“Não cabe às ONGs brasileiras acabar com ou pretender substituir o Estado, mas colaborar para a sua democratização. Não cabe às ONGs produzir para o conjunto da sociedade os bens e serviços que o mercado não é capaz de produzir, mas propor uma nova forma de produzir e distribuir que supere o limite da lógica do capital.” Herbert José de Souza – Betinho
Em 23 de agosto 1995, durante o Governo FHC, encaminhou-se ao Congresso Nacional, um dos maiores marcos democráticos de “administração gerenciada”. O “Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado” [1], fora concebido, como instrumento de viabilização e implementação de políticas públicas e partia do princípio de que as funções do Estado deveriam ser de coordenar e financiar políticas públicas e não mais de executá-las com exclusividade. [2]
A Exposição de Motivos do referido Plano defendia que “nem tudo que é público é estatal” e afirmava que “devemos socializar com a iniciativa privada a responsabilidade de diminuir as mazelas provocadas pelo mercado”. Avaliava, ainda, que “se o Estado não deixar de ser produtor de serviços, ainda que na área de políticas públicas sociais, para ser agente estimulador, coordenador e financiador, ele não irá recuperar a poupança pública”. E mais, defendia uma flexibilização nos controles da sociedade sobre as ações do Poder Executivo pois achava que “a Constituição de 1988 exagerou neste aspecto, retirando do executivo a capacidade de iniciativa”. [3]Para tanto, o Governo Federal concebeu então o Estado, com 04 (quatro) setores importantes:
1- Núcleo estratégico: Composto pelos Poderes Legislativo e Judiciário; Ministério Público; Poder Executivo através do Presidente da República, Ministros, auxiliares e assessores diretos, responsáveis pelo planejamento e formulação das políticas públicas. Sobre estes setores o Estado deveria ter controle absoluto através de uma administração centralizada e verticalizada de propriedade estatal sendo que, o papel exclusivo do Estado, era preparar, definir e fazer cumprir as leis, estabelecer relações diplomáticas e realizar a defesa do território.
2 – Atividades exclusivas do Estado
Eram os serviços, cujo principal usuário era o próprio Estado. “Não são atividades lucrativas”, dizia o Plano e por isto o Governo defendia mantê-los sob o Estado com o objetivo de assegurar-lhes a flexibilização das relações de trabalho e do controle da sociedade sobre as políticas públicas: de Fiscalização; Fisco do Meio Ambiente e do Aparelho Central da Seguridade Social (Saúde, Previdência e Assistência Social), na forma de propriedade estatal e com um novo modelo de gestão gerencial. Era composto pelas agências autônomas e os serviços sociais autônomos, sendo que para este setor, o Governo propôs a transformação/qualificação dos Órgãos Públicos em Agências Executivas.
3 – Serviços Sociais competitivos
Estes serviços eram: Educação, Saúde, Cultura, Produção de Ciência e Tecnologia. Para este setor, o Governo propôs a “livre disputa de mercado” entre as instituições privadas, com o objetivo de promover a “eficiência e menor custo dos serviços sociais oferecidos pelas instituições privadas” transmitindo com isto, idéia de eficiência para evitar o “desperdício na administração pública”. O Governo defendia que o Estado não deveria assumir novos serviços e que os mesmos deveriam ser ampliados, quando necessários, por meio destas instituições.
4 – Setor de produção de bens e serviços para o Mercado
Na época, eram constituídos por empresas públicas que garantiam o acesso da população a bens e serviços de infra-estrutura. O Governo entendia que deveriam ser transferidas para empresas lucrativas – para o mercado – pois era “atividades empresariais” e, como tal, deveriam ser “transferidas integralmente para a iniciativa privada – venda automática”, com sistema de regulação por meio de agências. Eram eles: serviços de água, luz, Correios, bancos, pesquisas, etc.
Para cada um destes quatro setores do Estado, o Governo propôs o que chamou de “formas de propriedade”:
1. “Propriedade Estatal”, administração pública, composta por patrimônio público (administração direta e indireta, inclusive as agências);
2. “Propriedade Privada”, entidades privadas, compostas por patrimônio privado (entidades da sociedade civil, com finalidade explícita de lucro);
3. “Propriedade Não-Estatal”, constituída pelas organizações sem fins lucrativos, que não são propriedade de nenhum indivíduo ou grupo e que são orientadas diretamente para o atendimento do interesse público.
