Anotações sobre a teoria geral do negócio jurídico

Resumo: Trata-se de artigo onde buscou-se analisar a teoria geral do negócio jurídico em seus diversos aspectos de acordo com a atual visão doutrinária.

Sumário: Introdução. 1. Conceito e Classificação. 2. Teoria tricotômica e Teoria da Inexistência do Negócio Jurídico. 3. Princípios Fundamentais: Autonomia Privada, boa-fé e igualdade. 4. Declaração de vontade. 5. Objeto e causa do negócio jurídico. 6. Forma. 7. Defeitos do negócio jurídico. 8. Ilicitude. Conclusões. Referências.

INTRODUÇÃO.

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As relações travadas na vida social, em sua grande parte, interessam às Ciências Jurídicas, que por sua vez interpretam as mesmas como fenômenos que dão origem as relações jurídicas.

As relações jurídicas originam-se a partir de fatos jurídicos, ou seja, acontecimentos naturais (fato jurídico strictu sensu) ou voluntários (ato jurídico) que por alguma razão, são relevantes para o sistema jurídico. Acontecido um fato jurídico, desencadeia-se uma reação que toca a esfera jurídica em um ou vários pontos do sistema, ocorrendo um processo de identificação (exegese) do fato acontecido, com a norma jurídica, para que então, possam ser identificados os direitos e as obrigações provocadas pelo fato ocorrido.

No entanto, nem todo fato pode vir a ter alguma relevância jurídica. Para que o fato tenha relevância, é necessário prévia previsão na norma jurídica (hipótese de incidência), de forma que haverá, portanto, sempre uma previsão normativa que o fato jurídico possa ser identificado como tal.

Eis, portanto, o fato jurídico, elemento indispensável para o estudo que pretendemos apresentar, qual seja, as características fundamentais do negócio jurídico.

Ainda antes de analisarmos o negócio jurídico em sua essência, prudente esclarecer que dentro da classificação dos fatos jurídicos, encontramos como subespécie, os atos jurídicos, donde deriva, por sua vez, o negócio jurídico.

Atos jurídicos, na realidade, são fatos humanos, que conforme lembra ASCENSÃO, a caracterização dos atos tem como constituinte mínimo a voluntariedade, atribuindo, o Direito, efeitos para essa postura volitiva[1].

Todavia, aplica-se aos autos jurídicos a mesma seletividade dos fatos, para identificarmos sua relevância ao Direito. Devemos, portanto, observar três características essenciais para classificá-los como atos: voluntariedade, intenção e finalidade.

Ademais, oportuno é o esclarecimento feito por BETTI[2], quanto à separação de fatos e atos jurídicos, informando que:

“Na realidade, a distinção entre atos e fatos jurídicos só tem sentido na medida em que tome por base o modo como a ordem jurídica considera e valoriza determinado fato. Se a ordem jurídica toma em consideração o comportamento do homem em si mesmo, e, ao atribuir-lhe efeitos jurídicos, valoriza a consciência que, habitualmente, o acompanha, e a vontade que, normalmente, o determina, o fato deverá qualificar-se como ato jurídico. Mas deverá, pelo contrário, qualificar-se como fato, quando o direito tem em conta o fenômeno natural como tal, prescindido da eventual concorrência da vontade: ou então quando ele considera, realmente, a ação do homem sobre a natureza exterior, mas , ao fazê-lo, não valora tanto o ato humano em si mesmo, quanto o resultado de fato que ele tem em vista: quer dizer, a modificação objetiva que ele provoca no estado de coisas preexistente.”

Eis, portanto, os esclarecimentos iniciais, fundamentais para prosseguirmos na pretendida análise da teoria geral do negócio jurídico.

1. CONCEITO E CLASSIFICAÇÃO.

Mas o que é o negócio jurídico? UBALDINO MIRANDA[3] responde tal indagação afirmando que “Mais do que simples manifestação de vontade, o negócio jurídico é uma declaração de vontade.”.

Como núcleo da lição destacada, observamos que a identificação do negócio jurídico, é rastreada através da declaração de vontade expressada entre as partes envolvidas na relação negocial. Isto porque, o negócio jurídico, estará sempre ligado a um ato volitivo, donde poderemos identificar uma ou mais declarações de vontade, em que o ordenamento jurídico denunciará efeitos sobre o conteúdo da vontade declarada, buscando com a produção destes efeitos, a estabilização das relações queridas entre as partes.

Sem embargo, para identificação do negócio jurídico querido, o legislador optou pela valoração da vontade declarada, em detrimento da vontade intima (ou vontade primitiva) das partes contratantes. E é exatamente quanto a este particular (vontade declarada) que vale observarmos a distinção entre ato jurídico e negócio jurídico.

Lecionando sobre a distinção de ato jurídico e negócio jurídico, LOTUFO[4] afirma que:

“Ato jurídico e negócio jurídico são manifestações de vontade, mas diferem quanto à estrutura, à função e aos respectivos efeitos. Quanto à estrutura, enquanto nos atos jurídicos temos uma ação e uma vontade simples, nos negócios jurídicos temos uma ação e uma vontade qualificada, que é produzir um efeito jurídico determinado, vontade caracterizada pela sua finalidade específica, que é a constituição, modificação ou extinção de direitos.”

É na declaração de vontade, onde encontramos a qualificação referida por LOTUFO, pois nela estará expressada a vontade que produzirá os efeitos atribuídos pelo ordenamento jurídico.

A qualificação da vontade expressada na declaração negocial, é fruto de um reconhecimento social, que aceita a irradiação de seus efeitos, em virtude da licitude do negócio praticado entre as partes.

AZEVEDO[5] esclarece que:

“sendo a declaração de vontade um ato que, em virtude das circunstâncias em que se produz, é visto socialmente como dirigido à produção de efeitos jurídicos, o direito segue a visão social e encobre aquele ato com seu próprio manto, atribuindo-lhe normalmente (isto é, respeitados os pressupostos da existência, validade e eficácia) os efeitos que foram manifestados como queridos. Tais efeitos são imputados à declaração em correspondência com os manifestados como queridos”.

