Resumo: O processo judicial de família incorporou, definitivamente, premissas solidárias, afetivas e de funcionalização das relações familiares. O presente estudo analisará a estrutura desse processo judicial no que se refere à cobrança das obrigações alimentícias e da mudança da cultura do litígio, diante das importantes alterações promovidas no Código de Processo Civil. O tema será estudado tomando por base a perspectiva social e jurídica quanto à necessidade do cumprimento dos deveres na seara familiar.
Palavras-chave: Obrigações alimentícias. Interdisciplinaridade. Solidariedade.
Sumário: Introdução. 1. Alterações nas obrigações alimentícias. 2. A cultura do litígio perde a sua força. 3. Funcionalização e solidariedade das relações familiares. Considerações finais. Referências.
Introdução
Sabemos que sem a família não é possível falar em plenitude de qualquer organização social ou jurídica. Novos tempos chegam para o processo judicial de família.
Neste momento de mudança legislativa é interessante retomar a ideia, segundo Carlos Drummond de Andrade (2012, p. 41), de “como a vida muda” e de “como a vida é tudo”. A compreensão da família, a partir dessa noção de transformação, busca sempre a sua reinvenção no tempo e no espaço.
Tomando como base o artigo 227[1] da Constituição Federal, a legislação avança e se mostra mais preocupada com os deveres de cuidado material, moral e psicológico atribuídos aos pais, como é o caso da obrigação de prestar alimentos.
O artigo buscará, assim, compreender como se estrutura o processo judicial no que tange à cobrança das obrigações alimentícias, apurando importantes alterações promovidas no Código de Processo Civil. A temática será estudada, investigando a perspectiva da funcionalidade jurídica e o cumprimento dos deveres fundamentais na seara familiar.
1 Alterações nas obrigações alimentícias
Com a entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil, destacamos as seguintes alterações nas obrigações alimentícias: o protesto da decisão com a consequente negativação do devedor, os descontos, em até cinquenta por cento, dos vencimentos do alimentante e o critério para prisão do devedor.
Por meio do protesto, poderá o juiz determinar de ofício a negativação do devedor de alimentos nos serviços de proteção ao crédito (SPC e SERASA), caso ocorra o descumprimento da determinação judicial, conforme determina o artigo 528, parágrafo primeiro, do novo Código[2].
Trata-se a negativação de um instrumento coercitivo, objetivando forçar o pagamento da dívida alimentar. Ponto positivo para a mudança no CPC! Aí está um impacto social e jurídico da nova lei, nas relações familiares, que objetiva salvaguardar o verdadeiro interessado na pensão, o alimentado.
Ainda assim, deverá ser respeitado o trinômio alimentar: possibilidade do alimentante, necessidade do alimentado e proporcionalidade. O critério jurídico para fixar o montante da pensão continua sendo a necessidade do credor de alimentos, sendo, igualmente, relevante ponderar qual é a capacidade econômica dos obrigados e a proporcionalidade na ocasião da fixação da pensão.
Segundo Maria Helena Diniz (2012, p. 361), é imprescindível que haja proporcionalidade na fixação dos alimentos entre as necessidades do alimentando e os recursos econômicos do alimentante. “A equação desses dois fatores deverá ser feita, em cada caso concreto, levando-se em conta que a pensão alimentícia será concedida sempre ad necessitatem".
Neste ponto, cabe ressaltar que a variabilidade da obrigação de prestar alimentos a partir do trinômio alimentar permitirá a revisão ou a exoneração da pensão, por meio da regra rebus sic stantibus, nos termos do artigo 1.699 do Código Civil[3].
Também se faz relevante consignar que os danos causados às crianças e aos adolescentes, pela demora na tutela dos seus direitos, podem ser irreversíveis. O cumprimento do dever de prestar alimentos é essencial para manutenção de uma vida digna ao alimentado, conforme dispõe o artigo 3o do Estatuto da Criança e do Adolescente, ao destacar que “a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana[4] […]”.
O direito da personalidade da criança é construído na família. “Não é possível existir sujeito sem que se tenha passado por uma família, e sem sujeito não há direito” (PEREIRA, 2013, p. 255). O núcleo familiar é essencial para a construção do ser.