Para implementar este Projeto de Reforma do Estado, foram apresentadas várias Propostas de Emendas Constitucionais cujas medidas mais importantes foram:
a) a aprovação da Emenda Constitucional 19/98;
b) a aprovação da Emenda Constitucional 21/98;
c) a Lei Complementar 101/2000 (Lei da Responsabilidade Fiscal);
d) a Lei 9.801/99 da exoneração de servidores por excesso de despesas;
e) a Lei 8.03190, que instituiu o programa nacional de desestatização;
f) a Lei 9.401/97, que instituiu as agências executivas;
g) a Lei 9.637/98, que instituiu as Organizações Sociais, Contratos de Gestão e o Programa Nacional de Publicação;
h) a Lei Federal n.º 9.790, de 23 de março de 1999, que instituiu as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP.
Neste contexto, foram concebidas a Lei das Organizações Sociais (OSs) e das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs), como instrumentos para a viabilização e implementação das políticas públicas desenhadas neste Plano e, hoje, representam os primeiros passos fincados na direção da reforma do marco legal e regulador das relações entre Estado e Sociedade Civil no Brasil.
O sentido estratégico maior dessa reforma era o empoderamento das populações, para aumentar as possibilidades e sua capacidade de influir nas decisões públicas, aduzir e alavancar novos recursos ao processo de desenvolvimento do país.
Entre as iniciativas de fortalecimento da sociedade civil destaca-se a proposição da Lei 9.790, de 23 de março de 1999, discutida e elaborada durante as duas Rodadas de Interlocução Política do Conselho da Comunidade Solidária, dedicadas ao tema Marco Legal do Terceiro Setor, realizadas entre 1997 e 1998.
Tais rodadas promoveram o diálogo entre governo e sociedade sobre temas importantes para uma estratégia de desenvolvimento social, por meio de estudos, discussões e proposições sobre o tema além de diversas consultas a diferentes interlocutores da sociedade civil e governos.
– Bastidores da Lei n.º 9.790, de 23 de março de 1999
A Lei das OSCIPs partiu da idéia de que o público não era mais monopólio estatal. De que existiam políticas e ações públicas que não deveriam ser feitas pelo Estado, não porque o Estado estaria se descompromissando ou renunciando a cumprir o seu papel constitucional e nem porque o Estado estivesse terceirizando suas responsabilidades, ou seja, não por razões, diretas ou inversas, de Estado, mas por “razões de Sociedade”[4]
Visava, no geral, estimular o crescimento do Terceiro Setor e fortalecer a sociedade civil. investindo no chamado “capital social”. Para tanto, fez-se necessário construir um novo arcabouço legal, que (a) reconhecesse o caráter público de um conjunto, imenso e ainda informal, de organizações da sociedade civil; e, ao mesmo tempo (b) facilitasse a colaboração entre essas organizações e o Estado.
Na verdade, tratava-se de construir um novo marco institucional que possibilitasse a progressiva mudança do desenho das políticas públicas governamentais, de sorte a transformá-las em políticas públicas de parceria entre Estado e sociedade civil em todos os níveis, com a incorporação das organizações de cidadãos na sua elaboração, na sua execução, no seu monitoramento, na sua avaliação e na sua fiscalização.[5] (grifos nossos)
Ou seja, por trás da lei, já existia a avaliação de que o olhar público da sociedade civil é que detecta problemas, identifica oportunidades e vantagens colaborativas, descobre potencialidades e soluções inovadoras em lugares onde o olhar do Estado não pode e nem deve penetrar.[6] E mais, a ação pública da sociedade é capaz de mobilizar recursos, sinergizar iniciativas, promover parcerias em prol do desenvolvimento humano e social sustentável, de uma forma que o Estado jamais pôde ou poderá fazer.[7]
Não há de se negar que existem razões objetivas, muito fortes, que impulsionaram a mudança do marco legal do Terceiro Setor no Brasil na direção delineada pela nova lei.
No plano global, a emersão da sociedade-rede, a expansão de uma nova esfera pública não-estatal, a mudança do padrão de relação Estado-Sociedade, a crise do Estado-Nação e a falência do estatismo como ideologia capaz de servir de referencial para a ação dos atores políticos no século XXI.
No plano nacional, a rápida transformação da sociedade brasileira, com o surgimento de novos sujeitos políticos nos marcos de um regime democrático que, apesar de todos os percalços, tende a perdurar.
