Resumo: O objeto do presente está assentado na imprescindibilidade de se desenvolver um debate sobre os alimentos transgênicos em uma perspectiva da Bioética e do princípio da precaução. Neste aspecto, é possível salientar que o corolário da precaução se apresenta como uma garantia contra os riscos potenciais que, em harmonia com o estado atual de conhecimento, não são passíveis, ainda, de identificação. É desfraldada como flâmula pelo preceito da precaução que, em havendo ausência de certeza científica formal, existência de um dano robusto ou mesmo irreversível reclama a estruturação de medidas e instrumentos que possam minimizar e/ou evitar este dano. Sobreleva salientar que o dogma em apreço encontra seu sedimento de estruturação no princípio quinze da Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, também conhecida como Declaração do Rio/92, que em seu princípio quinze estabelece que, com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental. Em tal debate está inserido o desenvolvimento dos alimentos transgênicos, sobretudo suas consequências, tanto para o ser humano como para o meio ambiente, a longo e médio prazo. O axioma em realce, neste cenário, constitui no principal norteador das políticas ambientais, à medida que este se reporta à função primordial de evitar os riscos e a ocorrência dos danos ambientais. Em decorrência da proeminência assumida pelo preceito da precaução, salta aos olhos que é robusto orientador das políticas ambientas, além de ser o alicerce fundante da edificação do jus ambiental. Valendo-se das reflexões fomentadas pela Bioética, o presente busca pautar um exame do tema no cenário nacional.
Palavras-chave: Alimentos Transgênicos. Bioética. Biossegurança.
Sumário: 1 Bioética: Aspectos históricos e princípios orientadores; 2 Bioética, Biossegurança e Segurança Alimentar e Nutricional: Um exame tridimensional do Direito Humano à Alimentação Adequada; 3 Alimentos transgênicos: uma tema de incertezas no futuro; 4 Direito Humano à Alimentação e o Corolário da Prevenção: Primeiras Reflexões sobre os Alimentos Transgênicos; 5 Conclusão
1 Bioética: Aspectos históricos e princípios orientadores
Bioética uma disciplina que visa à junção e a unificação da ética com tudo que concerne à vida, conclui-se tal afirmação quando se separa a palavra bioética, a palavra bio está ligada a tudo que se remete a vida e palavra ética está relacionada aos valores e princípios que orientam a sociedade, observa-se que há códigos de condutas éticas para respectivas profissões, pois há direcionamentos no que tange a forma como cada profissional deve se limitar a agir anexo as respectivas áreas. Foi visando esta ética nos parâmetros biológicos que o bioquímico que pesquisava sobre a oncologia, Van Rensselaer Potter lançou o termo “Bioética” na década de 1970. O objetivo central do Prof. Potter era estabelecer um vínculo entre a Ciência e Ética, para o pesquisador não havia possibilidade de se separar as duas áreas, no que diz respeito à importância que há na vida, a ciência que estuda a mesma não poderia andar sozinha, deveria haver algo que a orientasse e direcionasse. Com intuito de que houvesse o avanço saudável da ciência, Van Rensselaer começa a desenvolver a “Ciência da sobrevivência”, que desencadeia em um novo estudo de ética, que fora denominada como Bioética, para Potter bioética era a Ética da vida, do ser vivo, da sobrevivência.
Por meados de 1932 a 1978 ocorreram casos de acontecimentos terríveis ligados à saúde e ao bem-estar do ser humano. A título de exemplificação, é possível fazer menção ao Estudo de Sífilis não-autorizado de Tuskegee, no qual 600 (seiscentos) negros contaminados com sífilis foram levados para um centro de pesquisa para serem estudados e pesquisados, objetivando estudos sobre a doença, ao final, após uma denúncia sobre a pesquisa, restou apenas 74 pessoas ainda infectadas. É oportuno consignar que a contrapartida pela participação no projeto era o acompanhamento médico, uma refeição quente no dia dos exames e o pagamento das despesas com o funeral. Durante o projeto foram dados, também, alguns prêmios em dinheiro pela participação. A inadequação inicial do estudo não foi a de não tratar, pois não havia uma terapêutica comprovada para sífilis naquela época. A inadequação foi omitir o diagnóstico conhecido e o prognóstico esperado.
É possível fazer menção à exposição de Goldim, especialmente quando aponta “o objetivo do Estudo Tuskegee, nome do centro de saúde onde foi realizado, era observar a evolução da doença, livre de tratamento. Vale relembrar que em 1929, já havia sido publicado um estudo, realizado na Noruega, a partir de dados históricos, relatando mais de 2000 casos de sífilis não tratado” (GOLDIM, 1999, s.p.). Para que houvesse um norteamento e em resposta aos casos anteriormente ocorridos, o governo norte-americano, em 1974 promoveu uma comissão que fora designada a elaborar princípios éticos primordiais que orientaria a pesquisa por meio de experimento com seres humanos. Esta conferência ficou popularmente conhecida com o Belmont report, que identificou em forma de resumo, os princípios éticos básicos que foram explanados durante os quatro dias de conferência. Atualmente, tais princípios são utilizados para norteamento na realização dos experimentos biológicos em diversos países, os princípios que se trata são: (i) o princípio da beneficência; (ii) o princípio da não-maleficência; (iii) o princípio da autonomia; (iv) o princípio da justiça; e (v) o princípio da equidade.
