I.- Considerações iniciais
A evolução da civilização tem permitido que as sociedades humanas se organizem de modo a se proteger do arbítrio do rei, instaurando o Estado de Direito, em que se garante ao indivíduo o respeito a prerrogativas elementares de seu patrimônio jurídico, entre as quais se destacam os direitos civis e políticos, assim como os econômicos, sociais e culturais.
A democracia é o regime de governo que considera a legitimidade institucional dependente da vontade geral. Sem que haja consenso, o pacto social desapareceria e instaurar-se-ia o caos sob o império do arbítrio, i.e., a Lei da Selva. Para garantir que isso não aconteça, o aperfeiçoamento institucional da democracia tem erigido valores superiores da humanidade ao patamar de jus cogens,(1) i.e., princípios imperativos de Direito que os Estados não podem deixar de observar, no sentido de que nem mesmo a reiterada prática contrária a eles possa jamais levar a sua abolição.
Dentre estes valores, destaca-se a dignidade que vem recebendo especial tutela de variados ordenamentos jurídicos. No Brasil, a Constituição da República fundamenta-se na dignidade da pessoa humana; na prevalência dos Direitos Humanos e veda, ademais, anistia e fiança para crimes de tortura. Garante, também, ao indivíduo preso o direito a ver respeitada sua integridade física e moral e àquele pobre, assistência jurídica gratuita. Finalmente, todos os demais direitos fundamentais porventura não expressamente previstos no Texto Constitucional mas consagrados em Diplomas Legais internacionais estão automaticamente incorporados a nosso Ordenamento por aplicação do art. 5.º, par. segundo da CR.
A realidade fática, porém, exibe outro contexto. A valorização dos direitos fundamentais que ostentamos juridicamente não se coaduna com a dura violação a referidos princípios, o que, por sua vez, indica o desconhecimento da sociedade civil da ratio daquela valorização jurídica: a dignidade é apequenada. As medidas adotadas, com isso, perdem-se no vazio, pois falta a resolução firme (vontade política?) de resolver os problemas que entravam nosso desenvolvimento social. Mas o Estado, que edita a lei, ‘faz-de-conta’ que pune quem tortura e a sociedade, de seu turno, finge que ignora que haja tortura no Brasil ou até mesmo a aprova em casos específicos.
Pesquisas demonstram que, entre os franceses, 25% se dizem a favor da tortura em casos de narcotráfico, enquanto que 44% aceitariam a brutal prática quando se tratasse de terrorismo.(2) No Ceará, a Caravana da Cidadania, protagonizada pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, constatou que presos em delegacias são submetidos a tratamento cruel e degradante por passarem longos períodos expostos à fome à falta de qualquer alimentação ministrada pelo Estado.(3) Outrossim, praticam-se atentados à dignidade humana em hospícios, onde o totalitarismo instaurado pelo soit disant ‘saber médico’ revoga a possibilidade de alguém exercer sua dignidade.
Neste contexto, apesar da vigência da Lei n.º 9.455/97 há quase quatro anos, até o presente, limitam-se a muito poucos os casos de tortura registrados oficialmente.
A ineficácia da lei em questão deve-se, sobretudo, à tolerância que se dispensa à prática da tortura, que, com efeito, mascara dilema que absorve os habitantes deste planeta, envolvendo o embate de duas forças poderosas, i.e., a da matéria e a dos princípios universais de Direito, como a igualdade, a liberdade e a fraternidade.
Se está certa a lição do filósofo alemão Karl Marx, ‘money leads out of any other value’, o objetivo de lucro ditado pela Lei do Mercado exclui qualquer outro valor. Ademais, estimula a ilusão de que a liberdade individual tenha o condão de instituir diferença relevante entre semelhantes, o que motivaria discriminação. Este ethos, que resulta na colonização dos egos pela matéria, transformando as pessoas em coisas, ante ‘o desmantelamento de componentes estruturais da personalidade’,(4) faz ouvidos de mercador para os apelos da igualdade substancial que permeia a vida dos seres humanos na Terra.