Outra novidade é a previsão de descontos diretamente dos vencimentos líquidos do devedor de alimentos, em até cinquenta por cento. Nota-se que não ocorreu uma transformação do entendimento, que antes já era adotado pela jurisprudência, para alterar de trinta para cinquenta por cento os descontos dos salários do inadimplente. A mudança se volta apenas para estabelecer um teto para o caso de comprometimento da renda do alimentante, considerando as parcelas vencidas cumuladas com as vincendas.
Em relação ao critério adotado pelo legislador para requerer a prisão pelos últimos três meses de atraso no pagamento da pensão, devem ser consideradas neste cômputo as parcelas anteriores ao ajuizamento da ação, sendo, então, possível pedir a prisão, em regime fechado, do devedor da obrigação alimentar.
2 A cultura do litígio perde a sua força
Com o novo Código, a cultura do litígio também perde a sua força. A mediação passa a ser um novo caminho para a composição do conflito. O sujeito de direito passa, verdadeiramente, a ser ator e condutor da sua vida privada, ainda que judicializada.
A prioridade passa a ser a negociação, a conciliação e a mediação entre as partes envolvidas. Por isso, o artigo 694[5] do CPC disciplina que todos os esforços serão voltados para a solução consensual da controvérsia, devendo o magistrado dispor do auxílio de profissionais de outras áreas do conhecimento.
Neste sentido, a perspectiva transdisciplinar[6] também ganha mais espaço, pois há nítida conexão, nos casos de família, do direito, da psicanálise, do serviço social e da sociologia.
Como ressaltado por Flávio Tartuce (2015, p. 324), há na nova lei uma tentativa de substituir a “cultura da guerra”, pela “cultura da paz”, o que requer não apenas uma transformação de conduta dos profissionais que atuam nesta área de família, mas uma mudança no modo de ensino do processo.
A mediação busca salvaguardar os direitos da família, da criança e do adolescente, por meio do incentivo a uma convivência familiar mais saudável a partir da resolução de conflitos extrajudicialmente e judicialmente, uma vez que esta via tem por escopo chegar a um acordo que seja o reflexo dos interesses dos integrantes da família, reconstruindo a possibilidade de diálogo entre eles (DUQUE e LEITE, 2015, p. 297).
A utilização da mediação como instrumento de “resolução de desordens familiares muito se deve ao reconhecimento da autodeterminação do sujeito, liberado para a livre condução de suas relações horizontais de família” (MADALENO e MADALENO, 2015, p. 160).
Dessa maneira, importante aplicação terá a mediação nos casos envolvendo alienação parental. A síndrome da alienação parental, nas palavras de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2014. p. 614), representa um verdadeiro “distúrbio que assola crianças e adolescentes vítimas da interferência psicológica indevida realizada por um dos pais com o propósito de fazer com que repudie o outro genitor”. Quando identificada tal interferência, a guarda poderá ser analisada pelo magistrado buscando proteger os interesses do menor[7].
Essa síndrome, regulada Lei nº 12.318, de 26 de agosto de 2010, caracteriza-se pela “utilização do filho como instrumento de catarse emocional ou extravasamento de mágoa, além de traduzir detestável covardia, acarreta profundas feridas na alma do menor” (STOLZE e GAGLIANO, 2014. p. 614).
Sabe-se que a Constituição Federal de 1988, além de garantir direitos fundamentais, segundo os quais devem ter eficácia e aplicação imediata, preocupou-se em estabelecer também deveres fundamentais. Os deveres fundamentais, como categoria jurídico-constitucional, são condutas positivas ou negativas que promovem a efetivação dos direitos fundamentais (DUQUE, 2015, p. 33).
Destaca-se, assim, o reconhecimento da eficácia dos deveres fundamentais não apenas como um dever do Estado, mas também como algo que deve ser observado nas relações entre particulares, pois a todo direito há um dever correspondente. Ao lado do direito dos pais à convivência com os seus filhos, é importante destacar a previsão de um dever fundamental dos pais de resguardar a incolumidade psíquica e o relacionamento saudável com os menores, evitando a desestruturação familiar[8].
