Auxílio emergencial indevido e investigação criminal tecnológica

César Henrique Sanfelice Rocha de Oliveira*

Higor Vinícius Nogueira Jorge**

O grave surto do coronavírus (Covid-19) ensejou um empenho imediato e extraordinário na elaboração de normas visando a minimização dos efeitos dramáticos sofridos pela sociedade brasileira, com especial ênfase no aspecto econômico e social.

 Para contextualização, convém relembrar que a emergência em saúde pública de importância nacional foi declarada pelo Ministério da Saúde por intermédio da Portaria nº 188, de 03 de fevereiro de 2020, na esteira da Organização Mundial da Saúde (OMS). A medida lastreou a execução de ações emergenciais visando a proteção da saúde pública. De forma subsequente o Congresso Nacional reconheceu o estado de calamidade pública (Decreto Legislativo nº 6/2020), promovendo a dispensa de metas de execução do orçamento e de limitação de empenho de recursos.

Dentre a legislação atinente ao tema se destaca a Lei nº 13.982, de 02 de abril de 2020, que resultou na criação do denominado Auxílio Emergencial. Este, objeto da presente análise, tem recebido enfoque diário da imprensa nacional, dada sua importância social e econômica, consubstanciada em um impacto financeiro, segundo o Governo Federal, no importe de aproximadamente 150 bilhões de reais para os três meses iniciais[1] [2].

Ocorre que o modelo de requerimento simplificado (realizado pelo aplicativo mantido pela Caixa Econômica Federal) somado ao peso da autodeclaração das informações enviadas pelos requerentes a subsidiar a análise automatizada do benefício propiciam disparidades na sua concessão. Em especial a ocorrência disseminada de geração de pagamentos à requerentes que não se amoldam aos critérios legais, ensejadores do direito ao benefício, ou seja, pessoas que dolosamente inserem informações falsas no requerimento buscando a percepção do benefício e, por isso, incorrem em crimes previstos no Código Penal.

A divulgação dos beneficiários do programa no sítio www.portaldatransparencia.gov.br, em cumprimento ao princípio constitucional da publicidade, talhado expressamente no art. 37 da Constituição Federal, permite um peculiar controle social, em razão da possibilidade da apresentação de denúncia. O portal em questão possibilita a qualquer cidadão efetuar busca geral por município ou específica, por nome, de determinado beneficiário, tornando prática a indicação de eventual irregularidade, oferecida pelo próprio portal, ao detalhar cada recebedor.

No meio popular há certa percepção, infundada, de que os crimes praticados com o auxílio de recursos tecnológicos gozam de ampla impunidade.

Tal percepção é, na realidade, equivocada, considerando que as polícias judiciárias (Polícia Civil e Polícia Federal) estão preparadas para o enfrentamento da criminalidade, como pode se observar nos resultados da atuação dessas instituições em desfavor de organizações criminosas.

Quanto a apuração de crimes mais complexos as polícias judiciárias podem aplicar a denominada “investigação criminal tecnológica” que é um conjunto de recursos e procedimentos, baseados na utilização da tecnologia, que possuem o intuito de proporcionar uma maior eficácia na investigação criminal, principalmente por intermédio da inteligência cibernética, dos equipamentos e softwares específicos que permitem a análise de grande volume de dados, a identificação de vínculos entre alvos e a obtenção de informações impossíveis de serem agregadas de outra forma, da extração de dados de dispositivos eletrônicos, das novas modalidades de afastamento de sigilo e da utilização de fontes abertas.

Ainda quanto ao auxílio emergencial é salutar apontar que a lei se destina a um público vulnerável e bem específico. Basicamente contempla, o cidadão desempregado e o trabalhador informal, que não seja titular de benefício previdenciário, assistencial ou de seguro-desemprego, cuja renda familiar, per capita, seja de até meio salário-mínimo ou com renda familiar total de 3 salários mínimos (atualmente R$ 3.135,00). Dentre outras exigências, impõe-se também o recebimento, no ano de 2018, de rendimentos tributáveis inferiores ao marco de R$ 28.559,70.

É justamente ao requerer o benefício que se pratica a autodeclaração da renda, componente este tão importante no reconhecimento do direito. A Dataprev, empresa pública responsável por substancial base de dados governamental, foi encarregada pela análise e batimento de informações e já efetuou a identificação de inúmeros requerimentos que não traduzem o perfil aduzido na lei. Entretanto, repise-se, é notória a concessão de inúmeros pagamentos ilegais, decorrentes de falsas declarações prestadas, quando do protocolo. A prática mais comum é a de omissão ou declaração falsa de renda (a menor) com o propósito de fomentar o deferimento no processamento automático do auxílio. A falsa declaração pode ser realizada com relação a renda pessoal ou renda total do grupo familiar.

Quanto a tal ponto, salutar destacar que a lei cuidou de conceituar o grupo familiar, considerando ainda que a renda familiar é “a soma dos rendimentos brutos auferidos por todos os membros da unidade nuclear”. O art. 2º, §6º da Lei nº 13.982/2020, também foi claro ao prever que a renda familiar pode ser ampliada, mediante o cômputo da renda de outros indivíduos que contribuam para o rendimento ou que tenham suas despesas atendidas por aquela unidade familiar, sendo todos moradores em um mesmo domicílio.

Não é de se olvidar que a declaração inverídica prestada visando a obtenção do benefício emergencial caracteriza o crime de falsidade ideológica que, tal qual aduz o art. 299 do Código Penal, possui pena de um a cinco anos de reclusão e multa. Caso o declarante tenha êxito em obter o auxílio, com base nas referidas informações inverídicas, poderá incorrer no crime de estelionato, que também possui uma pena de um a cinco anos de reclusão e multa, contudo, a pena é aumentada de um terço em razão do estelionato ter sido praticado contra a União, que é uma entidade de direito público (art. 171, § 3º do Código Penal).

 Ressalta-se que, em que pese sua simplicidade (que obviamente busca a efetivação da proteção social), o aplicativo traduz propriamente um processo administrativo no âmbito federal, sendo a manifestação de vontade do requerente consignada mediante sua identificação particularizada por instrumentos próprios.

 A identificação do delito possui inúmeras possibilidades e os órgãos fiscalizatórios e de controle convergem e evoluem, cada vez mais, para um cenário de garantir a mínima lesão do erário e efetivação das garantias sociais, verdadeira essência da lei protetiva.

Foto CesarCésar Henrique Sanfelice Rocha de Oliveira, é advogado, servidor público federal com lotação no Instituto Nacional do Seguro Social.

(E-mail: [email protected])

Foto HigorHigor Vinícius Nogueira Jorge, é delegado de polícia, professor da Academia de Polícia e autor de livros sobre investigação criminal tecnológica. (E-mail: [email protected])

logo Âmbito Jurídico