Análise da constitucionalidade da nova modalidade de Improbidade Administrativa (Art. 10-A da Lei 8.429/92)

Thomas Bryann Freitas do Nascimento

RESUMO

O presente artigo apresenta os resultados obtidos a partir da investigação da constitucionalidade do novo art. 10-A da Lei nº 8.429/92, recentemente introduzido pela Lei Complementar nº 157/2016, passando a prever nova hipótese de improbidade administrativa, decorrente de concessão ou aplicação indevida de benefício financeiro ou tributário relativo ao imposto sobre serviços de qualquer natureza – ISS. A partir da metodologia de pesquisa bibliográfica e legislativa, concluiu-se pela compatibilidade entre a novidade legislativa e o arcabouço constitucional de tutela da probidade no âmbito da Administração Pública.

Palavras-chave: Improbidade Administrativa. Lei complementar nº 157/2016. ISS. Isenção. Constitucionalidade.

 

ABSTRACT

This paper presents the results obtained from the study of the constitutionality of the new art. 10-A of Law 8.429/92, recently introduced by the Complementary Law 157/2016, that predicsts new kind of administrative improbity that results from allowance ou aplicantion of financial or tax benefit related to ISS tax. Having used the methodology of bibliographical and legislative research, it was observed the compatibility between the legislative novelty and the constitutional framework on the legal protection of probity of Public Administration.

Keywords: Administrative Improbity; Complementary Law 157/2016; ISS; Constitutionality.

 

SUMÁRIO: Introdução. 2. Análise do ato de improbidade administrativa previsto no novo art. 10-A da Lei 8.429/92. 2.1. Da contextualização político-legislativa. 2.2. Do ato de improbidade administrativa decorrente de concessão ou aplicação indevida de benefício financeiro ou tributário relativo a ISS (art. 10-A). 3. Análise da constitucionalidade do art. 10-A. Conclusão. Referências Bibliográficas.

 

INTRODUÇÃO

O Estado Brasileiro vive, atualmente, um momento de desmoralização das instituições políticas, caracterizado por escândalos frequentes de corrupção envolvendo os mais diversos segmentos da Administração Pública. A operação Lava-Jato figura como grande elemento icônico deste contexto, que tem levado as discussões acerca da corrupção para os ambientes acadêmicos, institucionais, midiáticos e à própria opinião pública.

Parte da doutrina utiliza a expressão “microssistema brasileiro de combate à corrupção” (OLIVEIRA, 2017) para identificar as diversas normas que buscam prevenir e reprimir tais práticas, a exemplo da lei anticorrupção (Lei nº 12.846/2013) e da lei de improbidade administrativa (Lei nº 8.429/92). As alterações recentes à tal legislação, com a introdução de uma nova espécie de ato de improbidade administrativa (art. 10-A) parece ser uma entre as várias reações à proliferação da corrupção, neste caso, a nível municipal. Entretanto, as especificidades desta novidade legislativa provocaram questionamentos acerca de sua constitucionalidade.

Desta forma, considera-se relevante concentrar esta pesquisa no âmbito da improbidade administrativa, e, especialmente, nas novidades introduzidas pela Lei Complementar nº 157/2016 à Lei nº 8.429/92, considerando que eventual inconstitucionalidade pode representar ameaças a este importante instrumento jurídico de combate à corrupção.

O objetivo central deste trabalho consiste, portanto, em analisar se a nova modalidade de improbidade administrativa introduzida pela Lei Complementar nº 157/2016 está em conformidade ao ordenamento constitucional vigente.

Para tanto, deve-se, antes, identificar os contornos específicos do ato de improbidade introduzido pelo novo art. 10-A, seu conteúdo e elementos. Em seguida, delimitar-se-á o que é ato de improbidade administrativa, conforme a Constituição Federal, quais os sujeitos ativo e passivo e qual o conteúdo da ação ou omissão que a Constituição admite para tais atos de improbidade, bem como quais os bens jurídicos que são tutelados por esta previsão. Há que se verificar, ainda, se a ordem constitucional definiu algum limite instransponível pela lei responsável pela regulamentação da improbidade.

