Agentes políticos eletivos e direitos sociais

Resumo: Propõe-se averiguar a possibilidade de agentes políticos eletivos auferir direitos sociais inerentes a trabalhadores, à luz do seu caráter histórico e das cláusulas constitucionais de regência.


Palavras-chave: Constitucionalidade. Agentes eletivos. Direitos sociais.


Abstract: One considers to inquire the possibility of agents elective politicians to gain inherent social rights the workers, to the light of its historical character and the constitutional clauses of regency.


Keywords: Constitutionality. Elective agents. Social rights.


Sumário: 1. Introdução. 2. Fundamento histórico dos Direitos Sociais. 3. Agentes políticos eletivos e agentes políticos não eletivos. Distinção essencial quanto ao regime jurídico a orientar tratamento constitucional diverso. 4. Conclusão.


1. Introdução


Conquanto ainda grasse celeuma quanto à natureza do fundamento dos direitos sociais, pensamos não haver possibilidade de ter ele caráter natural. Ao revés, sua dimensão histórica pode ser percebida pela própria evolução da humanidade, notadamente quanto à luta de classes, assim como pela desigualdade que o sistema social, notadamente o liberalismo, engendra. Daí que essa perspectiva histórica de seu fundamento, mais do que uma opção teórica, é uma exigência para a minimização daquela desigualdade. Por consequência, somos do sentir que o âmbito de aplicação dos direitos sociais deve ser paulatinamente alargado, concomitantemente com o andar vago da história e enquanto aquela luta estiver presente.


Não obstante, é induvidoso que a Constituição da República de 1988 – que não deixou de observar o   aspecto histórico desses direitos – previu, ao longo do seu texto, formas distintas de pessoas físicas ou jurídicas estabelecerem uma relação com a Administração Pública.


De efeito, no capítulo da Administração Pública, o texto constitucional previu espécies de cargos distintas, cujos regimes jurídicos se diferenciam, em regra, pela forma de provimento, assim os cargos de provimento em comissão e de provimento efetivo. Ademais, acolheu maneiras outras de estabelecimento desse vínculo, como as contratações temporárias, o emprego público, o mandato eletivo.


Cada qual se traduz em maneiras totalmente distintas de ligação com a Administração Pública.


Dessa forma, podemos afirmar que cada espécie de vínculo que se estabeleça com a Administração Pública possuirá uma natureza própria, ensejando, por corolário, um regime constitucional próprio.


É verdade que os regimes jurídicos, não obstante distintos na essência, podem ter toques de convergência. No entanto, essas convergências, por constituírem exceções, devem ser expressamente previstas na Constituição, pois que, não sendo assim, não haveria necessidade de diferenciação, transformando a Constituição em um conjunto de letras inúteis, malferindo princípios básicos de hermenêutica jurídica.


Nessa linha de raciocínio, tentaremos demonstrar neste ensaio a impossibilidade jurídico-constitucional de se conferir direitos sociais inerentes aos trabalhadores a agentes políticos eletivos, ou seja, aos membros dos Poderes Legislativos e Executivos, de quaisquer entidades federadas, que detém com o Poder Público tão-somente uma relação de representação popular, de caráter político, a qual não lhes confere o exercício daqueles direitos, em razão da sua gênese.


2. O fundamento histórico dos direitos sociais


Em determinados momentos, ao longo da vida dos institutos jurídicos, perde-se a perspectiva de suas razões históricas, a qual deu ensejo ao seu aparecimento. A ocorrência desse fenômeno do esquecimento, não raras vezes, faz com que os institutos se desnaturem, servindo como postulado de teorias invariavelmente afastadas do desenvolvimento histórico, e, consequentemente, ideologicamente “neutras”, como, v. g., a mudança ocorrida com a expressão dia do trabalhador, a qual atualmente é escrita e falada como dia do trabalho. Como se pode perceber, uma simples letra pode fazer toda diferença se não se tem em mente a respectiva origem histórica.


Não obstante, o resgate dessa perspectiva pode ser rica em meio ao debate sobre seus efetivos limites e suas reais limitações.


Dessa forma, entendemos imperioso buscar os motivos históricos da aparição dos direitos que se tornaram fundamentais, especificamente para este ensaio, os de caráter social. Assim, pensamos ser mais adequado precisar seu fundamento, sua origem e, principalmente, seus destinatários. É o que tentaremos fazer.


Da grande dificuldade de se precisar o momento da aparição de determinado sistema político-econômico, extrai-se dados aproximados para que não se perca o evoluir histórico e para que se possa ter um marco temporal da mudança de paradigma.


Com efeito, poder-se-ia dizer que o sistema econômico capitalista – que Ripert (2002, p. 27) denomina regime capitalista – teve seu marco inaugural na França, com a Revolução de 1789, conquanto possua um passado mais distante, isto é, desde o momento em que o homem acumulou bens que serviam à produção. (RIPERT, 2002, p. 27) Tem-se, pois, inaugurada, como marco temporal, no final do século XVIII, a era da primazia do interesse individual – plasmado no princípio da autonomia da vontade e da liberdade contratual – sobrepondo-se ao interesse público, resultado direto da atrofia do Estado – titular deste interesse – em benefício do indivíduo como centro de toda liberdade e razão até então impensadas.


Em virtude dessa primazia dos interesses individuais, assevera Frias (1941, p. 18), traduzindo as relações sociais então preponderantes, que


“El individualismo liberal enraiza en la filosofía kantiana, en que todo se reduce a dos términos: la libertad, objeto proprio del derecho y la razón su creadora. Concibe al hombre como un fin en sí, libre respecto de los otros, pero convertido en su proprio esclavo; autor de la ley y servidor de la misma, legislador y juez, soberano y súbdito en la república de los seres razonables y libres. En última síntesis, todo se reduce a la autonomia de la vonluntad humana […].”


Não obstante, mesmo que não se notasse, a Revolução burguesa, a princípio, não se destinava a criar uma nova ordem, porém a destruir a que existia. “Afirmando a liberdade do comércio e da indústria pela lei dos 2-17 de março de 1791, o legislador não entendia declarar apenas um princípio; queria destruir alguma coisa.” (RIPERT, 2002, p. 26)


Daí que, em seus primeiros atos legislativos, suprimiu os agrupamentos obrigatórios e, logo depois, proibiu os grupos livres. “Uma ordem social, forte em seu longo passado, estava destruída pela onipotência da lei.” (RIPERT, 2002, p. 26)


Não obstante tais atitudes legislativas, reconhece Ripert (2002, p. 30) que, inicialmente,


“o que falta ao capitalismo é um conjunto de instituições e regras que permitam reunir e utilizar os capitais, que assegurem ao detentor de capitais a preponderância na vida econômica e mesmo na vida política, que dêem à produção e à repartição das riquezas o primeiro lugar no espírito dos homens.”


A primeira via para a concretização desse desiderato importou em manter o Estado, então constituído, no que se refere a sua função legislativa, acantonado em tarefas meramente coercitivas para a manutenção da segurança da sociedade, o que se traduzia, na verdade, em segurança para a classe que alcançava o poder, isto é, a burguesia. Não por outra razão, adverte o provecto Bobbio (2003, p. 33) que “com a noção restritiva do Estado como órgão do poder coativo […] concorre o conjunto das idéias que acompanharam o nascimento do mundo burguês […]”.


