Breves reflexões sobre a eutanásia e seu sancionamento

Resumo: Ultimamente muito se tem falado acerca da legalização da eutanásia. Este artigo tem por escopo apresentar algumas reflexões sobre o tema, realizando uma análise frente aos princípios da dignidade da pessoa humana e do direito à vida, apresentando os Estados onde a prática da eutanásia é permitida ou expressamente penalizada, bem como, subsumindo a conduta no ordenamento jurídico pátrio. Trata-se de assunto de grande importância que ainda precisa de discussão aprofundada por toda a sociedade, de forma ampla e sem preconceitos, para que direitos fundamentais não venham a ser desrespeitados.

Palavras-chave: Eutanásia. Morte digna. Direito à vida. Mistanásia.

Sumário: Introdução. 1. Conceito de Eutanásia. 1.1. Classificação. 1.1.1. Eutanásia Ativa. 1.1.2. Eutanásia Passiva – Ortotanásia. 1.1.3. Distanásia. 2. A Eutanásia frente aos Princípios Constitucionais. 2.1. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. 2.2. Princípio da Inviolabilidade do Direito à Vida. 3. Posicionamentos de alguns Estados frente à prática da Eutanásia. 4. A Eutanásia no Ordenamento Jurídico Brasileiro. 5. Mistanásia ou Eutanásia Social. Conclusão.

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Introdução

Considerando que a prática da eutanásia tem merecido destaque no cenário atual onde se procura resguardar o princípio da dignidade da pessoa humana e, considerando ainda, que com a globalização as informações se difundem de forma quase que instantânea entre todas as sociedades, a discussão acerca do tema se faz necessária para que qualquer decisão a respeito, seja no campo legislativo, judiciário ou ético, venha a ser tomada de forma consciente e afastada de preconceitos ou emoções.  

Assim, apresenta-se o presente trabalho que tem por objetivo abordar algumas reflexões sobre o assunto, com breve análise dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da inviolabilidade do direito à vida frente à prática da eutanásia.

Ainda será objeto deste trabalho um estudo sobre a forma como alguns Estados enfrentam o tema, seja permitindo sua prática, seja tipificando a referida conduta de forma expressa ou não.

Na continuação, abordar-se-á o enquadramento da conduta do agente que pratica ou colabora com a prática da eutanásia frente ao ordenamento jurídico brasileiro, passando-se, ainda, a uma análise da chamada “eutanásia social”.

Para finalizar, apresentar-se-á à conclusão retirada do estudo realizado sobre o assunto proposto, com questionamento sobre a realidade que se observa no cenário atual.

Objetivando uma fácil compreensão sobre o tema abordado, procurou-se simplificar a exposição do estudo, o qual se deu através da pesquisa doutrinária e legislativa.

1. Conceito de Eutanásia

A eutanásia (do grego eu – bom e tánatos – morte)[1] é considerada como uma forma de eliminação da vida de outrem, sendo ela praticada por piedade, com intenção de reduzir o sofrimento de quem está à beira da morte. Pode-se, inclusive, dizer que a eutanásia é praticada por um relevante valor moral – evitar o prolongamento do sofrimento de terceiro. É considerada, assim, uma morte boa, tranquila, libertadora do sofrimento do paciente.

Nesse diapasão, considerando as palavras de Evandro Corrêa de Menezes (1977, p 51 apud Ariosto Licurzi, 1934, p. 47 e 48), a morte libertadora é: “a morte benéfica, quando um enfermo ou traumatizado grave, seguramente incurável, pede que se lhe abrevie com uma morte calma, indolor, a agonia dolorosa, insuportável e rebelde a todo sedativo físico e espiritual”.

Destacam-se como elementos da eutanásia a enfermidade incurável, o sofrimento insuportável, a piedade e a morte provocada por terceiro ou o auxilio de terceiro para a interrupção da vida.