Sob esse manto, o Governo Federal juntamente com vários parceiros da sociedade civil, partiu do princípio de que nenhum setor da sociedade, isoladamente, poderia impor aos demais suas “lógicas” de funcionamento e admitiu que a sociedade civil era detentora de uma racionalidade própria, não derivativa do Estado, nem do mercado.
Considerou que a auto-regulação da sociedade global como sistema complexo, uma vez existente, só poderia ser fruto de uma sinergia entre Estado, mercado e sociedade civil. Admitiu que o protagonismo da sociedade civil é decisivo para o desenvolvimento social e, por conseguinte, para o desenvolvimento em geral.[8]
Assumiu que o Terceiro Setor cumpria um papel estratégico na consolidação e na expansão de uma esfera pública ampliada, não monopolizada pelo Estado e sem a qual não avançaria o processo de democratização das sociedades.
De acordo com tais pressupostos, a reforma social do marco legal do Terceiro Setor foi orientada, prioritariamente, para criar condições para a emergência de novos atores sociais públicos de desenvolvimento e para o fortalecimento de uma esfera pública não estatal.
A grande questão levantada pelo processo de reforma aberto com a Lei das OSCIPs assentava-se, portanto, na finalidade, mais do que a não apropriação privada de um resultado positivo, pois, uma organização de prevenção à AIDS não poderia, por exemplo, ser equiparada a uma organização de caráter corporativo, defensora de interesses coletivos, por certo, mas apenas de uma parcela da sociedade.
Este foi o caminho escolhido. Começar pela finalidade e pelo regime de funcionamento para distinguir o caráter público do caráter privado, a partir da Lei das OSCIPs.
– AS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS (OS)
Em 1995 (junho/julho) o MARE – Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado elaborou anteprojeto de lei e o Decreto de Regulamentação das Organizações Sociais. Esses documentos, reafirmavam as posições dos documentos anteriores, de que “a garantia da eficiência e a qualidade dos serviços devem ser asseguradas pela descentralização da União para os Estados e destes para os Municípios, através de parceria com a sociedade, por Contratos de Gestão”.[9]
Em 1997, por meio da Medida Provisória nº 1591, o governo estabeleceu critérios para definir, sob a denominação de “Organizações Sociais (OSs)”, as entidades que, uma vez autorizadas, estariam aptas a serem “parceiras do Estado”, na condução da “coisa pública”. Aprovou-se no Congresso Nacional a Lei n.º 9.637 de 15 de maio de 1998 que “dispõe sobre a qualificação de entidades como organizações sociais, a criação do Programa Nacional de Publicização, a extinção dos órgãos e entidades que menciona e a absorção de suas atividades por organizações sociais, e dá outras providências”.
O objetivo formal da chamada “Lei das OSs” foi o de “qualificar como organizações sociais pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde” (art. 1º).
Para dar seqüência, instituiu o contrato de gestão (Art. 5º ao 10º), “observados os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, economicidade” (art. 7º), como instrumento de consolidação de formação de parceria entre as partes para fomento e execução de atividades relativas às OSs. E ainda (possivelmente o objetivo mais importante para o projeto político de governo da época), assegurar a absorção de atividades desenvolvidas por entidades ou órgãos públicos da União (Art. 20), que atuassem nas atividades previstas na Lei, por meio do Programa Nacional de Publicização – PNP, criado mediante decreto do Poder Executivo.
Para tanto, estabeleceu que as extinções dos serviços públicos e a absorção de atividades e serviços por organizações sociais seriam garantidas através das seguintes condições:
– cessão dos servidores dos quadros permanentes dos órgãos e das entidades extintos de forma irrecusável pelo servidor, com ônus para a origem;
– garantia de desativação das unidades extintas realizada por meio de inventário de seus bens móveis e imóveis e de seu acervo físico, documental e material, bem como dos contratos e convênios;
– adoção de providências dirigidas à manutenção, pelas organizações sociais, do prosseguimento das respectivas atividades sociais;
– transferência imediata dos recursos e das receitas orçamentárias de qualquer natureza, destinados às unidades extintas para as OSs para manutenção e financiamento das atividades sociais até a assinatura do contrato de gestão e abertura de crédito especial junto ao Congresso Nacional;
– adição às suas dotações orçamentárias de recursos decorrentes da economia de despesa incorrida pela União, com os cargos e funções comissionados existentes nas unidades extintas e créditos orçamentários destinados ao custeio do contrato de gestão para compensar desligamento dos servidores cedidos.