Da mesma forma, Moreira (1987, p. 39) resume o momento liberal clássico: “O crescimento da economia e o maior bem-estar da sociedade assentam no livre empreendimento privado, na autodeterminação individual, na procura da maior vantagem, na defesa do interesse pessoal.” Por isso mesmo, o Estado era dispensável como agente econômico, já que qualquer intervenção estatal mostrar-se-ia inconveniente à luz dessa doutrina, que, ainda nas palavras de Moreira (1987, p. 40-1),


“Por isso mesmo, a economia basta-se a si mesma, dispensando a intervenção de quaisquer factores a ela exteriores, nomeadamente, aquela proveniente do Estado. A livre concorrência exige a liberdade económica face ao Estado. Este é a altera pars política da sociedade. Como dimensão diferente, não se confunde com ela nem nela deve intervir. A função do Estado deve limitar-se à defesa da sociedade das ameaças ou agressões que a visem e ao exercício da polícia sobre as perturbações que intentem pôr em causa a sanidade do corpo social.”


Para lograr o intento de liberdade, dentre as diversas formas que o sistema econômico capitalista, ao longo da histórica, adotou, pari passu com sua vertente política, o liberalismo, a de viés clássico constituiu na atomização dos indivíduos que, acostumados ao sistema grupal familiar feudal, viram-se livres para o exercício de atividades econômicas, sob os ditames da concorrência igualitária, que antes eram realizadas no seio familiar. “A contraposição entre a sociedade e o Estado que alça vôo com o nascimento da sociedade burguesa é a conseqüência natural de uma diferenciação que ocorre nas coisas […]” (BOBBIO, 2003, p. 50-1)


Entretanto, lograda a ordem jurídica burguesa em que se garantia a não intervenção do Estado, na seara econômica, e a atomização do indivíduo, no âmbito social, princípios consubstanciados em quase todas as constituições liberais da época, não necessitaram de largo espaço de tempo para que se mostrassem débeis os seus respectivos sistemas econômico e político no exercício de seus próprios fundamentos.


É que a liberdade de comércio e indústria – dogma inafastável do sistema econômico então imperante –, por si só, fez ruir a base, imaginariamente sólida, do sistema, surgindo, em pouco tempo, a necessidade de intervenção de um terceiro ator, antes afastado do campo econômico por constituir-se em ameaça àquela liberdade.


Com efeito, a necessidade de intervenção do Estado no domínio econômico, sob a vertente cronológica, tem como fato político marcante a Primeira Grande Guerra – primeira crise cíclica das muitas que o capitalismo engendra –, isto é, no momento da constatação de ineficácia do modelo liberal clássico, de Estado absenteísta, cuja teoria baseava-se na auto-regulamentação da economia por intermédio da mão invisível e dos princípios da liberdade de empresa e livre concorrência. Em outras palavras, a necessidade de intervenção do Estado no domínio econômico surge quando o liberalismo – como versão jurídico-política do sistema econômico capitalista – torna-se insuficiente para dar sustentáculo à forma de sistema até então adotada, qual seja, o primeiro capitalismo.


Não obstante esse marco histórico, mister anotar que a crise dos fundamentos do individualismo pôde ser sentida desde os tempos da eclosão da Revolução Francesa até os nossos dias (FRIAS, 1941, p. 22-3), sendo que, principalmente a partir do século XIX, o interesse individual começa gradualmente a ser limitado pelo intervencionismo estatal.


Concomitantemente aos distúrbios econômicos referidos acima, sob o aspecto sociológico, surgem grupos intermediários de expressão, na defesa de interesses distintos daqueles individuais de atomização, ou seja, grupos situados entre o indivíduo e o Estado, que possuíam interesses próprios, bem distintos daqueles de aspectos burgueses, tais como, os sindicatos.


É o ressurgimento, mutatis mutandis, no âmbito social, dos grupos de indivíduos que a Revolução liberal, ao argumento da instauração de um sistema de liberdade, como vimos, atomizou e que, segundo Frias (1941, p. 34), citando Gurvitch, advém do todo social subjacente: El derecho social – según Gurvitch – es un derecho autónomo de comunión, que integra de una manera objetiva cada totalidad activa real, (y) que encarna un valor positivo extra-temporal.


Assim, em um real movimento de fluxo e influxo, as comunidades (isto é, os grupos sociais) realizam seus interesses, mesmo que à revelia do Estado legislador. (FRIAS, 1941, p. 35)


Em consequência da necessidade de correção dos distúrbios econômicos sentidos e do surgimento de grupos sociais que reivindicam melhores condições de vida – dentre estas, precipuamente, melhores condições de trabalho –, instaurar-se-á um direito estatal fulcrado nos movimentos sociais subjacentes, é dizer, nos movimentos dos grupos sociais que, como fenômenos sociais, estão alheios, até então, ao direito legislado do Estado. Ou, como anota Frias (1941, p. 35),


“el derecho social se dirige, en su capa organizada, a sujetos jurídicos específicos – personas colectivas complejas – tan diferentes de los sujetos individuales aislados como de las personas morales – unidades simples – que absorben la multiplicidad de sus miembros en la voluntad única de la cooperación o del establecimiento.”


Surge, assim, a figura do Estado econômico, isto é, aquele que “deixou de funcionar apenas no quadro do político, para exercer a maior parte da sua actividade no quadro do económico, como figura econômica […].” (MOREIRA, 1987, p. 52)


Com efeito, já no limiar do século XX, com a Primeira Grande Guerra, procedeu-se a certa ruptura com a ideia de liberdade quase total – em razão da desigualdade inevitável que o sistema liberal criava entre as classes sociais – com a profunda ingerência do Estado legislador na proteção dos vulneráveis, devendo-se evidenciar que parte da doutrina chega até se referir ao século XX como “o século dos direitos sociais.” (SAMPAIO, 2004, p. 227) Vislumbra-se, aqui, uma evidente preocupação da inércia estatal de outrora que, em parte, ensejou as desigualdades atualmente experimentadas. Inaugura-se, em determinados aspectos, a preponderância do interesse público sobre o interesse individual.


Isso porque, como anota García-Pelayo (1984, p. 203),


“en efecto, la experiencia histórica ha mostrado que no es el Estado el único que oprime el desarrollo de la personalidad; que no es la única entidad que impone relaciones coactivas de convivencia, y que las mismas libertades liberales están condicionadas, en su realización, a situaciones y poderes extraestatales. Tales poderes pueden ser de índole muy diversa […] pero de un modo general y común destacan los poderes económicos.”


E conclui (GARCÍA-PELAYO, 1984, p. 203):


“Son de estos poderes, o, por mejor decir, de las presiones económicas de estos poderes, de los que interesa en primer término liberarse a los grupos a que estamos aludiendo, pues son a éstos, y no al Estado, a los que sienten como obstáculo inmediato para el desarrollo de su personalidad.”


O que, consequentemente, resvalaria, no dizer de Silva (2001, p. 136), na evolução do Estado, apresentando-se este, destarte, “[…] justamente como meio apropriado para realizar a libertação dessas pressões, o que, naturalmente, supõe a ampliação de sua atividade e a intervenção na vida econômico-social que permanecia à sua margem.” Deve-se notar, portanto, que a intervenção do Estado no domínio econômico não teve por objetivo tão-somente a regulação da economia, senão que também a determinação positiva de direitos cujo fim era reter a liberdade que a mão invisível engendrava.