Feito este recorte, cabe a comparação entre o modelo jurídico-constitucional de ato de improbidade e a nova previsão do art. 10-A da Lei nº 8.429/92, a fim de, por fim, verificar sua compatibilidade à Constituição Federal.

A metodologia empreendida baseou-se, inicialmente, na análise de textos legislativos (Constituição Federal, Lei 8.429/92, LC 157/2016).

Foi, também, realizada análise de produção bibliográfica em direito administrativo e tutela de interesses difusos, especialmente sobre improbidade administrativa.

Por fim, houve pesquisa e análise de artigos e postagens em internet, revistas, e outras publicações do meio jurídico, contendo comentários, reações e estudos acerca da recente alteração legislativa.

 

  1. Análise do ato de improbidade administrativa previsto no novo art. 10-A da Lei 8.429/92

2.1. Da contextualização político-legislativa

           A Lei Complementar nº 157/2016 introduziu o art. 10-A à Lei nº 8.429/92, inserindo uma nova espécie de ato de improbidade administrativa, nos seguintes termos:

Art. 10-A. Constitui ato de improbidade administrativa qualquer ação ou omissão para conceder, aplicar ou manter benefício financeiro ou tributário contrário ao que dispõem o caput e o § 1º do art. 8º-A da Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003.

 

Antes de analisar a constitucionalidade desta nova espécie de improbidade, faz-se necessário definir o contexto legislativo e político em que se deu tal alteração, bem como os contornos do ato previsto pelo dispositivo recentemente editado.

A Lei Complementar nº 157/2016, editada em 29/12/2016, promoveu alterações na disposição legislativa federal relativa ao imposto sobre serviços de qualquer natureza, o ISS,               introduzindo diversos dispositivos à Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003. Muito embora se trate de imposto de competência legislativa municipal, a Constituição determina que a definição dos serviços sobre os quais incide o ISS, das alíquotas máxima e mínima e da concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais será objeto de disciplina por lei complementar federal (art. 156, § 3º, CF/88).

Especialmente no que se refere à fixação de alíquota mínima e concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais, o objetivo da limitação constitucional foi evitar a deflagração de “guerra fiscal” entre os Municípios, ou seja, um cenário no qual tais entes reduzem desproporcionalmente os encargos tributários sobre os contribuintes, a fim de atrair, de forma desleal, empreendimentos para seu território.

A respeito da relação entre o ISS e a guerra fiscal, esclarece Ricardo Alexandre:

A maneira mais comum como se dava a guerra fiscal do ISS era os Municípios estipularem alíquotas irrisórias para o tributo, atraindo empresas para os respectivos territórios, uma vez que a competência para cobrança era, em regra, do Município em que estava domiciliado o prestador de serviço (…). No final das contas, todos os Municípios acabavam perdendo, pois quem tem um aparente ganho, sujeita-se a perdas futuras, uma vez que os demais municípios entrarão em guerra (ALEXANDRE, 2015, p.667).

A redação originária da Lei Complementar nº 116/2002 não trouxe qualquer previsão sobre a alíquota mínima do ISS e sobre eventual limite a isenções ou benefícios fiscais, sendo a matéria regida, então, pelo art. 88 do ADCT, introduzido, por sua vez, pela Emenda Constitucional nº 37/2002. A alíquota mínima para o ISS seria de 2% (dois por cento), não sendo admitida a concessão de incentivo ou benefício que implicasse, direta ou indiretamente, na redução de tal alíquota.

A edição da Lei Complementar nº 157/2016, por sua vez, atendeu à exigência constitucional pela edição de uma lei complementar para regular a matéria. Neste ponto, a inovação foi apenas formal, uma vez que houve continuidade normativa quanto aos limites da alíquota mínima (mantido em 2%) e para a concessão de incentivos ou benefícios fiscais, nos mesmos parâmetros.

