guarda dos filhos e até ter dificuldades no divórcio, especialmente quando o divórcio ainda dependia da comprovação de culpa.
Essa visão estava amparada em uma sociedade que valorizava intensamente a manutenção do casamento e via a ruptura como um evento negativo que merecia punição.
Com o advento da Emenda Constitucional nº 66/2010, que simplificou o divórcio no Brasil e eliminou a necessidade de demonstração de culpa para dissolver o casamento, o conceito de abandono de lar perdeu força no aspecto do fim do casamento, mas manteve relevância em outros campos, como veremos.
A atual interpretação do abandono de lar
Hoje, o abandono de lar não é mais motivo para a concessão de divórcio ou separação judicial com punições ao cônjuge. O divórcio é um direito potestativo, ou seja, basta a vontade de uma das partes para que ele seja concedido, sem que se precise comprovar culpa.
No entanto, o abandono de lar ainda pode ter efeitos jurídicos importantes em duas principais áreas:
Posse de imóvel: o cônjuge que abandona o lar pode, em algumas condições, perder o direito à parte do imóvel.
Guarda dos filhos: o abandono pode ser considerado um fator negativo na análise da capacidade parental em disputas de guarda.
Portanto, embora o abandono de lar não tenha mais as mesmas consequências em termos de dissolução do vínculo matrimonial, ele ainda é relevante no direito de família e no direito das coisas (posse e propriedade).
Abandono de lar e o direito à posse exclusiva do imóvel
O Código Civil, em seu artigo 1.240-A, introduzido pela Lei nº 12.424/2011, prevê que, em casos de abandono de lar, o cônjuge que permanecer no imóvel poderá adquirir a propriedade exclusiva do bem, mesmo que este seja comum ao casal.
Para isso, é necessário que:
O cônjuge abandonado exerça a posse do imóvel de forma exclusiva e ininterrupta.
A posse seja mansa e pacífica, ou seja, sem oposição.
O período mínimo de ocupação seja de dois anos.
O imóvel seja utilizado para moradia própria ou de sua família.
O imóvel tenha valor de até 250 salários mínimos.
Atendidos esses requisitos, o cônjuge que ficou no imóvel poderá propor ação judicial para reconhecer a usucapião familiar.
Essa possibilidade protege o cônjuge que foi deixado para trás, muitas vezes com filhos, garantindo-lhe estabilidade habitacional.
Diferença entre abandono de lar e abandono afetivo
É importante não confundir abandono de lar com abandono afetivo.
Abandono de lar refere-se à saída do cônjuge do domicílio conjugal.
Abandono afetivo refere-se à omissão de um dos pais no dever de cuidado, amor e educação para com os filhos.
O abandono afetivo pode gerar indenização por danos morais, enquanto o abandono de lar afeta questões patrimoniais e, em alguns casos, de guarda dos filhos.
São institutos jurídicos distintos, ainda que ambos envolvam a ideia de negligência ou omissão.
Abandono de lar e guarda dos filhos
Em disputas de guarda, o abandono de lar pode ser considerado um elemento na análise da capacidade parental. Isso ocorre porque o juiz deve sempre decidir levando em conta o melhor interesse da criança.
Se for demonstrado que um dos genitores abandonou o lar e, junto, deixou de prestar assistência moral, afetiva ou material aos filhos, isso poderá pesar contra ele em eventual disputa de guarda.
Contudo, é importante frisar: apenas o abandono físico do lar, por si só, sem prejuízo aos filhos, não é suficiente para retirar direitos de convivência ou guarda.
O que será avaliado é o conjunto de circunstâncias e o impacto da ausência na vida da criança ou adolescente.
Ação de usucapião familiar por abandono de lar
A usucapião familiar é uma consequência possível do abandono de lar, prevista no artigo 1.240-A do Código Civil.
Para pleitear essa forma de usucapião, é necessário comprovar que:
Um dos cônjuges ou companheiros abandonou voluntariamente o lar comum.
O outro permaneceu no imóvel com intenção de tornar-se proprietário.
O imóvel é urbano e não supera o valor de 250 salários mínimos.
A posse é ininterrupta e pacífica por pelo menos dois anos.
A usucapião familiar é uma proteção especialmente importante para cônjuges em situação de vulnerabilidade que, muitas vezes, precisam seguir sozinhos com a criação dos filhos.
