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Katsuren Machado
O conteúdo normativo no Direito é para a maioria das pessoas um enigma. Não é surpresa que o Judiciário seja visto como um campo minado diante da incompreensão do que rege a vida em sociedade.
Se o legislador cria leis para que as interações sejam mais harmônicas e as condições mais favoráveis a todos, por que o texto é inteligível a uma minoria?
É necessário que a norma esteja acessível para aqueles que precisam agir a partir dela. Somente com a consciência dos seus direitos as pessoas podem ter autonomia para exigir o cumprimento.
Como entregar um Direito mais efetivo? Eu diria que a linguagem é uma das principais barreiras. O Legal Design, abordagem voltada ao foco no ser humano, propõe uma ruptura do modelo atual, rígido e inacessível.
Clareza, transparência e eficiência é o que precisamos entregar, e tudo isso só acontece quando colocamos o foco no usuário ao qual a comunicação se destina. E para isso, é necessária uma investigação profunda do público de interesse, como ele interage e interpreta o conteúdo normativo, quais são suas maiores dificuldades e outros aspectos que envolvem a relação entre Direito e sociedade.
“Nossa missão no mundo é criar leis que sejam acessíveis, adequadas ao propósito e constitucionalmente sólidas. A linguagem clara é fundamental para todas essas coisas”, explica Cassie Nicholson, chefe do Conselho Parlamentar da Nova Zelândia.
Informar não é comunicar. Há muitos aspectos que devem ser levados em consideração para transmitir uma mensagem e gerar conexão com o público ao qual se direciona.
Dominique Wolton, sociólogo francês, diz que “comunicação sem relacionamento é apenas informação”. Sendo assim, informação que não comunica é ruído e impede o processamento de conteúdos essenciais para que o princípio constitucional do acesso à Justiça se cumpra.
Importante ressaltar que acesso ao sistema judiciário, não é suficiente. Segundo Alexandre Cesar “dentro de uma concepção axiológica de justiça, o acesso à lei não fica reduzido ao sinônimo de acesso ao Judiciário e suas instituições, mas sim a uma ordem de valores e direitos fundamentais para o ser humano”.
Possibilitar que as pessoas tomem decisões mais conscientes e, consequentemente, reduzir os litígios é a principal razão pela qual profissionais do Legal Design e Linguagem Simples se mobilizam em todo o mundo.
Se considerarmos alguns aspectos da Psicolinguística, podemos chegar à conclusão de que a leitura não é algo natural, mas que apresenta desafios que envolvem vieses cognitivos, além de aspectos socioculturais, afetivos e pedagógicos.
Isso quer dizer que todo indivíduo carrega significados, referências e valores particulares que interferem no modo como a decodificação e a compreensão da informação é realizada. São complexos os fatores que refletem no processamento e absorção durante a leitura. Quanto menos obstáculos existirem, maiores serão as chances de uma comunicação plena vir a ser atingida.
Uma equipe de designers liderada por David Berman trabalhou com o Departamento de Justiça do Canadá, e juntos desenvolveram um novo desenho da Lei de Seguro de Emprego apresentado em 2000. Após a conclusão do projeto, foi realizada uma pesquisa que revelou a aceitação do público em 89% em comparação ao formato anterior.
Com o redesign da linguagem e do formato da lei, foi possível ao público:
- achar a informação com maior facilidade;
- entender o conteúdo da informação encontrada;
- usar a informação de acordo com as suas necessidades.
A empresa Claro, em Portugal, desenvolveu uma série de documentos para o governo e trouxe dados muito interessantes. Após a reescrita em linguagem simples de formulários e requisições para o Balcão Nacional de Injunções (BNI), um órgão que faz a cobrança de dívidas comerciais, o pagamento voluntário teve um aumento de 67%. Ou seja, menos processos nos tribunais e menos custos para as pessoas e para o Estado.
A Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital foi lançada oficialmente em julho de 2021, uma lei inovadora que aborda questões extremamente importantes como os direitos relacionados ao acesso, uso e segurança de usuários do ambiente digital.
Dentre os vários pontos trazidos pela Carta, é um direito das pessoas obter informações claras sobre as condições de utilização das plataformas digitais. Entretanto, o próprio conteúdo normativo exige do cidadão comum um esforço significativo para compreender minimamente os principais artigos trazidos pela lei.
Após uma conversa entre profissionais de Portugal e do Brasil, especialistas em Design-Comunicação, Legal Design e Plain Language, foi desenvolvido um projeto para a produção de uma Carta mais acessível e, assim, contribuir com o entendimento amplo das pessoas sobre os principais tópicos da Lei nº 27/2021.
O projeto está disponível em www.direitoseradigital.pt e será lançado globalmente no dia 28 de janeiro de 2022. Uma pesquisa sobre as percepções do público e os impactos gerados será realizada no próximo mês e disponibilizada posteriormente nas mídias sociais.
Joseph Kimble, professor e fundador do Center for Plain Language, investigou sobre a efetividade da linguagem em organizações públicas e privadas. O resultado confirmou que a linguagem simples reduz o tempo para tirar dúvidas sobre documentos, inúmeros erros gerados por textos mal escritos, além de aumentar de forma considerável a satisfação das pessoas.
O INAF (Indicador de Alfabetismo Funcional) aponta que o analfabetismo funcional atinge 29% da população brasileira. Diante de dados como esse, é contraproducente que profissionais do Direito se relacionem com as pessoas de uma forma que elas considerem incompreensível ou pretensiosa.
Algumas leis já trazem como princípio a utilização de uma linguagem acessível. Porém, mais importante do que a intenção trazida no ordenamento é a ação de planejar e tornar as leis e o conteúdo jurídico mais próximo da sociedade em geral.
Por isso, iniciativas que visam facilitar a comunicação jurídica, como os exemplos citados anteriormente, são essenciais para um maior engajamento de lideranças rumo à transformação que desejamos.
Referências:
WOLTON, Dominique. Informar não é comunicar. Porto Alegre: Editora Sulina; 1ª edição, 2010.
CESAR, Alexandre. Acesso à Justiça e cidadania. Cuiabá: Ed. UFMT, 2002.
BERMAN, David. Toward a new format for Canadian Legislation. Disponível em: http://davidberman.com/NewFormatForCanadianLegislation.pdf.
FISCHER, Heloísa. Clareza em texto de e-gov, uma questão de cidadania. Monografia, 2018.
KIMBLE, Joseph. Writing for dollars, writing to please. The case for Plain Language in Business, Government, and Law. Carolina Academic Press. Durham, Carolina do Norte, 2014.
PEREIRA, Everaldo. Perspectiva da neurociência em comunicação. Disponível em: http://ojs.labcom-ifp.ubi.pt/index.php/ec/article/view/323