Tradicionalmente, o princípio da beneficência encontra-se associado à excelência profissional desde os tempos remotos da medicina grega, materializando-se no Juramento de Hipócrates: “Usarei o tratamento para ajudar os doentes, de acordo com minha habilidade e julgamento e nunca o utilizarei para prejudicá-los”. Segundo Loch (s.d., p. 03), a beneficência significa fazer o bem, logo, em uma dimensão prática, todos os indivíduos têm a obrigação moral de agir para o benefício do outro. Ora, essa acepção, quando empregada na área de cuidados com a saúde, que compreende todas as profissões das ciências biomédicas, substancializa-se em fazer o melhor para o paciente, não apenas em uma perspectiva técnico-assistencial, mas também do ponto de vista ético. Ao lado disso, é oportuno apontar que se trata de usar todos os conhecimentos e habilidades profissionais a serviço do paciente, considerando, na construção da decisão, a minimização dos riscos e a maximização dos benefícios do procedimento a realizar (LOCH, s.d., p. 03).
O princípio da não-maleficência, por sua vez, apregoa que o profissional de saúde tem o dever de, intencionalmente, não causar mal ou danos a seu paciente. “Considerado por muitos como o princípio fundamental da tradição hipocrática da ética médica, tem suas raízes em uma máxima que preconiza: ‘cria o hábito de duas coisas: socorrer (ajudar) ou, ao menos, não causar danos’” (LOCH, s.d., p. 02). O preceito em apreço é empregado frequentemente como uma exigência oral da profissão médica, materializando, desta feita, um mínimo ético, um dever profissional, que, caso não se cumpra, coloca o profissional da saúde numa situação de má-prática ou prática negligente da medicina ou das demais profissões da área biomédica. Há que se reconhecer que o dogma em destaque recebe especial importância em razão de o risco causar danos é inseparável de uma ação ou procedimento que está moralmente indicado.
Já o princípio da autonomia estabelece que as pessoas possuem liberdade de decisão, ser autônomo em suas decisões, cada cidadão capaz possui esse direto de autonomia, é a capacidade de autodeterminação. Respeitar a autonomia do ser humano está relacionado com a preservação dos direitos fundamentais do homem e ligado a Dignidade da pessoa humana. E no âmbito da Bioética, para que ocorra o respeito à autonomia das pessoas é essencial à presença de duas condições, a liberdade e a informação. Loch aponta que autonomia é a capacidade de uma pessoa para decidir ou buscar aquilo que ela julga ser o melhor para si mesma, porém para que ela possa exercer a autodeterminação são imprescindíveis duas condições fundamentais, quais sejam: “a) capacidade para agir intencionalmente, o que pressupõe compreensão, razão e deliberação para decidir coerentemente entre as alternativas que lhe são apresentadas; b) liberdade, no sentido de estar livre de qualquer influência controladora para esta tomada de posição” (LOCH, s.d., p. 04).
Em se tratando da liberdade, profere-se que o cidadão, possui a liberdade de decisão, sem nenhum tipo de influência e informação se desencadeia no conhecimento que a pessoa tem do seu estado para que possua capacidade de decidir se irá se submeter a algum procedimento. Ademais, há de salientar, que hora e outra não haverá o respeito à autonomia de uma pessoa em favor de beneficiar outras pessoas, exemplificando, fumantes. Por seu turno, os princípios da justiça e da equidade referem-se ao tratamento de todos de uma forma igual, utilizando-se da justa medida. Verifica-se que a equidade presa o atendimento das necessidades de cada pessoa de acordo com que precisa, é disponibilizar aos iguais de forma igual e dar aos desiguais de forma desigual. A questão da Justiça faz alusão ao fato de ser respeitar o direito de cada um de forma imparcial, não concedendo privilégios a alguém. Ao lado disso, insta anotar que Loch destaca que
“O conceito de justiça, do ponto de vista filosófico, tem sido explicado com o uso de vários termos. Todos eles interpretam a justiça como um modo justo, apropriado e equitativo de tratar as pessoas em razão de alguma coisa que é merecida ou devida à elas. Estes critérios de merecimento, ou princípios materiais de justiça, devem estar baseados em algumas características capazes de tornar relevante e justo este tratamento. Como exemplos destes princípios materiais de justiça pode-se citar: 1. Para cada um, uma igual porção 2. Para cada um, de acordo com sua necessidade. 3. Para cada um, de acordo com seu esforço. 4. Para cada um, de acordo com sua contribuição. 5. Para cada um, de acordo com seu mérito. 6. Para cada um, de acordo com as regras de livre mercado” (LOCH, s.d., p. 05).
Em 2005, houve a 33º conferência geral da UNESCO, em Paris, onde ocorrera o reconhecimento da Bioética em âmbitos universais, fora referendada e ratificada por 191 países, integrantes das nações Unidas. Contudo, houve discussões a cerca das particularidades da Declaração documental da Bioética em relação à particularidade de cada país. A Declaração Universal de Bioética e Direitos humanos descreve e apontam os objetivos, finalidades, princípios e aplicação do mesmo, considerações sobre Bioética;
“Reconhecendo que questões éticas suscitadas pelos rápidos avanços na ciência e suas aplicações tecnológicas deveriam ser examinadas com o devido respeito à dignidade da pessoa humana e respeito universal por, e cumprimento dos direitos humanos e liberdades fundamentais, Decidindo que é necessário e oportuno para a comunidade internacional declarar princípios universais que proporcionarão uma base para a resposta da humanidade para os sempre-crescentes dilemas e controvérsias que a ciência e a tecnologia apresentam para a humanidade e para o meio ambiente.” (UNESCO, 2005, p. 65).
