Análise do caso pimenta neves frente ao estado democrático de direito brasileiro

Toda a história do progresso humano foi uma série de transições através das quais costumes e instituições, umas após outras, foram deixando de ser consideradas necessárias à existência social e passaram para a categoria de injustiças universalmente condenadas. John Stuart Mill

Resumo: O Caso Pimenta Neves ficou conhecido como um homicídio passional, no qual o ex-namorado assassina a jovem  jornalista. O julgamento do assassino confesso levou seis anos para acontecer e mesmo condenado, Pimenta Neves, continua em liberdade. As garantias constitucionais que representam o Estado Democrático de Direito Brasileiro consolidam a igualdade como forma de garantir a segurança jurídica, mesmo que a sociedade cobre outro tipo de postura, mas mantêm o Estado, através do ordenamento, as condições mínimas de vida democrática da comunidade e do cidadão.

INTRODUÇÃO

O assassinato da jornalista Sandra Gomide ocupou durante os últimos seis anos o cenário brasileiro, como um crime bárbaro e também um processo demorado na punição do assassino confesso, o jornalista Pimenta Neves.

Até a década de 70 muitos homens agrediam e matavam suas mulheres, mas conseguiam a absolvição sob a alegação de que foram traídos, e agiam em “legítima defesa da honra”.

O presente estudo faz um paralelo do Caso Pimenta Neves frente ao Estado Democrático de Direito, instituição proclamada pela Constituição Federal, que destaca os valores fundamentais da pessoa humana, como exigência de organização e funcionamento do Estado, enquanto, órgão de proteção.

1 O CASO PIMENTA NEVES

Antônio Marcos Pimenta Neves, aos 63 anos, em 20 de agosto de 2000, por volta das 14h30, no Haras Setti, Ibiúna, interior de São Paulo, matou a ex-namorada, Sandra Florentino Gomide, 32 anos, com dois tiros. Testemunhas alegam ter ouvido a vítima implorar pela vida e, em seguida, os disparos.

O relacionamento do casal durou três anos, quando Pimenta Neves trocou o Jornal Gazeta pela chefia da redação do O Estado de São Paulo, levou consigo a namorada, nomeando-a diretora de economia. Aponta-se que Sandra rompeu com Pimenta Neves diante das constantes brigas, vindo a ser demitida pelo ex-namorado e então chefe, o qual passou a perseguí-la.

Quinze dias antes do crime, a jornalista prestou queixa na Polícia de que o ex-namorado havia invadido sua casa e a ameaçava de morte, na oportunidade, Sandra  encontrou  Pimenta Neves sentado diante de seu computador, com um revólver, querendo ler seus e-mails. O jornalista obrigou Sandra a devolver as jóias e roupas que havia lhe presenteado e em seguida, desferiu-lhe dois tapas, consumando as ameaças.

O comportamento violento do jornalista colaborou com a tese da Promotoria de Justiça de que Sandra fora assassinada por motivo torpe, a vingança, e “não teve chance de defesa, já que foi baleada pelas costas” (MARTINO, 2006, p. 114).

Em 21 de agosto de 2000 foi decretada a prisão preventiva de Pimenta Neves, dois dias após, os primeiros resultados do exame necroscópico revelaram que Sandra morrera vítima de dois disparos, o primeiro atingiu as costas e o segundo, dado à queima-roupa, a cabeça, pouco acima do ouvido esquerdo.

A pena por homicídio varia de seis a trinta anos de prisão, o promotor do caso qualificou o crime como premeditado e qualificado, também considerado hediondo, variando a pena de doze a trinta anos. Os advogados de Pimenta Neves utilizaram a tese da “forte emoção” no ato do disparo, característica do homicídio simples, com pena de seis a vinte anos, possibilitando a redução da pena em até um terço. A condenação inferior a oito anos possibilita o regime semi-aberto e o bom comportamento diminui o tempo da reclusão em até dois terços.