Ademais, poder-se-ia, entre outros, contratar funcionários sem concurso público, adquirir bens e serviços sem processo licitatório e não prestar contas a órgãos de controle internos e externos da administração pública, porque estas são consideradas “atribuições privativas do Conselho de Administração”, que podem todo o mais, tal como “aprovar por maioria, no mínimo, de dois terços de seus membros, o regulamento próprio contendo os procedimentos que devem adotar para a contratação de obras, serviços, compras e alienações e o plano de cargos, salários e benefícios dos empregados da entidade”.[10]
Na esfera federal, o objetivo evidente com a instituição das OS foi o de que elas substituíssem entidades públicas que atuam em uma das referidas áreas. A idéia seria a de que os próprios dirigentes da entidade pública constituíssem uma associação ou uma fundação sem fins lucrativos e se qualificassem perante o poder público mediante a apresentação de um projeto; uma vez aceito, a entidade receberia o título de OS e passaria a administrar o orgão público, porém “transformado” em OS. Paralelamente, a entidade pública que desempenhava a mesma atividade seria extinta.[11]
O objetivo evidente era o de fugir ao regime jurídico de direito público, porque são os mesmos servidores, os mesmos imóveis, o mesmo patrimônio, o mesmo serviço público, que vai passar a ser administrado por uma entidade privada e segundo normas de direito privado. Tudo sob o argumento da busca da maior eficiência no atendimento do usuário.[12]
Como pode ser observado, com esta Lei, instituiu-se garantias e condições para se implementar o “estado mínimo no país” conforme proposto no Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, por meio da terceirização/privatização de serviços públicos até então produzidos pelo Estado e da transferência de competências privativas da União, também para entes privados, que podem dispor de poupança, bens, patrimônio, créditos e servidores públicos para administrar seus próprios interesses e, ainda assim, serem declaradas como “entidades de interesse social e utilidade pública”, para todos os efeitos legais.[13]
Portanto, ao denominar estas entidades de Organizações Sociais, o Governo pretendia garantir um meio para retirar órgãos e competências da Administração Pública Direta (programas, ações e atividades) e Indireta (autarquias, fundações, sociedades de economia mista e empresas públicas) e, além disto, garantir a transferência de seu ativo ao setor privado.
No caso da Saúde, a Lei ressalvou que “a organização social que absorver atividades de entidade federal extinta no âmbito da área de saúde deverá considerar no contrato de gestão, quanto ao atendimento da comunidade, os princípios do Sistema Único de Saúde, expressos no art. 198 da Constituição Federal e no art. 7o da Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990”.
A justificativa do Governo, entre outras, era de que as atividade não exclusivas de Estado – termos e conceitos tomados de uma proposta de governo e não da Lei, podem ser transferidas à iniciativa privada, sem fins lucrativos, sob o argumento de parceria e modernização do Estado, porque esta transferência resultaria em melhores serviços à comunidade; maior autonomia gerencial; maiores responsabilidades para os dirigentes desses serviços; aumento da eficiência e da qualidade dos serviços; melhor atendimento ao cidadão e menor custo. Além disso, o governo entendia que o Estado havia desviado de suas funções básicas para atuar no “setor produtivo”, o que teria gerado a deterioração dos serviços públicos e aumentado a inflação.[14]
Assim, por meio de contratos de gestão, transferiram-se serviços diversos ou unidades de serviços de saúde públicos a entidade civil, entregando-lhe o próprio estadual ou municipal, bens móveis e imóveis, recursos humanos e financeiros, dando-lhe autonomia de gerência para contratar, comprar sem licitação, outorgando-lhe verdadeiro mandato para gerenciamento, execução e prestação de serviços públicos de saúde, sem se preservar a legislação sobre a administração pública e os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde.[15]
Houveram inúmeras manifestações contrárias e impugnações em razão dessa terceirização de serviços de saúde públicos (quase todos os Conselhos Estaduais de Saúde, inúmeros Conselhos Municipais e conferências de saúde), além de representações junto à Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão e às Procuradorias Regionais dos Direitos dos Cidadãos nos Estados, por Confederações, Federações, Sindicatos, parlamentares, CONASEMS, entre outros. Em alguns casos, o Ministério Público apresentou ação civil pública contra esse tipo de terceirização (ex: Rio de Janeiro, Roraima e Distrito Federal).