Observa-se que a conferência geral manteve o intuito do Professor pioneiro Van Rensselaer Potter, foi almejado nesta conferência elaborar um suporte de princípios e procedimentos no que diz respeito à elaboração de suas legislações, construção política e outros ramos que estejam ligados á Bioética. Ao analisar o Documento da Declaração, percebe-se que o mesmo está respaldado por orientações, particularmente os princípios que cercaram a Bioética. No Brasil, em 1995 houve a criação da Sociedade Brasileira da Bioética (SBB), que possui por missão principal difusão da Bioética ao Brasil e tem como objetivo;
“Reunir pessoas de diferentes formações, interessadas em fomentar a discussão e difusão da Bioética. Estimular a produção de conhecimento em Bioética; promover e assessorar planos, projetos, pesquisas e atividades na área de Bioética; patrocinar eventos de Bioética, conforme regulamentos próprios; apoiar e participar de movimentos e atividades que visem a valorização da Bioética”. (SOCIEDADE BRASILEIRA DE BIOÉTICA, 1995, s.p.).
Como denominou Van Potter, a Bioética é a Ciência da Sobrevivência e promover o avanço da mesma torna-se essencial para um crescimento na tecnologia biológica, permeando-se pelos princípios que a norteiam. Bioética engloba e sociedade em geral, e é de suma importância que as pessoas se interem de seu conceito e princípios, tornando-se similar aos profissionais da saúde.
2 Bioética, Biossegurança e Segurança Alimentar e Nutricional: Um exame tridimensional do Direito Humano à Alimentação Adequada
Ao esmiuçar a Lei Nº 11.105, de 24 de Março de 2005, que regulamenta os incisos II, IV e V do § 1o do art. 225 da Constituição Federal, estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS, reestrutura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança – PNB, revoga a Lei no 8.974, de 5 de janeiro de 1995, e a Medida Provisória no 2.191-9, de 23 de agosto de 2001, e os arts. 5o, 6o, 7o, 8o, 9o, 10 e 16 da Lei no 10.814, de 15 de dezembro de 2003, e dá outras providências, verifica-se que o legislador infraconstitucional estabeleceu três diretrizes basilares para perseguir a concreção da Política Nacional de Biossegurança. Neste cenário, cuida evidenciar que a primeira diretriz afixada buscar promover o estímulo ao avanço científico na área de Biossegurança e Biotecnologia, fomentando a incitação das atividades destinadas ao desenvolvimento da sistematização do conhecimento nas áreas de biossegurança e da biotecnologia. É importante salientar que, nesta senda, a biossegurança consiste no “conjunto de estudos e procedimentos que visam a controlar os eventuais problemas suscitados por pesquisas biológicas, assim como em face de suas aplicações” (FIORILLO, 2012, p. 416); ao passo que a biotecnologia materializa o uso da ciência norteada a produzir organismos vivos com características particulares, maiormente pela manipulação de material genético diferente. É possível, neste sedimento, trazer à colação o entendimento manifestado pela Ministra Cármen Lúcia:
“O termo ‘ciência’, enquanto atividade individual, faz parte do catálogo dos direitos fundamentais da pessoa humana (inciso IX do art. 5º da CF). Liberdade de expressão que se afigura como clássico direito constitucional-civil ou genuíno direito de personalidade. Por isso que exigente do máximo de proteção jurídica, até como signo de vida coletiva civilizada. Tão qualificadora do indivíduo e da sociedade é essa vocação para os misteres da Ciência que o Magno Texto Federal abre todo um autonomizado capítulo para prestigiá-la por modo superlativo (capítulo de nº IV do título VIII). A regra de que ‘O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas’ (art. 218, caput) é de logo complementada com o preceito (§ 1º do mesmo art. 218) que autoriza a edição de normas como a constante do art. 5º da Lei de Biossegurança. A compatibilização da liberdade de expressão científica com os deveres estatais de propulsão das ciências que sirvam à melhoria das condições de vida para todos os indivíduos. Assegurada, sempre, a dignidade da pessoa humana, a CF dota o bloco normativo posto no art. 5º da Lei 11.105/2005 do necessário fundamento para dele afastar qualquer invalidade” (BRASIL, 2008).
Com destaque, a primeira diretriz estabelece no plano infraconstitucional os critérios orientadores ao cumprimento da determinação contida no artigo 218 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que impõe ao Estado o dever de promover e incentivar o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológica, bem como apoiar a formação de recursos humanos nas áreas de ciência, pesquisa e tecnologia concedendo, desta maneira, aos que delas se ocupem meios e condições especiais de trabalho. Quadra anotar que a orientação constitucional é direcionada a brasileiros e estrangeiros residentes no território nacional no plano de direitos individuais e coletivos. Ora, o Estado tem o dever de incentivar o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológica em face de organismos geneticamente modificados, abarcando desde o cidadão pesquisador até entidades organizadas em proveito da pesquisa, afixando o sucedâneo de regras de apoio e estímulo às empresas que promovam o investimento em pesquisa.
“A diretriz visa obviamente ao progresso das ciências no Brasil (art. 218, §1º), destinado evidentemente a assegurar a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, c/c o art. 218, §1º, da CF) dentro de uma ordem jurídica adaptada à economia capitalista (art. 1º, IV, c/c o art. 170, VI, da CF); daí a clara orientação da Carta Magna para estabelecer que a pesquisa tecnológica deverá estar voltada preponderantemente para a solução dos problemas brasileiros, assim como para o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional” (art. 218, §2º, c/c os arts. 3º e 170, VI, da CF)” (FIORILLO, 2012, p. 417).