Através dos advogados, Pimenta Neves, acertou que se entregaria a Polícia, mas no dia anterior, foi levado ao hospital, em estado de coma, sendo encontrado ao lado de três caixas vazias de Lexotan e Frontal. Conforme boletim médico, o jornalista teria ingerido grande quantidade de tranqüilizante, passando a noite na Unidade de Tratamento Intensivo, com três policiais na porta, na condição de prisioneiro.

O desfecho do romance entre o diretor de redação e a editora de economia parecia anunciado, demonstrando-se deprimido após demitir a ex-namorada, Pimenta Neves, passou a espalhar a notícia de que Sandra recebera propinas, e que essa teria sido a causa da demissão.

A obsessão do jornalista era tamanha que, fazendo valer a autoridade de diretor de redação, passou a censurar as notícias que direta ou indiretamente estivessem relacionadas à Sandra, proibiu notas favoráveis às pessoas que mantinham alguma relação com a ex-editora de economia.

O jornal onde Pimenta Neves trabalhava tratou do crime na primeira página, embora sem destaque, denunciando o professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, Jair Borin, sua indignação com a mídia, a qual tratou o jornalista Pimenta Neves como “suspeito”, mesmo sendo assassino confesso, ponderando: “Se fosse um sujeito qualquer, seria chamado de criminoso, assassino, homicida. A manchete seria ‘Fulano mata jornalista pelas costas’.”.

O caso Sandra Gomide caminhou lentamente, levando seis anos para ir a julgamento, sendo que Pimenta Neves ingressou com cinco Embargos de Declaração, fato raro nas ações penais.

O jornalista ficou preso preventivamente sete meses, eis que o Supremo Tribunal Federal entendeu que não apresentava periculosidade, risco de fuga e possuía residência fixa (ERDELYI, 2005).

Em 2000, Pimenta Neves fora pronunciado na Comarca de Ibiúna, como incurso nas sanções do artigo 121, parágrafo 2º, incisos I e IV do Código Penal, em razão do motivo torpe, utilizando-se de meios que dificultaram a defesa da vítima, portanto, homicídio duplamente qualificado.

A defesa do jornalista entrou com recurso junto ao Tribunal de Justiça de São Paulo, o qual manteve a sentença de pronúncia, ingressando com Recurso Especial junto ao Superior Tribunal de Justiça e Recurso Extraordinário no Supremo Tribunal Federal, os quais não foram admitidos pelo Tribunal paulista, ocasionando dois Agravos de Instrumento (ERDELYI, 2005).

A defesa de Pimenta Neves utilizou-se dos recursos jurídicos para protelar o julgamento, com o intuito de o jornalista atingir os setenta anos, fato que o beneficiaria na redução da pena pela metade.

O jornalista foi a Júri Popular, em maio/2006, sendo condenado a dezenove anos, dois meses e doze dias, com o benefício de apelar em liberdade.

O assassino confesso de Sandra Gomide continua em liberdade, segundo informações de agosto/2006, foram negadas duas liminares impetradas pelo Ministério Público, que visavam revogar este benefício de apelação.

A decisão de conceder o benefício de apelar em liberdade fora proferida com base na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, invocando o preceito constitucional da presunção de inocência até o trânsito em julgado (decisão definitiva) da sentença condenatória.

Em fevereiro de 2007, o jornalista, completará setenta anos, podendo assim fazer jus à redução da pena em função da idade.

Os pais de Sandra Gomide ingressaram com uma Ação Indenizatória por Danos Morais contra Pimenta Neves, bloqueando seus bens, estando a demanda em fase de instrução.

A demora no julgamento e a liberdade de Pimenta Neves não podem ser atribuídas aos  recursos impetrados, pois estão previstos em lei e todos os cidadãos possuem o direito de se valer do ordenamento jurídico para sua defesa, o qual visa garantir e corrigir a atividade jurisdicional, mas o fator negativo no caso em tela é a morosidade do Poder Judiciário e de seus agentes.

