Resumo: O objetivo do presente artigo é ampliar a discussão sobre a atuação desta poderosa ferramenta de pluralização do debate jurídico, o amicus curiae, fortalecendo a democratização da Jurisdição constitucional, uma vez que permite que terceiros passem a integrar a demanda, para discutir objetivamente teses jurídicas que vão afetar a sociedade como um todo.
Palavras-chave: Amicus Curiae – Repercussão Geral – Súmula Vinculante – Democratização – Sociedade.
Sumário: 1. Introdução. 2. Referências Históricas do Instituto. 3. A Trajetória no Direito Brasileiro. 4. Natureza Jurídica: 5. A legitimação do procedimento na Repercussão Geral e na Súmula Vinculante através da participação dos amici. 6. Aspectos finais. 7. Bibliografia.
1. Introdução.
O amicus curiae pode ser considerado como uma pessoa estranha ao processo a quem se permite manifestação para influenciar na decisão ou para prestar esclarecimentos.
Ocorre que muito embora sua presença no direito brasileiro já date de muito, o amicus curiae ainda é, parafraseando Greg Overstreet[1], como o monstro do Lago Ness – você já ouviu falar dele, mas provavelmente nunca viu a atuação de um.
Assim, este artigo busca ampliar a discussão sobre a importante atuação desta poderosa ferramenta de pluralização do debate jurídico, fortalecendo a democratização da Jurisdição constitucional, uma vez que permite que terceiros passem a integrar a demanda, para discutir objetivamente teses jurídicas que vão afetar a sociedade como um todo.
Considerando em especial a edição da emenda constitucional nº 45, de 08/12/2004, e o impacto das inovações mais importantes, como a inserção no artigo 103-A e a previsão do artigo 102, parágrafo 3º, da Constituição Federal, que recentemente tiveram as leis disciplinadoras sancionadas, que inovaram em muito o nosso sistema legal, com a aprovação das súmulas vinculantes e a figura da repercussão geral como requisito de admissibilidade para a interposição de recurso extraordinário. Assim é importante que se amplie a atuação dos amici curiae, tornando a análise desta figura o mais permeável possível, despertando a atenção para a participação da sociedade, fortalecendo assim a democracia, e proporcionando uma prestação jurisdicional mais qualificada.
2. Referências Históricas do Instituto.
Segundo Elisabetta Silvestri[2], a origem do instituto do amicus curiae está no direito inglês (mais especificamente no direito penal inglês medieval), sendo que de lá o instituto passou para outros países, em especial para os Estados Unidos, onde a aplicação e desenvolvimento da figura dos amici alcançaram sua maior evolução. Nesta mesma obra a autora defende outra tese que entende ter o instituto suas mais remotas origens no direito romano, onde os amici possuíam a função de colaborador dos juízes.
Doutrina e jurisprudência norte-americanas, muito embora ressaltem a atuação do amicus curiae nas origens mais remotas do direito romano, são unânimes em referir que o instituto, entretanto, somente surgiu de forma sistematizada no direito inglês, de onde passou para o direito americano.
Ocorre que os relatos mostram que na “passagem” do amicus curiae do direito inglês para o direito americano, uma das suas mais relevantes características foi perdida, qual seja, a neutralidade da sua atuação. No direito americano, o amicus surge como um interessado na solução da causa, interesse este concebido de forma mais ampla do que entendemos por interesse jurídico, subjetivado em uma das partes[3].
E como o sistema processual dos Estados Unidos prevê, assim como no direito italiano e também no nosso direito brasileiro, uma gama de figuras de intervenção de terceiros, para disciplinar a admissão dos amici foram feitas alterações na Regra 37 da Suprema Corte Americana[4], regra esta que sistematizou a atuação do amicus curiae, de onde podemos salientar os principais itens: 1. O amicus curiae que traz à Corte matéria relevante (relevant matter), ainda não cogitada pelas partes, é reconhecido pela Corte por sua colaboração. O dispositivo regimental lembra que se não forem observados esses itens (matéria relevante, não trazida antes pelas partes), a manifestação do amicus sobrecarregará inutilmente a Corte. 2. O amicus curiae deve trazer, por escrito, o assentimento das partes em litígio, nos casos especificados regimentalmente. Caso seja negado o consentimento, o amicus terá de juntar, com seu pedido, os motivos da negação para que a Corte aprecie. 3. Mesmo em se tratando de pedido de intervenção para sustentação oral, o amicus deve ainda assim, juntar o consentimento das partes, por escrito, para que possa peticionar. 4. O “Solicitor General” não necessita de consentimento das partes para intervir em nome da União. O mesmo tratamento é reservado a outros representantes de órgãos governamentais, quando legalmente autorizados. 5. O memorial não deve ultrapassar cinco páginas. 6. Em sendo o caso, o amicus deve ser munido de autorização de seu representado, e fazer uma espécie de preparo para custeio processual, salvo se a entidade estiver previamente arrolada como isenta.