Nota-se, diante das lições transcritas, que o negócio jurídico é reconhecido pelo sistema jurídico, por intermédio da declaração nele expressada, abandonando a ótica da vontade interna do agente, com a finalidade de alcançar uma ótica social, composta por valores insertos no ordenamento, e que representam o querer atual da sociedade. Eis a finalidade de abandonar a estreita visão do agente.

Convém ressaltar, que essa valoração atribuída à declaração negocial, encontra-se marcada pela oposição à superada visão da igualdade formal. Estamos vivenciando em nosso ordenamento jurídico atual, o declínio da visão absolutista do Direito Privado, que se encontra em estágio de harmônico com os mais afinados preceitos constitucionais, dentre os quais, destacamos a dignidade da pessoa humana e a igualdade material.

Esse olhar implantado pelo Direito Constitucional, nas relações tratadas pelo Direito Civil, chamado por muitos de processo de constitucionalização do Direito Privado, é o núcleo de sustentação da valoração interpretativa da declaração de vontade negocial, para que ocorra a igualdade material das relações tuteladas pelo direito.

O negócio jurídico lícito será sempre objeto de interpretação conjugada com a finalidade social, para que por sua vez, seja analisado o resultado da produção de seus efeitos, de acordo com a norma jurídica que toque a essência existencial do negócio.

Neste particular, deve ser apontado, que o ato que desencadeia o negócio jurídico, para ser reconhecido como pleno, deve ser produzido por intermédio de um ato lícito, pois muito embora o ato ilícito possa excepcionalmente ser considerado um negócio jurídico, a regra é que por ser contrário à postura socialmente aceita pelo ordenamento, de ser reconhecida a nulidade do ato ilícito.

Conceituado o negócio jurídico, torna-se relevante classificá-lo para melhor conseguir desenvolver os temas que se seguem.

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De uma maneira geral, podemos classificar o negócio jurídico da seguinte forma:

i.       quanto ao número de declarantes: unilateral, bilateral e plurilateral;

ii.      quanto à onerosidade: gratuitos e onerosos;

iii.    quanto à forma: formais/solenes e livres/não formais;

iv.    quanto ao momento de produção de efeitos: inter vivos e causa mortis;

v.     quanto à existência: principais e acessórios;

vi.    quanto ao conteúdo: patrimoniais e extrapatrimoniais; e

vii.  quanto à eficácia: constitutivos (eficácia com efeito ex nunc) e declaratórios (eficácia com efeitos ex tunc).

2.TEORIA TRICOTÔMICA E TEORIA DA INEXISTÊNCIA DO NEGÓCIO JURÍDICO.

A teoria tricotômica do negócio jurídico, refere-se à verificação de elementos essenciais para caracterização do negócio jurídico. A existência, a validade e a eficácia, constituem os planos elementares do negócio jurídico.

A verificação do plano de existência ocorre quando se confere a incidência das normas jurídicas sobre o fato jurídico.

AZEVEDO[6] definindo o plano de existência, afirma que:

“Quando acontece, no mundo real, aquilo que estava previsto na norma, esta cai sobre o fato, qualificando-o como jurídico; tem ele, então, existência jurídica.”

No entanto, é preciso que o ato jurídico preencha certos elementos, para sustentar sua existência no plano jurídico. E quais elementos de existência seriam estes? Classicamente define-se como elementos gerais, a forma, o objeto e as circunstâncias negociais. AZEVEDO[7] aponta ainda a existência de outros elementos que não os gerais, denominando-os como elementos extrínsecos, referindo-se ao tempo, lugar e ao agente.

Para simplificar a classificação acima trazida, podemos dizer que de uma maneira geral, a existência do negócio jurídico, estará condicionada à presença da declaração de vontade, da finalidade negocial e da idoneidade do objeto.

A declaração de vontade, é um dos pressupostos elementares para existência do ato, porquanto sem ela, não existe exteriorização da manifestação da vontade querida.  Neste particular, CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA[8] afirma que:

“a vontade interna ou real é que traz a força jurígena, mas é a sua exteriorização pela declaração que a torna conhecida, o que permite dizer que a produção de efeitos é um resultado da vontade mas que esta não basta sem a manifestação exterior.”

Podemos perceber, portanto, que para produção de efeitos, é necessária que a vontade interna do agente, seja expressada através de uma declaração, que por sua vez, a referida declaração que abrangerá a análise da vontade querida/manifestada pelas partes negociantes.

A finalidade negocial, abrange a vontade das partes em adquirir, conservar, modificar ou extinguir uma determinada situação jurídica. Por sua vez, a idoneidade do objeto, refere-se à existência de requisitos e qualidades incidentes sobre o objeto, aceitas previamente pelas partes negociantes.

Aceita a existência do ato, passa-se então para a análise da validade do mesmo. No plano da validade do ato, analisa-se o preenchimento dos requisitos do ato jurídico, verificando se os atos possuem as condições necessárias para alcançar a finalidade do negócio celebrado.

O último plano que compõe a teoria tricotômica do negócio jurídico, é tratada como a eficácia do negócio jurídico. Neste plano, avalia-se a eficácia do negócio celebrado, tão somente, frente ao ordenamento jurídico, vez que perante os agentes, o negócio já irradia efeitos do quanto celebrado.

É neste plano (eficácia) que o aplicador da lei, deverá ter especial atenção à boa-fé negocial e ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, fenômenos de absoluta importância para preservação das relações jurídicas defeituosas.

Classificando os fatores responsáveis pela eficácia do negócio jurídico, AZEVEDO[9] propõe o seguinte critério:

i.       Fatores de atribuição de eficácia em geral: são fatores que sem a presença destes, o ato não produz nenhum efeito (ex.: condição ou termo);

ii.      Fatores de atribuição da eficácia diretamente visada: são fatores indispensáveis para que o negócio que de certa forma já produz algum efeito entre as partes, venha a produzir exatamente o efeito querido; e

iii.    Fatores de atribuição de eficácia mais extensa: são fatores relacionados a eficácia plena do negócio, ou seja, muito embora o negócio jurídico produza os efeitos queridos entre as partes, muitas vezes é necessários que os efeitos possam ser sabidos por terceiros, produzindo, portanto, eficácia erga omnes, como é o caso do registro de alienação, feito na matrícula do imóvel.