Por seu turno, a segunda diretriz vocaliza a proteção à vida, à saúde humana, animal e vegetal, destinando-se a impor, no plano infraconstitucional, não apenas em relação ao Poder Público, mas também àqueles que dedicam às atividades de pesquisa ou mesmo às atividades de uso comercial a defesa e a preservação da vida, tal como a saúde humana, animal e vegetal em face de obras e atividades vinculadas aos corpos vivos, cujo material genético venha a ser submetido à modificação por qualquer tecnologia. Denota-se que a Lei Nº 11.105, de 24 de Março de 2005, que regulamenta os incisos II, IV e V do § 1o do art. 225 da Constituição Federal, estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS, reestrutura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança – PNB, revoga a Lei no 8.974, de 5 de janeiro de 1995, e a Medida Provisória no 2.191-9, de 23 de agosto de 2001, e os arts. 5o, 6o, 7o, 8o, 9o, 10 e 16 da Lei no 10.814, de 15 de dezembro de 2003, e dá outras providência, buscou dispensar proteção da vida, sendo tal acepção estendida não apenas à espécie humana, mas também compreendendo as demais espécies, tanto vegetal quanto animal, conferindo tutela especial ao tema.
Neste passo, a terceira diretriz entalhada na Lei de Biossegurança estabelece a observância do princípio da precaução para a proteção do meio ambiente, valorando o princípio constitucional do meio ambiente ecologicamente equilibrado alçado à condição de materialização da dignidade da pessoa humana. Susta pontuar que o princípio da precaução, também denominado de princípio da prevenção, foi, de maneira expressa, consagrado na redação da Constituição de 1988, sendo certo que seus influxos passam a permear a Política Nacional de Biossegurança, estabelecendo, no plano infraconstitucional, a precaução como dogma a ser observado no âmbito das normas de segurança, bem como estruturando mecanismos de fiscalização e atividades que envolvam organismos geneticamente modificados. “O princípio da precaução deverá ser verificado caso a caso, ou seja, em face de eventual ameaça à vida em todas as suas formas, e os instrumentos do direito processual ambiental deverão dirimir a controvérsia”, como bem anota Fiorillo (2012, p. 421-422) em seu magistério.
Desta feita, o que se ambiciona é estruturar pericialmente a eventual existência de lesão ou ameaça ao bem ambiental juridicamente protegido, por meio de perícia complexa edificar uma resposta jurídica em face da efetiva caracterização do princípio da precaução. É possível salientar que o corolário da precaução se apresenta como uma garantia contra os riscos potenciais que, em harmonia com o estado atual de conhecimento, não são passíveis, ainda, de identificação. É desfraldada como flâmula pelo preceito da precaução que, em havendo ausência de certeza científica formal, existência de um dano robusto ou mesmo irreversível reclama a estruturação de medidas e instrumentos que possam minimizar e/ou evitar este dano. Com destaque, o conteúdo material do patrimônio genético entalhado na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, tal como na a Lei Nº 11.105, de 24 de Março de 2005, que regulamenta os incisos II, IV e V do § 1odo art. 225 da Constituição Federal, estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS, reestrutura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança – PNB, revoga a Lei no 8.974, de 5 de janeiro de 1995, e a Medida Provisória no 2.191-9, de 23 de agosto de 2001, e os arts. 5o, 6o, 7o, 8o, 9o, 10 e 16 da Lei no 10.814, de 15 de dezembro de 2003, e dá outras providência, está a reclamar dos profissionais de direito e, maiormente, dos juízes, preparo adequado para lidar com a temática em destaque.
3 Alimentos transgênicos: uma tema de incertezas no futuro
Nas últimas décadas, o desenvolver-se e o emprego dos organismos geneticamente modificados, ou simplesmente transgênicos, em larga escala na agricultura têm se amparado sob três principais argumentos: a preservação do meio ambiente, o aumento da produção para combater a fome e a redução dos custos de produção. Organizações governamentais e intergovernamentais têm planejado estratégias e protocolos para o estudo da segurança de alimentos derivados de cultivos geneticamente modificados. É nessa linha que verificasse a necessidade de alertar os cidadãos sobre as “verdades científicas” veiculadas nas mídias ou nos discursos políticos sociais. Ribeiro e Marin discutem que:
“Ainda hoje, pesquisas e estudos que envolvem os potenciais riscos ao consumo humano de AGM ainda são muito restritos. No entanto, existem estudos sobre o efeito da ingestão de soja Roundup Ready em ratos, que demonstraram em análises ultraestruturais e imunocitoquímica, alterações em células acinares do pâncreas (redução de fatores de “splicing” do núcleo e do nucléolo e acúmulo de grânulos de pericromatina); em testículos (aumento do número de grânulos de pericromatina, diminuição da densidade de poros nucleares e alargamento do retículo endoplasmático liso das células de Sertoli), havendo a possibilidade de tais efeitos estarem relacionados ao acúmulo de herbicida presente na soja resistente, além de alterações em hepatócitos (modificações na forma do núcleo, aumento do número de poros na membrana nuclear, alterações na forma arredondada do nucléolo, indicando aumento do metabolismo) sendo potencialmente reversíveis neste último grupo de células” (RIBEIRO; MARIN, 2012, p.362).