Isso se demonstra extremamente relevante na medida em que uma convivência familiar tranquila e equilibrada proporciona um ambiente favorável para o desenvolvimento da criança, sobretudo no aspecto afetivo, psicológico e material, visando a formação psicológica livre de transtornos e traumas.
3 Funcionalização e solidariedade das relações familiares
As relações familiares devem ser garantidas “constitucionalmente não em razão de titularizar um interesse superior ou superindividual, mas em função da realização das exigências das pessoas humanas” (NOGUEIRA DA GAMA, 2008, p. 125).
A funcionalização do direito impõe um novo tratamento jurídico da família que, por sua vez, se volta ao viés constitucional sobre a comunidade familiar, posto que é o refúgio dos direitos e deveres fundamentais garantidos a todo indivíduo.
O fim “precípuo da família passa a ser a solidariedade social e demais condições necessárias ao aperfeiçoamento e progresso humano, regido o núcleo familiar pelo afeto, como mola propulsora” (CHAVES DE FARIAS e ROSENVALD, 2014. p. 36). Aí está a família atendendo a sua função social.
Como propõe Marcus André Vieira (2001, p. 234), não devemos tomar o afeto “como substantivo, mas sim fazê-lo passar ao verbo”. Reforçar a necessidade do cumprimento dos deveres na seara familiar (aí incluindo a afetividade como conduta) é, sem dúvida alguma, uma excelente mudança para a sociedade.
Anderson Sant’Ana Pedra (2003, p. 196-197) enfatiza que, a partir da vigência do Código Civil de 2002, cabe ao intérprete da norma alterar o foco de análise do direito civil, “[…] deixando que este se ilumine pelos valores contidos na Constituição de 1988 a fim de conseguir um novo contorno do direito civil, agora à luz do Texto Constitucional”.
Em termos de funcionalização das relações familiares, a solidariedade é a base e o dever de afeto[9] a sua perspectiva central. O afeto, no prisma do cuidado, é uma conduta imprescindível para o desenvolvimento completo da criança que necessita de amparo para além do mero dever dos pais de prestarem alimentos.
Como se sabe, nas relações privadas, há ampla incidência de normas constitucionais, sendo impensável considerar que os sujeitos que integram determinado núcleo familiar possam, por exemplo, se utilizar de instrumentos públicos e/ou particulares sem a preocupação de promover o justo equilíbrio patrimonial, a fim de não caracterizar o enriquecimento sem causa[10].
A família contemporânea, portanto, possui amparo na solidariedade indicada no artigo 3o, inciso I, da Constituição da República que “fundamenta a existência da afetividade em seu conceito”, permitindo atribuir à família uma função social relevante (CASSETARI, 2015, p. 2015).
Nesta perspectiva, o reconhecimento dos deveres fundamentais se projeta a recuperar a aplicação dos direitos em vários pontos de vista, tais como social, econômico e político, o que levará a reconhecer o outro e, consequentemente, a sociedade (DUQUE, 2015, p. 33).
Considerações finais
Quando a concretização do afeto passa a ser realidade nos núcleos familiares, promove-se uma transição de critérios valorativos, afastando-se das funções meramente patrimoniais e ingressando na visão existencial dos seus membros.
As alterações promovidas no processo judicial de família objetivaram alcançar essa funcionalização das relações familiares. Dessa maneira, entendemos que o fim precípuo da família, cada vez mais, passa a ser a solidariedade social.
Em razão disso, defende-se que a funcionalização do direito de família impõe um novo tratamento jurídico dos seus membros que, por sua vez, se volta ao viés constitucional sobre toda a estrutura familiar, posto que é o refúgio dos direitos e deveres fundamentais garantidos ao indivíduo.
Informações Sobre o Autor
Bruna Lyra Duque
Doutora e Mestre do programa de pós-graduação stricto sensu em Direitos e Garantias Fundamentais da Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Especialista em Direito Empresarial (FDV). Professora de Direito Civil da graduação e pós-graduação lato sensu da FDV. Advogada e sócia fundadora do escritório Lyra Duque Advogados