Em resumo, a separação existente inicialmente entre Estado e economia cedeu progressivamente lugar à imbricação dos fenômenos, num processo de politização do econômico. Ao princípio liberal do primeiro capitalismo e à efetiva e quase completa abstenção econômica do Estado, sucede o intervencionismo, seguido de ampla atividade do Estado nos campos econômico e social. “Do Estado-guarda-nocturno, abstencionista e ‘negativo’ passa-se ao Estado afirmativo ou positivo.” (MOREIRA, 1987, p. 52)


A necessidade de intervenção estatal cada vez maior na economia resvalava nos aspectos político e jurídico, como não poderia deixar de ser. Daí que, inicialmente, fez-se mister o Estado lançar mão de instrumentos do modelo jurídico liberal, à míngua de outros mais adequados aos fins econômicos e sociais que então se propunha realizar. Em razão de tal fenômeno, afirma Moreira (1987, p. 66) que a ordem jurídica econômica, isto é, aquela que regulava a economia, espraiou-se para a ordem jurídica da sociedade civil, fazendo-se preponderante até o início do século XX. Em outros termos: a ordem jurídica burguesa expandiu-se para a sociedade civil, a ponto de a primeira englobar a segunda, traduzindo-se em ordem jurídica de toda a sociedade, independentemente da classe social de que se tratava, fenômeno que foi sentido até a primeira crise do capitalismo de então.


Não obstante, mesmo utilizando instrumentos jurídicos cuja origem estava no direito burguês, a crescente intervenção do Estado na economia, corrigindo desvios que o mercado encetava e pressionado pelos grupos sociais existentes, ensejou o dirigismo estatal, o qual, dentre outros fenômenos, fomentou, principalmente, a transformação dos institutos jurídicos que constituíam dogmas liberais. Daí as certeiras palavras de Moreira (1987, p. 50) quando adverte:


“Reconhecida definitivamente a incapacidade da economia para se regular a si mesma, em absorver ou neutralizar os conflitos que a dilaceram, em corresponder às exigências que lhe são feitas por uma sociedade que reclama o aproveitamento integral das suas potencialidades, reconhecida essa situação, é sobre o Estado que vem impender a execução de papéis que até lhe estavam defesos. É o Estado que vem reclamar-se de principal responsável pelo curso da economia, instituindo todo um quadro institucional em que ele se move, controlando-o, dirigindo-o ou dedicando-se directamente à produção económica. Para a execução dessas tarefas o Estado utiliza os instrumentos clássicos, adaptados aos novos fins (política fiscal, monetária), faz-se polícia da actividade económica (proibindo e condicionando actividades, fixando preços, etc.), transforma-se em produtor e, finalmente, em administrador e planificador da economia nacional.”


Isso porque, em primeiro lugar, a concentração incomensurável das empresas afastou do mercado, bem como do ordenamento jurídico (já que este é condicionado por aquele), a figura da propriedade individual sobre a empresa, em razão da crescente necessidade de capital. Em segundo lugar, a concorrência – princípio cardeal do primeiro capitalismo – foi violentada com o surgimento de cartéis e trust, surgindo os preços tabelados e o mercado dominado como remédios a tais mazelas. “Um sector importante do processo económico deixa de estar à disposição da vontade dos contraentes. É o fim do free market bargaining.” (MOREIRA, 1987, p. 70)


No intuito de remediar tais desvios econômicos – que também produziam efeitos em outras áreas, notadamente a social, a política e a jurídica –, o campo do direito espraiou-se a domínios econômicos e sociais, a searas inimagináveis na forma do primeiro capitalismo, quando aquele se acantonava no perfil de Estado policial.


Fulcra-se, portanto, esse novo perfil estatal no fato simples de que a ordem jurídica da economia tem assento nas relações de produção que, por seu turno, são atividades de produção e prestação de serviços que não se constituem em atividades aleatórias, mas, a partir de então, em atividades reguladas e, portanto, dirigidas, pelo direito. (MOREIRA, 1987, p. 61)


Entretanto, essa mesma ordem jurídica refletia, apesar disso e como não poderia deixar de ser, a ordem jurídica da burguesia, “que ‘pressupunha a identificação da sociedade económica burguesa com toda a nação’. Do mesmo modo, a ordem jurídica privada pressupunha a identificação da ordem jurídica das relações económicas burguesas com toda a ordem jurídica.” (MOREIRA, 1987, p. 66-7)


Destarte, com a modificação da forma do sistema capitalista, ocorre a necessidade de divisar o direito não mais como o direito da burguesia, mas, sim, como direito estatal, no qual sobreleva a supremacia do público sobre o privado, sem que com isso se tenha modificado o sistema de produção e, portanto, tenha havido mutação nesse sistema, que continua sendo o sistema econômico burguês. É que, em virtude das dificuldades apresentadas pelo capitalismo liberal, duas correntes do pensamento jurídico ofertaram as respectivas soluções, como anota Sampaio (2004, p. 218): uma, de caráter revisionista, que defende


“mudanças no sistema parlamentar representativo, especialmente por meio da universalização do voto […] bem como postulava uma atuação mais efetiva do Estado, tanto para gerar oportunidades de igualação social, por meio de políticas públicas de educação, de assistência e organização de estruturas especializadas na defesa dos trabalhadores, a exemplo da institucionalização da liberdade de associação sindical, quanto para proteger o próprio mercado […]”


A segunda, de feição radical e revolucionária, desejava a mudança não na forma do sistema econômico, mas no próprio sistema, com a


“substituição do modo de produção capitalista, essencialmente geradora de crise e de injustiça social, mediante a extinção da propriedade privada, a socialização dos meios de produção e a sua gestão pela nova classe revolucionária: o proletariado.” (SAMPAIO, 2004, p. 219)


Como se pode notar, a primeira corrente de pensamento avultou-se no Ocidente, onde, sem que abrissem mão do sistema econômico capitalista, os Estados tomaram a si o ônus de corrigir os desvios detectados na economia do laissez-faire e prever melhorias nas condições de vida das demais classes sociais. Em razão de tais circunstâncias, ainda afirma Moreira (1987, p. 75), fomentou um quarto fenômeno, sob o ângulo jurídico. Com efeito,


“[…] constata-se um quarto fenómeno: a transplantação do centro de gravidade da ordem jurídica da economia: do direito privado para o direito público. Na medida em que a economia era juridicamente relevante, era-o do direito privado. Ao que se assiste, a partir de certo momento, é ao deslocamento de domínios económicos que anteriormente relevavam do direito privado para o direito público, ou a complementarização de institutos daquele por institutos deste. Por outro lado, a cobertura pelo direito de domínios até aí ajurídicos ou ‘livre do direito’ faz-se predominantemente por meio do direito público.”


Tal preponderância do público sobre o privado irá levar o Estado a uma legislação de caráter socializante, é dizer, a uma preocupação cada vez mais profunda com o aspecto social do direito e da sociedade, surgindo, consequentemente, a socialização do jurismo. Isso não importa dizer que o Estado absorveu a sociedade civil (entendida aqui como sociedade burguesa), pois que tal efeito redundaria no Estado totalitário (seja de feição fascista, seja de aspecto comunista), nem que no primeiro capitalismo – como já anotamos – este fora absorvido por aquela, o que significaria uma sociedade sem Estado. (BOBBIO, 2003, p. 51)


Não obstante, a preponderância estatal é sentida em vários ramos do direito privado, mormente no que toca aos vulneráveis, v. g., trabalhadores, locatários, consumidores, idosos e outros, cujas relações jurídicas, hodiernamente, já perderam o princípio fulcral de sua existência, qual seja, a absoluta autonomia da vontade nos contratos, à semelhança do que ocorre, v. g., com as relações contratuais trabalhistas, locatícias, consumeristas, dentre outras, para se tornarem preocupação do Estado e terem tratamento legislativo consentâneo com as diferenças econômicas e sociais existentes entre os envolvidos.