De maneira feliz, a posse das discussões sobre a ciências, ética e meio ambiente não pertence mais unicamente aos adeptos do desenvolvimento científico e tecnológico. Não obstante, as controvérsias científicas sempre fizeram parte da cultura da ciência. Já na década de 1950, Jacques Ellul, filósofo francês, abordava essa discussão (Le système technicien, Paris: Calman-Levy, 1977):
“Mais o progresso técnico cresce, mais aumenta a soma de efeitos imprevisíveis. Certos progressos técnicos criam incertezas permanentes e em longo prazo […] Processos irreversíveis foram já implementados, particularmente no campo do meio ambiente e da saúde. Os problemas ambientais são exemplares. Criados pelo desenvolvimento tecnológico desenfreado e irrefletido, necessitam sempre de novos instrumentos e técnicas para resolvê-los. Os problemas de saúde pública ou de segurança alimentar são sistematicamente reformulados de modo que possam receber soluções técnicas ao invés de soluções políticas” (ZANONI; FERMENT. 2011, p. 14).
A temática dos transgênicos cobre um conjunto de domínios e aspectos sociais, econômicos culturais e ambientais. A grande questão que vem sendo levantada é o quão seguras são essas tecnologias, se elas estão de acordo com o Guia Internacional para Segurança em Biotecnologia(IGSB) aceito pelo Programa Ambiental das Nações Unidas (MOSS, 2008, s.p.). Ultimamente, os assuntos dos adeptos do princípio da precaução forçam os governos de muitos países incluindo o Brasil, a modificar suas políticas e desistir da produção de variedades geneticamente modificadas. Assegura Rubens Onofre Nodari (2003) sobre o assunto, que os testes de segurança são conduzidos caso a caso e modelados para as características específicas das culturas modificadas e as mudanças introduzidas através da modificação genética. Todavia o mesmo autor salienta que o maior problema na análise de risco de organismos geneticamente modificados, é que seus efeitos não podem ser previstos na sua totalidade. Os riscos à saúde humana incluem aqueles inesperados, alergias, toxicidade intolerância. No ambiente, as consequências são a transferência lateral (horizontal) de genes, a poluição genética e os efeitos prejudiciais aos organismos não alvos.
Estudos elaborados por Costa (2007) apontam que, todos os fenômenos e eventos indesejáveis resultantes do crescimento e consumo dos organismos geneticamente modificados podem ser classificados em três grupos de risco: alimentares, ecológicos e agrotecnológicos. Os riscos alimentares compreendem: a) efeitos imediatos de proteínas tóxicas oualergênicas do OGM; b) riscos causados por efeitos pleiotrópicos das proteínas transgênicas no metabolismo da planta; c) riscos mediados pela acumulação de herbicidas e seus metabólitos nas variedades e espécies resistentes; d) risco de transferência horizontal das construções transgênicas, para o genoma de bactérias simbióticas tanto de humanos quanto de animais (TEMM et all, 2007, p. 330). Os riscos ecológicos abarcam: a) erosão da diversidade das variedades de culturas em razão da ampla introdução de plantas GM derivadas de um grupo limitado de variedades parentais; b) transferência não controlada de construções, especialmente daquelas que conferem resistência a pesticidas e pragas e doenças, em razão da polinização cruzada com plantas selvagens de ancestrais e espécies relacionadas. Os possíveis resultados são o declínio na biodiversidade das formas selvagens do ancestral; c) risco de transferência horizontal não controlada das construções para a microbiota da rizosfera; d) efeitos adversos na biodiversidade em razão de proteínas transgênicas tóxicas, afetando insetos não alvos, assim como a microbiota do solo, rompendo desta forma a cadeia trófica; e) risco de rápido desenvolvimento de resistência às toxinas implantadas no transgênico por insetos fitófagos, bactérias, fungos e outras pragas devido à pesada pressão seletiva; f) riscos de cepas altamente patogênicas de fitovírus emergirem em razão da interação do vírus com a construção transgênica que é instável no genoma dos organismos receptores e, portanto, são alvos mais prováveis para recombinação com DNA viral (TEMM et all, 2007, p. 330).
No que compete aos riscos agrotecnológicos, é possível explicitar: a) riscos de mudanças imprevisíveis em propriedades e características não alvo das variedades GM e em razão dos efeitos pleiotrópicos de um gene introduzido; b) riscos de mudanças transferidas nas propriedades de variedade GM que deveriam emergir depois de muitas gerações em razão da adaptação do novo gene ao genoma, com manifestação da nova propriedade pleiotrópica e as mudanças já citadas; c) Perda da eficiência do transgênico resistente a pragas em razão do cultivo extensivo das variedades GM por muitos anos; d) possível manipulação da produção de sementes pelos donos da tecnologia “terminator” (TEMM et all, 2007, p. 330). Entretanto, observa-se que a preocupação com a produção e utilização dos OGM por sua vez, e a combinação de riscos complexos e incertos com a existência de vulnerabilidades sociais e ambientais, torna ainda mais explosiva a necessidade da dialética entre produção-destruição inerente aos atuais modelos de desenvolvimento econômico e tecnológicos.
4 Direito Humano à Alimentação e o Corolário da Prevenção: Primeiras Reflexões sobre os Alimentos Transgênicos
A fome é um problema mundial que aflige quase a totalidade dos países nas mais variadas proporções e magnitudes. Durante praticamente toda a história o homem empreendeu esforços a fim de afastá-la, sendo esta uma tarefa de alta complexidade. A boa alimentação está galgada na capacidade humana de consumir a quantidade de nutrientes suficientes para desenvolver com plenitude suas atividades físicas e intelectuais. De acordo com o discutido no Comitê de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU acerca do direito à alimentação adequada, expressa no Comentário Geral n. 12 ao PIDESC, o referido direito inclui o acesso estável e permanente a alimentos saudáveis, seguros e sadios, em quantidade suficiente, culturalmente aceitos, produzidos de uma forma sustentável e sem prejuízo da implementação de outros direitos para as presentes e futuras gerações (ONU, 1999).
