Resumo: O presente artigo possui como tema principal o feminicídio como forma qualificadora do crime de homicídio, quando praticado contra mulher em razão de seu gênero, tipificado em nosso Código Penal. O presente ensaio busca fazer análise doutrinária de um tema atual e de grande relevância para a sociedade, assim como expor a forma com que o tema era tratado antes e após a tipificação da qualificadora do feminicídio no Código Penal Brasileiro.
Palavras chave: feminicídio; violência doméstica; gênero.
Abstract: The main theme of this article is femicide as a qualifying form of the crime of homicide, when it is practiced against women because of their gender, typified in our Penal Code. This essay seeks to make a doctrinal analysis of a current theme of great relevance to society, as well as to explain the way in which the theme was treated before and after the typification of the qualifier of feminicide in the Brazilian Penal Code.
Key words: feminicide; domestic violence; genre.
Sumário: Introdução; 1.Feminicídio; 1.1. Evolução histórica do feminicídio e violência contra a mulher ; 2. Análise do Projeto de Lei nº 292/2013 e do Projeto de Lei nº 8.305/2014; 2.1 A questão do gênero; 2.2. As circunstâncias do crime; 3 Feminicídio no Código Penal Brasileiro; 3.1 A influência da vitimilogia na criação da qualificadora do feminicídio; 3.2 A punição antes da qualificadora do feminicídio; 3.3 Razões da condição de sexo feminino conforme definição do feminicídio na legislação brasileira e o Projeto Violeta; 4. Lei Maria da Penha e a criação do tipo penal para o feminicídio; Conclusão; Referências.
INTRODUÇÃO
O presente artigo científico possui o objetivo de explanar um tema atual de grande relevância para a sociedade, abordando o tema em quatro capítulos, onde no primeiro capítulo irá abordar o conceito de feminicídio e sua evolução histórica, assim como abordar as questões da violência sofrida por mulheres.
No segundo capítulo será abordado o Projeto de Lei n° 292/2013, o qual buscava tipificar o feminicídio como crime hediondo, assim como ser esse crime uma qualificadora do crime de homicídio praticado contra mulheres em razão do gênero. Nesse capítulo também será abordado o Projeto de Lei 8.305/2014, e as circunstâncias do crime de feminicídio.
No terceiro capítulo será apresentada a forma com que o feminicídio foi tipificado no Código Penal Brasileiro, assim como abordar a questão da vitimilogia na criação para qualificadora do feminicídio. Ainda no terceiro capítulo será tratada a forma com que esse crime de feminicídio era tratado e punido antes de sua tipificação no Código Penal Brasileiro, assim como abordar o Projeto Violeta do TJRJ. Por derradeiro, o quarto capítulo irá abordar a Lei Maria da Penha e a criação do tipo penal para o feminicídio.
1 FEMINICÍDIO
O feminicídio é um tema pouco conhecido pela população e definir o mesmo possui grande relevância, para que os cidadãos tomem conhecimento do assunto, além do fato de que algumas autoras que abordam o assunto, relatam distinções entre o próprio nome, elencando, por exemplo, que existe diferença entre o nome femicídio e o feminicídio.
A feminista Diana Russell foi a primeira pessoa a prolatar a palavra femicide, no Tribunal Internacional de Crimes Contra Mulheres, em Bruxelas. A expressão foi pronunciada para determinar a toda forma de crime e opressão sexual contra mulheres, onde a feminista abordou tratar-se do fato de que homens causavam a morte odiosa de mulheres, onde segundo a mesma:
“A partir da queima de bruxas no passado, para o mais recente costume generalizado do infanticídio feminino em muitas sociedades, com o assassinato de mulheres para os chamados ‘direito a honra’, percebemos que o femicídio vem acontecendo há muito tempo.”[1]
No decorrer do tempo a expressão feminicídio foi sendo desenvolvido, possuindo significado de assassinato de “femininas” causado por homens pelo simples fato de serem femininas, ou seja, é o homicídio de mulheres pelo simples fato de serem mulheres. Diana Russell utiliza-se do termo feminina, para deixar claro que sua elucidação engloba também as crianças femininas assim como as idosas femininas.