A despeito do giro copérnico que atingiu o jurismo, especialmente o direito privado, tal fenômeno alcançará também a ciência política, como não poderia deixar de ser, notadamente as vicissitudes pelas quais o sistema democrático de governo passará ao longo desses anos. Como afirma Bobbio (1994, p. 31-2), em sua obra específica sobre o tema, intitulada Liberalismo e Democracia,


“O que se considera que foi alterado na passagem da democracia dos antigos à democracia dos modernos, ao menos no julgamento dos que vêem como útil tal contraposição, não é o titular do poder político, que é sempre a ‘povo’, entendido como o conjunto dos cidadãos a que cabe em última instância o direito de tomar as decisões coletivas, mas o modo (mais ou menos amplo) de exercer esse direito: nos mesmos anos em que, através das Declarações dos Direitos, nasce o Estado constitucional moderno, os autores do Federalista contrapõem a democracia direta dos antigos e das cidades medievais à democracia representativa, que é o único governo popular possível num grande Estado.”


Outro corolário será o de atingir, também, o direito público (em quantidade e qualidade), mormente o Direito Constitucional, e, como direcionador de todo ordenamento jurídico, esse ramo do jurismo influenciará quase todas as Cartas redigidas a partir de então no mundo Ocidental.


Com efeito, avulta de importância, neste momento, o surgimento da teoria da Constituição, especificamente o seu “bloco” econômico como forma de inserção, no corpo constitucional, de direcionamentos econômicos e sociais vinculativos a todas as funções do Estado, apontados pelo titular do Poder Constituinte Originário, que, nessa fase do desenvolvimento teórico constitucional, consubstanciava-se no povo como destinatário de prestações civilizatórias do Estado, mesmo que, ainda, de caráter embrionário. (MÜLLER, 2003, p.76)


Assim, nas palavras de Moreira (1987, p. 103), por bloco econômico da constituição entende-se “o conjunto das normas fundamentais, os princípios constituintes da ordem económica; isto é: que a estruturam num todo, num sistema.” Em outras palavras, as normas fundamentais econômicas são aquelas que a economia diz que o são, institutos que exprimem juridicamente o sistema econômico adotado, ou seja, modo de produção, modo de distribuição do poder econômico e do produto social, ordenação da coordenação da atividade econômica, etc. (MOREIRA, 1987, p. 104)


A inserção, portanto, de institutos de natureza econômica em dispositivos constitucionais, principalmente no período posterior à Primeira Grande Guerra, como necessidade de mudança na forma do sistema capitalista do século XVIII e XIX, cria direitos antes impensados no âmbito constitucional. Daí surgem as constituições amplas, analíticas, fruto dos constitucionalismos moderno e contemporâneo, cuja principal característica está na vinculação do legislador ao seu discurso – e acrescentamos, do julgador constitucional – que não se restringe à mera organização do Estado e a previsão de determinados direitos de caráter burguês, evoluindo para a caracterização de direitos de viés social, cultural e econômico.


Em uníssono pensamento doutrinário, tem-se como exemplo marcante de constituição com preocupação econômica revisionista a de Weimar, de 1919, precedida em dois anos pela mexicana, ambas de caráter socializante, em face da urgência da melhoria das condições de vida dos indivíduos pertencentes àqueles grupos sociais vulneráveis referidos, assim como no direcionamento da economia pelo Estado, fatores que se tornam suas principais características. Não obstante, forçoso referir, no que interessa a este estudo, que tal caráter foi sentido mais enfaticamente no que concerne à organização da economia, que a partir desse momento, deixará de se auto-regular e será direcionada e dirigida pelo Estado, no afã de corrigir os desvios econômicos surgidos pelo liberalismo clássico, assim como de satisfazer às reivindicações dos grupos sociais de pressão. Para conjugar tais fenômenos e resolver os problemas encetados, as Constituições mexicanas e weimarista, como de resto todas as constituições que adotaram a corrente revisionista, deram ensejo a um Estado prestacionista, de forte caráter interventor, um Estado Social. Daí afirmar Sampaio (2004, p. 223):


“Em ambas as Constituições, os direitos econômicos eram definidos a partir de garantias institucionais e das tarefas atribuídas ao Estado […]. E Weimar, afirmava-se que ‘o regime da vida econômica deve responder a princípios de justiça, com vistas a assegurar a todos uma existência digna’. Dentro desse limite era que se reconhecia ao indivíduo a liberdade econômica (art. 151). Para tanto, o Estado devia planejar, conduzir, coordenar e orientar atividade econômica nacional” (México – art. 25.2).


No entre-guerras, a vertente revisionista (social-democrata) angariou adeptos por todo o mundo, a despeito dos movimentos nazi-fascistas terem retardado a adoção do modelo weimariano e ensejado um retrocesso significativo dos avanços auferidos. Daí por que assevera Sampaio (2004, p. 223): “A Alemanha e Itália ensinavam ao mundo como se fazia política econômica supostamente redistributiva com governo totalitário.” Por seu turno, a Polônia adotou modelo constitucional próprio, seguido de perto pelo Brasil, com a Constituição de 1937, que fora apelidada, não por acaso, de polaca. “Sufragara-se uma ‘ditadura constitucional’”.


Pari passu aos retrocessos localizados, os Estado Unidos da América do Norte, por seu turno, enfrentavam grave crise sócio-econômica “com uma política de gastos públicos, de investimento social e de desvalorização da moeda perante o ouro, seguindo o receituário intervencionista e de pleno emprego prescrito por John M. Keynes […]” (SAMPAIO, 2004, p. 224)


No que se refere, ainda, aos Estados Unidos, importa evidenciar que o constitucionalismo social fora realizado por meio de lei, sem que houvesse modificação formal no texto constitucional de 1787, de nítido caráter liberal. Deve-se isso à interpretação construtivista da Suprema Corte americana que, se num primeiro momento entendeu ser o New Deal inconstitucional, cedeu, posteriormente, para afirmar sua compatibilidade com a Constituição, diante das pressões exercidas pelo Poder Executivo no sentido de aumentar o seu número de juízes e limitar sua competência, dentre outras iniciativas. A mudança operada na mentalidade da Suprema Corte americana – em decorrência, obviamente, dos fatores já mencionados – foi retratado com precisão por Rodrigues (1992, p. 230) que, citando Edward Corwin, esclarece o fenômeno da intervenção do Estado na economia: “[…] o conceito de liberdade econômica, como ausência de qualquer restrição por parte do Govêrno, foi substituído pelo de liberdade civil, gozada pelo indivíduo em virtude das restrições impostas pelo Govêrno, em seu favor, aos seus concidadãos.”


No que toca bloco econômico das Constituições, forçoso reconhecer que o mesmo ocorre com a Constituição da República de 1988. Assim, o documento fundamental de 1988 traduz-se em uma Constituição Econômica, por inserir cláusulas de cunho econômico que têm por escopo uma revisão da forma do sistema liberal clássico. Em outros dizeres, impõe-se reconhecer que a Constituição de 1988 torna claro seu desiderato de modificar a forma do sistema de produção capitalista encontrado na sociedade. Daí afirmar Grau (2003, p. 63) ser explícita a perseguição da Constituição na transformação da realidade econômica, dado que pode ser extraído da simples leitura do primeiro artigo do título referente à Ordem Econômica e Financeira (art. 170): “A ordem econômica (mundo do ser) deverá estar fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa […]. A ordem econômica liberal é substituída pela ordem econômica intervencionista.” Como bem percebido pelo professor, desenganadamente a atual Constituição brasileira optou pela teoria keynesiana de intervenção do Estado na seara privada, com o fim de modificar a forma de concretização do sistema econômico que acolhe expressamente (art. 170, caput), uma vez que reconhece e assegura a livre iniciativa como fundamento da ordem econômica que estabelece.