3. A Trajetória no Direito Brasileiro.
Muito embora a utilização da expressão amicus curiae figure em inúmeros trabalhos doutrinários e em diversos julgados, e esteja passo a passo alargando a sua função no direito brasileiro, ela é referida em apenas um único texto da legislação brasileira, qual seja, a Resolução 390, de 17 de setembro de 2004, do Conselho da Justiça Federal, que dispõe sobre o regimento interno da Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais[5].
Em que pese o supra aludido, referido instituto está previsto na legislação brasileira desde 1976, mais precisamente no art. 31, da Lei 6.385/76, com redação pela Lei 6.616 de 1978[6], que trata da Comissão de Valores Mobiliários.
Conforme se extrai do texto legal, cabe à Comissão de Valores Mobiliários (CVM), em processos judiciais em que o litígio verse sobre questões envolvendo matérias que sejam de sua competência fiscalizadora, intervir como amicus curiae.
Em 1991 a figura reapareceu na Lei 8.197[7], ao dispor sobre a intervenção da União Federal nas causas em que figurarem como autores ou réus entes da administração indireta. Esta Lei foi posteriormente revogada pela então Lei 9.469/1997, que manteve de forma bastante semelhante esta dita intervenção da União[8].
Também a Lei 8.884/94, que transformou o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) em Autarquia Federal, em seu art. 89, previu a atuação do amicus curiae[9], bem como também há referência desta forma de atuação no art. 49 da Lei n. 8.906/94 (Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB)[10].
Muito embora nestes textos legais tenha sido feita a menção das atuações enquanto assistentes, em uma análise mais acurada, percebe-se claramente que aí a participação não se dá na forma de intervenção de terceiros e sim, como amicus curiae, eis que podemos visualizar e distinguir em ambos os casos não a presença do interesse jurídico, que implicaria a figura da assistência, mas sim o interesse institucional, mais afeito à participação deste último.
Maior visibilidade, entretanto, apresenta a atuação dos amici nas ações de controle abstrato de inconstitucionalidade (ADIN) e de constitucionalidade (ADECON) – com embasamento constitucional e regulamentadas pela Lei 9.868/99 – eis que nesta Lei, em seu art. 7º “caput”, há a vedação expressa da intervenção de terceiros, entretanto, no §2º do mesmo artigo, admitiu-se que, o Relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir a manifestação de outros órgãos ou entidades[11], de onde também podemos vislumbrar claramente a distinção no foco de ação da figura do amigo da corte e de um terceiro interveniente.
E ainda a Lei 9.882/99, que regulamenta o procedimento para Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), em seu art. 6º, § 1º, previu a participação de perito ou comissão de peritos para emitir parecer sobre a questão, ou, ainda, fixar data para declarações, em audiência pública, de pessoas com experiência e autoridade na matéria[12].
4. Natureza Jurídica.
A natureza jurídica do amicus curiae é a questão que mais causa controvérsia entre doutrinadores.
Quiçá, por em algumas nuanças esta figura aproximar-se do assistente (forma de intervenção de terceiros), quiçá pelo uso do termo terceiro (em sentido latu sensu) em alguns textos legais que referem a atuação dos amici curiae.
Muito embora a doutrina nunca tenha tido dificuldade em divisar os diversos sujeitos secundários do processo (não principais: juiz e partes), como, por exemplo: o MP, o perito, o intérprete, as testemunhas (que podem em sentido amplo ser chamadas de terceiros), das formas de intervenção de terceiros, talvez por ser recente o esboço da intervenção do amicus curiae no direito brasileiro, bem como pela ausência de disciplina sobre o tema, tenhamos tamanha controvérsia!
E aí surgem as diversas terminologias: intervenção anômala, sui generis, atípica, assistência qualificada, nova modalidade de intervenção de terceiros, etc…
O Supremo Tribunal Federal, entretanto, no voto do Relator Ministro Celso de Melo, na ADI 748 AgR/RS, já se manifestou no sentido de que não se trata de forma de intervenção de terceiros e sim é o amicus, um colaborador informal da Corte.
