Aspectos relevantes da coisa julgada e as ações de alimentos

Resumo: Determina expressamente o artigo 15 da Lei nº 5.478/1968 (Lei de Alimentos) que não há trânsito em julgado nas decisões que versam sobre alimentos. Há, contudo, polêmica sobre essa disposição legal. A jurisprudência não tem se debruçado efetivamente sobre o tema, embora a discussão doutrinária seja farta. Há aqueles que corroboram com o dispositivo da Lei de Alimentos, enquanto outros defendem a aplicabilidade do instituto da coisa julgada nas ações de alimentos. A fim de analisar a questão, a presente pesquisa se compromete em adentrar nesta discussão e compreender a possibilidade da ocorrência da coisa julgada nas ações de alimentos.

Palavras-chave: Coisa julgada, Alimentos, Direito das Famílias.

Sumário: 1. Breves aspectos jurídicos dos alimentos. 2. Núcleo Conceitual da Coisa Julgada. 3. As Relações Continuativas e os Alimentos. 4. Conclusão.

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1. Breves aspectos jurídicos dos alimentos

O Código Civil de 2002 regula a matéria de alimentos entre seus artigos 1.694 e 1.710, e, embora tenha trazido alterações polêmicas à época, nenhuma delas teve o condão de modificar o status que goza a família no seio da sociedade: o núcleo familiar continua sendo sua base.

O direito das famílias encontra embasamento, primordialmente, no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (Artigo 1º, inciso III, Constituição Federal). Derivado da garantia constitucional, há o princípio da solidariedade familiar que abarca assistência material e imaterial entre os membros de uma família.

O significado do vocábulo “alimentos” é muito mais complexo do que aparenta, sendo possível extrai-lo da Constituição Federal, com destaque aos artigos 6º e 227.

O artigo 227, da Constituição Federal, assegura aos jovens, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação e ao lazer, entre outros direitos. Dessarte, o artigo 6º que disciplina os direitos sociais, garantindo a educação, a saúde, a alimentação, o lazer e a moradia.

Assim, os alimentos não se prestam apenas a fornecer aspectos materiais. Os alimentos abragem os direitos constitucionais supramencionados, devendo asseverar o direito do alimentado ao lazer, moradia, saúde, educação, transporte e educação.

Juridicamente, associando a lição extraída da Constituição Federal e da doutrina, os alimentos compreendem tanto as necessidades humanas básicas quanto aquelas essenciais para a vida em sociedade, tendo, entretanto, função precípua de garantir a preservação da dignidade humana.

O meio técnico adequado para reclamar alimentos está disciplinado pela Lei nº 5.478/1968 e tem rito especial. Dentre as peculiaridades contidas neste lei, é importante frisar que, uma vez procedente a ação de alimentos, o juiz fixará valor definitivo da pensão alimentícia. A senteça que fixa alimentos tem caráter continuativo, podendo ser revista quando da alteração do binômio possibilidade/necessidade.

Havendo alteração na relação material com reflexos no binômio necessidade/possibilidade, quaisquer das partes poderão pleitear a revisão ou exoneração dos alimentos fixados judicialmente. Referido direito encontra guarida no artigo 1.699 do Código Civil e no polêmico artigo 15 da Lei dos Alimentos.

O artigo 1.699 dispõe que “se, fixados os alimentos, sobrevier mudança na situação financeira de quem os supre, ou na de quem os recebe, poderá o interessado reclamar ao juiz, conforme as circunstâncias, exoneração, redução ou majoração do encargo.”

 As ações revisional e exoneratórias são autônomas, aplicando-se a elas as disposições da ação de alimentos, consoante a Lei n º 5.478/1968 (Lei de Alimentos). Essa peculiariedade de autonomia é fundamental ao presente estudo, vez que determina a característica de continuatividade das relações de alimentos.

2. Núcleo Conceitual da Coisa Julgada

Quanto à definição de coisa julgada, esta pode ser encontrada no Código de Processo Civil, parágrafo 3º do artigo 301, ao dispor que “há coisa julgada, quando se repete ação que já foi decidida por sentença, de que não caiba recurso”.

Há que se ressaltar que, antes da vigência do Código de Processo Civil de 1973, tinha-se que a formação da coisa julgada era o principal efeito da sentença. A evolução do conceito deste instituto jurídico mostra, em análise atual, que a coisa julgada não é mero efeito da sentença, mas sim sua qualidade.

