“Quanto futuro será necessário para que se possa viver sensatamente no presente, isso constitui uma variável essencialmente evolutiva, e aí reside o ponto onde as mudanças nas sociedades sociais invadem o direito.” Niklas Luhmann[1]
Uma das grandes barreiras existentes entre a pessoa supostamente titular do direito material e o Judiciário, a dificuldade imposta pela falta de conhecimento de como ajuizar uma demanda, é destacada por Cappelletti e Garth:
“Na medida em que o conhecimento daquilo que está disponível constitui pré-requisito da solução do problema da necessidade jurídica não atendida, é preciso fazer muito mais para aumentar o grau de conhecimento do público a respeito dos meios disponíveis e de como utilizá-los”.[2]
Nesse sentido, os Juizados Especiais, baseados em princípios instrumentais e econômicos como a oralidade, a simplicidade de procedimentos, da produção de prova, a concentração de atos, e a capacidade postulatória independente de representação por advogado, consagram a essência de um movimento de massa de acesso ao Judiciário.
A inegável importância da conquista do acesso à justiça, ou ao menos a parcela dessa justiça, simbolizada pelo crescimento do ajuizamento de demandas nos Juizados Especiais, pelo grande espaço midiático dedicado à difusão dos direitos, a corrida dos cidadãos ao Judiciário, oculta, contudo, a realidade tênue da pequena efetividade dessa tutela nas lides previdenciárias.
Ainda que as causas de menor valor e complexidade na esfera Federal abranjam demandas de restituição de indébito tributário, relações de consumo, planos econômicos, dentre outras, grande parte das demandas propostas nos Juizados Especiais Federais trata de benefício previdenciário por incapacidade, categoria na qual se encontram o auxílio-doença, a aposentadoria por invalidez e o auxílio-acidente.[3]
Uma peculiaridade dessas demandas reside na relação entre o pedido e a causa de pedir, nos verdadeiros limites da demanda, na aplicação do princípio da congruência.
A diferença entre o pedido e a causa de pedir, é explicada na lição de Ovídio Baptista da Silva “Cada demanda, portanto, terá as suas ‘questões litigiosas’, e o conjunto delas formará o que se denomina causa petendi, ou causa de pedir, que, juntamente com o pedido, irá defini-la. A demanda deve ser identificada pelo respectivo pedido formulado pelo autor e também pelos ‘fatos e fundamentos jurídicos’ que qualificam e substanciam o pedido (art. 282, III, CPC). O conjunto dos fatos relevantes e dos fundamentos jurídicos constituem a causa de pedir (causa petendi). O autor – diz Giancarlo Giannozzi (Appunti per un corso de diritto prcessuale civile, p.47)– deve precisar que coisa pretende e por que a pretende”.[4]
Quando o autor vem a juízo requerer o benefício previdenciário por incapacidade, o pedido reside na concessão do benefício, ao passo que a causa de pedir é a incapacidade laboral[5], razão pela qual sua delimitação é de difícil aferição pela falta de conhecimentos técnicos da parte.
A dificuldade na aferição do grau de incapacidade torna necessária a aplicação do princípio da fungibilidade à tutela requerida, pois foge ao autor o conhecimento do tempo em que permanecerá incapaz, a origem da enfermidade, a possibilidade de recuperação, razão pela qual da análise fática da situação, por meio de prova pericial, decorrerá a extensão da tutela.
Importante destacar que ainda que o processo civil tradicional imponha ao autor o ônus de delimitar a demanda por meio do pedido, imposição advinda do princípio da congruência, a delimitação trazida pela tutela jurisdicional, que apreciará no caso concreto a perícia técnica não parece tornar a sentença incongruente. Ao contrário, pois incongruente seria o pedido formulado pela parte incapacitada para o trabalho, sem o conhecimento técnico necessário para aferir a sua situação fática, seu estado de saúde, de forma precisa.
Nesse sentido, alguns autores defendem a fungibilidade das ações previdenciárias por incapacidade, na qual se inclui, além das ações já mencionadas, a que trata de benefício assistencial à pessoa com deficiência incapacitada para o trabalho.