É certo, no entanto, que pode o ato jurídico existir, ser válido, mas não conter eficácia sobre os efeitos queridos. O Código Civil atual, optou por não seguir a teoria tricotômica até agora tratada, isto porque, o plano da eficácia dos negócios jurídicos, nem sempre é inserido de forma imediata, bastando a existência de condição suspensiva ou termo para que isto aconteça.

E ainda, assinalamos que o negócio jurídico poderá ser inexistente quando ausente qualquer dos elementos estruturais acima elencados. No entanto, relevante no nosso direito, é a aceitação da teoria do negócio inexistente, da qual adiante trataremos.

O negócio jurídico inexistente é aquele que falta a expressão da declaração negocial. É, portanto, um negócio aparente.

MIRANDA[10] situando o contexto histórico da teoria do negócio jurídico inexistente, esclarece que:

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“a doutrina francesa que, em face do aforismo do seu sistema, pas de nullité sans texte, construiu a teoria da inexistência, inicialmente em matéria dos casamentos, considerando-os inexistentes quando realizados sem um dos elementos constitutivos (v. g. Identidade dos sexos, falta de celebração por autoridade competente), mas para os quais não havia texto legal prevendo a nulidade.”

No nosso atual sistema normativo, não há tratamento específico para esta figura jurídica. O legislador optou apenas por tratar sobre as nulidades e sobre as anulabilidades, esquecendo-se quanto aos negócios inexistentes.

Utilizando de peculiar clareza, MIRANDA[11] conclui sobre a aplicabilidade da teoria do negócio jurídico inexistente, com os seguintes ensinamentos:

“Concluindo: quer porque se trata de uma categoria lógico-racional, imposta pela própria natur4eza das coisas (ao existente deve necessariamente contrapor-se o inexistente, sob pena de uma arbitrária transposição de planos), que porque só a inexistência jurídica é capaz de explicar por que, para além da nulidade, um negócio pode ser absolutamente insusceptível de produzir quaisquer efeitos, nada obsta, antes tudo recomenda, a aceitação da figura da inexistência jurídica e, consequentemente, de negócio jurídico inexistente sempre que carecer de um de seus elementos ou pressupostos essenciais, acima referidos.”

Desta forma, entendemos que o negócio inexistente, por clamar tratamento diferente dos negócios nulos ou anuláveis, deverá ser sempre analisado com cautela, caso reclame a necessidade de conservação do negócio aparente.

3.PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS: AUTONOMIA PRIVADA, BOA-FÉ E IGUALDADE.

Mas o que é a autonomia privada? Para MIRANDA[12], a autonomia privada na concepção moderna, está ligada a vontade individual, apontando, inclusive, que a autonomia privada é a expressão da liberdade individual, podendo ser denominada como “autonomia social”, que por sua vez, sempre vai ser limitada pelo ordenamento jurídico.

A restrição negocial (liberdade negocial) considera-se fundamental na ordem pública.

Neste particular, aponta PERLINGERI[13] que a autonomia privada é a autorregulamentação da vontade. Trata-se, da possibilidade de regular com as próprias manifestações de vontade e os interesses privados ou públicos, ainda que não necessariamente próprios.

Como sabemos, nenhuma liberdade é absoluta, todas encontram-se balizadas nos limites impostos nos seus respectivos ordenamentos. Eis o que acontece na autonomia privada em que “tudo pode” de acordo com o ordenamento jurídico.

Observando os limites da autonomia da vontade, CASTRO Y BRAVO[14] observa que frente aos abusos cometidos pelos particulares, necessário se faz a intervenção estatal, para que limite os excessos verificados.

Nesse contexto, FARIA[15] aponta que, muito embora a autonomia privada sofra suas limitações, essa “autonomia” não desaparece, o que se passa, é uma releitura da autonomia da vontade (que é na sua essência individualista), ganhando o nome de autonomia privada.

A aplicação de preceitos constitucionais passa a ser um limitador da autonomia privada, ganhando destaque a aplicação dos conceitos da boa-fé e da função social, sendo estas limitações de caráter social inseridas no sistema jurídico, decorrentes das relações lógicas sociais.

Neste diálogo entre o Direito Civil e o Direito Constitucional, até mesmo diante da hierarquia de normas, passa-se a aplicar as diretrizes constitucionais, formando as cláusulas gerais atualmente inseridas no Direito Civil.

Neste campo, uma questão que se apresenta, é a forma pela qual o sistema lidou com a contraposição da liberdade (autonomia) com a igualdade. Para explicar esta acomodação de preceitos, AGUIAR JÚNIOR[16] aponta que os princípios constitucionais servem para construir o Direito Civil, afirmando que a aplicação pura e simples do princípio da igualdade formal, gerou verdadeiras desigualdades, de forma que foi necessária a evolução para a igualdade substancial, consagrada no princípio da proporcionalidade, que é o caminho para o legislador efetivar os ditamos da igualdade.

A inobservância de preceitos constitucionais (cláusulas gerais, como é o caso da boa-fé), aponta NALIN[17] que tal situação levaria à inexistência do negócio jurídico, já que a boa-fé seria um elemento de materialização do negócio. NALIN prossegue analisando o tema, afirmando que a boa-fé encontra-se dentre os elementos que formam o negócio jurídico, encontrando-se, portanto, inserida no plano de existência, ou seja, fazendo parte dos elementos constitutivos do negócio jurídico.

A inserção de cláusulas gerais, demonstra-se um processo de recodificação do direito, incluindo a boa-fé na categoria de princípios gerais, recebendo assim, força de fonte normativa direta.

Para aplicação da cláusula de boa-fé, é necessário um processo investigativo da vontade das partes, avaliando a carga obrigacional querida, na forma do negócio, de forma que a construção da boa-fé, somente é possível a luz do caso concreto.