Assim, é forçoso reconhecer que a Constituição de 1988, fruto, desenganadamente, do constitucionalismo contemporâneo, tratou de acolher princípios sem os quais nenhum sistema substancialmente democrático se poria de pé. Dessa forma, principalmente depois dos problemas ideológicos trazidos pela Emenda Constitucional n.º 6/95, lícito asseverar que a Constituição Econômica inserida no corpo do diploma constitucional de 1988 dispõe sobre uma ordem econômica progressista que, sem sufocar a iniciativa privada com intervencionismos primários e populistas, sem objetivos claros, prevê princípios consubstanciadores de uma preocupação patente com o vetor interpretativo da dignidade humana. Tal fato, no entanto, não obsta o aspecto intervencionista antes mencionado, que enseja, ademais, o acolhimento, pelo texto constitucional, da social-democracia, como ideologia adotada.


Das análises históricas empreendidas, percebe-se os motivos pelos quais, na evolução econômica do sistema capitalista, cuja característica primordial é a atomização do indivíduo, a intervenção estatal na economia se fez necessária. Aparentemente, seria um paradoxo que o sistema econômico que mais repugna aspectos sociais tenha dado ensejo ao surgimento do dirigismo estatal.


Como se constatou, o capitalismo, como sistema econômico, engendrou, ao longo da história, várias formas ou regimes econômicos, cujas modificações não tiveram por escopo senão a manutenção do próprio sistema como um todo, mesmo que, a princípio, trouxesse prejuízos relevantes a determinados proprietários de meios de produção. Via de consequência, fez surgir a corrente político-jurídica revisionista. Daí que a aparição do Estado no domínio econômico, mediante intervenção, direta ou indireta, não tem outro motivo senão assegurar a sobrevivência do sistema, primeiramente, mesmo que haja necessidade de mutação na sua forma; por segundo, conformar no bloco econômico da constituição as pressões de ordem econômicas, sociais e ideológicas dos grupos ou classes surgidos na sociedade. Como afirma Moreira (1987, p. 94), no que toca às pressões econômicas, “o progresso técnico e o daí emergente nascimento do capitalismo monopolista”; quanto às pressões sociais, “o nascimento do movimento operário e o agravamento dos conflitos de classe”; quanto às de caráter ideológico, “o aparecimento de ideologias negadoras do capitalismo, ou pelo menos do capitalismo liberal.”


Tais fatores forçaram, segundo, ainda, Moreira (1987, p. 99), a primeira modificação na forma do capitalismo enquanto sistema:


“O efeito conjunto dos factores referidos (: económicos, sociais e ideológicos) foi pôr em causa o sistema social (: sistema político) do capitalismo liberal. Isto é: a manutenção do sistema implicou a sua transformação, nomeadamente com a atribuição ao sistema jurídico-político (: Estado e direito) de uma maior papel na regulação do equilíbrio do sistema social.”


Com efeito, as pressões mencionadas impulsionaram uma revisão da doutrina do liberalismo clássico, convergindo para uma gradual ingerência do Estado no domínio econômico, embasado pelos fatores sociais e ideológicos (corrente revisionista). Essa gradual ingerência, por seu turno, direcionou a economia e, consequentemente, o direito para uma socialização – e não para o socialismo, como sistema econômico – afetando algumas estruturas fincadas no primeiro capitalismo, em prol de classes sócio-econômicas outras que não a burguesa.


Surge, a outro giro, a primazia, em razão dos fatores já mencionados, dos interesses sociais, que terão como titulares aqueles grupos sociais cujos integrantes viviam alheios à proteção do Estado na época do liberalismo clássico.


Frise-se, ademais, que a aparição dos interesses sociais – longe de ser a extinção dos demais – configura a emersão dos direitos sociais inorganizados (FRIAS, 1941, p. 37), como tentativa de se estabelecer um direito organizado com fulcro na natural e espontânea cooperação informal dos indivíduos em sociedade.


Importa evidenciar que o surgimento dos direitos sociais – aqueles que concernem às demais classes existentes em uma determinada sociedade, que não a burguesa – deveu-se à necessidade de mutação na forma do sistema econômico capitalista como meio de sobrevivência do próprio sistema, bem como às pressões exercidas por grupos intermediários, existentes entre o Estado e o indivíduo, tais como associações, sindicatos, e outros, e, não, como aparentemente se possa induzir, em virtude de preocupações e interesses da classe vitoriosa em 1789 com aquelas outras.


Daí afirmar Bobbio (2004, p. 38-9) o caráter histórico, e não natural, dos direitos sociais:


“[…] os direitos do homem constituem uma classe variável, como a história destes últimos séculos demonstra suficientemente. O elenco dos direitos do homem se modificou, e continua a se modificar, com a mudança das condições históricas, ou seja, dos carecimentos e dos interesses, das classes no poder, dos meios disponíveis para a realização dos mesmos, das transformações técnicas, etc. Direitos que foram declarados absolutos no final do século XVIII, como a propriedade sacre et inviolable, foram submetidos a radicais limitações nas declarações contemporâneas; direitos que as declarações do século XVIII nem sequer mencionavam, como os direitos sociais, são agora proclamados com grande ostentação nas recentes declarações. Não é difícil prever que, no futuro, poderão emergir novas pretensões que no momento nem sequer podemos imaginar, como o direito a não portar armas contra a própria vontade, ou o direito de respeitar a vida também dos animais e não só dos homens. O que prova que não existem direitos fundamentais por natureza. O que parece fundamental numa época histórica e numa determinada civilização não é fundamental em outras épocas e em outras culturas.


Não se concebe como seja possível atribuir um fundamento absoluto a direitos historicamente relativos. De resto, não há por que ter medo do relativismo. A constatada pluralidade das concepções religiosas e morais é um fato histórico, também ele sujeito a modificação. O relativismo que deriva dessa pluralidade é também relativo. E, além do mais, é precisamente esse relativismo o mais forte argumento em favor de alguns direitos do homem, dos mais celebrados, como a liberdade de religião e, em geral, a liberdade de pensamento.” (Grifo nosso e do autor)


Não tendo, portanto, fundamento absoluto (natural), os direitos do homem, notadamente os de caráter social, restringir-se-ão àquilo que previsto em texto normativo dotado de rigidez e supremacia, tal como as constituições modernas e contemporâneas.


Nessa perspectiva, é imperioso afirmar – quanto ao objeto deste ensaio – que a não concessão de direitos sociais a determinados grupos não se traduz em redução de sua abrangência, e sim, em determinar historicamente quem são os efetivos destinatários desses direitos, os quais, como se demonstrou, não surgiram por benevolência da classe sócio-econômica dominante à classe dominada, senão por reivindicações e lutas realizadas por esta. Daí seu caráter histórico. Mesmo porque interessa, no particular, a sua precisa conceituação, que é ofertada por Silva (1994, p. 258), para quem, direito social:


“[…] como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas estatais, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se conexionam com o direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade”. (Grifo nosso)


É nessa perspectiva que podemos afirmar que a concessão de direitos sociais a agentes políticos eletivos, não previstos expressamente no texto constitucional, malfere toda a arquitetura da Constituição, assim como sua preocupação com o viés histórico desses direitos, à medida que promove, fomenta a desigualdade que não deve existir entre os indivíduos em sociedade. Isso porquanto se, como vimos, os direitos sociais surgem em um panorama de corrigir desvio encetados pelo sistema econômico capitalista, afagar parte da classe burguesa com tais direitos é inverter a pauta de prioridade ofertada pela história, é dizer, é trabalhar para a majoração da desigualdade social existente.