Como já dito, no Brasil o direito à alimentação está previsto em vários documentos legais tendo sido incorporado em vários dispositivos e princípios da Carta Constitucional de 1988. Contudo, a ausência de garantia no cumprimento efetivo de tal direito no seio das famílias brasileiras, configura-se como evidente afronta, sobretudo, ao princípio da dignidade humana já que esta se perfaz no respeito à qualidade de vida, à saúde, à alimentação e ao bem estar, destacados já no preâmbulo da CF/88:
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL” (BRASIL, 1988)
Assim, a alimentação como direito social e positivado na carta política brasileira integra o rol dos direitos fundamentais inalienáveis e plenamente exigíveis, indicando tal fato, sobretudo, que quando fatores estruturais ou conjunturais do processo econômico e social não possibilitarem a realização do direito à alimentação, o Poder Público pode ser judicialmente acionado para seu devido cumprimento. Ora, há que reconhecer que o direito humano à alimentação substancializa direito inerente a qualquer ser humano, estando, portanto, compreendido no princípio maior da dignidade da pessoa humana.
Dessa forma, no debate acerca dos alimentos transgênicos, sobretudo sua utilização na afirmação do direito humano à alimentação, há defensores que entendem que aqueles serviriam para subsidiar a materialização do direito em comento, porquanto seriam capazes de colocar fim à fome, em especial nos países em que essa é extrema e alcançam índices alarmantes, tal como poderá influenciar diretamente no barateamento dos gêneros alimentícios. Em que pese tal ótica, e como alinhavado em momento anterior, há que se discordar dessa máxima, porquanto os efeitos produzidos pelos organismos geneticamente modificados a longo tempo sobre o ser humano ainda é desconhecido e requer maiores estudos, sobretudo para potenciais maléficos. O direito humano à alimentação não deve ser encarado como sinônimo de utilização de qualquer fonte alimentar, mas sim gêneros que sejam quantitativamente e qualitativamente detentores de condições mínimas.
É possível salientar que o corolário da precaução se apresenta como uma garantia contra os riscos potenciais que, em harmonia com o estado atual de conhecimento, não são passíveis, ainda, de identificação. É desfraldada como flâmula pelo preceito da precaução que, em havendo ausência de certeza científica formal, existência de um dano robusto ou mesmo irreversível reclama a estruturação de medidas e instrumentos que possam minimizar e/ou evitar este dano. Neste passo, sobreleva salientar que o dogma em apreço encontra seu sedimento de estruturação no princípio quinze da Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, também conhecida como Declaração do Rio/92, que em seu princípio quinze estabelece:
“Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental” (ONU, 1992).
Quadra destacar, nesta toada, que a ausência de certeza científica absoluta não deve subsidiar pretexto para postergação do emprego de medidas efetivas que objetivem evitar a degradação ambiental. Mais que isso, é oportuno consignar que, diante da situação concreta, “a incerteza científica milita em favor do ambiente, carregando-se ao interessado o ônus de provar que as intervenções pretendidas não são perigosas e/ou poluentes”, como bem anota Romeu Thomé (2012, p. 69). Neste sentido, inclusive, o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, ao relatoriar o Agravo Regimental no Agravo no Recurso Especial Nº 206.748/SP, salientou, com bastante pertinência, a dimensão do princípio da precaução, explicitando que “pressupõe a inversão do ônus probatório, transferindo para a concessionária o encargo de provar que sua conduta não ensejou riscos para o meio ambiente e, por consequência, aos pescadores da região” (BRASIL, 2013).
O axioma em realce, neste cenário, constitui no principal norteador das políticas ambientais, à medida que este se reporta à função primordial de evitar os riscos e a ocorrência dos danos ambientais. Em decorrência da proeminência assumida pelo preceito da precaução, salta aos olhos que é robusto orientador das políticas ambientas, além de ser o alicerce fundante da edificação do jus ambiental. Nesse passo, diante da crise ambiental que condiciona o desenvolvimento econômico, de modo sustentável, a segundo plano e da devastação dos diversos ecossistemas em escala vertiginosa, prevenir a degradação do meio-ambiente passou a se objeto da preocupação constante de todos aqueles que buscam melhor qualidade de vida para as presentes e futuras gerações. Entalhou o princípio da precaução a Declaração de Wingspread de 1998, que “quando uma atividade representa ameaças de danos ao meio-ambiente ou à saúde humana, medidas de precaução devem ser tomadas, mesmo de algumas relações de causa e efeito não forem plenamente estabelecidas cientificamente” (MELIM, s.d., s.p.). Os Tribunais Pátrios já se manifestaram quanto à aplicabilidade do princípio em comento, consoante se infere dos arestos colacionados:
“Ementa: Pedido de Suspensão. Meio Ambiente. Princípio da Precaução. Em matéria de meio ambiente vigora o princípio da precaução. Esse princípio deve ser observado pela Administração Pública, e também pelos empreendedores. A segurança dos investimentos constitui, também e principalmente, responsabilidade de quem os faz. À luz desse pressuposto, surpreende na espécie a circunstância de que empreendimento de tamanho vulto tenha sido iniciado, e continuado, sem que seus responsáveis tenham se munido da cautela de consultar o órgão federal incumbido de preservar o meio ambiente a respeito de sua viabilidade. Agravo regimental não provido”. (Superior Tribunal de Justiça – Corte Especial/ AgRg na SLS 1.564/MA/ Relator: Ministro Ari Pargendler/ Julgado em 16 mai. 2012/ Publicado no DJe em 06 jun. 2012).