Com isso, a discriminação, em contraposição à dignidade, instaura política que, para Michel Foucault, em ‘A História da Sexualidade’, põe em xeque a existência do indivíduo na qualidade de ser vivo.(5) Outrossim, a mais grave increpação que pesa sobre a matéria, porém, é que, atacando os princípios universais de Direito, relega o valor da igualdade a conceito meramente formal e priva o homem de seu acesso à fonte vital, que é o entusiasmo(6) pela realização de um projeto comum.
Por estas e outras razões, a defesa da dignidade da pessoa humana não resulta da vivificação da Lei Maior nem, no caso, da Lei da Tortura, pois esta civilização, cujo postulado maior é a liberdade, não olha com olhos de ver para o sistema de valores consentâneo com a consciência da igualdade substancial como conquista relevante da modernidade. Esta igualdade respeita a individualidade e não a politiza, evitando, por sua vez, a emergência da discriminação e, então, do totalitarismo.
A Lei da Tortura, ainda que editada em 07.04.97, há, portanto, quase quatro anos, não vem incidindo no mundo concreto, o que não ocorre a despeito da disseminada prática deste abuso intolerável. A jurisprudência pátria acerca da matéria é pobre e pesquisas revelam que aproximadamente 70% da população carcerária (hoje, no Brasil, cerca de 220.000 presos) cometeu crimes contra o patrimônio, ao passo que tão-só 214 foram os casos registrados de tortura no Brasil. O objetivo deste ensaio é avaliar alguns dos problemas por que aquela lei ‘não pegou’, assim como, ao final, apontar algumas soluções que podem contribuir para sua eficácia.
II.- Aspectos Materiais
O dever de regulamentação da Constituição da República vis-à-vis a criminalização da conduta de ‘torturar alguém’ vinha sendo descumprido em detrimento da vontade do Legislador Constituinte que quis conferir àquela caracter de urgência, erigindo a preceito constitucional a tutela jurisdicional contra esta espécie de crime.
Observe-se, desde logo, que o Brasil está adstrito também em nível internacional a criminalizar aquela conduta, além de abster-se de torturar e invalidar declarações obtidas sob tortura, signatário que é da Declaração Universal de Direitos do Homem e do Pacto Internacional para a Defesa de Direitos Civis e Políticos, o que faz mais grave a omissão do Poder Público quanto à edição da lei referida nove anos após a promulgação da CR/88.
O art. 5.º, inc. XLIII da CR estabeleceu os parâmetros a serem seguidos pelo legislador ordinário, dentre os quais se destaca ser o crime de tortura inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.
Neste aspecto, para o professor Luís Flávio Gomes(7), do fato de a liberdade provisória e o indulto não haverem sido expressamente vedados, extrai-se que são permitidos, à luz do princípio da reserva legal.
Não parece, dv, a melhor posição. É que seria inócuo juridicamente negar o direito a fiança e, concomitantemente, permitir o de liberdade provisória (da mesma forma, com relação à graça, que é o indulto individual, e o indulto). Logo, se o Legislador Constituinte não admitiu a fiança e a graça, seria distorcer sua vontade conceder aqueles outros benefícios, pois atingiriam os mesmos bens jurídicos cuja proteção foi consagrada, incompatíveis, por isso, com o tratamento severo que a Carta Política conferiu à gravidade do crime em questão.
Por outra, finalmente, referida posição consagraria verdadeira contradição sistêmica, pois a liberdade provisória sem fiança estaria permitida, enquanto aquela com fiança – menos gravosa para o Estado – seria vedada, o que, de resto, retiraria a eficácia da própria vedação.
A porosidade do conceito de ‘tortura’ a que alude o art. 233, ECA (declarado inconstitucional por esta razão), anteriormente invocado para suprir a falta de tipificação do delito em questão, sem, porém, especificar seus elementos constitutivos, à edição da Lei n.º 9.455/97, extinguiu-se, com a definição de seis tipos legais para o crime em questão, cujos núcleos incriminam as condutas de ‘constranger’ e ‘submeter’, além de uma omissão própria, combinadas com o elemento normativo sofrimento/padecimento físico ou moral da vítima.
