Resumo: O presente estudo tem por objetivo analisar criticamente o teor da Orientação Jurisprudencial nº 376 do Tribunal Superior do Trabalho, que estabelece que as contribuições previdenciárias deverão incidir sobre o valor do acordo celebrado pelas partes após o trânsito em julgado da sentença de mérito e não sobre as parcelas salariais já liquidadas. Assim, foi realizada uma breve exposição das normas jurídicas que regulam a matéria, em especial aquelas introduzidas por meio das Leis 11.457/07 e 11.941/09, de modo a confrontar a atual sistemática vigente com a interpretação a elas conferida pela mais alta corte trabalhista.
Palavras-chave: Acordo. Sentença. Trânsito em Julgado. Efeitos previdenciários. OJ nº 376 do TST.
Sumário: 1. Introdução; 2 contexto normativo; 3. O atual posicionamento do tst; 4. Conclusão.
1 INTRODUÇÃO
O Tribunal Superior do Trabalho, por meio da Seção de Dissídios Individuais (SDI-1), editou, no dia 19.04.2010, a Orientação Jurisprudência nº 376, assim dispondo:
“376. CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. ACORDO HOMOLOGADO EM JUÍZO APÓS O TRÂNSITO EM JULGADO DA SENTENÇA CONDENATÓRIA. INCIDÊNCIA SOBRE O VALOR HOMOLOGADO.
É devida a contribuição previdenciária sobre o valor do acordo celebrado e homologado após o trânsito em julgado de decisão judicial, respeitada a proporcionalidade de valores entre as parcelas de natureza salarial e indenizatória deferidas na decisão condenatória e as parcelas objeto do acordo.”
A edição da referida Orientação Jurisprudencial cristaliza o posicionamento reiterado do TST acerca dos efeitos perante a Previdência Social dos acordos celebrados pelas partes após o trânsito em julgado da sentença de mérito.
Com efeito, a situação regulada pela orientação acima citada é aquela em que as partes em uma Reclamação Trabalhista resolvem pôr fim ao processo mediante a celebração de um acordo na fase de execução, em que já se encontram apurados os créditos previdenciários incidentes sobre as verbas salariais deferidas ao reclamante na sentença de mérito.
Nesse caso, surge a seguinte indagação: as contribuições previdenciárias poderão ter a sua base de cálculo reduzida pelo acordo celebrado, incidindo somente sobre as verbas transacionadas, ou deverão ser mantidas em sua integralidade, não sendo afetadas pelo ajuste realizado entre as partes?
A resposta para tal indagação possui enorme relevância de ordem prática, uma vez que, diariamente, são celebrados incontáveis acordos na fase executória nas diversas varas do trabalho, de modo que tanto o jurisdicionado quanto a Previdência Social são diretamente afetados pela questão que ora se examina.
Para melhor compreensão do tema objeto do presente estudo, necessária se faz uma breve digressão acerca das normas jurídicas que regulam a matéria, bem como dos precedentes que levaram a mais alta corte trabalhista a firmar o posicionamento estampado na referida Orientação Jurisprudencial.
2 CONTEXTO NORMATIVO:
A Consolidação das Leis do Trabalho assim dispõe em seu artigo 832, §6º, com a redação dada pela Lei 11.457/07:
“Art. 832 – Da decisão deverão constar o nome das partes, o resumo do pedido e da defesa, a apreciação das provas, os fundamentos da decisão e a respectiva conclusão. (…)
§ 6º O acordo celebrado após o trânsito em julgado da sentença ou após a elaboração dos cálculos de liquidação de sentença não prejudicará os créditos da União.”
Da leitura do dispositivo acima transcrito depreende-se que a norma celetista é clara ao dispor que o acordo celebrado pelas partes após o trânsito em julgado da sentença meritória não tem o condão de afetar os créditos previdenciários pertencentes à União.
Com efeito, deve-se atentar para o fato de que no momento em que as partes celebram um acordo na fase de execução, o crédito previdenciário já se encontra definitivamente constituído pelo ato do juiz do trabalho que declarou líquida a sentença.
De fato, a homologação judicial da conta previdenciária possui a natureza jurídica de lançamento, havendo a definitiva constituição do crédito tributário, de modo que os atos posteriormente praticados no curso do processo de execução somente têm por objetivo a satisfação do montante apurado.