A Constituição Federal também tratará sobre a coisa julgada, qualificando-a como fonte de segurança jurídica, ao disciplinar, no inciso XXXVI do artigo 5º, que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.

A coisa julgada pode ser divida em formal e material. A coisa julgada formal tem relação intrínseca com a decisão proferida dentro de determinado processo, atingindo as sentenças definitivas e terminativas.

Cândido Rangel Dinamarco entende a coisa julgada formal como a “imutabilidade da sentença como ato jurídico processual”[1]. Enquanto se pode definir a coisa julgada material, nas palavras de Eduardo Talamini: “A coisa julgada material pode ser configurada como uma qualidade de que se reveste a sentença de cognição exauriente de mérito transitada em julgado, qualidade essa consistente na imutabilidade do conteúdo do comando sentencial”. [2]

A coisa julgada material atinge, de fato, a substância da sentença definitiva: a matéria veiculada não mais poderá ser discutida. O artigo 467 do Código de Processo Civil definirá a coisa julgada material como “a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário”.

De outro lado, a coisa julgada formal atinge diretamente a decisão proferida no processo.

Para estabelecer os limites da coisa julgada, deve-se questionar quais as partes da sentença são acobertadas pela coisa julgada e, finalmente, quem é atingido por este instituto.

Os limites objetivos da coisa julgada relacionam-se com a primeira questão proposta. Já os limites subjetivos estão instrinsicamente relacionados aos sujeitos de determinada relação jurídica.

O artigo 469 do Código de Processo Civil determina os limites objetivos da coisa julgada, quando dispõe:

“Art. 469. Não fazem coisa julgada:

I – os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença;

Il – a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença;

III – a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo.”

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Dessa forma, conclui-se que apenas a parte dispositiva, ou seja, a análise do pedido e da causa de pedir, da sentença estará coberta pela autoridade da coisa julgada.

No tocante aos limites subjetivos da coisa julgada, a regra geral preleciona que o instituto se opera apenas para as partes da relação jurídica. Essa é a regra da primeira parte artigo 472 do Código de Processo Civil: “A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros”.

Entretanto, dificilmente há no Direito regras que não comportem exceções. Assim, haverá casos em que a coisa julgada atingirá não apenas as partes envolvidas na relação jurídica, conforme disposição da última parte artigo 472 do Código de Processo Civil, in verbis: “nas causas relativas ao estado de pessoa, se houverem sido citados no processo, em litisconsórcio necessário, todos os interessados, a sentença produz coisa julgada em relação a terceiros”.

3. As Relações Continuativas e os Alimentos

O artigo 471 do Código de Processo Civil descreve que nenhum juiz decidirá novamente questões já decididas, relativas à mesma lide, excepcionalmente nos casos previstos em lei.

O inciso I de referenciado artigo trata de uma dessas exceções, versando sobre a relação jurídica continuativa. Sobrevindo modificações no estado de fato ou de direito, é lícito à parte pedir a revisão do que foi disposto na sentença.

Relações jurídicas continuativas são aquelas passíveis de alteração fatual ainda que após a prolação da sentença.

É pouco técnico afirmar que as relações continuativas não são revestidas da coisa julgada. Ocorre que, após o trânsito em julgado de uma decisão (ainda que de trato sucessivo), aqueles fatos não poderão mais ser discutidos.

O Juiz se manifestará novamente a respeito de algumas questões vez que a relação continuará sendo a mesma (como a revisão de alimentos, por exemplo), mas a causa de pedir será diversa. O próprio texto de lei trata que será lícito à parte solicitar revisão quando houver modificações no estado de fato ou de direito, quer dizer, assim, que as modificações se transmutarão em novo pedido.

A relação entre alimentante e alimentado é a clássica subsunção ao conceito de relação continuativa. A qualquer momento, pode haver alteração na situação das partes deste tipo de relação e não seria juridicamente admissível que a situação decidida pelo Judiciário não pudesse ser revista.

Entretanto, padece o artigo 15 da Lei de Alimentos da tecnicidade devida, já que a decisão judicial sobre alimentos transita em julgado. Esta decisão judicial pode ser revista a qualquer tempo desde que haja modificação na situação das partes, sob pena de clara infração à segurança jurídica e à própria justiça.