Ainda na esteira dos ensinamentos professados pelo autor referido, em suma, a alínea ‘a’ do inc. I do art. 1.º define a ‘tortura prova’, que é aquela aplicada para obtenção de confissão ou outra prova, cuja ilicitude é, desde logo, incontestável; a alínea ‘b’ prevê a ‘tortura meio’, que se distingue como uma coação para que outrem pratique crime e a alínea ‘c’, por sua vez, a ‘tortura discriminatória’. Esta seria, para o autor referido, grave defeito da lei, visto que exige uma especial motivação do agente, inviabilizando a persecutio criminis fora das hipótese expressamente especificadas, não tendo incidência, pois, sobre, por exemplo, discriminações sexuais ou por vingança.(8)
Há, ainda, a ‘tortura pena’ (art. 1.º, II), caracterizada pela aplicação de tortura a alguém sob sua ‘guarda, poder ou autoridade’. Neste aspecto, a legislação brasileira incriminou a conduta de atores privados, diversamente de ordenamentos jurídicos estrangeiros que se limitam a tipificar a conduta do agente público. Logo, o conceito de autoridade de fato que alguém exerce sobre outrem estende para o âmbito doméstico a hipótese de incidência desta lei.
Entendem, porém, alguns,(9) que, se o elemento subjetivo de quem inflige tratamento cruel e/ou degradante for o de ‘corrigir’ ou ‘educar’, estaria elidida a adequação típica desta conduta, e estariam caracterizados maus-tratos.
A melhor posição, dv, é a que advoga que a previsão expressa de que a tortura a alguém sob sua autoridade de fato ‘como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo’ está criminalizada revela inequívoca intenção do legislador de alcançar conflitos domésticos, irrelevante jurídico-penalmente, por isso, o, de resto, intangível subjetivismo de que estejam imbuídos os, v.g., membros da entidade familiar ao perpetrar a conduta tipificada. De qualquer forma, a violência é incompatível com propósitos educativos.
O repugnante caso da babá que desferia bofetões contra indefeso bebê de 18 meses sob sua autoridade ‘para fazê-lo comer’, recentemente veiculado na mídia nacional, é ilustrativo da hipótese, visto que, confrontada com a eloqüência de sua imagem infligindo tratamento cruel e/ou degradante à criança, justificou-se: ’eu batia para educar…’ No entanto, a repelência causada pelas cenas que protagonizou clandestinamente a dispensar tratamento desumano a bebê sob sua autoridade de fato indiciam veementemente a prática de tortura conforme definida no dispositivo legal sob exame.
A omissão relevante jurídico-penalmente está tipificada no art. 1.º, parágrafo segundo e é própria, alcançando somente quem tenha o dever jurídico de evitar ou apurar a conduta. Como se sabe, além do dever jurídico, o omitente deve ter também a possibilidade de agir para que seja criminosa a omissão.
O parágrafo terceiro, por outro lado, define causas especiais de aumento de pena, empregando o legislador a expressão ‘se resulta’ para se referir à ocorrência de lesão corporal grave ou gravíssima, assim como morte, em razão de tortura, o que indica que o autor responde por dolo na conduta antecedente, i.e., no ato de torturar e por culpa no resultado subseqüente (praeterdolo). Desnecessário observar que se houvesse dolo dirigido a este resultado, o crime seria homicídio (ou lesão corporal) qualificado pela tortura.
A perda do cargo, por outro lado, decorre da condenação segundo disposição clara de lei (art. 1.º, parágrafo quinto: ‘a condenação acarretará a perda do cargo’… grifo nosso), não assistindo razão, dv, aos que sustentam tratar-se esta de ‘efeito secundário da condenação’ e não pena automática, daí por que exigir fundamentação judicial para ser imposta.