Dessa forma, resta claro que a Previdência Social possui o direito adquirido de exigir a integral satisfação do crédito previdenciário, uma vez que o mesmo já se incorporou ao seu patrimônio jurídico, de modo que o artigo mencionado nada mais fez do que dar efetividade ao preceito constitucional contido no art. 5º, XXXVI da Constituição Federal, que põe à salvo a figura do direito adquirido e da coisa julgada.
Entretanto, a Lei 11.941/09, sem revogar expressamente o dispositivo supratranscrito, conferiu nova redação ao art. 43 da Lei 8.212/91, introduzindo o §5º, com a seguinte redação:
“Art. 43. Nas ações trabalhistas de que resultar o pagamento de direitos sujeitos à incidência de contribuição previdenciária o juiz, sob pena de responsabilidade, determinará o imediato recolhimento das importâncias devidas à Seguridade Social. (…)
§5º Na hipótese de acordo celebrado após ter sido proferida decisão de mérito, a contribuição será calculada com base no valor do acordo.”
Analisando o teor de ambos os artigos, tem-se um conflito aparente de normas, uma vez que a CLT determina que os acordos celebrados após o trânsito em julgado não afetarão os créditos da União e a Lei 8.212/91 determina que as contribuições previdenciárias deverão incidir sobre o valor do acordo celebrado após proferida decisão de mérito.
Havendo um conflito de normas, ainda que aparente, cabe ao interprete buscar a solução que melhor se amolda ao sistema jurídico como um todo, tendo sempre como elemento norteador os preceitos contidos na Carta Magna, levando-se em conta a normatividade dos princípios constitucionais.
Assim, como conciliar a interpretação dos dispositivos legais acima transcritos, com o preceito contido no art. 5º, XXXVI da Constituição Federal?
Um valioso método interpretativo leva em consideração a exegese que melhor se amolda à Constituição. Sobre o tema, valiosa é a lição do professor Luis Roberto Barroso:
“A interpretação conforme a Constituição, categoria desenvolvida amplamente pela doutrina e pela jurisprudência alemãs, compreende sutilezas que se escondem por trás da designação truística do princípio. Destina-se ela à preservação da validade de determinadas normas, suspeitas de inconstitucionalidade, assim como à atribuição de sentido às normas infraconstitucionais, da forma que melhor realizem os mandamentos constitucionais. Como se depreende da assertiva precedente, o princípio abriga, simultaneamente, uma técnica de interpretação e um mecanismo de controle de constitucionalidade.
Como técnica de interpretação, o princípio impõe a juízes e tribunais que interpretem a legislação ordinária de modo a realizar, da maneira mais adequada, os valores e fins constitucionais. Vale dizer: entre interpretações possíveis, deve-se escolher a que tem mais afinidade com a constituição.”[1]
Feita essa breve digressão, voltemos à analise das normas em comento.
A regra contida no art. 832, §6º, da CLT esclarece que o acordo celebrado após o trânsito em julgado da sentença não prejudicará os créditos da União. Por sua vez, o art. 43, §5º, da Lei 8.212/91 determina que, na hipótese de acordo celebrado após ter sido proferida decisão de mérito, a contribuição será calculada com base no valor do acordo.
Como é sabido, o trânsito em julgado ocorre quando contra determinada decisão judicial não é mais cabível nenhum recurso, seja pelo esgotamento das instâncias, seja pelo transcurso do prazo recursal.
Assim, poderíamos pensar que a regra contida na Lei 8.212/91 é mais abrangente, uma vez que um acordo celebrado após o trânsito em julgado, certamente também terá sido celebrado após proferida uma decisão de mérito.
Com efeito, se o acordo foi celebrado já na fase de execução definitiva, ou seja, após o trânsito em julgado da sentença (hipótese prevista no art. 832, §6º, da CLT), terá ele também sido celebrado após proferida a decisão de mérito (hipótese prevista no art. 43, §5º, da CLT), atraindo a incidência simultânea de ambos os dispositivos legais, cujos efeitos jurídicos são distintos.
Se entendermos que ambas as normas se subsumem à mesma situação hipotética, havendo um conflito entre ambas, necessariamente deveremos descartar a aplicação de uma delas, sendo inviável que duas normas com conteúdo antagônico regulem uma mesma situação de fato.