Também oportuno salientar que a eutanásia se divide em duas espécies: ativa e passiva, sendo que esta segunda não é vedada no nosso país, pois não se trata de uma ação para dar fim à vida do paciente, mas unicamente se deixa de usar artifícios para sua sobrevivência.

Ainda, cumpre colacionar aqui parte da Declaración de la Asociación Médica Mundial sobre la Eutanasia, adotada em outubro de 1987 pela 39ª Assembleia Médica Mundial de Madrid, na Espanha, que assim dispõe[2]: “La eutanasia, es decir, el acto deliberado de poner fin a la vida de un paciente, aunque sea por voluntad propia o a petición de sus familiares, es contraria a la ética. Ello no impide al médico respetar el deseo del paciente de dejar que el proceso natural de la muerte siga su curso en la fase terminal de su enfermedad”.

Dessa forma, podemos perceber a não reprovabilidade da ortotanásia nessa declaração médica mundial, considerando que apenas é efetivamente contra a prática da eutanásia ativa.

1.1. Classificação

As formas de cessação e prolongamento da vida de terceiro são classificadas em três: eutanásia ativa, eutanásia passiva (ortotanásia) e distanásia.

1.1.1. Eutanásia Ativa

A eutanásia ativa é aquela em que há uma ação para o fim da vida do paciente, sendo por aplicação de medicamentos ou injeções letais ou, ainda, com o efetivo auxílio para que o paciente interrompa a sua vida.

1.1.2. Eutanásia Passiva – Ortotanásia

A ortotanásia (“orto” – correto, tempo certo) é a eutanásia passiva. Nela, haverá uma omissão, consiste na retirada de mecanismos que prolongam a vida do paciente. Assim, a omissão se dará no momento em que, após a retirada dos meios mecânicos necessários para a continuidade da vida do enfermo, o médico apenas regulará os aspectos naturais que permitirão a continuidade de sua vida, como, por exemplo, com a retirada de aparelhos respiratórios o paciente apenas respirará enquanto seu organismo sustentá-lo.

Entretanto a omissão não se estende ao tratamento para amenizar a dor, sem interferir no desenrolar natural da doença que culminará com a morte natural do paciente.

1.1.3. Distanásia

A distanásia é o prolongamento do sofrimento do paciente, através da continuidade de um tratamento que não terá efeito resolutivo para a doença, apenas manterá o paciente dependente de artifícios para sobreviver. Daí surge a ideia de vida vegetativa.

2. A Eutanásia frente aos Princípios Constitucionais

A Constituição Federal de 1988 consagra direitos e garantias fundamentais, sendo que, a doutrina e a jurisprudência do STF, alertam que tais direitos não se restringem aos elencados no artigo 5º da Carta Magna, isto é, os direitos e garantias fundamentais derivam-se dos princípios adotados pela Constituição e estão previstos de forma sistêmica no texto constitucional e, também, expressos em Tratados Internacionais ratificados pelo Brasil, conforme determina o artigo 5º, § 2º, da Constituição[3].

Assim sendo, é recomendável que qualquer decisão que venha a ser tomada em relação à eutanásia, seja ela jurídica ou legislativa, esteja harmonizada com os direitos e garantias fundamentais resguardados por nosso ordenamento jurídico, em especial, os princípios da dignidade da pessoa humana e da inviolabilidade do direito à vida.  

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Observando-se que não se pode eliminar totalmente nenhum princípio constitucional para resguardar outro. É necessário harmonizar sua aplicação conservando-se o “núcleo duro” de cada princípio. Conforme já colocado pela coautora Maria Denise em artigo publicado na Revista Digital Âmbito Jurídico[4]: “Os direitos e garantias fundamentais, algumas vezes, podem apresentar colisão entre si, entretanto sua harmonização deve ser perseguida e para tanto se deve aplicar o princípio da proporcionalidade de forma a que nenhum desses direitos e garantias seja totalmente aniquilado para preservação de outro. As restrições que venham a ser aplicadas em relação a um direito em favor de outro devem ser proporcionais, adequadas e razoáveis”.