Ao fazer a tradução do texto de Diana Russell, a feminista Marcela Lagarde, fez alteração do termo utilizado por Russell femicídio, que segundo Lagarde, possui o significado de homicídio feminino, passando então a utilizar em sua tradução a expressão feminicídio, a qual engloba a violência praticada contra mulheres, causada por homens, havendo na relação uma condição de desigualdade, onde a mulher é subordinada, explorada e oprimida, ou seja, é o assassinato de mulheres pelo simples fato de serem mulheres.
Rita Segato entende que há distinção entre a expressão feminicídio e a expressão femigenocídio, onde esta última expressão estaria sendo utilizada para fazer comparação ao genocídio, entendendo que há grande relevância que seja feita a distinção entre as classes de feminicídio, ocorrendo pelo fator gênero, por motivo sexual ou nas relações domésticas.
De acordo com Diana Russell, a utilização da expressão feminicide foi no sentindo de fazer com que as feministas se estruturassem na luta contra a morte de mulheres, causadas pelo fato de serem mulheres.
Estudo realizado nos Estados Unidos da América constatou que grande parte dos relatos de ocorrência de violências domésticas que vieram a causar a morte de mulheres, na proporção de 85%, a polícia já teria sido acionada em casos para dirimir algum conflito naquela família relacionada a violência contra a mulher. E em aproximadamente 50% dos casos, a polícia teria recebido a ligação solicitando a ajuda, anteriormente ao assassinado.[2]
Através desse estudo nos Estados Unidos da América, é possível que se faça a análise de que os casos de violência contra a mulher se repetem, e que embora haja a manifestação da mulher solicitando ajuda para dirimir o conflito e se proteger do agressor, em diversos casos o Estado demora em sua atuação de proteção.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos no julgamento do caso Campo Algodonero x México, no ano de 2009, determinou que as ocorrências de feminicídios deveriam ser investigadas pelo Estado, onde haveria com isso a condenação dos assassinos nesses casos, gerando segurança da sociedade e a confiança dessas pessoas no poder de punir e proteger das autoridades estatais.[3]
De acordo com entendimento de doutrinadores, feministas e estudiosos sobre o assunto abordado, é possível a clara visão de que por conta do gênero feminino, parte da sociedade impõe determinadas obrigações e deveres a serem cumpridos pelas mulheres, e que por vezes esse fator pode ensejar a violência contra a mulher, podendo inclusive vir a causar o seu óbito.
Pasinato expõem que assim como também analisado por Fragoso, as mulheres não devem ser vistas na sociedade apenas na forma de sujeitos passivos, que não estejam incluídas como membro daquela sociedade.[4]
Marcela Lagarde, autora mexicana, entende que a tradução da palavra femicide exposta por Russell, em castelhano corresponderia femicídio, o que teria o significado apenas ao homicídio de mulheres, já a palavra proposta por Lagarde, o feminicídio corresponderia ao conjunto de delitos causado a mulheres como agressões, assassinatos e desaparecimento, onde o direito dessas mulheres estaria sendo violado.
Conforme Lagarde, o feminicídio não corresponde apenas ao homicídio de mulheres pelo fato de serem mulheres, correspondendo também a toda a prática que viole a integridade, a saúde, a liberdade assim como a vida de mulheres, com violências verbais e psicológicas.
Um dos pontos de grande relevância no entendimento e pesquisa da autora Marcela Lagarde é o fato de o Estado ser omisso no que diz respeito aos casos em que houveram a prática do crime de feminicídio, omissão esta que contribuiu para a larga escala de práticas desse crime em seu país. Para o Estado, segundo Lagarde, não haveria diferenciação nas mortes de mulheres, o fator gênero não faria qualquer diferença ou seja, os assassinatos entrariam para a estatística apenas como mais um dado:
“O mais notável é a omissão de que, por constante e evidente, é a chave: a imensa maioria dos crimes são cometidos contra meninas e mulheres. Esta consideração como um fato, como se se tratasse somente da classificação de um dos sexos da classificação binária, sem conteúdo social nem de poder opressivo. No extremo, se dá um conteúdo tendencioso e se toma conta para assinalar a evidente culpa da vítima.”[5]
O fato do Estado se mostrar omisso nos casos de feminicídio, contribui para que o referido crime ocorra, tendo em vista que a concorrência de alguns fatores como o silêncio, a omissão e a negligência das autoridades estatais responsáveis em proteger a população da ocorrência desses crimes, contribui para que o crime de feminicídio continue ocorrendo.[6]
Pasinato enfatiza que o conceito de feminicídio não deve ser de forma generalizada, pois esse crime está relacionado aos assassinatos de mulheres em razão da violência doméstica, não sendo, portanto, qualquer morte de mulher em qualquer que seja a condição.