A alteração do binômio possibilidade/necessidade enseja uma nova ação (podendo exonerar ou rever os alimentos fixados) e, dessa forma, deve conter outro pedido e causa de pedir.

Basta imaginar que, se a decisão que versa sobre alimentos não transitasse em julgado, poderia ser revista a qualquer tempo, com base em qualquer argumento, causando total descompasso jurídico.

Maria Berenice Dias se manifesta nos seguintes termos, a respeito da coisa julgada na ação de alimentos: “Apesar do que diz a lei (LA 15), a sentença proferida em ação de alimentos produz, sim, coisa julgada material. A doutrina sustenta de forma maciça ser equivocada a expressão legal, ao afirmar que a decisão sobre alimentos não transita em julgado, porque pode ser revista a qualquer tempo, diante da alteração da situação financeira dos interessados. A possibilidade revisional leva à falsa ideia de que a sentença que fixa alimentos não se sujeita à imutabilidade. A assertiva não é verdadeira. Estabelecida a obrigação alimentar, que envolve inclusive o estado familiar das partes, transitada em julgado, atinge a condição de coisa julgada material, não podendo novamente essa questão ser reexaminada”.[3]

Os alimentos estão revestidos da cláusula rebus sic stantibus, o que permite que os valores fixados a título de pensão possam ser alterados quando há alteração no binômio necessidade/possibilidade.

4. Conclusão

Diante do exposto, verifica-se a imprecisão do artigo 15 da Lei nº 5.478/1968 (Lei de Alimentos) ao afirmar que a decisão que trata de alimentos não transita em julgado.

Muito embora parte da doutrina e da jurisprudência continue ratificando o disposto na Lei de Alimentos, a discussão deve ser aprofundada em nome da segurança jurídica. .

Ainda que o artigo 15 da Lei de Alimentos expressamente determine a ausência de coisa julgada na ação de alimentos, a sentença que fixa alimentos produz coisa julgada material, a coisa julgada “por excelência”.

A possibilidade de revisão ou exoneração da sentença de alimentos e o caráter continuativo das relações alimentícias causa certo desacerto, levando a crer que a sentença sobre alimentos não transita em julgado, podendo ser rediscutida ilimitadamente.

As relações de trato sucessivo têm em seu cerne a cláusula rebus sic stantibus, significando dizer que as ações revisionais e exoneratórias são autônomas da ação de alimentos que as tenha originado.

Para que haja majoração, redução ou exoneração de alimentos é necessário que tenha existido alteração no binômio possibilidade/necessidade (nos termos do artigo 1.694, parágrafo 1º, Código Civil), ensejando, assim, nova causa de pedir. As partes e o objeto serão os mesmos, mas os fatos são diversos.

Tanto se opera a coisa julgada nas ações de alimentos que, não havendo quaisquer alterações na situação fática das partes, o decidido não poderá ser revisto.

A ocorrência da coisa julgada está ligada aos fatos de determinada lide. Analisados esses fatos pelo Juiz e havendo decisão de mérito da qual não caiba mais recurso, aqueles fatos não mais poderão ser discutidos.

Os alimentos e as relações que os originam são efetivadas por meio de prestações periódicas, subsistindo o fato de que, em algum momento, serão alterados. A revisão de que trata o artigo 471, quando há uma relação continuativa, não desconfigura a coisa julgada.

A prerrogativa de majoração ou redução do encargo alimentar não desvirtua a aplicação da coisa julgada. Essas ações são autônomas em relação a ação de alimentos e somente serão admitidas baseadas em novos fatos que desequilibrem a relação processual.

Não é crível, na conjectura alcançada pelo direito brasileiro, que uma sentença de mérito não produza coisa julgada, podendo ser reexaminada a qualquer tempo, sob qualquer pretexto.

 

Referências
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Tomo III. São Paulo: Malheiros Editores, 2009.
TALAMINI, Eduardo. Coisa Julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
 
Notas:
[1] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Tomo III. São Paulo: Malheiros Editores, 2009, p. 303.
[2] TALAMINI, Eduardo. Coisa Julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.30.

[3] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 583.


Informações Sobre o Autor

Géssica Guimarães Higino

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Advogada e Professora de cursos preparatórios. Especialista em Direito Constitucional e Administrativo


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