É que a inteligência da prescrição em exame dita que é talvez até mais importante aplicar a perda do cargo que a privação de liberdade quando servidor público se prevalece do mesmo para torturar alguém. O terror branco, ‘aquele terror que, no dizer do magistrado francês Louis Proal, se disfarça de perseguição legal e é mais odioso que o veneno das serpentes, porque reúne a hipocrisia à iniquidade’, (10) foi, com razão, energicamente repelido pela Lei da Tortura.
A corroborar referido entendimento, o dispositivo legal em exame instituiu regime de impedimento legal para o exercício de função pública por tempo determinado a servidor que pratique tortura, ao declarar que, além da perda do cargo, função ou emprego público, sujeita-se o mesmo a ‘interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada’.
Isto significa que o servidor público que pratique ato de tortura contra alguém não só deve perder o cargo como efeito imediato da condenação, mas que tampouco pode vir a exercer qualquer outra função pública por período duas vezes mais longo que a pena privativa de liberdade aplicada.
Por estas razões, salta aos olhos que esteve o legislador ordinário determinado a banir do serviço público quem seja condenado definitivamente pela prática do crime de tortura, o que, com efeito, é absolutamente incompatível com o entendimento que relativiza a decretação da perda do cargo.
Quanto ao parágrafo sétimo do inc. I do art. 1.º, que prevê o regime prisional como inicialmente fechado, não incorporou o legislador ordinário ao elenco de restrições que recaem sobre quem tortura a vedação da progressão de regime prisional, diversamente da regulamentação dos crimes hediondos (Lei n.º 8.072/90, art. 2.º, § 1.º), também objeto da preocupação do Legislador Constitucional.
Evidentemente, não assistiria razão a quem defendesse que o regime prisional em tela não pudesse progredir em razão da vedação da progressão para os crimes hediondos, visto que, à ausência de previsão expressa naquele sentido na Lei da Tortura, esta posição violaria o princípio da reserva legal, segundo o qual ‘não há crime sem lei anterior que o defina’, assim como a proibição de interpretar a lei penal para agravar a situação do réu (analogia in malla partem).
III.- Aspectos Processuais
Preliminarmente, se o sistema processual penal de investigação policial padece de prolongada e progressiva ineficiência (estatísticas demonstram que menos de 10% dos crimes registrados são elucidados), a apuração do crime de tortura, em grande parte cometido por agentes públicos, é prejudicada, ademais, por não contar com o empenho destes mesmos agentes rendidos ao espírito de corpo.
Passando-se ao tema da prova no crime em questão, recai esta em grande parte sobre a pessoa da vítima. Sua palavra, ainda que recebida com a reserva de sua qualidade de vítima interessada no desfecho da causa, exerce importante influência na formação do convencimento judicial por se tratar de crime clandestino, aquele cometido às escondidas, a que virtualmente ninguém tem o poder de testemunhar.
Também relevante é a inspeção técnica especializada (AEC e AECD) a que se submete a vítima, pois, ainda que não comprove a existência do crime pela constatação exclusiva de lesão, poderia determinar que haja indícios de tortura. A quesitação específica no sentido de atestar a existência destes, assim como relativamente a todas as circunstâncias elementares do crime, exploraria bem o potencial da perícia médico legal como prova, além de orientar o médico legista no sentido de correlacionar o histórico alegado com o achado.(11)
Quanto à iniciativa da evidência quando o crime é praticado por agente público e a Autoridade Policial se omite, há quem entenda, com razão, ser a mesma estendida ao MP, em que pese o art. 144 da CR incumbir a apuração de infrações penais à polícia civil. Para isto, o interesse que se pretende tutelar, que se compreende na esfera da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127, CR), prevalece sobre o princípio da exclusividade das funções, pois é mais relevante juridicamente (Teoria da Razoabilidade).(12)
Outra questão relativa a prova é o dever legal (e, de resto, internacional) de considerar inválida do ponto-de-vista jurídico qualquer declaração obtida sob tortura. Logo, para que o conteúdo da prova invalidada seja absolutamente excluído da formação do convencimento judicial, o impedimento do magistrado, que haja do mesmo se inteirado, de sentenciar nos autos seria corolário da nulidade daquela declaração.