Mas daí, perguntamos: o que seria a boa-fé negocial? MENEZES CORDEIRO[18] responde nossa indagação, explicando que a boa-fé objetiva remete para princípios, regras, ditames ou limites por ela comunicados ou simplesmente, para um modo de atuação dito como boa-fé (costumes). Na forma subjetiva, esta em causa o estado do sujeito, caracterizado como desconhecimento/ignorância, ou seja, trata-se de um ato praticado sem culpa ou com culpa desculpável.

Podemos sintetizar a aplicabilidade de todos os preceitos recordados neste capítulo nas lições de LACORDAIRE, lembrada por Orlando Gomes[19], que reafirma a necessidade da intervenção estatal na autonomia privada, afirmando que “entre o forte e o fraco, a liberdade escraviza e a lei liberta”.

4.DECLARAÇÃO DE VONTADE.

Como vimos inicialmente, o comportamento expressado no negócio jurídico, vincula-se às declarações emitidas pelas partes contratantes.

É na vontade externada via declaração negocial, pela qual identificamos o elemento de estabilização do negócio jurídico. Nos ensinamentos de CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA[20]:

vontade interna ou real é que traz a força jurígena, mas é a sua exteriorização pela declaração que a torna conhecida, o que permite dizer a produção de efeitos é um resultado da vontade mas que esta não basta sem a manifestação exterior”

Pelas lições reproduzidas, fica fácil identificarmos que a declaração negocial, dentro da teoria do negócio jurídico, situa-se no campo da existência do negócio.

Em princípio, a vontade declarada constituí elemento de vinculação das partes contratantes, ensejando o tradicional e conhecido brocardo jurídico da pacta sunt servanda (o contrato faz lei entre as partes).

Entretanto, atualmente diante dos novos paradigmas do Direito Civil, o preceito da pacta sunt servanda sofre muitas vezes a modulação de atuais teorias como é o caso da onerosidade excessiva ou do adimplemento substancial do negócio, onde por intermédio destas, o Poder Judiciário passa a ter uma interferência direta no negócio jurídico, modificando muitas vezes, substancialmente os efeitos da declaração primitivamente expressada pelas partes contratantes, para a partir de então, irradiar efeitos diversos dos originalmente contratados.

A declaração negocial poderá ser manifestada de forma expressa, tácita ou presumida. A forma expressa, é a maneira mais tradicional em que a declaração negocial é conhecida no universo dos negócios jurídicos, vez que manifestada explicitada de forma escrita e no vernáculo convencionado entre as partes.

A declaração tácita é identificada pela conduta do agente. Pela análise da conduta, deduze-se a intenção negocial dos agentes de forma que a partir desta análise, extrai-se a expressão da declaração negocial.

Na forma presumida, existe uma similitude muito grande com a forma tácita acima explicada, diferencia-se a primeira desta última, diante da peculiaridade da lei indicar a supressão da vontade declara, sem a necessidade de identificação expressa da declaração. É o que ocorre quando incidente os efeitos do previsto nos artigos 322, 323 e 324 ao tratar da presunção de pagamento.

Precisamente pela análise da forma tácita ou presumida, que verificarmos a importância dos efeitos do silêncio na formação da declaração negocial.

Tratando dos efeitos do silêncio, o nosso atual Código Civil, estabelece os seguintes preceitos:

“Art. 111. O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa

Art. 432. Se o negócio for daqueles em que não seja costume a aceitação expressa, ou o proponente a tiver dispensado, reputar-se-á concluído o contrato, não chegando a tempo a recusa.”

Com efeito, pelas disposições normativas em destaque, é possível concluir que não existe uma regra objetiva para a valoração do silêncio, na formação do negócio jurídico. A incidência de seus efeitos, deve ser aplicada conjugada as circunstâncias negociais, bem como levando em consideração as indivorciáveis cláusulas gerais (boa-fé objetiva e função social).

5.OBJETO E CAUSA DO NEGÓCIO JURÍDICO.

O objeto do negócio jurídico, na concepção de BETTI lembrada por MIRANDA[21],  é:

“toda a matéria sobre a qual incide a regulamentação das partes, os interesses que, segundo a ordem social, possam ser regulados diretamente, por  ação dos próprios interessados, nas suas relações recíprocas.”

O objeto negocial encontra-se inserido no plano da validade do negócio, devendo ser lícito, possível determinado ou determinável.

Não pode o objeto do negócio, ser contrário a norma jurídica. Deve sempre estar inserido dentro do campo da licitude para que possa deflagrar os efeitos queridos entre as partes contratantes.

ORLANDO GOMES[22] lembra que:

“o objeto do negócio jurídico deve ser idôneo. Não vale se contrário a uma disposição de lei, a moral, ou aos bons costumes, numa palavra, aos preceitos fundamentais que, em determinada época e lugar, governam a vida social”

A possibilidade física do objeto, também é uma das condições relevantes para seu reconhecimento como tal. Não se pode, por exemplo, alienar um imóvel situado em Marte, ante a impossibilidade do objeto. No entanto, a impossibilidade do objeto, apenas o invalida, de forma que caso a impossibilidade seja relativa, há a possibilidade de convalidação do negócio celebrado.

Não é difícil perceber que o objeto é um dos elementos mais relevantes do negócio jurídico, pois orbita no núcleo da relação negocial celebrada entre as partes contratantes.

Indissociável ao objeto esta a causa do negócio jurídico. Para compreensão da causa do negócio jurídico, é importante lembrarmos que para explicá-la, surgiram-se basicamente três teorias:

i – subjetivista: explicada pela motivação do agente contratante. Explica-se esta teoria pela motivação típica do agente contratante.

ii – objetivista: essa teoria é explicada pela finalidade do negócio jurídico. É a função desenvolvida pelo todo do negócio jurídico.

iii – teorias ecléticas: são teorias que explicam-se pela fusão das duas correntes anteriormente citadas. Nelas, a motivação típica do negócio, dá-se pela causalidade circunstancial, donde haverá uma integração indissociável com a vontade do agente.

Para definir a concepção atual, nos filiamos com a precisa posição de ASCENSÃO[23], que embora trate do contexto da legislação portuguesa, parece-nos perfeitamente aplicável no nosso contexto, os seguintes ensinamentos:

“A questão da causa é uma questão técnica. Mas por trás da questão técnica está uma questão ideológica.