À luz, portanto, da sua evolução histórica, assim como do caráter do seu fundamento, os direitos sociais possuem destinatários certos e determinados, uma vez que, condicionado historicamente, sua essência não suporta que sua titularidade e seu exercício sejam conferidos a membros da classe dominante, por encerrar, às escâncaras, subversão de seu objetivo histórico.


2. Agentes políticos eletivos e agentes políticos não eletivos. Distinção essencial quanto ao regime jurídico a orientar tratamento constitucional diverso


Fruto efetivo da cultura e da história da sociedade brasileira, a atual Constituição da República não escapou ao determinismo histórico que anima a aparição dos direitos sociais, mormente em razão de seu caráter extremamente democrático. Destarte, além de prever em seu texto um rol significativamente extenso de direitos desse caráter, já que não acantonam tão-somente no artigo 6º do texto fundamental, direcionou-os a segmentos sociais específicos, titulares de interesses segmentais (ALMEIDA, 2009, p. 133), que, nos períodos políticos de exceção vividos no Brasil, ficaram à margem do direito legislado do Estado ou foram simplesmente arremessados ao limbo jurídico.


É com esse sentido de resgate, entendemos, deve ser feita a leitura (mais apropriada) dos preceitos constitucionais que informam o regime jurídico dos direitos sociais, como de resto de todos os direitos fundamentais, positivados na Constituição, sob pena de contribuirmos para o aprofundamento do abismo entre as realidades constitucional e social, ainda muito sentido pela população brasileira.


É que, a análise cuidadosa dos dispositivos constitucionais de regência induzirá à mesma conclusão que acima se chegou, qual seja, a proibição da titularidade e do exercício de direitos sociais pelos agentes políticos eletivos, salvo quando a Constituição os concedeu de forma expressa, sem que deixasse margens a dúvidas, por traduzirem-se em exceção à regra.


Com efeito, a mais adequada atitude interpretativa tangencia a distinção essencial, exposta na Constituição, entre agentes políticos eletivos e os não eletivos, para se concluir que, à luz das cláusulas constitucionais de regência, os regimes jurídicos ofertados diferem radicalmente, precipuamente quanto às vantagens conferidas a uns e a outros.


Pois bem. Se não há proveito algum para a sociedade – na democracia representativa – a gratuidade do exercício do mandato eletivo (SANTOS, 2005, p. 303 et seq.), é forçoso reconhecer que não é em razão do pagamento de uma mera contraprestação pecuniária pelo exercício do mandato que os agentes políticos eletivos se transformarão, subitamente, em trabalhadores. De efeito, o exercício das atribuições conferidas constitucionalmente ao detentor de mandato eletivo encerra uma representação popular, própria dos regimes democráticos indiretos/representativos, instituindo-se, por corolário, uma relação de natureza eminentemente político-jurídica com o Poder Público, é dizer, uma relação de representação política dos respectivos segmentos sociais, a qual não se traduz, portanto, em venda da força de trabalho a terceiros, como elemento integrante da produção. Esta, de seu turno, evidencia uma relação jurídico-econômica de trabalho, uma relação profissional.


Destarte, cabe lembrar os ensinamentos de João Barbalho (2002, p. 70) que, ao comentar o artigo 22 da Constituição de 1891, expressou-se, no alvorecer da República, da seguinte forma:


“Durante as sessões. No recesso d’ellas não ha que subsidiar os legisladores, occupados então em seos proprios negocios ou em seos empregos. Nem durante ellas têm elles direito a receber o subsidio si não comparecerem, sendo méro abuso a concessão de licença com direito a essa vantagem. É pelo prejuizo que soffre em seos interesses o representante, d’elles afastado para estar presente à sua camara, que a Constituição lhe dá o subsidio, isto é, como a palavra o diz, auxilio, adjutorio (e não ordenado ou pagamento). E pois, si à sessão não vae, si não comparece nem concorre para o trabalho legislativo, não tem direito a esse auxilio, a menos que esteja em alguma commisão gratuita de serviço das camaras ou por ellas consentido, sem preterição dos deveres parlamentares. A percepção de subsidio sem exercicio no parlamento como que faz degenerar o mandato politico em simples emprego publico; é contraria mesmo à natureza e caracter do mandato ( o procurador não tem direito a ser pago si não trabalha) e não assenta bem com a qualidade e jerarchia de tam altos gestores dos negocios publicos.”


Fixada a natureza de suas atribuições, e, por consequência, do vínculo que se estabelece com o Poder Público, é possível extrair, do escólio doutrinário, a ilação segundo a qual os agentes políticos eletivos deverão ser estipendiados pelo estrito exercício do mandato, já que afastados estarão de seus afazeres e negócios, os quais, sem a menor dúvida, estarão momentaneamente prejudicados.


De efeito, atualmente, a doutrina não possui divergência relevante do quanto ensinado pelo comentarista da Constituição de 1891.


Assim, Diogo de Figueiredo Moreira Neto (1992, p. 195) classifica:


“Denominam-se servidores públicos todos os indivíduos que estão a serviço remunerado de pessoas jurídicas de direito público.


Idéia de extensão mais ampla que a de servidores públicos é a de agentes públicos, que são todos aqueles que, servidores ou não, estão intitulados a agir, manifestando, em alguma parcela, um poder atribuído ao Estado. Neste sentido, incluem-se os agentes políticos, eleitos ou não […].” (Grifo nosso)


Por outro lado, embora parta de um conceito reducionista de agentes políticos, Diogenes Gasparini (2006, p. 156) assevera:


“São os detentores dos cargos da mais elevada hierarquia da organização da Administração Pública ou, em outras palavras, são os que ocupam cargos que compõem sua alta estrutura constitucional. Estão voltados, precipuamente, à formação da vontade superior da Administração Pública ou incumbidos de traçar e imprimir a orientação superior a ser observada pelos órgãos e agentes que lhes devem obediência. Desses agentes são exemplos o Presidentes da República e o Vice, os Governadores e Vices, os Prefeitos e Vices, os Ministros de Estado, os Secretários estaduais e municipais, os Senadores, os Deputados e Vereadores. Não são, como se vê dessa enumeração, pessoas que se ligam à Administração Pública por um vínculo profissional. […] O liame que os prende à Administração Pública é de natureza política e o que os capacita para o desempenho dessas altas funções é a qualidade de cidadãos. […] Não se subsumem, portanto, ao regime de pessoal […]” (Grifo nosso)


Vale ainda transcrever as lições de Celso Antônio Bandeira de Mello (1995, p. 135-7) quanto aos agentes políticos:


Agentes políticos são os titulares dos cargos estruturais à organização política do País, ou seja, ocupantes dos que integram o arcabouço constitucional do Estado, o esquema fundamental do Poder. Daí que se constituem nos formadores da vontade superior do Estado. […]


O vínculo que tais agentes entretêm com o Estado não é de natureza profissional, mas de natureza política. Exercem um munus público”. (Grifo nosso)


À luz dos ensinamentos doutrinários, forçoso concluir que a Constituição estabeleceu distinções quanto à natureza das atribuições, ao vínculo estabelecido com o Poder Público e, consequentemente, quanto ao regime jurídico estabelecido entre os servidores públicos (agentes administrativos) e os agentes políticos, ambos espécies do gênero agentes públicos. E, entre os últimos, há a disparidade constitucional incontornável entre agentes políticos eletivos e agentes políticos não eletivos. Extremando-se os grupos, é certo afirmar que, no primeiro, encontram-se os membros do Poder Executivo e do Poder Legislativo, de todas as entidades federadas; já no segundo, os integrantes do Poder Judiciário, do Ministério Público, do Tribunal de Contas e da Defensoria Pública.