A anterior ausência que havia na legislação acerca do crime de feminicídio fazia com que em diversos casos o mérito fosse discutido com base em lei especial, na Lei Maria da Penha, a qual aborda os casos de violência doméstica familiar, no entanto, essa lei não aborda acerca do assassinato de mulheres pelo fato de serem mulheres, pelo gênero, de forma diferenciada.
O Congresso Nacional aprovou a Lei 13.104/2015, a qual prevê o feminicídio como uma situação qualificada do crime de homicídio, sendo incluso no rol dos crimes hediondos.
Houve a necessidade de criação de um nome a ser utilizado nas ocorrências dos crimes de homicídios de mulheres por conta de gênero, no caso o feminicídio, para que a partir disso, fosse possível a viabilização de se prevenir e proteger essas mulheres, além de se punir os culpados de forma qualificada, visando à diminuição das ocorrências nesse tipo de crime.
1.1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO FEMINICÍDIO.
No que tange a evolução do feminicídio, importe se faz ressaltar que conforme os estudos de Russel, o feminicídio estaria caracterizado nos casos em que mulheres eram assassinadas pelo simples fato se serem mulheres.
Dois fatos históricos impulsionaram a importância do estudo desse assunto, quais seriam: O assassinato de quatorze mulheres, tendo outras nove mulheres e quatro homens ficados feridos na Escola Politécnica da Universidade de Montreal. O assassino desse massacre suicidou-se, no entanto deixou uma carta narrando que as mulheres estariam ocupando lugares que seriam dos homens.[7]
O segundo momento histórico que marca a preocupação com o estudo desse assunto foram os assassinatos de mulheres ocorridos no México, momento em que havia um descaso na cidade de Juáres no México, quanto ao fato dos desaparecimentos e assassinatos de mulheres. Com o auge das maquiladoras, o crescimento demográfico assim como a criminalidade na cidade de Juáres cresceu.[8]
Visando sanar o problema em debate em seu país, a deputada Lagarde passou a observar a questão no México, analisando inclusive que o nome a Sr tratado não seria femicídio, traduzido do inglês, mas sim feminicídio.Esse marco histórico ocorrido na cidade mexicana de Juárez fez com que houvesse uma maior discussão do assunto, fazendo com que um assunto até antão não abordado pelas autoridades, passasse a ser um ponto de preocupação e investigação em diversos países.
2. ANÁLISE DO PROJETO DE LEI N° 292/2013 E DO PROJETO DE LEI N° 8.305/2014.
O Projeto de Lei n° 292/2013 pretendia fazer com que o feminicídio, fosse tratado no Código Penal brasileiro como uma espécie de qualificadora do homicídio, assim como incluir o feminicídio como crime hediondo. Com isso, o principal objetivo no presente capítulo é analisar os argumentos utilizados no presente projeto de lei, assim como fazer uma comparação entre os textos do Projeto de Lei apresentado n° 292/2013 e o Projeto que foi aprovado n° 8.305 de 2014.
A preocupação com o número crescente de assassinatos de mulheres fez com que as entidades internacionais se reunissem para a discussão da necessidade de se criarem formas possíveis para acabar com a violência e discriminação contra as mulheres.