Esta providência, aliás, consta do projeto de reforma do CPP, entre as quais se destacam ainda a inadmissibilidade de provas derivadas de provas ilícitas e o desentranhamento das provas consideradas ilícitas, relevando também observar que se discute proposta de inversão do ônus da prova em caso de tortura. Com isso, o autor (Estado) não deverá provar que não torturou – fato negativo – mas que adotou determinadas providências dirigidas a assegurar a inocorrência da prática proibida, i.e., prévio exame médico por ocasião da prisão, soltura ou transferência, além da notificação da prisão e a conferência com advogado.
Quanto à competência para processar e julgar os crimes definidos na Lei n.º 9.455/97, que, aliás, seguem o procedimento sumaríssimo previsto na Lei n.º 4.898/65 (Abuso de Autoridade), releva observar que, como a tortura não é definida no CPM, e sim na lei penal comum, a Justiça Militar é incompetente para fazê-lo por atipicidade objetiva (art. 9.º, inc. I, CPM), cabendo à Justiça Comum processar e julgar referidos crimes. Por isso, ainda que a extinção desta justiça especializada em caso de crime comum seja imperiosa para garantir a isenção da prestação jurisdicional e respeitar o princípio da isonomia material, aqui seus efeitos maléficos não se manifestam por força daquela disposição de lei.
Ademais, a fase da persecutio criminis anterior à deflagração da ação penal consubstanciada em procedimento administrativo instaurado pela Autoridade Policial, hodiernamente tem sido objeto da preocupação de legisladores de variados ordenamentos jurídicos. Percebe-se nítida correlação entre a ineficiência da polícia e o envolvimento de significativa parcela da instituição em ações ilícitas relativas aos atos de investigação (corrupção passiva; concussão etc).
Cogita-se, pois, da jurisdicionalização da fase pré-processual, a ser procedida perante um magistrado, um membro do MP e um advogado, para garantir a observância das formalidades legais, assim como impedir a manipulação econômica de referido expediente. A real investigação das denúncias, que é fator necessário para a eficácia da Lei da Tortura, seria outra vantagem advogada pela extinção do inquérito policial.
Quanto ao crime de tortura em si, outra alternativa seria conferir, desde logo, atribuição exclusiva para investigar a prática respectiva a uma comissão permanente formada, por um membro do MP, um médico legista, um fotógrafo e testemunhas – um Conselho Jurídico Comunitário(13)– restituindo à investigação o aspecto de seriedade de que não deve prescindir.
Finalmente, sem a instituição da Defensoria Pública em todas as unidades federativas do Brasil, quem não puder pagar honorários de advogado sem desfalque do necessário para sobreviver terá de se socorrer de qualquer causídico que se disponha a representá-lo para a realização válida do ato processual (defensor ad hoc). Esta deficiência prejudica a instauração da relação advogado/cliente para que o aconselhamento profissional atenda a substância deste direito do preso. Este é o sentido da previsão do art. 9.º do Pacto Internacional para a Defesa dos Direitos Civis e Políticos, que o Brasil ratificou.
IV.- Considerações Finais
A ineficácia da Lei da Tortura está relacionada com a necessidade de consciência da sociedade civil em geral e dos operadores do direito em especial de que submeter o sistema prisional a exame meramente formal, i.e., negar real vigência aos direitos e garantias fundamentais (Título II, CR) no exercício de suas funções, significa desconsiderar as verdadeiras causas da violência(14) e, sobretudo, permitir-se cooptar pelo ethos da Lei do Mercado que advoga a repressão por si só como único instrumento eficaz no combate ao crime. Com isso, a política criminal passa a ser meramente simbólica.