Veja-se a redação do novo art. 8º-A e § 1º da Lei Complementar nº 116/2003, após a edição da LC 157/2016:

Art. 8o-A.  A alíquota mínima do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza é de 2% (dois por cento).

  • 1oO imposto não será objeto de concessão de isenções, incentivos ou benefícios tributários ou financeiros, inclusive de redução de base de cálculo ou de crédito presumido ou outorgado, ou sob qualquer outra forma que resulte, direta ou indiretamente, em carga tributária menor que a decorrente da aplicação da alíquota mínima estabelecida no caput, exceto para os serviços a que se referem os subitens 7.02, 7.05 e 16.01 da lista anexa a esta Lei Complementar.

A grande novidade foi introduzida pelo art. 4º da LC 157/2016, que passa a considerar como ato de improbidade administrativa a conduta de, por ação ou omissão, conceder, aplicar ou manter benefício financeiro ou tributário de ISS contrário aos limites legais. Passemos a analisar os elementos do novo ato de improbidade.

 

2.2. Do ato de improbidade administrativa decorrente de concessão ou aplicação indevida de benefício financeiro ou tributário relativo a ISS (art. 10-A)

Assente-se, antes de tudo, que o legislador de 2016 optou por inserir a conduta tipificada como uma quarta modalidade de ato de improbidade, autônoma, independente, ao lado dos demais atos que implicam em enriquecimento ilícito, prejuízo ao Erário ou violação de princípio da Administração Pública.

Parte da doutrina identificou um preciosismo ou mesmo falta de técnica do legislador, pois o novo ato de improbidade poderia muito bem ser enquadrado como espécie de ato de lesão ao Erário (CARVALHO, 2017, p. 969; SCHRAMM, 2017) ou violação a princípio da Administração Pública (KUFA, 2017).

A conduta ímproba prevista é o ato de conceder, manter ou aplicar benefício ou incentivo fiscal de forma irregular. A concessão de benefício ou isenção fiscal, por força do art. 150, § 6º da Constituição Federal e art. 176 do CTN, somente ocorre por meio de lei específica que regule exclusivamente a matéria ou o respectivo tributo. Desta forma, a espécie “conceder”, de início, somente pode ser praticada por autoridade legislativa. Entretanto, se o ato de concessão de benefício possuir natureza infralegal, culminado por flagrante irregularidade formal, a autoridade responsável pela edição de tal ato passará a figurar como sujeito ativo da conduta ímproba.

As condutas de aplicar ou manter, por sua vez, podem ser praticadas por Prefeito Municipal, Governador Distrital, ou autoridades fiscais competentes para aplicar ou afastar o benefício. Via de regra, portanto, os sujeitos ativos são agente políticos: chefes do Poder Executivo Municipal ou Distrital, membros do Legislativo ou secretários de finanças, que integram o alto escalão da estrutura administrativa.

Acompanhando a orientação já adotada pelos arts. 10 e 11 da lei 8.429/92, o novo ato de improbidade pode ser praticado de forma comissiva, ou omissiva, alcançando, também, aqueles que, diante da ciência da concessão, manutenção ou aplicação irregular do benefício, abstém-se de adotar as providências cabíveis, motivo pelo qual se inserem, entre os sujeitos ativos, membros das instâncias de controle, como as auditorias internas, os Tribunais de Contas, o Ministério Público e mesmo o Poder Judiciário.

O sujeito passivo do ato previsto no art. 10-A é o ente federativo que instituiu o imposto sobre o qual foi concedido o benefício ou a isenção. Considerando o objetivo maior da norma por combater a guerra fiscal, mostra-se também admissível considerar os demais entes federativos prejudicados com a concessão irregular, como sujeitos passivos do ato, igualmente legitimados a propor a respectiva ação de improbidade.