A Organização das Nações Unidas entendeu que ao sofre violência, a mulher teria sofrido uma violação dos seus direitos humanos, e a partir desse entendimento, recomendou que houvesse um sistema em seus Estados Signatários, que combatesse à violência praticada contra mulheres. O Brasil, que é um dos Estados Signatários, obrigou-se a criar mecanismos que fossem capazes de alcançar a igualdade entre homens e mulheres.[9]
O Projeto de Lei n°292/2013 foi alterado e aprovado no Congresso Nacional, possuindo o mesmo, o entendimento de que o assassinato de mulheres por questão de gênero deva ser punido. Havendo ainda, o questionamento se a criação de um tipo penal iria sanar o problema. O Projeto de Lei n° 292/2013 surgiu pela preocupação em se criar o tipo penal capaz de sanar o problema do número crescente de assassinato de mulheres causada por seus parceiros. Na justificativa do Projeto de Lei 292/2013 foi mencionada a importância e o avanço alcançado através da Lei Maria da Penha (lei n° 11.340/2006), no entanto afirmou-se a necessidade da aprovação do Projeto de Lei que buscou sanar o problema do feminicídio, assim como explicar e tornar de conhecimento geral a gravidade desse crime.
O Projeto de Lei possui o intuito de penalizar o homicídio como consequência da violência de gênero, ou seja, o intuito de trazer para o Código Penal brasileiro a diferença entre o sexo biológico e o gênero, com isso, pessoas do sexo feminino, assim como transexuais, seriam enquadradas como vítimas de feminicídio a partir do momento em que sofressem violência por motivo de gênero, levando ao óbito.
A importância da tipificação do feminicídio, com uma norma inflexível e intolerante para esse tipo penal, busca alertar a sociedade e solucionar o problema do grande número de mulheres que são mortas por seus parceiros, pelo fato de serem mulheres, sendo possível analisarmos a desigualdade de gênero que ainda é presente na sociedade atual. Além disso, a tipificação desse crime também possui grande relevância para o fato de que homens que tenham cometido feminicídio, não venham a se defender alegando que tenham cometido crime passional.[10]
O Projeto de Lei n° 8.305/2014 foi aprovado pela Câmara dos Deputados em 03 de março de 2015, após passar por alterações em seu Projeto de Lei original n° 292/2013, que buscava introduzir o feminicídio como forma qualificada do crime de homicídio. Posteriormente foi aprovado pela câmara dos Deputados, tornando-se Lei Ordinária n° 13.104/2015, também conhecida como “lei do femicicídio”
2.1 A QUESTÃO DO GÊNERO
Nosso Código Penal não faz distinção de gênero e nem de grupos sociais, mas conforme entendimento de Alessandro Baratta, a desigualdade social é um dos motivos que faz com que haja a criminalidade[11].
Embora no texto do Projeto de Lei n° 292/2013, a intenção principal fosse a erradicação do crime de gênero, expondo que o feminicídio ocorria em casos de violência de gênero que resultasse na morte da mulher, no entanto, a o presente Projeto de Lei foi alterado, e a lei que foi aprovada, vindo a inserir o §2º do inciso II do art. 121, expõe que esse crime é o homicídio de mulher pela razão da condição do sexo feminino.
Com a alteração no texto do projeto de Lei, observa-se que não houve um avanço social quanto aos direitos de gênero. Nesse contexto, o gênero deve considerar corpos sexuados como mulher, não havendo a limitação do discurso àquelas que já nasceram mulheres, devendo estar incluídas também nesse contexto as mulheres transexuais que também sofrem violência doméstica, mas que de forma equivocada, são excluídas do rol de vítimas na lei 13.104/2015.
2.2 AS CIRCUNSTÂNCIAS DO CRIME
Conforme o texto original do Projeto de Lei n° 292/2013, o feminicídio é a forma mais grave de violência de gênero, vindo a causar a morte da mulher, nos casos em que estiverem presentes uma ou mais das circunstâncias a seguir:
“I- relação íntima de afeto ou parentesco, por afinidade ou consaguinidade, entre a vítima e o agressor no presente ou no passado; II- prática de qualquer tipo de violência sexual contra a vítima, antes ou após a morte; III- mutilação ou desfiguração da vítima, antes ou após a morte”.
No texto da lei que foi aprovada n° 13.104/2015, as hipóteses que caracterizam o crime de feminicídio diminuíram para duas, sendo elas: a primeira é a violência doméstica e familiar, e a segunda é a discriminação e o menosprezo à condição de ser mulher.
As alterações no texto da lei n° 13.104/2015 em relação ao Projeto de Lei n° 292/2013 fez com que as circunstâncias do feminicídio se tornassem mais genéricas, vindo na verdade a retroceder no que se refere à proteção de gênero, enquanto que no texto original o que se buscava era a evolução da proteção ao gênero.