– AS ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL DE INTERESSE PÚBLICO (OSCIP)
Em 1999, a Lei Federal n.º 9.790, de 23 de março, instituiu as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público –OSCIP, na esfera Federal de Governo, a qual propôs “a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, e institui e disciplina o Termo de Parceria”, de maneira semelhante ao contrato de gestão firmado entre o Poder Público e a entidade qualificada como Organização Social.Contudo, com finalidades absolutamente distintas.
Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, não se deve confundir esses “dois tipos de entidades atendem a objetivos bem diferentes. As OS foram idealizadas para gerir serviços públicos por delegação do ente federativo, enquanto as OSCIPs foram idealizadas para prestar atividade social de interesse público, sem fins lucrativos, com a ajuda do poder público.” [16]
Pois bem, a Lei estabeleceu que “podem qualificar-se como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público as pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, desde que os respectivos objetivos sociais e normas estatutárias atendam aos requisitos” da Lei. [17]
Os “objetivos sociais” estão previstos nos doze incisos do art. 3 da lei, são eles:
– promoção da assistência social;
– promoção da cultura, defesa e conservação do patrimônio histórico e artístico;
– promoção da educação;
– promoção da saúde;
– promoção da segurança alimentar e nutricional;
– defesa, preservação e conservação do meio ambiente, promoção do desenvolvimento sustentável;
– promoção do voluntariado;
– promoção do desenvolvimento econômico e social, combate à pobreza;
– experimentação de novos modelos sócio-produtivos e de sistemas alternativos de produção, comércio, emprego e crédito;
– promoção de direitos estabelecidos, construção de novos direitos e assessoria jurídica gratuita de interesse suplementar;
– promoção da ética, da paz, da cidadania, dos direitos humanos, da democracia e de outros valores universais;
– estudos e pesquisas, desenvolvimento de tecnologias alternativas para a produção e divulgação de informações e conhecimentos técnicos e científicos;
Tais atividades devem ser desenvolvidas mediante a execução direta de projetos, programas, planos de ações correlatas, por meio da doação de recursos físicos, humanos e financeiros, ou ainda, pela prestação de serviços intermediários de apoio a outras organizações sem fins lucrativos e a órgãos do setor público que atuem em áreas afins.
Instituiu-se o Termo de Parceria, considerado como o instrumento a ser firmado entre o Poder Público e as entidades qualificadas como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público destinado à formação de vínculo de cooperação entre as partes, resguardada a consulta aos Conselhos de Políticas Públicas das áreas correspondentes de atuação existentes, nos respectivos níveis de governo. [18]
A execução do objeto do Termo de Parceria deve ser acompanhada e fiscalizada pelo órgão do Poder Público da área de atuação correspondente, por meio de comissão de avaliação, composta de comum acordo entre o órgão parceiro e a Organização da Sociedade Civil de Interesse Público que encaminhará à autoridade competente relatório conclusivo sobre a avaliação procedida, e ainda, pelos respectivos Conselhos de Políticas Públicas em cada nível de governo.[19]
Percebe-se com isso que o objetivo do Termo de Parceria não é o de transferir à OSCIP a prestação de serviços públicos e sim o de fomentar o exercício de atividades de interesse público por entidade privadas em conjunto com o Estado.[20]
A idéia é que elas atuem paralelamente ao Estado, prestando uma atividade dirigida à sociedade, à proteção do interesse público e exatamente por isso o Estado faz parcerias e fomenta as atividades
Para tanto, as OSCIPs devem publicar regulamento próprio contendo os procedimentos que adotará para a contratação de obras e serviços, bem como para compras com emprego de recursos provenientes do Poder Público, observando-se os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, economicidade e da eficiência.
Vale ressaltar que a época da edição da lei as pessoas jurídicas qualificadas com base em outros diplomas legais, ou seja, as Organizações Sociais (OSs), puderam qualificar-se como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) sendo-lhes assegurada a manutenção simultânea dessas qualificações, até dois anos, contados da data de vigência da Lei.
No final deste prazo, a pessoa jurídica interessada em manter a qualificação prevista na Lei deveria optar por ela, fato que implicava na renúncia automática de suas qualificações anteriores, sendo que a não opção significava a perda automática da qualificação obtida nos termos desta Lei.