“Ementa: Direito Ambiental. Ação Civil Pública. Cana-de-açúcar. Queimadas. Art. 21, parágrafo único, da Lei n. 4771/65. Dano ao meio ambiente. Princípio da Precaução. Queima da palha de cana. Existência de regra expressa proibitiva. Exceção existente somente para preservar peculiaridades locais ou regionais relacionadas à identidade cultural. Inaplicabilidade às atividades agrícolas industriais. 1. O princípio da precaução, consagrado formalmente pela Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento – Rio 92 (ratificada pelo Brasil), a ausência de certezas científicas não pode ser argumento utilizado para postergar a adoção de medidas eficazes para a proteção ambiental. Na dúvida, prevalece a defesa do meio ambiente. […] Recurso especial provido”. (Superior Tribunal de Justiça – Segunda Turma/ REsp nº 1.285.463/SP/ Relator: Ministro Humberto Martins/ Julgado em 28 fev. 2012/ Publicado no DJe em 06 mar; 2012).
“Ementa: Processual Civil – Competência para julgamento de execução fiscal de multa por dano ambiental – Inexistência de interesse da União – Competência da Justiça Estadual – Prestação jurisdicional – Omissão – Não-ocorrência – Perícia – Dano Ambiental – Direito do suposto poluidor – Princípio da Precaução – Inversão do ônus da prova. 1. A competência para o julgamento de execução fiscal por dano ambiental movida por entidade autárquica estadual é de competência da Justiça Estadual. 2. Não ocorre ofensa ao art. 535, II, do CPC, se o Tribunal de origem decide, fundamentadamente, as questões essenciais ao julgamento da lide. 3. O princípio da precaução pressupõe a inversão do ônus probatório, competindo a quem supostamente promoveu o dano ambiental comprovar que não o causou ou que a substância lançada ao meio ambiente não lhe é potencialmente lesiva. 4. Nesse sentido e coerente com esse posicionamento, é direito subjetivo do suposto infrator a realização de perícia para comprovar a ineficácia poluente de sua conduta, não sendo suficiente para torná-la prescindível informações obtidas de sítio da internet. 5. A prova pericial é necessária sempre que a prova do fato depender de conhecimento técnico, o que se revela aplicável na seara ambiental ante a complexidade do bioma e da eficácia poluente dos produtos decorrentes do engenho humano. 6. Recurso especial provido para determinar a devolução dos autos à origem com a anulação de todos os atos decisórios a partir do indeferimento da prova pericial”. (Superior Tribunal de Justiça – Segunda Turma/ REsp nº 1.060.753/SP/ Relatora: Ministra Eliana Calmon/ Julgado em 01 dez. 2009/ Publicado no DJe em 14 dez. 2009).
Segundo Colombo (2004, s.p.), no direito positivo pátrio, é possível verificar a substancialização do princípio da precaução nos incisos I e IV do artigo 4º da Lei Nº. 6.938, de 31 de Agosto de 1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências, que, de forma clarividente, expressa a imperiosidade de existir um equilíbrio entre o desenvolvimento econômico e a utilização, de maneira racional, dos recursos naturais, sem olvidar da imprescindível avaliação do impacto ambiental. “Este princípio tem sido muito utilizado em ações civis públicas, seja requerendo a paralisação de obras, seja requerendo a proibição de explorações que possam causar, ainda hipoteticamente, danos ao meio ambiente” (THOMÉ, 2012, p. 69-70). Lançando mão das ponderações apresentadas por Colombo (2004, s.p.), o vocábulo precaução apresenta similitude idiomática com cuidado, logo, é imperioso, em razão do feixe irradiado pelo dogma em análise, o afastamento de perigo e manutenção da segurança das gerações futuras, bem assim da sustentabilidade ambiental das atividades humanas. Verifica-se que o preceito em testilha é a concreção da busca pela proteção da existência humana, seja pela proteção de seu ambiente como também pelo asseguramento da integridade da vida humana. Desta premissa, insta sustar que imperioso se faz considerar não somente o risco eminente de uma específica atividade, mas também os riscos futuros advindos de empreendimentos humanos, os quais, devido à compreensão e ao atual estágio desenvolvimento da ciência, não consegue captar toda densidade. “A aplicação do princípio da precaução deve ainda limitar-se aos casos de ‘ética do cuidado’, que não se satisfaz apenas com a ausência de certeza dos malefícios, mas privilegia a conduta humana que menos agrida, ainda que eventualmente, o meio natural” (THOMÉ, 2012, p. 70).
É denotável, deste modo, que a consagração do corolário da precaução se apresenta como robusto instrumento que estabelece a adoção de uma nova postura em relação à degradação do meio ambiente, afixando, por via de consequência, a estruturação de medidas ambientais, tanto por parte do Estado quanto pela sociedade em geral, que obstem a instalação e desenvolvimento de atividade que tenha potencial lesivo ao meio ambiente. No que se referem às indústrias já instaladas, o princípio da precaução assume uma feição que busque cessar o dano ambiental já concretizado, minimizando os efeitos danosos provocados. “A leitura atenta do acórdão combatido revela que seu fundamento de decidir foi o princípio da precaução, considerando que, na dúvida, impõe-se a sustação dos licenciamentos e a realização de estudos de impacto ambiental, sob pena de o dano consumar-se” (BRASIL, 2011), como o Ministro Mauro Campbell Marques explicitou, com clareza solar, ao relatoriar o Recurso Especial N° 1.163.939/RS.