Coadunamos com Cássio Scarpinella, cuja tese discorre profundamente sobre o tema, ao afirmar que o amicus curiae é um terceiro que intervém em processo alheio, mas que, por se parecer pouco com outros intervenientes, deve ser entendido como modalidade diferente de intervenção de terceiros, e pela relevância na atuação, deve ter regime jurídico próprio e distinto destes últimos.
5. A legitimação do procedimento na Repercussão Geral e na Súmula Vinculante através da participação dos amici.
Mas especial relevo para a questão em apreço, como já sugerido na apresentação do presente artigo, trouxe SaraivaJur:a Lei nº 11.417/2006, publicada no DOU 20/12/2006, que regulamentou o que já estava previsto no artigo 103-A da Constituição Federal, inserido pela editada Emenda Constitucional 45, de 08/12/2004, instituindo a súmula vinculante, o qual se transcreve:.
“O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.”
E disciplinando a edição, a revisão e o cancelamento do enunciados das súmulas, em especial prevendo a atuação do amicus curiae, dispôs o artigo 3º da Lei 11.417, em seu parágrafo 2º:
“No procedimento de edição, revisão ou cancelamento de enunciado da súmula vinculante, o relator poderá admitir, por decisão irrecorrível, a manifestação de terceiros na questão, nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.”
Da mesma forma a Lei 11.418/2006, regulamentando o art. 102, § 3º da Constituição Federal, que trata do recurso extraordinário ao Supremo Tribunal Federal, e alterando a redação do art. 543 do CPC, para o fim de incluir um novo requisito de admissibilidade para essa impugnação excepcional, qual seja, a repercussão geral. Senão vejamos:
“Art. 543-A. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário, quando a questão constitucional nele versada não oferecer repercussão geral, nos termos deste artigo.
§ 6o O Relator poderá admitir, na análise da repercussão geral, a manifestação de terceiros, subscrita por procurador habilitado, nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. “
Não se pretende aqui aprofundar a análise destas inovações em si mesmas, mas sim considerando que os precedentes jurisdicionais do STF terão, inegavelmente, grande influência sobre o julgamento de outros casos, e que em algumas situações estes juízos terão importantes reflexos econômicos, e/ou políticos, e/ou jurídicos, e/ou sociais, para a sociedade brasileira, somente ampliando-se a discussão a esta sociedade, na figura do amicus (que poderá atuar ativamente na formação do convencimento e tomada de decisão da corte), é que legitimaremos estes julgados que servirão como paradigmas para casos futuros.
Quanto maior a participação da sociedade, e a pluralização do debate constitucional, maior serão a estabilidade e a legitimação constitucional das soluções dadas pelo STF, sendo indubitável que a atuação dos amici curiae está intimamente ligada ao princípio da segurança jurídica.
Corroborando neste aspecto, interessante mencionar as colocações feitas por Andre de Albuquerque Cavalcanti Abbud, quando a lei sobre a repercussão geral ainda estava tramitando:
“A admissão do amicus curiae tem o propósito de ampliar os mecanismos de participação da sociedade no processo, contribuindo assim para acentuar o caráter democrático e pluralista deste e, nessa medida, conferir maior legitimidade à decisão judicial. A previsão do anteprojeto foi, assim, bastante feliz. Tendo em vista a enorme força por ele atribuída aos precedentes do STF no juízo sobre a repercussão geral, os quais terão larga influência sobre o julgamento de outros recursos, nada melhor que abrir à sociedade, na figura do amicus, a possibilidade de participar ativamente da formação do convencimento e tomada de decisão da corte”
6. Aspectos finais:
A atuação dos amici curiae no Brasil tem nos últimos anos aumentado de forma considerável (ainda que sem a amplitude desejada), e com a repercussão geral como requisito de admissibilidade do recurso extraordinário, e o caráter vinculante das súmulas do STF, far-se-á necessária a ampliação da participação destes, como forma de ratificação da fonte democrática do instituto.
Essa participação ganha mais relevo ainda quando nos litígios o interesse público com motivação ideológica transcende o interesse jurídico particular, positivando-se, assim, a figura do amicus curiae face essas novas relações processuais.
Mas o conceito e a amplitude de atuação do amicus curiae para o direito brasileiro ainda estão inseguros, merecendo consolidação, sendo que só o tempo, a doutrina e a construção jurisprudencial é que dirão sua exata dimensão para o direito brasileiro.
Informações Sobre o Autor
Martha Rosinha
Advogada, Graduada no Curso de Direito pela Universidade Federal de Pelotas, Especialista em Direito Processual Civil pelo Centro Integrado Ritter dos Reis e atualmente cursando Especialização em Processo Civil na PUC/RS.