O elemento subjetivo é o dolo. Não se admite modalidade culposa, visto que a opção adotada pela lei de improbidade foi de que a culpa não se presume, devendo ser prevista expressamente na lei. Quando quis prever conduta culposa, o legislador da improbidade o fez de maneira literal, fazendo-a constar na redação do art. 10. Diante da omissão do legislador de 2016, tem-se que o ato de improbidade introduzido pelo art. 10-A somente pode ser praticado mediante dolo.

Por fim, o art. 12, IV da lei 8.429/92 passou a prever como sanções ao novo ato de improbidade a perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de 5 (cinco) a 8 (oito) anos e multa civil de até 3 (três) vezes o valor do benefício. Concorda-se com o entendimento doutrinário de que a omissão legislativa não afasta o dever de ressarcimento ao Erário, tendo em vista a vedação ao enriquecimento ilícito e a indisponibilidade do interesse público (CARVALHO, 2017, p.970).

Esta tem sido a orientação do Supremo Tribunal Federal, que, inclusive, considera imprescritíveis as ações de ressarcimento aos danos decorrentes de atos de improbidade administrativa (STF. Plenário. RE 669069/MG, Rel. Min. Teori Zavascki, julgado em 3/2/2016 (repercussão geral) (Informativo nº 813)).

 

  1. Análise da constitucionalidade do art. 10-A.

A Constituição Federal disciplina a improbidade administrativa no art. 37, § 4º: “Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”.

O dispositivo não define um conceito de ato de improbidade, cabendo tal tarefa à doutrina e à jurisprudência, a partir da leitura sistemática da disciplina constitucional da Administração Pública. Embora haja várias vozes pela identidade entre probidade e moralidade administrativa, predomina, com acerto, a corrente que entende a probidade como um conceito de maior amplitude, que, além da moralidade administrativa, abrange os demais princípios previstos no art. 37, caput da Carta Magna: legalidade, impessoalidade, publicidade e eficiência. Neste sentido, as palavras de Cleber Masson: “Com efeito, embora a observância do princípio da moralidade seja um elemento de vital importância para a aferição da probidade, não é ele o único. Quando muito, será possível dizer que a probidade absorve a moralidade, mas jamais terá sua amplitude delimitada por esta”. (MASSON, 2017, p. 700).

Assim, a improbidade deve ser considerada como todo comportamento nocivo, desonesto, corrupto e inepto no trato da coisa pública, com violação aos princípios que regem a Administração Pública.

Dito isto, não restam dúvidas de que o ato previsto no art. 10-A enquadra-se no conceito de ato ímprobo. A nova previsão busca combater a guerra fiscal entre municípios, comportamento este que está longe de respeitar os princípios do art. 37 da Constituição Federal, violando a legalidade, a moralidade e a impessoalidade administrativa, traduzindo atitude de má-fé na relação entre os entes federativos.

A prática da Guerra Fiscal ameaça o equilíbrio do Pacto Federativo, eleito como cláusula pétrea pelo art. 60, § 4º da Constituição, e constituindo, segundo defendemos, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, ainda que não previsto expressamente no art. 3º da Carta de 1988. Tem-se, aqui, mais um argumento favorável à constitucionalidade do novo ato de improbidade.

É importante considerar, ainda, que o art. 37, § 4º da CF/88, ao tratar de atos de improbidade, utilizou-se de um conceito jurídico indeterminado. Ou seja, o tratou como um conceito aberto, concedendo margem de discricionariedade para que o legislador ordinário disciplinasse tais atos, observados, obviamente os limites constitucionais. Não houve qualquer limitação temporal ou geográfica para tal disciplina, de modo que é plenamente admissível a previsão de novos atos de improbidade, ainda que por legislação posterior à lei matriz de 1992, ou mesmo por outros textos normativos, a exemplo dos atos de improbidade tratados pelo Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) e pelo Estatuto da Metrópole (Lei 13.089/2015). Neste ponto, incabível qualquer questionamento acerca do novo art. 10-A.