O objetivo deste dispositivo era, de fato, transformar as OSs em OSCIP porque estas possuem maior alcance e abrangência quanto aos seus objetivos e projeto político de terceirização e privatização de programas, atividades, ações e serviços públicos, alem de controle e fiscalização.
Com a Lei das OSCIPs, grande parte das ações governamentais puderam ser transferidas ao setor privado, conforme o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado/1995 (FHC), exceto as do chamado Núcleo Estratégico e Burocrático (Núcleos Centrais dos Ministérios; Secretarias de Estado e Municipais; Legislativos; Judiciários; as Polícias; as Forças Armadas e os Núcleos Centrais do Fisco), e as do chamado Setor de Produção de Bens e Serviços (Água, Energia, Correios, Bancos, alguns setores de Pesquisas, etc.) por serem ” atividades empresariais e devem ser transferidas integralmente para a iniciativa privada lucrativa”.[21]
No caso das OSCIPs, a prestação de serviços públicos é transferida para as Organizações Não-Governamentais – ONG, cooperativas, associações da sociedade civil de modo geral, por meio de “parcerias”, diferentemente do Programa de Publicização, que promove a extinção de órgãos ou entidades administrativas já existentes. (grifos nossos)
Os objetivos estabelecidos na “Lei das OSCIP”, cumprem, portanto, o previsto no Plano Diretor de Reforma do Estado, no qual, para os Serviços Exclusivos de Estado (Fiscalização, Fisco do Meio Ambiente e do Aparelho Central da Seguridade Social – Saúde, Previdência e Assistência Social-) e para os Serviços Sociais Competitivos (Educação, Saúde, Cultura, Produção de Ciência e Tecnologia) implementar-se-iam através de gestão gerencial, para garantir, especialmente, a especialização da força de trabalho, o enxugamento da maquina publica e a participação do controle social.[22]
E mais, diferentemente do caráter privatista das OS, seguindo o viés democrático constitucional, a lei estimula a gestão compartilhada das atividades estatais com as OSCIPs que tenham seus objetivos institucionais semelhantes a atividade fim desejada pelo Estado exatamente para manter o caráter sócio-gerencial e participativo.
Ou seja, além dessa participação mais direta na gestão, através das OSCIPs , temos hoje no país, em todas as áreas, um número enorme de conselhos e de comissões integradas por representantes da sociedade civil e estatal. É, sem dúvida nenhuma, uma expressão da atuação da sociedade civil mediante associações em conselhos consultivos ou conselhos deliberativos, tendo uma participação não diretamente na gestão, mas na tomada de decisões destes inúmeros conselhos e comissões que existem no âmbito desta “gestão compartilhada” [23]
No tocante ao desenvolvimento das atividades especificas prescritas na, lei, dentre elas, citamos, a gestão da saude publica, não há na lei federal qualquer previsão da preferência governamental na escolha de entidade privada para desenvolver a atividade, porem há larga recomendação doutrinaria de que se deve evitar a “substituição” de entidade pública por OS, como ocorre no âmbito da União.[24]
Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, na esfera federal há larga dose de imoralidade na sistemática das OS , “porque uma entidade pública acaba recebendo roupagem nova, na medida em que é substituída por uma entidade privada, que vai administrar o mesmo serviço público, porém sob regime jurídico de direito privado (salvo quanto aos controles exercidos pelo Poder Executivo e pelo Tribunal de Contas). Com efeito, no lugar de uma autarquia ou de um órgão público, que estava sujeito ao direito administrativo, à licitação, ao concurso público, surge uma associação ou uma fundação privada, que vai gerir a mesma atividade, sem as restrições impostas à Administração Pública. A entidade, para qualificar-se, não precisa demonstrar existência prévia (podendo ser constituída “ad hoc”, com o objetivo específico de receberem a qualificação). É evidente que há uma mudança do regime jurídico, configurando-se realmente uma fuga do direito administrativo, embora elas administrem o patrimônio público.”[25]
Nesta diapasão, verifica-se que se a gestão publica na área realizada por OSCIP se torna mais eficiente e transparente quando o “objetivo da parceria não é o de substituir o Estado na prestação de serviços públicos dele privativos; a OSCIP atua no seu próprio espaço, com os seus próprios empregados, no exercício da atividade prevista em seus Estatutos, destinando-se a parceria ao fomento de atividade privada e não à delegação de serviço público”[26] alcançando assim o real objetivo, o cerne da finalidade da criação do Terceiro Setor brasileiro, qual seja, a atuação paralela e compartilhada da iniciativa privada e do Estado nos assuntos de interesse publico coletivo.