As correntes anticausalistas exprimem uma ordem formalista, hoje em grande relevo com a onipotência do mercado e o relativismo dominante. O que é necessário é que o sistema funcione, seja à custa do que for.

As correntes causalistas estão associadas a uma intenção de controle objetivo e de intervenção social. São menos liberais e não aceitam a tutela do tráfego como um valor absoluto. Esta é ainda, apesar dos brilhantes tecnocratas que pululam na vida pública, a orientação na doutrina portuguesa.”

Arrematando o porquê da análise da causa nos estudos do negócio jurídico, AZEVEDO explica que:

“Embora não sirva para determinar o regime jurídico a que obedece o negócio, nem por isso se há de dizer que a causa é juridicamente irrelevante. Muito pelo contrário, à semelhança da vontade, que também não é elemento do negócio, mas é extraordinariamente importante para sua validade e eficácia, também a causa não age no plano de existência, mas sim, conforme se trate de causa pressuposta ou de causa final, age, ou no plano da validade, ou no plano da eficácia.

6. FORMA.

A forma do negócio jurídico é a maneira pela qual as partes contratantes exteriorizam o negócio jurídico, adequando a declaração negocial à espécie de negócio celebrado.

Na concepção moderna, a liberdade das formas é um princípio matriz das relações negociais, muito embora, a lei possa impor formas particulares para dada modalidade negocial.

O Código Civil Brasileiro adotou expressamente o princípio da liberdade das formas, especialmente quanto ao tratamento pretendido à declaração negocial, bastando observar a redação atribuída ao artigo 107, vejamos:

“Art. 107. A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir.” 

Ressalvando, no entanto, ser imperiosa a necessidade de observar as formalidades exigidas em lei, sob pena do negócio jurídico perecer em nulidade. Eis a orientação disposta nos inciso IV e V do artigo 166 do Código Civil:

“Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando: (…)

IV – não revestir a forma prescrita em lei;

V – for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade;”

Neste passo, podemos afirmar que a forma livre é a regra dos negócios, excetuando-se a forma solene ou especial, quando houver expressa previsão normativa.

A forma do negócio jurídico poderá ser exteriorizada tanto da forma ativa quanto da forma omissa. Na forma ativa, em regra, temos a declaração negocial exteriorizada através de signos conhecidos, como é o caso da modalidade escrita. Nada impede, no entanto, que a vontade negocial seja expressada através de gestos ou sons, tudo a depender dos costumes negociais praticados.

Quanto à forma omissa, apontamos o silêncio como forma omissiva de declaração de vontade.

Por ser o silêncio uma conduta omissiva ambígua (aceitação/negação), para que este seja interpretado como forma do negócio jurídico, é necessário antes, avaliarmos a se houve ou não declaração negocial. Desta forma, reconhecendo a existência de uma declaração negocial omissa, a partir do silêncio do agente, podemos identificar o referido silêncio como forma da modalidade negocial praticada, se contrário, a lei não dispor.

7.DEFEITOS DO NEGÓCIO JURÍDICO.

Os defeitos do negócio jurídico importam na anulabilidade do negócio praticado. 

O Código Civil atual trouxe consigo, basicamente seis hipóteses em caracteriza-se a ocorrência de defeito do negócio praticado, sendo eles: o erro, o dolo, a coação, o estado de perigo, a lesão e a fraude contra credores.

A presença dos elementos acima enumerados encontra-se claramente expressada no artigo 178, inciso II do Código Civil, vejamos:

“Art. 171. Além dos casos expressamente declarados na lei, é anulável o negócio jurídico:

I – por incapacidade relativa do agente;

II – por vício resultante de erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores.”

Excetuando a fraude contra credores, os demais defeitos são conhecidos como vícios de consentimento, posto que a vontade declarada diverge da intenção manifestada no íntimo do agente.

A fraude contra credores fica excluída do referido rol dos vícios de consentimento, vez que o defeito do negócio não se apresenta na vontade declarada, mas sim na intenção de prejudicar terceiro. Assim, tanto a fraude contra credores, quanto a simulação, são denominadas como vício social.

O erro consiste na falsa percepção da realidade. Ele encontra-se presente na relação negocial, quando percebido que o próprio agente praticou ato equivocado, sem a influência de alguém. Caso o agente tenha sido induzido, estaremos frente à outra figura jurídica, qual seja o dolo, que desencadeia a nulidade do negócio jurídico.

Analisando cada elemento caracterizador de defeito no negócio jurídico, podemos iniciar a observação pelo erro substancial e o erro acidental. Conceituando erro substancial FRANCISCO AMARAL[24] informa que:

“é aquele de tal importância que, sem ele, o ato não se realiza. Se o agente conhecesse a verdade, não manifestaria vontade de concluir o negócio jurídico. Diz-se, por isso, essencial, porque tem para o agente importância determinada, isto é, se não existisse, não praticaria o ato”

Em oposição ao erro substancial, encontramos a figura do erro acidental, do qual, por exemplo, é tratado pelo artigo 143 do Código Civil quando informa que:

“Art. 143. O erro de cálculo apenas autoriza a retificação da declaração de vontade.”

O Código Civil Brasileiro, igualmente ao erro acidental, também disciplinou a ocorrência de erro substancial, dispondo que:

“Art. 139. O erro é substancial quando:

I – interessa à natureza do negócio, ao objeto principal da declaração, ou a alguma das qualidades a ele essenciais;

II – concerne à identidade ou à qualidade essencial da pessoa a quem se refira a declaração de vontade, desde que tenha influído nesta de modo relevante;

III – sendo de direito e não implicando recusa à aplicação da lei, for o motivo único ou principal do negócio jurídico”.

Portanto, o erro substancial poderá incidir nas seguintes circunstâncias: i) sobre a natureza do negócio jurídico celebrado; ii) sobre o objeto principal da declaração negocial; iii) sobre alguma das qualidades essenciais do objeto principal da relação negocial; iv) sobre a identidade ou à qualidade da pessoa a quem se refere a declaração negocial, como é o caso, por exemplo, de doação ou testamento; e v) ocorrendo erro de fato, ou seja, o falso conhecimento, a ignorância ou a errônea interpretação da norma jurídica pelo emitente da declaração negocial.