Poder-se-ia argumentar que a Lei 11.941/09, que introduziu o §5º, no art. 43, da Lei 8.212/91 é posterior à edição da Lei 11.457/07, que deu nova redação ao art. 832, §6º, da CLT, de modo que esta última restou tacitamente revogada.
Entretanto, tal não é a hipótese que melhor se adequa à interpretação constitucional dos referidos dispositivos legais.
De fato, devemos ter como marco interpretativo o preceito insculpido no art. 5º, XXXVI, da Carta Magna, que ressalva que a lei não afetará o direito adquirido nem tampouco a coisa julgada.
A se imaginar a indistinta aplicação do art. 43, §5º, da Lei 8.212/91 a todos os acordos celebrados após a sentença de mérito, inclusive aqueles celebrados após o trânsito em julgado, estaríamos conferindo à lei uma interpretação inconstitucional, de modo a permitir a lesão ao direito adquirido da União em cobrar o crédito previdenciário definitivamente constituído.
Assim, a fim de harmonizar ambos os dispositivos legais com a disposição constante no art. 5º, XXXVI, podemos chegar à conclusão de que as normas mencionadas tratam de acordos celebrados em momentos processuais distintos, de modo que a sua subsunção ao fato concreto dependerá da fase processual em que realizada a conciliação das partes.
Desse modo, se o acordo for celebrado após proferida a decisão de mérito, mas antes do seu trânsito em julgado, deverá ser aplicada a disposição constante no art. 43, §5º, da Lei 8.212/91, de modo que a base de cálculo das contribuições previdenciárias será o valor das verbas salariais constantes no referido acordo.
Explica-se: até que se tenha uma decisão judicial transitada em julgado, ainda não existe um crédito tributário definitivamente constituído, havendo uma mera expectativa de direito da União em relação à manutenção da base de cálculo fixada na sentença judicial, de modo que, caso as partes se conciliem enquanto estiver pendente o julgamento de eventual recurso interposto, prevalecerá como base de cálculo previdenciária o valor do acordo celebrado, aplicando-se a regra contida na Lei 8.212/91.
Se, por outro lado, o acordo for celebrado após o trânsito em julgado da sentença, este atrairá a incidência do art. 832, §6º, da CLT, de modo que não serão afetados os créditos previdenciários da União, sob pena de ofensa ao direito adquirido e à coisa julgada .
3 O ATUAL POSICIONAMENTO DO TST:
Não obstante as considerações tecidas acima, tal não foi o posicionamento adotado pelo colendo TST por meio da Orientação Jurisprudencial nº 376 da Seção de Dissídios Individuais (Subseção I), de modo que a referida corte trabalhista firmou o entendimento de que mesmo os acordos celebrados após o trânsito em julgado da sentença de mérito prevalecerão como base de cálculo das contribuições previdenciárias.
Para a melhor compreensão do contexto em restou publicada a mencionada Orientação Jurisprudencial, se faz necessária uma breve análise de seus precedentes jurisprudenciais.
O principal fundamento jurídico esposado pelo TST para adotar o posicionamento segundo o qual o acordo celebrado após a sentença de mérito transitada em julgado deve sobre esta prevalecer é o de que o fato gerador das contribuições previdenciárias é o efetivo pagamento das verbas salariais ao obreiro.
Assim, se o reclamante não veio a receber integralmente as verbas deferidas na sentença de mérito, uma vez que renunciou a uma parte do seu crédito, as contribuições previdenciárias somente poderão incidir sobre os valores efetivamente pagos em decorrência do acordo celebrado, uma vez que ainda não terá ocorrido a necessária hipótese de incidência tributária.
Com a devida vênia, tal não é a interpretação que melhor se amolda a uma leitura sistemática dos dispositivos legais e constitucionais aplicáveis ao tema.
Com efeito, como já exposto linhas acima, referida interpretação desconsidera o fato de que o crédito previdenciário já se encontra definitivamente constituído quando da celebração do acordo pelas partes na fase de execução, o que importa em violação do dispositivo constante no art. 5º, XXXVI, da Constituição da República.
De se observar que, nos exatos termos do art. 43, §2º, da Lei 8.212/91, considera-se ocorrido o fato gerador das contribuições previdenciárias na data da prestação dos serviços e não no momento do pagamento pela sua contraprestação, de modo que é indiferente, do ponto de vista tributário, o fato do reclamante renunciar a uma parte do seu crédito.