Na realidade, é possível asseverar, sem receio de se cometer qualquer equívoco, que, em virtude da enorme disparidade existente entre os respectivos regimes jurídico-constitucionais, o único toque de interseção passível de observação se consubstancia na forma de remuneração de tais agentes, que, a partir da Emenda Constitucional (EC) n.º 19/1998, passou a ter uma única denominação: subsídio.


Aí, pensamos, radica o desvio de perspectiva operado pelo intérprete menos avisado.


De efeito, em virtude desta EC, e para se conferir nomenclatura única aos estipêndios de determinados agentes públicos, espécies de agentes políticos diversas foram acantonadas em um mesmo preceito, surgindo a celeuma no que concerne à titularidade e ao exercício de direitos sociais, já que se pressupõe que o regime jurídico é idêntico para todos aqueles englobados no § 4º do artigo 39 da Constituição da República, na dicção ofertada por aquela Emenda Constitucional.


Entretanto, com uma leitura mais cuidadosa e profunda é possível perceber que o único objetivo do Constituinte Reformador só poderia ter sido o de criar identidade quanto à remuneração dos agentes políticos ali arrolados, e não igualá-los no que diz respeito aos demais aspectos do tratamento jurídico conferido à cada categoria, pois, se assim o fizesse, a Emenda estaria igualando os desiguais sem que o critério da igualação fosse minimamente razoável, é dizer, a reforma textual malferiria o princípio da igualdade, atraindo para si, por consequência, a pecha da inconstitucionalidade.


Para que não ocorra essa incompatibilidade, imperioso desnudar as distinções inerentes sobre a essência de cada grupo de agentes políticos estipendiado por subsídio, e conferir uma interpretação razoável e sistematizada às cláusulas constitucionais de regência, para assim convergir à assertiva que se tocou acima: a única identidade entre esses agentes políticos é a nomenclatura conferida à contraprestação recebida, qual seja, subsídio. O próprio texto constitucional nos deixa antever a disparidade existente entre agentes políticos eletivos e não eletivos, exceção feita, repise-se, a nomenclatura da contraprestação. O desvio de perspectiva operado por aqueles que entendem que os agentes eletivos possuem direitos sociais somente pelo fato de serem remunerados por subsídio é incomensurável. Analisemos uma hipótese. A Constituição de 1988 faculta à Administração Pública remunerar seus servidores públicos (agentes administrativos) através de subsídio, faculdade autorizada explicitamente no artigo 39, § 8º. Surge, assim, o seguinte questionamento: concretizada esta faculdade constitucional, e passando os servidores públicos a perceber subsídios, estariam estes proibidos de titularizar e exercer os direitos sociais previstos no § 3º do mesmo artigo 39? Parece-nos claro que a resposta é negativa.


Destarte, e em consonância com o que acima afirmamos, a única coincidência entre os regimes jurídicos dos agentes políticos previstos no § 4º do artigo 39 da Constituição concerne ao nome ofertado à respectiva contraprestação. Vejamos.


Os agentes eletivos exercem mandatos, cuja duração é constitucionalmente determinada, e não, cargos públicos. Essencialmente, a periodicidade dos primeiros concerne, a toda vista, ao regime de governo democrático, o qual exige alternância no poder e eleições periódicas. Ademais, ressalte-se ainda que os cargos públicos possuem duração determinável, e não, determinada temporalmente. Os membros dos Poderes políticos, além disso, não são estruturados em carreiras. Por corolário, não obedecem à qualquer hierarquia, nem mesmo daqueles que os elegeram, uma vez que o mandato não vincula a vontade do representante a do representado. Não possuem, da mesma forma, férias (fenômeno reconhecido constitucionalmente é o recesso parlamentar, o que não pode ser confundido com aquele direito social, à medida que não há necessidade de período aquisitivo para usufruir daquele recesso). Por não terem direito à férias, não fazem jus, por óbvio, ao acréscimo de 1/3 constitucional sobre esse benefício, uma vez que este se encontra umbilicalmente ligado ao descanso anual remunerado. Quanto aos chefes dos Poderes Executivos, prevê a Constituição os afastamentos autorizados. No entanto, são aposentáveis pelo regime comum da Previdência Social. Impende anotar, no particular, que a aposentação dos agentes políticos eletivos é a exceção que confirma a regra. Isso porquanto a Constituição da República prevê expressamente tal direito social (CR/88, art. 40, § 13), inclusive com direito de cumular os proventos da aposentadoria com a remuneração de cargo público (CR/88, art. 37, § 10), o que é expressamente vedado aos demais agentes públicos, inclusive aos agentes políticos não eletivos, pelo mesmo inciso constitucional.


De outro lado, no que concerne aos membros dos Poderes Legislativos, notadamente no âmbito da União, a Constituição de 1988 estabeleceu aquilo que doutrinariamente se denomina estatuto dos congressistas (CR/88, art. 53 e ss.). No âmbito dos Estados-membros, do Distrito Federal e dos Municípios, a Constituição estipulou regras que, embora possuam diferenças periféricas, não destoam no essencial, cuja finalidade é a proteção da liberdade do exercício do mandato. (CR/88, art. 25 e ss.; art. 29, VIII e IX) Deflui dessas regras que os membros dos Poderes Legislativos, em maior ou menor medida, possuem uma relativa responsabilidade penal e civil.


O mesmo ocorre quanto aos membros dos Poderes Executivos em todas as esferas de governo (CR/88, art. 76 e ss.; 28 e 29 e ss.).


No que toca particularmente aos membros dos Poderes Legislativos municipais, é forçoso reconhecer uma faculdade constitucional defesa à grande maioria dos agentes públicos, notadamente aos agentes políticos não eletivos. De efeito, podem esses agentes eletivos, cumpridos os requisitos exigidos, cumular a contraprestação recebida em razão do exercício do mandato com a remuneração do cargo público, caso sejam servidores públicos de provimento efetivo (CR/88, art. 38, III). Tal cumulação somente é autorizada constitucionalmente, e por exceção, nas hipóteses previstas no inciso XVI do artigo 37 do texto constitucional.


Como é possível observar, mesmo entre esses agentes eletivos, aspectos pontuais diferem em relação à entidade federada a que pertencem.


A outro giro, se observarmos, porém, as cláusulas constitucionais referentes aos agentes políticos não eletivos, divisaremos que, conquanto sejam remunerados também por subsídio, a identidade de tratamento constitucional para por aí, sendo, de resto, totalmente distinto o regime jurídico a eles afetado.


Destarte, os membros do Poder Judiciário, do Ministério Público, do Tribunal de Contas e da Defensoria Pública possuem cargos onde exercem suas atribuições, as quais devem ser previstas em lei como forma de se assegurar transparência e o controle social do respectivo exercício. À exceção do Tribunal de Contas, são estruturados em carreira, razão pela qual se estabelece hierarquia administrativa, inclusive com a existência de Conselhos Nacionais que detém caráter e poderes administrativos, como é o caso do Judiciário e do Ministério Público. Não obstante, os membros do Tribunal de Contas, no âmbito da União, são equiparados, para efeito de vantagens e aposentação, dentre outros, aos Ministros do Superior Tribunal de Justiça (CR /88, art. 73, § 3º). Possuem todos, ainda, horário regular de expediente.