Tratando ainda sobre o erro, outra modalidade que merece atenção, é quando caracterizado o erro escusável. Esta situação é verificada quando estivermos a frente do erro justificável ou desculpável.  É o que traduz a norma prevista no artigo 138 do Código Civil: 

“Art. 138. São anuláveis os negócios jurídicos, quando as declarações de vontade emanarem de erro substancial que poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das circunstâncias do negócio”.

A falsa percepção da realidade, dentro do contexto de difícil identificação da condição real do negócio, gera, portanto, a anulabilidade do mesmo, visto que agente autor teve sua declaração negocial viciada, quando expressada a vontade sobre circunstâncias e elementos que achou que estava de acordo com o declarado.

Inclusive, o referido tema, foi objeto de debate em Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, donde formou-se o enunciado nº 12 que dispõe o seguinte:

Na sistemática do art. 138, é irrelevante ser ou não escusável o erro, porque o dispositivo adota o princípio da confiança”

Assim como a boa-fé, a confiança integra a relação negocial com igual força e sentido. Evidente ocorrer a quebra da confiança quando verificada a presença do tipo de erro tratado no artigo 138 do Código Civil, situação que implica a anulabilidade do negócio praticado.

Não obstante, é possível o convalescimento do erro, desde que a parte a quem a manifestação negocial se direciona, execute o negócio de acordo com a vontade real da contraparte, isto é o que depreendemos pela redação atribuída ao artigo 144 do Código Civil.

Temos ainda como defeitos do negócio jurídico, a possibilidade da declaração ter sido emitida através de coação (coação física ou moral), ou seja, sob uma situação injusta de pressão, que leva o agente emissor da declaração, declarar algo contrário a vontade realmente querida.

Para identificação da coação, exigem-se alguns requisitos, os quais são tratados pelo legislador da seguinte forma, vejamos:

Art. 151. A coação, para viciar a declaração da vontade, há de ser tal que incuta ao paciente fundado temor de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua família, ou aos seus bens.

Parágrafo único. Se disser respeito a pessoa não pertencente à família do paciente, o juiz, com base nas circunstâncias, decidirá se houve coação.”

Nota-se que em que pese a agressão injusta estar presente na coação, é certo que a condição circunstancial da coação, gera a anulabilidade do negócio, pois necessário que a parte interessada na anulação do negócio, comprove de forma cabal o nexo de causa e efeito entre a violência sofrida e a anuência declarada.

Também existe a possibilidade da declaração negocial ter sido emitida frente ao estado de perigo sofrido pelo agente emissor.

Segundo depreende-se pela redação do Código Civil, configura-se o estado de perigo “quando alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa”.

Oportuna, no entanto, são as lições trazidas por ANCONA LOPEZ[25], afirmando que:

“Evidentemente se o declarante se aproveitar da situação de perito para fazer um negócio vantajoso para ele e muito oneroso para a outra parte não há como se agasalhar tal negócio. Há uma frontal ofensa à justiça comutativa que deve estar presente em todos os contratos. Ou, no dizer de Betti, deve haver uma equidade na cooperação.”

Portanto, para verificação do estado de necessidade, necessário que o agente esteja passando por iminência de dano atual e grave frente uma situação de necessidade, bem como que a outra parte tenha consciência/conhecimento da situação, querendo com isso, obter vantagem anormal sobre o negócio praticado.

Outra situação tratada pelo nosso Código Civil, refere-se ao estado de lesão, ou seja, prejuízo resultante na imensa desproporção existente nas prestações do contrato celebrado.

Sobre este aspecto, a lei informa sua ocorrência nos seguintes termos:

Art. 157. Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta.

§ 1o Aprecia-se a desproporção das prestações segundo os valores vigentes ao tempo em que foi celebrado o negócio jurídico.

§ 2o Não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito.”

Neste sentido, é notório que o elemento nuclear do instituto da lesão é a ocorrência de uma desproporção na relação firmada, ocasionando um desequilíbrio identificado pela onerosidade excessiva.

É claro, que pelo principio da conservação dos negócios, a lesão é um vício de consentimento anulável. Tanto é assim, que basta conferir os termos do disposto no parágrafo 2º do artigo 157, que preleciona de que não será declarada a anulação do negócio “Não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito.”

Por fim, assinalamos a possibilidade de anulação do negócio jurídico, quando presente fraude contra credores, como forma de vício social. A fraude contra credores, caracteriza-se através de ato suscetível de diminuição patrimonial do devedor, na tentativa de frustrar o recebimento de crédito pelos credores, reduzindo o devedor a situação de insolvência patrimonial.

8. ILICITUDE

O ato ilícito revela-se pela violação de um dever preexistente, que se impõe ao agente. É a transgressão de um dever jurídico.

Para o Direito Civil, a ilicitude do ato está ligada a ideia de reparação civil, tendo como elementos de reparação ação ou omissão do agente, a culpa (art. 186 CC – responsabilidade subjetiva e art. 927 – responsabilidade objetiva) ou o dolo.

A culpa consiste em um erro de conduta, com quebra de um dever que o agente podia conhecer e observar, segundo padrões de comportamento médio. É um desvio da normalidade no agir ou abster-se, no modelo ideal (standard) de conduta. Sendo elementos essenciais da culpa a verificação de negligência, imprudência ou imperícia.

Com efeito, para que haja responsabilidade do agente, é necessário que exista uma interligação entre a ofensa à norma e o dano sofrido: necessário, portanto, a caracterização do nexo causal.

Desta forma, o dano constitui elemento essencial da responsabilidade civil, visto inexistir responsabilidade civil sem dano, pois a obrigação de ressarcir inexiste se não há o que reparar. A reparação, ocorrerá in pecunia, de acordo com a apuração do dano ocorrido.