Além disso, o art. 37, § 4º não exige que os atos de improbidade administrativa sejam tipificados por lei específica, não havendo qualquer inconstitucionalidade no fato de a nova modalidade ter sido introduzida por Lei Complementar que trata sobre ISS.

Ressalte-se que o fato de o ato enquadrar-se na modalidade mais genérica prevista no art. 10 (prejuízo ao Erário) não compromete sua constitucionalidade, uma vez que o conflito aparente é resolvido por meio da Especialidade, princípio geral aplicável às diferentes formas de controle social (direito penal, direito civil e administrativo sancionador).

No que se refere às sanções, tem-se que o art. 12 da lei 8.429/92 ampliou o rol previsto inicialmente pelo texto constitucional. A doutrina majoritária já pacificou o entendimento pela constitucionalidade do dispositivo, considerando que o art. 37, §4º, enquanto norma de eficácia limitada, tem caráter meramente exemplificativo, apresentando uma lista mínima de sanções a serem aplicadas aos atos de improbidade. A legislação infraconstitucional, ao regulamentar o dispositivo constitucional, não pode suprimir as sanções previstas pela Constituição, mas nada impede que as amplie, no sentido de fortalecer a proteção concedida ao patrimônio público (GARCIA; ALVES, 2014, p. 616).

Com a edição da LC 157/2016, as principais reações contrárias ao novo ato de improbidade fundamentaram-se no fato de que o legislador de 2016 pecou pelo exagero, sancionando como improbidade atos que representariam mero exercício de poder político, além de limitar a autonomia constitucional conferida aos municípios. Neste sentido:

Trata-se de sanções draconianas, que seriam improváveis no âmbito estadual – e impensáveis no federal –, evidenciando descaso para com a autonomia municipal e, em particular, com os governantes dos Municípios. Cogitar-se-ia, por exemplo, de cassar os direitos políticos de governadores que simplesmente mantiveram benefícios unilaterais do ICMS, no contexto da guerra fiscal entre Estados?

Verifica-se afronta ao postulado da razoabilidade e à autonomia municipal, em particular, na configuração de ato de improbidade administrativa pela mera omissão em revogar benefícios financeiros ou tributários. Como podem Prefeitos e Vereadores perder a sua função pública e os seus direitos políticos, além de ter de arcar com multa de até o triplo dos benefícios vigentes, por mera inação? (VELLOSO, 2017, online).

Assim, também, as palavras de Fernanda Schramm:

A inovação legislativa, ainda que bem intencionada, parece seguir uma tendência já manifestada pelo Poder Legislativo – e não raro também pelo Poder Judiciário e Ministério Público – de transformar toda e qualquer irregularidade cometida pelos agentes públicos em improbidade administrativa, quando, na verdade, esta categorização deveria ser reservada somente aos casos em que se atuasse com má-fé ou intenção desonesta. Como se a ampliação das hipóteses de improbidade fosse a solução para os problemas políticos do país (SCHRAMM, Fernanda, 2017, online).

De fato, enfrenta-se, neste ponto, um conflito entre a autonomia municipal e outros valores constitucionais, sobretudo o equilíbrio federativo, a cidadania e a democracia, tutelados pela probidade administrativa. Um juízo de ponderação, baseado na proporcionalidade e no princípio da Concordância Prática ou Harmonização da Constituição, autoriza que a autonomia municipal seja mitigada, em prol de outros valores, aos quais a própria Constituição atribui maior relevância, erigindo-os, inclusive, como cláusula pétrea e fundamentos da República Federativa do Brasil.

Além disso, o ponto central da distinção entre o mero exercício legítimo da autonomia política municipal e a configuração do ato de improbidade do art. 10-A reside no elemento subjetivo. O novo ato administrativo exige, para sua configuração, a presença do dolo, ou seja, a consciência e a vontade dirigida para conceder, manter ou aplicar benefício ou incentivo fiscal em infringência à previsão legal. O elemento subjetivo funciona como elemento limitador de responsabilidade, evitando qualquer arbítrio decorrente de sanções por improbidade.