“No que diz respeito à correspondência da decisão judicial aos termos do pedido, a fungibilidade das ações por incapacidade tem encontrado força no princípio juria novit cúria para reconhecer a legitimidade da sentença que concede benefício por incapacidade distinto do que pleiteado pelo autor da demanda, fundada na prova técnica superveniente e outros meios de prova. Quer dizer, a decisão que concede aposentadoria por invalidez quando o autor pleiteou auxílio-doença ou auxílio-acidente não consubstancia sentença ultra petita ou extra petita. Também não violaria o princípio da adstrição da sentença a concessão de auxílio-doença quando pleiteia invalidez na petição inicial e concedido auxílio-doença ou auxílio-acidente. Não encontramos autorização para tal proceder no Código de Processo Civil. Ali, ao contrário, prevê-se que ‘é defeso ao juiz proferir sentença a favor do autor, de natureza diversa da pedida, bem como condenar o réu em quantidade superior ou em objetivo diverso do que lhe foi demandado’(CPC, art. 460). Para uma saída de conveniência, algumas decisões invocam fundamentação no art. 462 do CPC (‘se, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento da lide, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a sentença’). O caso é que o benefício é concedido na sentença ainda que a circunstância identificada no laudo pericial preexistisse ao ajuizamento da ação, de modo que o processo civil clássico é adaptado à força para atender a especificidade de uma demanda previdenciária.”[6]
A mesma peculiaridade que permite essa aplicação da fungibilidade, a dificuldade de aferição do grau de extensão da incapacidade, e o tempo em que a situação permanecerá, acaba por estender seus efeitos para a coisa julgada, criando uma espécie sui generis de coisa julgada, aquela limitada no tempo.
Nesse mesmo sentido a lição de José Antonio Savaris[7] “Em tendo o benefício por incapacidade natureza provisória, ganharia fundamentos de definitividade por força da coisa julgada judicial? Certamente que não. O juiz previdenciário concede o benefício nos termos em que ele é devido por lei, isto é, concede definitivamente um benefício provisório. Formula-se outra hipótese: Em tendo o benefício por incapacidade essa natureza provisória, poderia o INSS, a qualquer tempo, rever unilateralmente a decisão judicial, fazendo cessar o benefício por incapacidade, caso identifique a recuperação da capacidade – procedimento que chegou a ser alcunhado de ‘rescisória administrativa’?”.
Interessante notar que a razão de existir da coisa julgada é a sua própria definitividade, que assegura a pacificação social e o princípio da segurança jurídica incorporado à atuação do Estado-juiz.
Na doutrina de Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart[8] “A coisa julgada é fenômeno típico e exclusivo da atividade jurisdicional. Somente a função jurisdicional é que pode conduzir a uma declaração que se torne efetivamente imutável ou indiscutível, sobrevindo mesmo à sucessão de leis (art. 5º, XXXVI, da CF). Através do fenômeno da coisa julgada, torna-se indiscutível –seja no mesmo processo, seja em processos subseqüentes – a decisão proferida pelo órgão jurisdicional, que passa a ser, para a situação específica, a ‘lei do caso concreto’”.
Nesse momento, devem ser analisadas duas idéias do filósofo alemão Niklas Luhmann. Inicialmente, defende que a diferença entre a atividade legislativa e a atividade judicial não reside propriamente na abstração do processo legislativo, tampouco na suposta concretude da decisão judicial, que aplicaria a lei ao caso concreto[9].
A pertinência dessa discussão estende seus efeitos para a questão da coisa julgada, pois ao entendermos que a atividade judicial não necessariamente aplica a lei para o caso concreto, mas abstrativiza essa aplicação para um sem número de casos concretos, aproximaremos a atividade judicial da legislativa, tornando não necessariamente imutável essa decisão em abstrato proferida pelo Estado-juiz.
“(…) O juiz compromete-se com suas decisões mas o legislador não. Se esse compromisso assume a forma jurídica ou resulta da compreensão do papel do juiz é secundário, da mesma forma que a questão se o autocomprometimento de um juiz amplia-se ou não aos outros juízes através do ordenamento jurídico. O decisivo é que o juiz se vê confrontado com situações repetidas, tendo que decidir de forma repitidamente igual quando se apresentam premissas idênticas. O juiz submete-se ao princípio da igualdade de forma diferente que o legislador: ele não só tem que tratar igualmente as mesmas condições, mas também decidir da mesma forma os casos iguais. Com cada decisão ele se ata a casos futuros, e ele só pode criar um direito novo na medida em que reconheça e trate novos casos constituindo casos diferentes.”[10]
Explicando melhor a questão, quando o juiz analisa um caso concreto, sua decisão tenderá à abstrativização do concreto, pois em respeito à coerência que notabiliza o princípio da segurança jurídica, transporá a lide individual, ainda que leve ao plano coletivo várias demandas individuais, algo semelhante ao verificado nos direitos individuais homogêneos, pois a complexidade das relações sociais dificilmente permitiria a individualização liberal da demanda, vez que o moderno processo atua na macroesfera do direito coletivo, notadamente indisponível.
A implicação prática da discussão do tema na esfera do direito previdenciário é a própria natureza coletiva da demanda, pois os mecanismos de acesso à justiça, à medida que possibilitam o ingresso na via judicial, massificam e objetivizam essa discussão de benefício por incapacidade por meio da padronização das perícias judiciais, vinculadas diretamente à causa de pedir.