Porém, o que releva para este estudo e que definitivamente encerra a diferença essencial é que estes agentes políticos não eletivos mantém com o Poder Público uma relação de trabalho, profissional, à medida que vendem sua força de trabalho à símile do que ocorre com os agentes administrativos (servidores públicos). Daí a razão pela qual é-lhes conferidos os direitos sociais descritos no § 3º do artigo 39 da Constituição da República.


Além disso, podemos adicionar a esse rol os Ministros de Estado e os Secretários Estaduais e Municipais, uma vez que, embora apareçam no § 4º do artigo 39 da CR /88, inserem-se na categoria de agentes políticos não eletivos, e, portanto, gozam dos direitos sociais relacionados no § 3º do artigo 39, já que exercem cargo público de provimento em comissão, conquanto tenham forte viés político.


A propósito do assunto em tela, vale colher ainda os ensinamentos de Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2007, p. 496):


“No entanto, embora o dispositivo fale em parcela única, a intenção do legislador fica parcialmente frustrada em decorrência de outros dispositivos da própria Constituição, que não foram atingidos pela emenda. Com efeito, mantém-se, no artigo 39, § 3º, a norma que manda aplicar aos ocupantes de cargo público o disposto no artigo 7º, IV, VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX. Com isto, o servidor que ocupe cargo público (o que exclui os que exercem mandato eletivo e os que ocupam emprego público, já abrangidos pelo artigo 7º) fará jus a: décimo terceiro salário, adicional noturno, salário-família, remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, a 50% à do normal, adicional de férias, licença à gestante, sem prejuízo do emprego e salário, com a duração de centro e vinte dias.” (Grifo nosso)


No mesmo sentido, ensina Uadi Lammêgo Bulos (2007, p. 697):


“O servidor que ocupe cargo ou emprego público – excluídos aqueles que exercem mandato eletivo – fará jus: ao décimo terceiro salário, ao adicional noturno, ao salário-família, ao adicional de férias, à remuneração por serviço extraordinário.” (Grifo nosso)


Com efeito, a expressão “servidores ocupantes de cargo público”, a que se refere o art. 39, § 3°, do texto constitucional, não se aplica aos exercentes dos cargos eletivos, e, por outro lado, não fica também restrita aos agentes administrativos. Isso porque o vínculo que eles (agentes eletivos) possuem com a Administração Pública é meramente político e precário, à medida que exercem mandatos, e não cargos, como os servidores administrativos ou membros do Poder Judiciário, do Ministério Público, do Tribunal de Contas e da Defensoria Pública.


No mesmo sentido são os ensinamentos de José dos Santos Carvalho Filho (2007, p. 512) para quem os agentes políticos eletivos não devem ser confundidos com os agentes organizados em carreira. Sobre os primeiros esclarece:


“[…] caracterizam-se por terem funções de direção e orientação estabelecidas na Constituição e por ser normalmente transitório o exercício de tais funções. Como regra, sua investidura se dá através de eleição, que lhes confere um direito a um mandato, e os mandatos eletivos caracterizam-se pela transitoriedade do exercício das funções, como deflui dos postulados básicos das teorias democrática e republicana. Por outro lado, não se sujeitam às regras comuns aplicáveis aos servidores públicos em geral.” (Grifo nosso)


Mas as discrepâncias constitucionais concernentes aos regimes jurídicos convergem para que, no tocante ao objeto deste ensaio, os agentes políticos eletivos não possam auferir os direitos sociais próprios daqueles que vendem sua força de trabalho e possuem uma relação profissional com Administração Pública. Para que fizessem jus ao exercício desses direitos, a Constituição da República deveria ter sido expressa, uma vez que o seu silêncio, que se mostra eloquente no particular, deve ser lido como uma proibição a priori. Na raiz dessa afirmação está o fundamento histórico, e não natural, dos direitos sociais, como vimos. Assim, a sua previsão em textos de magnitude constitucional deverá ser lida como o resultado de uma reivindicação – não raras vezes através de luta – de segmento social específico, que, em razão de circunstâncias político-econômicas, auferiu aquele direito.


É o que afirmam, sob o prisma histórico, Bastos e Martins (1989, p. 436), os quais nos dão exemplo evidente da evolução desses direitos para determinado segmento social:


“Note-se, entretanto, que ainda antes da atual Constituição esse direito não era extensível a todos os trabalhadores. Colhia, sem exceção, aqueles que fossem tidos como empregados urbanos e rurais.


Como, todavia, a Constituição atual estende os direitos dos trabalhadores, ao menos parcialmente, às certas categorias, temos hoje, inequivocamente, o alargamento dos beneficiados por dita vantagem. Cite-se como exemplo os domésticos, que gozam de uma quase-equiparação com os empregados plenos. A esses também é devida a gratificação natalina.”


Tal evolução não ficou restrita aos empregados domésticos. Houve a necessidade de previsão expressa no texto constitucional para que se procedesse à extensão de alguns direitos sociais aos servidores ocupantes de cargos públicos efetivos (CR/88, art. 39, § 3°). E não poderia ser diferente, à medida que tais direitos eram inexistentes nas Constituições anteriores.


Nessa linha de raciocínio, portanto, afigura-se errôneo equiparar os agentes políticos eletivos, cujo vínculo com o Estado é transitório, aos agentes políticos ocupantes de cargo público, sendo forçoso reconhecer que a Constituição da República estabeleceu regimes jurídicos distintos entre tais agentes, o que enseja a necessidade de que o gozo e o exercício de quaisquer direitos sociais sejam expressamente autorizados pelo texto constitucional.


4. Conclusão


Em compêndio, forçoso reconhecer, primeiramente, que os direitos sociais possuem fundamento histórico, e não natural. Daí ser possível afirmar, sob este prisma, que, não só pelo fato de terem natureza humana, os agentes investidos em mandatos detém a titularidade e o exercício daqueles direitos, pois que o seu fundamento histórico direciona a respectiva fruição a segmentos sociais específicos, destinatários determinados, cujo benefício somente é explicável à luz do desenvolvimento histórico de cada sociedade, em cada país.


De outro lado, a adequada interpretação dos dispositivos constitucionais de regência indicarão a diversidade existente na essência e, por corolário, nos regimes jurídicos, afetos tanto aos agentes políticos eletivos quanto aos não eletivos, sendo imperioso extrair duas conclusões: a) o único ponto de toque entre os regimes jurídicos concerne à univocidade de nomenclatura da respectiva contraprestação, ofertada pela EC n.º 19/1998; b) a fruição de direitos sociais pelos agentes eletivos carecerá, incontornavelmente, de previsão constitucional expressa, como ocorreu com a aposentação, isso em razão da qualidade do vínculo estabelecido com a Administração Pública.


Por corolário, a legislação infraconstitucional, de quaisquer entidades federadas, que estabelecer quaisquer direitos sociais não plasmados no texto constitucional para agentes eletivos atrairá para si a pecha de inconstitucionalidade, por contrariar o silêncio eloquente da Constituição sobre o assunto.


 


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Informações Sobre o Autor

Renato Franco de Almeida

Promotor de Justiça. Assessor Especial do Procurador-Geral de Justiça. Membro da Coordenadoria de Controle de Constitucionalidade da Procuradoria-Geral de Justiça de Minas Gerais. Mestre e Doutor em Direito. Membro do Conselho Editorial da Revista De Jure do Ministério Público de Minas Gerais. Coordenador Editorial do periódico MPMG Jurídico. Professor de Graduação e Pós-Graduação lato sensu. Autor do livro Constituição e Políticas Econômicas na Jurisdição Constitucional


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