O fato de o novo ato de improbidade administrativa ter como sujeito ativo, especialmente, agentes políticos não afasta, igualmente, a constitucionalidade da previsão. É verdade que os prefeitos e vereadores submetem-se a regime especial de responsabilidade, previsto no decreto-lei n° 201/1967. Entretanto, isto não afasta a incidência das sanções da lei de improbidade. O ordenamento jurídico adotou, a respeito da responsabilidade dos agentes estatais, a regra da independência de instâncias, permitindo a coexistência de sanções civis, administrativas, políticas e penais incidentes sobre um mesmo ato ilícito. Cleber Masson destaca, ainda, que entendimento contrário viola o princípio da Isonomia, restringindo a responsabilidade de agentes políticos em detrimentos dos demais cidadãos, além de contrariar as próprias tendências da lei 8.429/92, quem em seu art. 2º optou por um conceito amplo de agente público (MASSON, 2017, p. 710).

O art. 37, § 4º da Constituição Federal prevê as sanções mínimas aplicáveis aos atos de improbidade, “sem prejuízo da ação penal cabível”. Ao prever as penas aplicáveis em razão da improbidade, o art. 12 da lei 8.429/92 menciona expressamente a independência das sanções penais, civis e administrativas previstas na legislação específica.

Assente-se que, a exceção da perda da função pública e suspensão dos direitos políticos, os atos administrativos previstos na lei de improbidade têm natureza civil, nada obstando que se apliquem paralelamente ao decreto-lei n° 201/1967, que sobre a responsabilidade penal e administrativa de Prefeitos e Vereadores.

O Superior Tribunal de Justiça já pacificou entendimento pela efetiva incidência da Lei de Improbidade aos agentes políticos, com a ressalva do Presidente da República:

Excetuada a hipótese de atos de improbidade praticados pelo Presidente da República (art. 85, V), cujo julgamento se dá em regime especial pelo Senado Federal (art. 86), não há norma constitucional alguma que imunize os agentes políticos, sujeitos a crime de responsabilidade, de qualquer das sanções por ato de improbidade previstas no art. 37, § 4.º. Seria incompatível com a Constituição eventual preceito normativo infraconstitucional que impusesse imunidade dessa natureza. (…)(STJ – Rcl: 2790 SC 2008/0076889-9, Relator: Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, Data de Julgamento: 02/12/2009, CE – CORTE ESPECIAL, Data de Publicação: DJe 04/03/2010).

O Supremo Tribunal Federal, em decisões mais recentes, tem caminhado para este mesmo entendimento, Leia-se: STF – AC: 3585 RS, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 02/09/2014, Segunda Turma, Data de Publicação: DJe-211 DIVULG 24-10-2014 PUBLIC 28-10-2014).

A respeito dos atos parlamentares, questiona-se a incidência da disciplina da improbidade, diante da imunidade parlamentar material conferida pelos arts. 53 e 29, VIII da Constituição: inviolabilidade em razão de suas opiniões, palavras e votos. Ocorre que tal imunidade está limitada ao conteúdo do voto, enquanto expressão legítima da representatividade popular, não alcançando eventuais desvios de finalidade da atividade legislativa. A respeito do tema, ensina Emerson Garcia:

A conduta dos ilustres congressistas, imoral ao extremo, poderia ser considerada um ato de improbidade pois se utilizaram de suas funções para auferir benefícios pessoais, ou mesmo visando ao benefício de outrem – isto na hipótese dos condescendentes não devedores. Ainda no final do século XIX, alertava Rui Barbosa para a “regra geral da improbidade política, abalando a fé nas melhores instituições” (GARCIA; ALVES, 2014, p. 473).