O dano pode ser de natureza material ou moral, admitindo o dano material reflexo (por ricochete ou indireto), que é aquele sofrido diretamente pela vitima, mas que repercute também sobre os interesses de terceira pessoa.

Oportuna a ressalva, quanto ao estudo apresentado pela ANCONA LOPEZ[26], onde ao discorrer sobre o princípio da precaução, como fazendo parte da responsabilidade civil, afirma que o referido princípio integra as relações, pois as partes devem observar com prudências os efeitos de seus atos.

Embora ANCONA LOPEZ[27] discorra quanto à possibilidade do princípio da precaução ser, de fato, considerado um “princípio” ou simplesmente um standard (padrão de conduta), devemos entendê-lo como um princípio, que trata das diretrizes e valores do sistema de antecipação de riscos hipotéticos, coletivos ou individuais, que estão a ameaçar a sociedade ou seus membros com danos graves e irreversíveis e sobre os quais não há certeza científica; esse princípio exige a tomada de medidas drásticas e eficazes com o fito de antecipar o risco suposto e possível, mesmo diante da incerteza.

É certo que a este dever (princípio da precaução) encontra-se inserto nos deveres que compõem as cláusulas gerais, harmonizado necessariamente em conjunto da boa-fé objetiva e a ética das relações travadas entre as partes.

Isto porque, como sistema de freios e contrapesos no Direito Civil, formou-se a doutrina a teoria do abuso do direito. Aponta NANNI[28], que a doutrina a respeito da proibição do exercício abusivo de direito é recente, visto que antes, predominava a ideia liberal e individualista do absolutismo do direito subjetivo.

O destacado autor aponta ainda que a teoria do abuso do direito acarreta a imposição de limites ao exercício do direito subjetivo, abrandando o individualismo que antes reinava.

Diante do progresso do Direito Civil, onde optou-se por um processo de constitucionalização do Direito Privado, não se pode mais conceber a predominância de interesses particulares dissociados do princípio da solidariedade (art. 3º da CF).

NANNI[29] citando as lições de Orlando Gomes, informa que a concepção do abuso do direito possui uma finalidade específica, que é tornar mais flexíveis a aplicação das normas jurídicas inspiradas numa filosofia que deixou de corresponder às aspirações sociais da atualidade. Serve para aliviar os choques frequentes entre a lei e a realidade.

No nosso Código Civil, a noção de abuso de direito, tem previsão no artigo 187 do Código Civil, ocorrendo quando o agente titular de certo direito, utiliza-o transbordando os limites do direito, ao ponto de violar outras regras morais, como é o caso da boa-fé e dos costumes.

A boa-fé se traduz na imposição de um dever de agir de acordo com os padrões socialmente recomendados de correção, lisura, lealdade, probidade, sempre com o objetivo de se evitar a frustração da confiança alheia. Também chamada de boa-fé lealdade e boa-fé confiança, a boa-fé objetiva impõe aos contratantes a obrigatoriedade de observar determinadas condutas, aferíveis diante do caso concreto, no interesse da parte contrária, visando ao adimplemento satisfatório da obrigação.

O aplicador do direito não pode se afastar da boa-fé ao interpretar o negócio jurídico, constituindo, as cláusulas gerais, norma cogente, sendo, por isso, inócua qualquer tentativa das partes de obstar a incidência destas.

Neste particular, destacamos o enunciado nº 24 aprovado na I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal:

“Art. 422: em virtude do princípio da boa-fé, positivado no artigo 422 do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independente de culpa”

Com efeito, a doutrina cada vez mais, admite de forma pacífica a possibilidade tanto da boa-fé, quanto dos costumes, interferirem diretamente nas relações privadas, evitando desta forma a ocorrência de abuso de direito, consagrando, muitas vezes, a possibilidade de admitir modificações nas relações jurídicas, como forma de buscar a estabilização das relações sociais.

Importante frisar, as circunstâncias referidas, partem essencialmente da tutela da confiança, que visa a proibição de comportamento contraditório pelas partes contratantes.

Destacamos como formas jurídicas que obstam a prática de comportamento contraditório, a venire contra factum proprium nulli concidetur (a ninguém é permitido agir contra o seu próprio ato), a supressio (situação de inércia no exercício de direito, por um lapso de tempo, que não permite mais o exercício, por contrariar a boa-fé (LOTUFO[30]), a surrectio (representa o inverso da supressio: por intermédio da boa-fé, a prática de uma conduta reiterada, surge na esfera de direitos de alguém, algo que direito que em circunstâncias normais não lhe assistiria) e a fórmula tu quoque (a violação da norma jurídica não pode beneficiar outrem. LOTUFO[31] lembra que na formula tu quoque tem-se a concretização através da exceção do contrato não cumprido, constante no artigo 476 do CC).

CONCLUSÕES.

1. a identificação do negócio jurídico, é rastreada através da declaração de vontade expressada entre as partes envolvidas na relação negocial.

2.A qualificação da vontade expressada na declaração negocial, é fruto de um reconhecimento social, que aceita a irradiação de seus efeitos, em virtude da licitude do negócio praticado entre as partes.

3.O negócio jurídico lícito será sempre objeto de interpretação conjugada com a finalidade social, para que por sua vez, seja analisado o resultado da produção de seus efeitos, de acordo com a norma jurídica que toque a essência existencial do negócio.

4.A teoria tricotômica do negócio jurídico, refere-se à verificação de elementos essenciais para caracterização do negócio jurídico. A existência, a validade e a eficácia, constituem os planos elementares do negócio jurídico.

5.A verificação do plano de existência ocorre quando se confere a incidência das normas jurídicas sobre o fato jurídico.

6.A declaração de vontade, é um dos pressupostos elementares para existência do ato, porquanto sem ela, não existe exteriorização da manifestação da vontade querida.

7.No plano da validade do ato, analisa-se o preenchimento dos requisitos do ato jurídico, verificando se os atos possuem as condições necessárias para alcançar a finalidade do negócio celebrado.

8.O último plano que compõe a teoria tricotômica do negócio jurídico, é tratada como a eficácia do negócio jurídico. Neste plano, avalia-se a eficácia do negócio celebrado, tão somente, frente ao ordenamento jurídico, vez que perante os agentes, o negócio já irradia os efeitos do celebrado.