Neste contexto, vale lembrar que alguns Tribunais de Contas já se posicionaram nesse sentido. Por exemplo, o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, respondendo a uma consulta do Município de Patrocínio Paulista, respondeu que “é possível a contratação de Oscip para operacionalização do Programa de Saúde da Família e do Programa de Agentes Comunitários da Saúde” desde que “observados os respectivos procedimentos de seleção das entidades interessadas em celebrar os termos de parceria e convênios decorrentes”. [27]
No mesmo sentido, decidiram os Tribunais de Contas de Pernambuco e do Distrito Federal. Em Minas Gerais já existe lei estadual disciplinando o assunto, Lei Complementar 14.870/03 e o Decreto 43.749/04; em Goiás há projeto de lei em tramitação. No Estado de São Paulo, as OSCIPs estão disciplinadas pela Lei estadual nº 11.598, de 15.12.2003; ela não prevê a outorga da qualificação pelo Estado, mas regulamenta o termo de parceria a ser firmado com as OSCIPs qualificadas pelo Ministério da Justiça.
Ao nosso ver, esse é o entendimento correto, ou seja, cada ente da federação, por meio de um termo de parceria, pode ou não decidir pelo fomento de uma atividade privada de interesse público que melhor lhe convier, ou seja, cada esfera de governo decide quais as atividades que quer fomentar, podendo ou não coincidir com as previstas na lei federal.
Desta feita e mediante todo o exposto, podemos afirmar sem sombra de duvidas, que a Administração Publica brasileira, de forma geral, dependendo da situação específica, em assim procedendo, ao repassar a gestão da saude ao Terceiro Setor, mais especificamente às OSCIPs, nos termos preconizados por Lucia Valle Figueiredo, respeita o “principio da universalização dos serviços vocacionados no artigo terceiro da Lei 9790/1999” e, mais, uma vez bem implementadas, tais atividades são, sem sombra de duvidas, conforme as palavras da saudosa professora, “ ótimo mecanismo para auxilio das amplas e necessárias atividades cometidas ao Estado pelo Constituinte.”[28]
Afinal de contas, presta-se um serviço de melhor qualidade, pois este é executado por profissionais especialistas e bem capacitados, sempre sob a supervisão, orientação e a fiscalização do parceiro publico, o qual detém o controle absoluto na condução das suas atividades origináriamente constitucionais, de tal sorte que, essa atividade da saude, uma vez repassada à OSCIP, não perca as características de serviço publico.
E mais, indiscutivelmente, em razão do formato legal imposto pela “Lei das OSCIPs”, conforme exposto anteriormente, há maior transparência, tanto no trato da coisa publica, como também, na gestão e fiscalização dos recursos públicos repassados, uma vez que a lei exige que o controle seja feito em estrita conformidade ao cumprimento de metas acordadas e a realização de relatórios periódicos. Consequentemente, maior eficiência no gerenciamento das atividades e também, maior economicidade do erário publico, pois eles são otimizados e delineados diante da execução fática do objeto do ajuste.
Por fim podemos afirmar que a gestão da saude realizada por OSCIPs em razão da real necessidade do cumprimento das metas acordadas, mas sobretudo, em decorrência do profissionalismo e da racionalização das verbas disponíveis, atende mais e melhor a população.
Enfim, conforme bem ilustra Josenir Teixeira, “alternativas há para que o governo, de qualquer esfera e ideologia, delas se utilize, visando melhorar o atendimento da população na área da saúde. Recursos financeiros existem para isso. Eles devem, entretanto, ser bem gastos, administrados e empregados, ou seja, há alternativas viáveis e legais para que entes políticos possam cumprir a obrigação constitucional de dar atendimento DIGNO à saúde a TODOS os cidadãos brasileiros.” [29] (g.n.) Sendo assim, não hesitamos em afirmar que para a saude publica brasileira as OSCIPs são uma dessas alternativas.
Notas:
Informações Sobre o Autor
Luciana Andrea Accorsi Berardi
Procuradora licenciada da Universidade do Estado de São Paulo – USP; Especialista em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP; Especialista em Direito Penal Administrativo pela Escola Paulista da Magistratura – EPM/SP; Mestre e Doutora em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP; Professora de Direito Constitucional Administrativo no bacharelado e na pós-graduação desta mesma Universidade