3 FEMINICÍDIO NO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO
O texto que foi aprovado para a punição daqueles que praticarem o crime de feminicídio, incluiu três circunstâncias de aumento de pena, as quais não foram arguidas no Projeto de Lei n° 292/2013, sendo elas:
“§7º A pena do feminicídio é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado: I – durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto; II – contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta); III – na presença de descendente ou de ascendente da vítima.”[12]
Ao criar o parágrafo 7°, o legislador buscou fazer com que o agressor não ficasse impune, tendo em vista que no caso de serem aplicados os incisos I e III do texto original do Projeto de Lei 292/2013, as penas dos crimes de estupro, assim como a de vilipêndio ou destruição de cadáver não seriam examinadas, tendo em vista que as circunstâncias do feminicídio já estariam qualificando os demais crimes.
O parágrafo 8° estabeleceria o concurso material dos crimes, no entanto, o parágrafo 8° foi retirado pelo Congresso Nacional, o que possibilita a circunstância do bis in idem, vindo a favorecer o agressor.
3.1 A INFLUÊNCIA DA VITIMOLOGIA NA CRIAÇÃO DA QUALIFICADORA DO FEMINICÍDIO
Durante muito tempo na seara criminal, houve apenas a importância em se buscar o infrator do crime ocorrido, não existia uma ciência que possuía a finalidade de estudar a vítima, e com isso, após pouco tempo do crime sofrido, a vítima perdia a sua importância. Nesse contexto, diversos estudiosos e advogados penalistas, praticantes da lei, expunham o entendimento de que o Código Penal brasileiro deveria buscar a solução para o crime praticado, analisando o delito e o delinquente, mas não deixando de analisar a vítima de forma interligada.
Tratar a vítima de um crime como protagonista da investigação, possui a finalidade de oferecer a essa vítima um tratamento digno e adequado para um sujeito de direitos e garantias resguardadas na nossa Constituição da República Federativa do Brasil.
Com o passar do tempo, o entendimento de vítima sofreu algumas alterações dentro de nosso ordenamento jurídico. Num primeiro momento, em que vigia a vingança privada, onde não existia a presença de um Estado, e a constituição do povo era em clãs conforme critério de consanguinidade, a própria vítima se defendia reagindo ao crime que lhe fora praticado. A punição existente nesse período para infratores que fossem pertencentes do mesmo clã da vítima era a sua expulsão, e no caso do infrator não ser membro do clã da vítima, o resultado obtido através do delito que praticou eram as batalhas entre os clãs, conhecidas como vinganças de sangue. Nesse período vigia a crueldade nas punições dos infratores.[13]
Num segundo momento, com a instituição do Estado responsável por manter a ordem assim como a segurança da sociedade, onde a vítima passou a ser posta em segundo plano, pois esta não seria mais a responsável em reprimir o crime. Nesse mesmo momento em que surge a figura do Estado, surge também a figura do procurador, este possuindo a incumbência de representar a vítima. Nesse período buscou-se acabar com os conflitos entre infrator e ofendido para solucionar o conflito, pois nesse segundo momento o Estado que defendeu os interesses socais agindo de maneira imparcial.[14]
Num terceiro momento, com o fim da Segunda Guerra Mundial surge o redescobrimento, momento em que há a preocupação de proteger as pessoas que vieram a passar por processo vitimizante.
A vitimologia é o estudo do crime e de seus sujeitos ativo e passivo, analisando o papel assumido pela vítima na relação criminal. A vitimologia estuda a vítima sob a ótica social, biológica e psicológica, e visa incentivar na constituição de políticas públicas voltadas para a assistência às vítimas.
A vitimização é o fato aonde uma pessoa através de sua ação ou omissão venha a se autovitimar ou venha a vitimar terceiro. O estudo da vitimologia busca solucionar essas questões, prevenindo as pessoas que tendem a serem vítimas de delitos.
O crime ocorre através de um efeito de seleção, ou seja, o autor do delito faz uma seleção das pessoas que possuem maior vulnerabilidade e as escolhem como vítimas.