Nos últimos anos, com a expansão e a presença do Direito em todas as áreas e setores da sociedade, este voltou a funcionar como base fundamental do princípio da legalidade, aprofundando e fortalecendo o Estado Democrático de Direito assunto a ser tratado na seqüência.

2 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO

A Constituição Federal, promulgada em 05 de outubro de 1988, buscou um ideário democrático e o Estado de Direito, passando a ser denominado Estado Democrático de Direito como reportado no Artigo 1º da Constituição Federal[1].

Os juristas Lenio Luiz Streck e José Luis Bolzan de Morais (2001, p. 92) definem o Estado Democrático de Direito como um novo conceito, na tentativa de conjugar o ideal democrático ao Estado, onde estão presentes as garantias jurídico-legais e a preocupação social. A legalidade busca a concretização da igualdade, não pela generalidade normativa, mas pela realização de intervenções que impliquem diretamente na alteração das condições sociais da comunidade e na salutar interação entre o cidadão e o Estado.

Reporta a idéia de Estado Democrático de Direito

[…] como um dos conceitos políticos fundamentais do mundo moderno. Trata-se de um Estado resultante de um determinado padrão histórico de relacionamento entre o sistema político e a sociedade civil, institucionalizado por meio de um ordenamento jurídico-constitucional desenvolvido e consolidado em torno de um conceito de poder público em que se diferenciam a esfera pública e o setor privado, os atos de império e os atos de gestão, o sistema político-institucional e o sistema econômico, o plano político-partidário e o plano político-administrativo, os interesses individuais e o interesse coletivo. (STRECK e BOLZAN DE MORAIS, 2001, p. 54)

Os Juízes, Promotores e Procuradores encarnam o idealismo e a moralidade no âmbito Estatal, proporcionando a população uma expectativa de mudança social, há muito frustrada, por diversos fatores contrários ao futuro e ao desenvolvimento do país.

O Caso Pimenta Neves demonstra em diversos estágios a atuação do Estado Democrático de Direito e por conseqüência a “intervenção estatal”, destacam-se os princípios: da ampla defesa; da dignidade da pessoa humana; da inocência; e, da legalidade.

A Constituição Democrática Brasileira deve ser vista e revista como um campo necessário de luta para implantação das promessas sociais/democráticas, devendo o Estado estar a serviço da construção da nação e subordinado à sociedade.

O Estado Democrático de Direito impõe à ordem jurídica e à atividade estatal um conteúdo de transformação, tendo como objetivo a igualdade, tornando-se a lei um instrumento de evolução social com a constante reestruturação das próprias relações.

O caráter democrático implica numa constante mutação e ampliação dos conteúdos do Estado de Direito havendo um sensível deslocamento da esfera de tensão do Poder Executivo e Legislativo para o Judiciário.

A opinião pública reflete a deturpação que atinge e molda opiniões sob medida, controladas e incapazes de contrapor interesses próprios a interesses alheios; é a crise moral que acompanha a crise política, econômica e social (STRECK e BOLZAN DE MORAIS, 2001, p. 186).

A República Federativa Brasileira agrega objetivos precisos na concepção do Estado Democrático de Direito procurando perseguir e tutelar os direitos fundamentais, estabelecendo responsabilidades e prioridades políticas interventivas em todos os campos das demandas sociais (LEAL).

São princípios do Estado Democrático de Direito conforme Lenio Luiz Streck e José Luis Bolzan de Morais (2001, p. 93): Constitucionalidade (vinculação do Estado a Constituição como instrumento básico de garantia jurídica); Organização Democrática da Sociedade; Sistema de direitos fundamentais individuais e coletivos (autonomia do homem perante os poderes públicos); Justiça Social (mecanismo corretivo das desigualdades); Igualdade (sociedade justa); Divisão de Poderes; Legalidade; Segurança e Certeza Jurídicas.