Por outro lado, o enfoque que os meios de comunicação comprometidos com a diretriz econômica procuram emprestar à interpretação dos direitos humanos é o de que implementá-los levaria ao ‘absurdo’ de se proteger direitos de quem não se inibiu de violá-los ao ofendido, o que significaria conceder a ‘bandidos’ inaceitável tratamento melhor que os mesmos dispensaram às suas vítimas.
Esta proposição, porém, a um só tempo, erige a vingança a objetivo precípuo da atividade jurisdicional, o que não se coaduna com o verdadeiro escopo da jurisdição, que é a composição pacífica de conflitos, e confere à própria instituição do Estado o poder de cometer as mesmas atrocidades que seu aparecimento teve por fim estancar, razão por que deve ser rejeitada.
Mais grave ainda, porém, é a generalização a que aquela distorção conduz quando encerra vítima e ‘bandido’ em compartimentos estanques e não se detém no contexto em que se verificou a prática criminosa para conhecê-la, entendê-la e julgá-la. ‘Bandido’, aqui, assume a qualidade de conceito subjetivo cuja definição depende da perspectiva totalitária do soberano(15) e permite a instalação de mais um foco de discriminação.
O pressuposto da prática discriminatória é a irrevogável avaliação negativa que se dedica a alguma manifestação humana, quer de raça, credo, orientação sexual etc. A redução corolário desta prática implica, porém, na renúncia, pelo homem, a seu maior patrimônio, i.e., a possibilidade de realizar sua individualidade que é, necessariamente, única e, pois, irredutível. O não reconhecimento desta igualdade material (intrínseca irredutibilidade/mutabilidade do homem) ‘virtualiza-o’ no sentido de que passa a ser punido pelo que poderá vir a fazer.(16) Com isso, a tortura se torna irrefragável e sua banalização a eterniza.
Logo, a tolerância relativa à prática de tortura deriva da falta de resolução firme da sociedade civil de enfrentar o problema de violação endêmica de direitos humanos e, sobretudo, da Lei da Tortura. Se, porém, a série de pertinentes sugestões práticas(17) arrolada a seguir for encampada com vontade política de efetivamente transformar a realidade, a eficácia daquela lei, tanto quanto à punição que comina como quanto à inibição da reiteração da nefasta conduta, advirá como conseqüência natural:
– Formulação/implementação de campanha pela erradicação da tortura;
– Difusão de campanha semelhante junto à Polícia, o Ministério Público e o Judiciário;
– Instituição de banco de dados alusivo aos crimes de tortura para traçar estratégias de combate;
– Instituição de grupos de trabalho para desenvolver ações locais;
– Adoção de curso de direitos humanos;
– Evitar a manipulação ideológica dos direitos humanos;
– Enfrentar o problema cultural relativo à proteção dos direitos humanos;
– Constituir no Ministério Público setores voltados para a defesa de direitos humanos;
– Fortalecimento das corregedorias e ouvidorias da polícia, que deverão ser independentes;
– Fortalecimento da polícia técnica para maior rapidez na elucidação de tortura;
– Atribuição do Ministério Público para fiscalizar a polícia na investigação deste crime;
– Criação de defensorias públicas em todos os Estados da federação;
– Aperfeiçoamento dos programas de proteção à testemunha;
-Constituição de comissão permanente para supervisionar a implementação destas sugestões.
Se a realização de um projeto comum recaptura o eterno além do efêmero e, assim, liberta identidades individuais para desenvolver-se e elimina definitivamente o germe do totalitarismo, talvez o que conecte os homens entre si e resulte no reconhecimento da igualdade real seja a aspiração por progresso presente, por exemplo, no entusiasmo pela revolução que será necessária para a formação de uma nova consciência de proteção aos direitos humanos.
Finalmente, uma cultura que pense algo mais em termos de ‘ser’ e algo menos em termos de ‘ter’(18) estabelecerá contato com a natureza irredutível da realidade, correspondendo, ao mesmo tempo, ao conceito de um mundo sem fronteiras.
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Rodrigo Terra