As mulheres, conforme a perspectiva do infrator são vítimas culturalmente legitimadas, ou seja, em diversos países as mulheres são postas em nível de inferioridade, sendo vistas como sexo frágil e consequentemente alvos mais fáceis.[15]
Enquadrar o feminicídio como tipo penal apresenta também uma preocupação com as mulheres, grupo com maior probabilidade de vitimização, no que tange à violência em razão do gênero.
3.2 A PUNIÇÃO ANTES DA QUALIFICADORA DO FEMINICÍDIO
Antes da promulgação da Lei n° 13.104/2015 que previu a qualificadora do feminicídio no crime de homicídio, assim como o incluiu como crime hediondo no Código Penal brasileiro, não existia punição de forma específica quando o homicídio fosse praticado contra mulher pelo simples fato de ser mulher, o agente ativo era punido pelo homicídio do artigo 121 no nosso Código Penal, e em alguns casos, o agente ativo o homicídio era condenado pelo homicídio qualificado pelo motivo torpe.
No período em que não havia a tipificação da qualificadora do feminicídio no crime de homicídio no Código Penal, havia o entendimento de que quando o crime fosse praticado contra mulher em razão de gênero, poderíamos estar diante de um crime passional. A função da tipificação da qualificado do feminicídio pela Lei n° 13.104/2015 é justamente acabar com a ideia de crime passional nos casos em que o homicídio ocorrer em razão de gênero, esse pensamento se deu durante muito tempo tendo em vista a sociedade patriarcal em que vivemos.
A justificação do Projeto de Lei n° 292/2013 explica os principais motivos que acarretaram a tipificar o feminicídio como qualificadora do homicídio:
“A importância de tipificar o feminicídio é reconhecer, na forma da lei, que mulheres estão sendo mortas pela razão de serem mulheres, expondo a fratura da desigualdade de gênero que persiste em nossa sociedade, e é social, por combater a impunidade, evitando que feminicidas sejam beneficiados por interpretações jurídicas anacrônicas e moralmente inaceitáveis, como o de terem cometido ‘crime passional’. Envia, outrossim, a mensagem positiva à sociedade de que o direito à vida é universal e de que não haverá impunidade. Protege, ainda, a dignidade da vítima, ao obstar de antemão as estratégias de se desqualificarem, midiaticamente, a condição de mulheres brutalmente assassinadas, atribuindo a elas a responsabilidade pelo crime de que foram vítimas.”[16]
3.3 RAZÕES DA CONDIÇÃO DE SEXO FEMININO CONFORME DEFINIÇÃO DO FEMINICÍDIO NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA E O PROJETO VIOLETA
A Lei n° 13.104/2015 que prevê o feminicídio como qualificadora no crime de homicídio, assim como o incluiu como crime hediondo no Código Penal brasileiro, sendo aplicada aos casos em que o homicídio for praticado contra a mulher pelo simples fato de ser mulher, ou seja, em razão do gênero.
A referida Lei tipifica o crime de feminicídio quando for praticado pela condição do sexo feminino, ou seja, nos casos em que a mulher for assassinada em um assalto, por exemplo, o crime praticado pelo agente ativo não será o feminicídio, eis que o gênero feminino não foi a razão para a prática do crime.
A violência doméstica ocorre quando o crime for praticado contra pessoas que coabitam, ainda que não haja parentesco entre elas, enquanto que para estar caracterizada a violência familiar, os agentes ativo e passivo do delito necessariamente são parentes, unidas de forma natural ou por afinidade.
O artigo 121, em seu parágrafo 2° A, inciso II, do Código Penal brasileiro, tipifica o feminicídio quando o crime envolver menosprezo ou discriminação pelo fato de ser mulher, ou seja, nos casos em que o agente despreza ou desvaloriza a vítima, havendo uma exclusão ou distinção que venha a prejudicar a mulher pelo simples fato de ser mulher.
O crime de feminicídio tipificado em nosso Código Penal é uma condição qualificadora do crime de homicídio, e também foi elencado como causa de aumento de pena, conforme o artigo 121, parágrafo 7° do Código Penal. Nosso ordenamento jurídico não permite a responsabilidade penal objetiva, logo, é necessário que o agente tenha ciência das circunstâncias de aumento de pena, elencadas no parágrafo 7° do Código Penal.