A idéia de Estado Democrático de Direito como Democracia passa pela eficácia e legitimidade do exercício dos interesses públicos e a demarcação da participação popular na construção da cidadania representativa e consciente (LEAL).

O Estado da Legalidade busca o efetivo Estado Democrático, reconhecendo a postura interventiva estatal, que concretiza a norma como parte do dever institucional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao deparar-se com um crime de repercussão como o Caso Pimenta Neves, a primeira atitude da sociedade é cobrar uma postura dos órgãos jurisdicionais, postura essa de dureza na punição dos culpados.

Ocorre, que o Estado não possuí condições de oferecer uma solução a esses anseios de forma rápida e que satisfaça a opinião pública, haja vista que a harmonia social e democrática deve orientar o procedimento da punição, visando garantir os direitos fundamentais, elencados na Constituição Federal.

O princípio da legalidade acaba por tornar-se o princípio da igualdade, eis que a lei é para todos e deve ser respeitada por todos.

Na situação apresentada a longa manus do Estado Democrático de Direito possuí diversas faces: ora levando criminosos para a cadeia; ora os mantendo livres; assegura a ampla defesa; demonstra a relevância da dignidade da pessoa humana, respeitando-se a idade e peculiar condição.

Compreende-se que o Estado possui a lei como emanação da vontade do povo e não expressão da vontade do governante. O legislador deve estar vinculado a legislação, sabendo que legislar não é instrumento de dominação arbitrária (LEAL).

A leitura do Estado Democrático de Direito na concepção de Rogério Gesta Leal é o governo regido pelas leis, mas não sendo a positivação suficiente quando existe a pretensão de enfrentar a realidade, onde a sociedade encontra-se dominada pelas contradições econômicas e culturais.

A organização social/estatal, baseada na liberdade tutelada pela lei, na igualdade formal, na certeza jurídica, abre caminho ao conjunto de atitudes, hábitos e procedimentos, cabendo ao Estado, regular as formas da convivência social e garantir sua conservação.

Portanto, o Estado Democrático de Direito continua um ideal a ser perseguido, com vistas a transformar-se em realidade, na qual os cidadãos só realizarão seus propósitos se souberem ousar e sonhar. Os sonhos, todavia, por serem sempre incompletos, necessitam ser trabalhados, por isso, todos devem empenhar-se para que o sonho democrático deixe, finalmente, de ser sonho.

 

Referências bibliográficas
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 05 de outubro de 1988. Obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Antônio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Luiz Eduardo Alves de Siqueira. 25. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2000.
ERDELYI, Maria Fernanda. Tempo de Injustiça. Cinco anos depois, Pimenta Neves continua impune. Revista Consultor Jurídico, 20 de agosto de 2005. Disponível em: http://conjur.estadao.com.br/static/text/37252,1. Acesso em: 08 Set. 2006.
LEAL, Rogério Gesta. Significados e sentidos do Estado Democrático de Direito enquanto modalidade ideal/constitucional do Estado Brasileiro. Disponível em: http://www.unisc.br/universidade/estrutura_administrativa/centros/cepejur/docs/artigo01.doc. Acesso em: 08 Set. 2006.
MARTINO, Victor. Justiça – Condenado e Solto. Pimenta Neves é sentenciado a dezenove anos de prisão. Mas saiu livre. Revista Veja. São Paulo: 10 de maio de 2006, p. 114.
STRECK, Lenio Luiz; BOLZAN DE MORAIS, José Luis. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. 2 ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
Nota:
[1] Artigo 1º – Constituição Federal – A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I – a soberania;
II – a cidadania;
III – a dignidade da pessoa humana;
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V – o pluralismo político.
Parágrafo único – Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Tatiana Poltosi Dorneles

 

advogada. Graduada em Direito pela Universidade Regional Integrada (URI – Santiago); Mestranda em Educação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM); Especializanda em Direito de Família e Sucessões na ULBRA – Santa Maria.

 


 

logo Âmbito Jurídico