Pela viabilidade da aplicação da lei de improbidade a parlamentares, já se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça:

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. APLICAÇÃO DA LEI 8.429/1992 AOS AGENTES POLÍTICOS. INDEPENDÊNCIA DAS ESFERAS PENAL E ADMINISTRATIVA. ATOS BUROCRÁTICOS PRATICADOS NA FUNÇÃO LEGISLATIVA. CABIMENTO. 1. Aplica-se a Lei 8.429/1992 aos agentes políticos dos três Poderes, excluindo-se os atos jurisdicionais e legislativos próprios. Precedente. 2. Se no exercício de suas funções o parlamentar ou juiz pratica atos administrativos, esses atos podem ser considerados como de improbidade e abrigados pela LIA. 3. O STJ possui entendimento consolidado no sentido de que as esferas penal e administrativa são independentes, salvo nos casos de absolvição por inexistência do fato ou autoria. 4. Recurso especial provido.

(STJ – REsp: 1171627 RS 2009/0238379-0, Relator: Ministra ELIANA CALMON, Data de Julgamento: 06/08/2013, T2 – SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 14/08/2013).

ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE. MAJORAÇÃO ILEGAL DA REMUNERAÇÃO E POSTERIOR TRANSFORMAÇÃO EM AJUDA DE CUSTO SEM PRESTAÇÃO DE CONTAS. DANO AO ERÁRIO. OBRIGAÇÃO DE RESSARCIR O COMBALIDO COFRE MUNICIPAL. RESTABELECIMENTO DAS SANÇÕES COMINADAS NA SENTENÇA. 1. Cuidam os autos de Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais contra prefeito, vice-prefeito e vereadores do Município de Baependi/MG, eleitos para a legislatura de 1997/2000, imputando-lhes improbidade pelas seguintes condutas: a) edição das Leis 2.047/1998 e 2.048/1999, fixando seus subsídios para a mesma legislatura em contrariedade aos arts. 29, V, e 37, XI, da Constituição, sobretudo porque baseados em dispositivo da EC 19/98 não regulamentado; e b) edição, num segundo momento, da Lei 2.064/1999, que suspendeu as leis antes mencionadas e transformou em ajuda de custo os valores majorados às suas remunerações, independentemente de comprovação de despesas, com vigência até a regulamentação pendente. (…) 6. A edição de leis que implementaram o aumento indevido nas próprias remunerações, posteriormente camuflado em ajuda de custo desvinculada de prestação de contas, enquadra a conduta dos responsáveis tenham agido com dolo ou culpa no art. 10 da Lei 8.429/1992, que censura os atos de improbidade por dano ao Erário, sujeitando-os às sanções previstas no art. 12, II, da mesma lei. (…) 8. A ausência de exorbitância das quantias pagas não afasta a configuração da improbidade nem torna legítima sua incorporação ao patrimônio dos recorridos. Módicos ou não, os valores indevidamente recebidos devem ser devolvidos aos cofres públicos. Precedente do STJ. 9. (…)

(STJ – REsp: 723494 MG 2005/0019337-2, Relator: Ministro HERMAN BENJAMIN, Data de Julgamento: 01/09/2009, T2 – SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: –> DJe 08/09/2009)

 

CONCLUSÃO

O estudo realizado demonstra a constitucionalidade da nova modalidade de improbidade administrativa. Como demonstrado, o novo dispositivo visa prevenir e reprimir a guerra fiscal, resguardando valores relevantes ao ordenamento jurídico, tais como a moralidade, legalidade, impessoalidade e o equilíbrio do pacto federativo.

O legislador, em um juízo de ponderação, fez uma opção, por prestigiar os valores mencionados, a custa de sacrificar, parcialmente, a autonomia municipal. Tal opção legislativa mostrou-se plenamente legítima, sobretudo porque a autonomia municipal, assim como todos os princípios constitucionais, não possui valor absoluto, admitindo restrições em face de outros valores constitucionalmente tutelados.

O novo art. 10-A da lei de improbidade, portanto, está em total sintonia com o conceito de improbidade administrativa decorrente do ordenamento constitucional, funcionando como mais um instrumento de tutela do Interesse Público Primário e do bom funcionamento da estrutura administrativa do Estado.

 

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