Efeitos patrimoniais do abandono de lar sem usucapião
Se não houver ação de usucapião familiar e o imóvel pertencer ao casal, o cônjuge que abandonou o lar mantém seu direito à meação (50% do valor do imóvel).
Ou seja, o simples abandono de lar, sem os requisitos da usucapião e sem ação judicial, não faz o cônjuge perder seu direito patrimonial automaticamente.
Por isso, é necessário que o cônjuge que ficou no imóvel atue de maneira proativa para formalizar a aquisição da propriedade, se for o caso, por meio da usucapião ou acordo judicial.
Abandono de lar na união estável
As regras do abandono de lar também se aplicam à união estável.
O companheiro que abandona o lar pode, igualmente, ser sujeito à perda da posse do imóvel para o companheiro que ficou, nas mesmas condições de tempo e forma previstas para o casamento.
O reconhecimento da união estável, contudo, deve ser comprovado formalmente, caso haja necessidade de pleitear a usucapião familiar.
Provas necessárias para alegar abandono de lar
Para comprovar o abandono de lar, podem ser utilizados diversos meios de prova, tais como:
Testemunhas que comprovem a saída definitiva do cônjuge
Documentos que demonstrem a ausência prolongada
Comunicação formal (mensagens, e-mails, notificações)
Relatórios de assistência social, se houver
É fundamental demonstrar que a saída foi voluntária, sem intenção de retorno, e que houve a ruptura da vida em comum.
O abandono temporário ou justificado não caracteriza abandono de lar
É importante diferenciar abandono de lar de ausências justificadas.
Se o cônjuge se ausenta temporariamente por motivos de saúde, trabalho, estudos ou situações emergenciais, não há abandono de lar.
Para caracterizar o abandono de lar com efeitos jurídicos, é necessário que a ausência seja definitiva e injustificada, e que implique o rompimento da convivência conjugal.
Portanto, cada situação deve ser cuidadosamente analisada para evitar equívocos.
Perguntas e respostas
Abandono de lar ainda existe na legislação brasileira?
Sim, mas seus efeitos mudaram. Ele não gera mais punição automática no divórcio, mas pode influenciar na posse de imóveis e em questões de guarda de filhos.
Quem abandona o lar perde direito à herança ou à partilha de bens?
Não automaticamente. O abandono de lar não retira o direito à meação, salvo se houver usucapião familiar validamente reconhecida.
Quanto tempo é necessário para caracterizar o abandono de lar e pleitear usucapião?
Pelo menos dois anos de posse ininterrupta e exclusiva do imóvel.
O abandono de lar é suficiente para perder a guarda dos filhos?
Depende. Se o abandono prejudicar o bem-estar dos filhos, pode influenciar na decisão sobre guarda, mas não automaticamente.
É preciso registrar boletim de ocorrência para provar abandono de lar?
Não obrigatoriamente, mas um boletim de ocorrência pode ser uma das provas utilizadas no processo judicial.
Se o imóvel for alugado, pode haver usucapião por abandono de lar?
Não. A usucapião familiar só se aplica a imóveis próprios, não a imóveis alugados.
O abandono afetivo é a mesma coisa que abandono de lar?
Não. Abandono afetivo é o descumprimento dos deveres parentais, enquanto abandono de lar refere-se à saída do domicílio conjugal.
Conclusão
O abandono de lar, embora tenha perdido parte da sua força como motivo de divórcio ou punição automática, continua existindo no direito brasileiro com implicações práticas relevantes. Ele pode influenciar na posse e propriedade de imóveis e também ser levado em consideração em questões envolvendo a guarda dos filhos.
O cônjuge ou companheiro que permanece no imóvel abandonado pode, cumpridos os requisitos legais, adquirir a propriedade por usucapião familiar, garantindo estabilidade e segurança para si e para sua família.
Por outro lado, quem abandona o lar não perde automaticamente seus direitos patrimoniais ou sucessórios, salvo se houver procedimento jurídico específico que altere essa situação.
É fundamental que, diante de um caso de abandono de lar, o cônjuge que permanece busque orientação jurídica adequada para proteger seus direitos e, se necessário, ajuizar as medidas cabíveis.
Com a evolução da legislação e da sociedade, o abandono de lar deixou de ser visto como uma “culpa moral” e passou a ser tratado de forma técnica e pragmática, sempre buscando preservar a dignidade e o melhor interesse das pessoas envolvidas.