Realmente, a leitura do art. 22, I, da Lei 8.212/91, que define a hipótese de incidência das contribuições previdenciárias, nos revela que as mesmas incidem sobre as remunerações devidas aos empregados, de modo que para a configuração do fato gerador é indiferente que tais verbas tenham sido efetivamente pagas ao obreiro.
Assim, a sentença de mérito tem o condão de estabelecer que determinada verba trabalhista foi indevidamente suprimida da remuneração do empregado e, após declarar tal fato, proceder ao lançamento das contribuições previdenciárias incidentes sobre as referidas verbas.
Dessa forma, e com a devida vênia, a interpretação conferida pelo colendo TST acerca dos efeitos perante a Previdência Social do acordo celebrado após o trânsito em julgado da sentença de mérito, sob a ótica estritamente jurídico-formal, não é a que melhor se amolda aos preceitos legais e constitucionais aplicáveis à espécie.
Entretanto, pode-se afirmar que a corte trabalhista adotou um modelo misto, não desprezando por completo o conteúdo da decisão judicial transitada em julgado.
Com efeito, a mencionada Orientação Jurisprudencial reza que deverá ser respeitada a proporcionalidade de valores entre as parcelas de natureza salarial e indenizatória deferidas na decisão condenatória e as parcelas objeto do acordo.
Como é sabido, as contribuições previdenciárias somente incidem sobre as verbas cuja natureza seja salarial, de modo que as parcelas indenizatórias, previstas no art. 28, §9º, da Lei 8.212/91, não sofrem a incidência tributária.
Por outro lado, o art. 43, §1º, da Lei 8.212/91, determina que, ao celebrarem um acordo, as partes têm a obrigação de discriminar a natureza e o valor das verbas acordados, sob pena de incidência das contribuições previdenciárias sobre o valor total do ajuste.
Assim, quando a celebração do acordo houver ocorrido após o trânsito em julgado da sentença de mérito, as partes não poderão desprezar por completo o conteúdo da sentença, devendo se ater à natureza das verbas deferidas, para fins de proporcionalização entre aquelas de natureza salarial e aquelas de natureza indenizatória que serão convencionadas.
4 CONCLUSÃO
Se, por um lado, a Orientação Jurisprudencial nº 376 da Seção de Dissídios Individuais (SDI-1) do Tribunal Superior do Trabalho tem o mérito de procurar pacificar um tema atualmente tão controvertido na Justiça do Trabalho, buscando conferir maior segurança jurídica aos jurisdicionados, por outro lado, a mesma merece críticas no que tange ao conteúdo do seu enunciado, uma vez que, sob o ponto de vista estritamente jurídico, não levou em consideração todo o arcabouço normativo, em especial aquele de índole constitucional, aplicável ao tema.
Como inclusive é possível se depreender da análise de alguns dos precedente jurisprudenciais que levaram à edição da referida orientação[2], o Tribunal Superior do Trabalho teve como escopo equacionar, do ponto de vista prático, ambos os interesses envolvidos na questão em tela, na medida em que a fazenda pública sempre defendeu a intangibilidade dos créditos previdenciários constituídos com base na sentença transitada em julgado e as partes, por sua vez, têm sustentado a total liberdade de transação, inclusive no que se refere às verbas objetos do acordo, de modo que a incidência estaria condicionada às parcelas por elas ajustadas.
Assim, a corte adotou uma posição intermediária, fazendo prevalecer o acordo como base de cálculo, mas respeitando a proporcionalidade das verbas deferidas na sentença de mérito.
Por fim, não se pode perder de vista o fato de que as Orientações Jurisprudenciais, ao contrário das Súmulas, não se vocacionam pela definitividade, sendo pela sua própria essência, possuidoras de uma maior volatilidade, de modo que ainda não é tarde para que tal posicionamento seja revisto, de modo a se conferir ao tema posto em análise uma interpretação sistemática e que se afine com os preceitos constitucionais assecuratórios da coisa julgada e do direito adquirido, resguardando o crédito tributário definitivamente constituído dos ajustes celebrados pelos particulares.
Informações Sobre o Autor
José Vicente Santiago Junqueira
Procurador Federal em Vitória/ES, Especialista em Direito Público pela Faculdade de Direito de Vitória – FDV, Especialista em Hermenêutica e Prática Judicial pela Universidade Federal do Espírito Santo – UFES