A juíza Adriana Mello juntamente com Polícia Civil, Defensoria Pública e Ministério Público, fizeram com que o Projeto Violeta se tornasse mais um meio de reprimir a violência doméstica e familiar praticada contra a mulher. Em 09 de março de 2015 o Governo do Estado do Rio de Janeiro, juntamente com o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, com o Ministério Público e a Defensoria Pública, assinaram o protocolo que visa fazer com que o período máximo para a adoção de medidas protetivas, para salvaguardar as mulheres que sejam vítimas de violência, seja de quatro horas.
Esse projeto visa à segurança das mulheres que foram vítimas de violência doméstica ou familiar, buscando um trâmite processual mais célere, onde, após efetuado o registro da ocorrência na delegacia, o caso é encaminhado imediatamente para o juiz, o qual irá apreciar o caso. Nesse projeto, a vítima possui uma decisão judicial mais rápida.
4 LEI MARIA DA PENHA E A CRIAÇÃO DO TIPO PENAL PARA O FEMINICÍDIO
A Lei n° 11.340/2006, conhecida como a Lei Maria da Penha, foi criada com a pretensão de reduzir os casos de violência doméstica contra a mulher.
A Lei Maria da Penha sofre críticas ao ser comparada com outras medidas protetivas às mulheres que buscam sanar o problema com a violência doméstica em outros países, pois, embora caracterize um avanço na nossa legislação, a qual busca uma intervenção de forma preventiva do Estado para resguardar e fazer com que não ocorram delitos graves praticados contra as mulheres. A elaboração de um Juízo próprio e especializado para a assistência dos casos criminais de violência doméstica praticados contra a mulher, assim como as medidas protetivas, dentre outras características dessa lei, demonstram um avanço na nossa Lei penal.[17]
No entanto, a Lei Maria da Penha possui questões que impossibilitam o êxito na redução do número de casos de violência doméstica praticada contra a mulher. Conforme o entendimento de Carmen Campos, o obstáculo de introduzir o ponto de vista feminista na criminologia presente no Código Penal brasileiro, caracteriza-se o problema mais grave da Lei Maria da Penha. Conforme Carmen Campos, a lei está direcionada apenas para as mulheres vítimas de violência doméstica, no entanto, em crítica a esse ponto, Carmen Campos afirma que os homens também sofrem violência doméstica, com isso em seu entendimento, a Lei Maria da Penha estaria negando a perspectiva de gênero.[18]
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de todo o exposto no presente artigo, podemos concluir que a busca pela segurança e integridade das mulheres vêm fazendo com que nossos legisladores modifiquem a lei com novas tipificações para que o crime de violência doméstica e familiar contra a mulher diminua.
O crime de feminicídio abordado no presente artigo foi tipificado em 2015 no Código Penal Brasileiro como uma qualificadora do crime de homicídio, assim como um crime hediondo, no entanto, não basta que o crime seja praticado contra uma mulher, pois conforme entendimento doutrinário, assim como explícito na própria lei penal, o crime deve ocorrer pelo fato de ser uma pessoa de sexo feminino, ou seja, um crime praticado em razão do gênero.
Tal tipificação trouxe avanço para a nossa sociedade, no entanto trouxe também a discussão acerca do termo elencado no artigo 121, VI, é o crime praticado “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”, onde há o entendimento de que essa expressão estaria excluindo as transexuais do rol das possíveis vítimas do crime de feminicídio.
Assim como a Lei Maria da Penha, O Projeto Violeta, a tipificação do feminicídio nos faz concluir que embora vivamos em um país com características patriarcais, há a busca pela punição dos agressores, onde os mesmo não possam se valer da justificativa de crime passional.
Informações Sobre os Autores
Deise da Rocha Dias Santos
Advogada; Graduada em Bacharel em Direito pela Universidade do Grande Rio; Pós-graduada em Direito Civil e Empresarial pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus; Mestranda em Direito na Universidade Estácio de Sá na linha de pesquisa Direitos Fundamentais e Novos Direitos
William Oliveira dos Santos
Advogado; Graduado em Bacharel em Direito pela Universidade do Grande Rio