Impende destacar, ainda, com grossos traços e cores quentes, que a atividade econômica não pode ser exercida em desacordo com os princípios destinados a tornar efetiva a proteção do meio ambiente. A incolumidade do meio ambiente não pode ser embaraçada por interesses empresariais nem ficar dependente de motivações de âmago essencialmente econômico, ainda mais quando a atividade econômica, em razão da disciplina constitucional, estiver subordinada a um sucedâneo de corolários, notadamente àquele que privilegia a defesa do meio ambiente, o qual abarca o conceito amplo e abrangente de noções atreladas ao meio ambiente em suas múltiplas manifestações, quais sejam: o meio ambiente natural, meio ambiente cultural, meio ambiente artificial e meio ambiente do trabalho (ou laboral). Verifica-se que os instrumentos jurídicos de caráter legal e de natureza constitucional objetivam viabilizar a tutela efetiva do meio ambiente, para que não se alterem as propriedades e os atributos que lhe são inerentes, o que provocaria inaceitável comprometimento da saúde, segurança, cultura, trabalho e bem-estar da população, além de causar graves danos ecológicos ao patrimônio ambiental, considerado este em seu aspecto físico ou natural.
Denota-se, portanto, que o princípio da precaução, notadamente em decorrência de seu núcleo sensível, deve ser erigido como flâmula orientadora de inspiração, sobretudo quando, diante dos experimentos científicos, inexistir elementos mínimos capazes de estabelecer as consequências a médio e a longo prazo. Assim, ao se analisar o corolário em debate, cuida reconhecer que a sua materialização reclama a presença de quatro componentes básicos que podem ser resumidos: (i) a incerteza passa a ser considerada na avaliação de risco; (ii) o ônus da prova cabe ao proponente da atividade; (iii) na avaliação de risco, um número razoável de alternativas ao produto ou processo, devem ser estudadas e comparadas; (iv) para ser precaucionária, a decisão deve ser democrática, transparente e ter a participação dos interessados no produto ou processo. “Dessa maneira, esse princípio defende a ideia de que diante da ausência da certeza científica, a existência do risco de um agravo demanda a implantação de medidas que possam prevenir este agravo. Ou seja, ao legislar sobre uma ciência ainda não conhecida, deve-se ser precavido” (RIBEIRO; MARIN, 2012, p. 362).
Nesta esteira, o princípio da precaução possui as seguintes características que serão tratadas a seguir: incerteza científica decorrente da possibilidade de graves prejuízos eventuais ou irreversíveis; temporariedade; estrito cumprimento obrigatório do corolário em comento; atuação estatal proporcionalmente; e a distribuição do ônus da prova. Para a sua incidência basta a existência de possível ameaça de eventuais graves prejuízos ou mesmo irreversíveis. Assim, as medidas a serem adotadas correlacionam-se com a proporcionalidade do evento danoso, inclusive, mensurando a impossibilidade de retroagir. Ademais, como se trata de possíveis danos irreversíveis, não se pode permitir a inércia ou omissão de tais danos, fundamentados na análise de probabilidade de incertezas científicas para a adoção de medidas garantidoras, ao oportunizar o seu controle, além de coibir a destruição do meio ambiente.
Uma das principais características do princípio da precaução é propiciar às futuras gerações uma melhor qualidade de vida, em consonância com um meio ambiente equilibrado. Desse modo, cuida explicitar, oportunamente, que o Princípio da Precaução reside no fato de procurar atuar previamente à ocorrência do prejuízo ambiental ao adotar medidas com a devida cautela, ao visar os benefícios decorrentes de tais medidas futuramente. No tocante ao estrito cumprimento obrigatório do Princípio da Precaução, ressalta-se a universalidade imperativa dessa imposição uma vez que não é plausível a delimitação e separação do meio ambiente aos países, pois qualquer prejuízo ambiental acarreta efeitos mundiais. Portanto, todas as medidas de cautela a serem adotadas também devem ter seu estrito cumprimento em sede mundial.
5 Conclusão
Por se tratar de uma nova tecnologia e considerando o reduzido conhecimento científico a respeito dos riscos de OGMs, torna-se indispensável que a liberação de plantas transgênicas para plantio e consumo, em larga escala, seja precedida de uma análise criteriosa de risco à saúde humana e do efeito desses produtos e serviços ao meio ambiente, respaldadas em estudos científicos, conforme prevê a legislação vigente. Assim, normas adequadas de biossegurança, licenciamento ambiental, e mecanismos e instrumentos de monitoramento e rastreabilidade são necessários para assegurar que não haverá danos à saúde humana, animal e ao meio ambiente. Também são imprescindíveis estudos de impacto socioeconômicos e culturais, daí a relevância da análise da oportunidade e conveniência que uma nação deve fazer antes da adoção de qualquer produto ou serviço decorrente da transgenia.
É neste contexto, que a maioria dos países invocam o Princípio da Precaução, como diretriz para a tomada de decisões. Assim, quando há razões para suspeitar de ameaças de sensível redução ou de perda de biodiversidade ou, ainda, de riscos à saúde humana, a falta de evidências científicas não deve ser usada como razão para postergar a tomada de medidas preventivas. Desta forma, a adoção do Princípio da Precaução, constitui uma alternativa concreta a ser adotada diante de tantas incertezas científicas. Desta associação respeitosa e funcional do homem com a natureza, surgem as ações preventivas para proteger a saúde das pessoas e os componentes dos ecossistemas.
Informações Sobre o Autor
Tauã Lima Verdan Rangel
Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), linha de Pesquisa Conflitos Urbanos, Rurais e Socioambientais. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especializando em Práticas Processuais – Processo Civil, Processo Penal e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário São Camilo-ES. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Camilo-ES