9. Neste diálogo entre o Direito Civil e o Direito Constitucional, até mesmo diante da hierarquia de normas, passa-se a aplicar as diretrizes constitucionais, formando as cláusulas gerais  atualmente inseridas no Direito Civil.

10. O objeto negocial encontra-se inserido no plano da validade do negócio, devendo ser lícito, possível determinado ou determinável. Não pode o objeto do negócio ser contrário a norma jurídica, deve sempre estar inserido dentro do campo da licitude para que possa deflagrar os efeitos queridos entre as partes contratantes.

11.A forma do negócio jurídico é a maneira pela qual as partes contratantes exteriorizam o negócio jurídico, adequando a declaração negocial à espécie de negócio celebrado.

12. O Código Civil Brasileiro adotou expressamente o princípio da liberdade das formas, especialmente quanto ao tratamento pretendido à declaração negocial.

13.Os defeitos do negócio jurídico, importam na anulabilidade do negócio praticado. O Código Civil atual, trouxe consigo, basicamente seis hipóteses em caracteriza-se a ocorrência de defeito do negócio praticado, sendo eles: o erro, o dolo, a coação, o estado de perigo, a lesão e a fraude contra credores.

14.O ato ilícito revela-se pela violação de um dever preexistente, que se impõe ao agente. É a transgressão de um dever jurídico. Para o Direito Civil, a ilicitude do ato está ligada a ideia de reparação civil, tendo como elementos de reparação ação ou omissão do agente, a culpa (art. 186 CC – responsabilidade subjetiva e art. 927 – responsabilidade objetiva) ou o dolo.

15.O aplicador do direito não pode se afastar da boa-fé ao interpretar o negócio jurídico, constituindo, as cláusulas gerais, norma cogente, sendo, por isso, inócua qualquer tentativa das partes de obstar a incidência destas.

16Com efeito, a doutrina cada vez mais, admite de forma pacífica a possibilidade tanto da boa-fé, quanto dos costumes, interferirem diretamente nas relações privadas, evitando desta forma, a ocorrência de abuso de direito, consagrando, muitas vezes , a possibilidade de admitir modificações nas relações jurídica, como forma de buscar a estabilização das relações sociais. Ademais, as circunstâncias referidas, partem essencialmente da tutela da confiança, que visa a proibição de comportamento contraditório pelas partes contratantes.

 

Referências.
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PERLINGERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Tradução de Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008,
 
Notas:
 
[1]ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil: teoria geral. v. 2: ações e fatos jurídicos. 3ªed. São Paulo; Saraiva, 2010, pág. 12.

[2]BETTI, Emilio. Teoria geral do negócio jurídico. Tradução: Servanda Editora. Campinas, SP: Servanda Editora, 2008, pág. 30.

[3]MIRANDA, Custodio da Piedade Ubaldino, Teoria geral do negócio jurídico. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2009, pág. 7.

[4]LOTUFO, Renan. Código civil comentado: parte geral (arts. 1º a 232) vol. 1 – 2ª ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2004, pág. 271.

[5]AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4ª ed. atual. de acordo com o novo Código Civil (Lei n. 10.406, de 10-1-2002). São Paulo: Saraiva, 2002, pág. 19.

[6]Ibidem, pág. 23.

[7]Ibidem, pág. 33.

[8]PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito Civil. 19ªed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. v.1, págs. 307/308.

[9]Ibidem, pág. 57.

[10] MIRANDA, Custodio da Piedade Ubaldino, op. cit., pág. 153.

[11]Idem.

[12]Ibidem, pág. 35-46.

[13]PERLINGERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Tradução de Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pág. 334-362.

[14]CASTRO Y BRAVO, Frederico de. El negocio juridico. Madrid: Civitas, 1985, págs. 11-18.

[15]FARIA, Roberta Elzy Simiqueli de. Autonomia da vontade e autonomia privada: uma distinção necessária. In: FIUZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira (coord.). Direito civil: atualidades II: da autonomia privada nas situações jurídicas patrimoniais e existenciais. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 55-71.

[16]AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado. O princípio da igualdade e o direito das obrigações. In: TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz Edson (Coord). O direito e o tempo: embates jurídicos e utopias contemporâneas – estudos em homenagem ao professor Ricardo Pereira Lira. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, págs. 531-563.

[17] NALIN, Paulo. A boa-fé como elemento de existência do negócio jurídico: In: DELGADO. Mário Luiz; ALVES, Jones Figueiredo (Coord). Novo Código Civil: questões controvertidas: parte geral do Código Civil: série grandes temas de direito privado: v. 6. São Paulo: Método, 2007, p. 334-362.

[18] CORDEIRO, António Menezes. Tratado de direito civil português. 2 ed. Coimbra: Livraria Almedina, v. 1, tomo 1, parte geral, 2000, p. 317-239.

[19] GOMES, O. Contratos. 24. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 35.

[20] Instituições, cit., p. 307-308.

[21] MIRANDA, Custodio da Piedade Ubaldino, op. cit., pág. 53

[22]ORLANDO GOMES, op. cit.  pág. 382.

[23] ASCENSÃO, José de Oliveira. op. cit.  pág. 257

[24]AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 7. ed. rev. mod. e aum. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 484.

[25]LOPEZ, TEREZA ANCONA LOPEZ. O estado de perigo como defeito do negócio jurídico, Revista do Advogado, nº68, p. 56.

[26]ANCOVA LOPEZ, Teresa. Princípio da Precaução e evolução da responsabilidade civil. São Paulo: Quartier Latin, 2010, pág. 89-170.

[27]Ibidem.

[28]NANNI, Giovani Ettore. Abuso de direito. In LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni Ettore (coord.). Teoria Geral do Direito Civil são Paulo: Atlas, 2008, p. 721-737.

[29]Ibidem.

[30] LOTUFO, Renan. Código civil comentado, op. cit., pág. 502

[31] Idem.


Informações Sobre o Autor

Flaviano Adolfo de Oliveira Santos

Advogado e Professor Universitário em São Paulo


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