Passemos agora à análise de uma outra lição de Luhmann, segundo a qual a complexidade das relações sociais possibilita ao Estado-juiz, no presente, a escolha de uma dentre várias possibilidades, levando para o futuro uma ausência de escolhas, vez que a escolha já foi feita no passado quando esse era presente.
Assim, quando o juiz utiliza-se da conclusão pericial acerca da incapacidade para conceder ou negar determinada espécie de benefício por incapacidade, escolhe uma dentre inúmeras possibilidades presentes, produzindo a imutabilidade futura dessa escolha por meio da coisa julgada.
A coisa julgada escaparia, assim, da esfera eminentemente jurídica e passaria para a lógica jurídica, vez que a sua institucionalização pelo direito processual é posterior ao raciocínio lógico que reconhece a sua existência dentro da esfera de atuação de um princípio que habita a fronteira entre a política e o direito, a segurança jurídica.
A importância do reconhecimento da lógica na sistematização da coisa julgada reside na possibilidade prática de uma eficácia temporal dependente dos motivos determinantes nas demandas por incapacidade, vez que a possibilidade escolhida pelo magistrado no caso concreto, além de tender à abstrativização, decorre logicamente da análise da questão prejudicial, a causa de pedir, ou seja a questão da incapacidade para o trabalho.
A especialidade temporal da imutabilidade decorreria da fungibilidade dos pedidos, e ainda da própria objetivização das demandas, arcando o legislador com as escolhas políticas de limitar o benefício não pelo tempo, mas sim pela temporalidade da incapacidade.
Explicando melhor, a precariedade do benefício não decorre do tempo, mas sim da limitação para o trabalho, esta sim podendo ser temporária ou permanente, o que altera o foco da discussão sobre a eficácia temporal da coisa julgada determinada pela manutenção da causa de pedir.
Nesse sentido, a coisa julgada não teria uma limitação temporal, mas objetiva, pois ficaria condicionada à manutenção de uma relação fática, a causa de pedir, havendo na prática um efeito de prolongamento temporal dos motivos determinantes da decisão.
A decorrência lógica entre a situação fática e o pedido impõe a eficácia da sentença enquanto perdurar a incapacidade, e não a sua imutabilidade, pois a temporalidade da situação fática estenderia seus efeitos para uma “possibilidade” lógica de alteração do dispositivo que transitou em julgado, assim como permitiria a imutabilidade desse dispositivo, se persistisse imutável a situação.
Importante destacar que a tutela jurisdicional manterá a sua intangibilidade nos casos de concessão de benefício, enquanto não houver a aferição técnica, ainda que na via administrativa, da cessação da incapacidade.
Assim, a coisa julgada estaria limitada pela manutenção da situação fática, o que traria dois efeitos importantes: a coisa julgada persiste no tempo enquanto durar a incapacidade ou a capacidade para o trabalho; a alteração da situação clínica da parte permitiria a cessação do benefício, após a comprovação por perícia técnica na própria esfera administrativa[11], assim como permitiria o ajuizamento de nova demanda sem que ocorresse litispendência.
Não seria o caso de afirmar que não existe coisa julgada na lide previdenciária por incapacidade, mas sim de reconhecer a possibilidade de sua limitação não pelo tempo, mas ao longo do tempo pela modificação da causa de pedir, algo totalmente impensado para a escola clássica processual, mas que resguardaria a segurança jurídica, princípio norteador do instituto da coisa julgada.
Assim, as imutáveis instituições processuais assistem a uma fase em que conceitos caros ao direito ganham novos significados, fruto da necessária aproximação entre um direito material muito mais complexo, e a necessidade de um processo mais dinâmico e instrumental, que entenda a relação entre o tempo e o direito, entre o direito de ontem e de hoje, entre o que as partes esperam do Judiciário, e o que este tem a oferecer quando proporciona àquelas o acesso às suas portas, ou por através delas.
Ficam para a reflexão mais algumas palavras de Luhmann “Com essa abertura para um futuro supercomplexo e com o aumento da seletividade da experiência e da ação respectivamente atuais, modifica-se o caráter presente do direito, a experiência jurídica atual. Enquanto preparação para o futuro, enquanto passado ainda disponível de um futuro que se deseja, o presente se submete a um direito que ainda não é seu. Ele precisa abrigar significados que não convencem imediatamente, que não são auto-evidentes. Ele precisa sustentar normas que permanecem indeterminadas ou que, quando determinadas, têm que ser concebidas como passíveis de futura reinterpretação.”[12]
Informações Sobre o Autor
Frederico Poles Borgonovi
Analista Judiciário da Justiça Federal em São Paulo, especialista em Direito Processual Civil pela Unisul/IBDP/LFG, bacharel em Direito pela PUC-SP, autor de artigos publicados nas áreas de Direito Constitucional, Direito Processual, Ciência Política e Biodireito.