2.1. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana  

O princípio da dignidade da pessoa humana está elencado como princípio fundamental da República Federativa do Brasil, com previsão no artigo 1º, inciso III, da Carta Política[5].

Trata-se de princípio relacionado com o respeito a direitos fundamentais inerentes à própria pessoa, tais como a vida, a intimidade, a liberdade, a honra e a autodeterminação da própria vida, exigindo respeito das demais pessoas e do Estado. 

Segundo Jayme (2005, p. 120): “A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral, que é inerente à condição de ser humano, e se manifesta através da capacidade de autodeterminação consciente da própria vida. Constitui-se em um mínimo invulnerável juridicamente protegido que são os direitos de personalidade”.

O princípio da dignidade da pessoa humana também está expresso no artigo 3º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica – 1969)[6], internalizada em nosso país através do Decreto nº 678/92.

Baseada nesse princípio apresenta-se a corrente de defensores da eutanásia que afirma que todo ser humano tem direito de viver com dignidade, podendo, inclusive, decidir sobre a sua autodestruição em nome de uma morte digna. Assim, não se poderia negar aos doentes que se encontram em estágio terminal, sem possibilidade de recuperação, com diagnóstico atestado por médico, o direito de optar por interromper a vida. Para os adeptos desta corrente a decisão individual do enfermo deve ser respeitada.   

De outra banda, a corrente contrária à prática da eutanásia afirma que do princípio da dignidade da pessoa humana derivam todos os direitos fundamentais, inclusive o direito à vida, e, por esta razão, se deve proteger a dignidade do indivíduo abstendo-se de permitir ou praticar atos que possam vulnerá-la.  

2.2. Princípio da Inviolabilidade do Direito à Vida

O direito à vida é o mais fundamental dos direitos, pois, sem a vida não há a possibilidade de usufruir dos demais direitos fundamentais.

O direito à vida está previsto no artigo 5º, caput, da Constituição Federal[7], sendo consagrado a todos os brasileiros e aos estrangeiros residentes no país, devendo interpretar-se extensivamente aos estrangeiros em trânsito em nosso país.

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos também prevê a proteção ao direito à vida em seu artigo 4º: “toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”.

Para Lenza (2011, p. 872): “O direito à vida, previsto de forma genérica no art. 5º, caput, abrange tanto o direito de não ser morto, privado da vida, portanto, o direito de continuar vivo, como também o direito de ter uma vida digna”.

 Nesta seara a doutrina pátria argumenta que uma vida digna abrange o direito de acesso ao nível de vida adequado à condição humana, com garantia de alimentação, vestuário, educação, saúde, lazer e atendimento às demais necessidades vitais.

Considerando que o direito à vida tem como um de seus enfoques o direito de permanecer vivo, a prática da eutanásia seria uma violação ao referido princípio, e, nesse sentido, o ensinamento de Moraes (2003, p. 91): “O direito à vida tem um conteúdo de proteção positiva que impede configurá-lo como um direito de liberdade que inclua o direito à própria morte. O Estado, principalmente por situações fáticas, não pode prever e impedir que alguém disponha de seu direito à vida, suicidando-se ou praticando eutanásia. Isto, porém, não coloca a vida como direito disponível, nem a morte como direito subjetivo do indivíduo”.

Por outro lado, como o direito à vida abrange o direito a uma vida digna, os defensores da eutanásia argumentam que não se pode exigir de um doente em fase terminal que permaneça em sofrimento atroz e sem previsão de melhora por tempo indeterminado. Defendem que a decisão de antecipar a morte estaria enquadrada no direito de autodeterminação da vida.  

3.  Posicionamentos de alguns Estados frente à Prática da Eutanásia

Em um estudo comparado percebe-se que os ordenamentos jurídicos alienígenas enfrentam o tema de formas distintas, alguns penalizam a eutanásia, outros não fazem referência à sua prática e, apenas três Estados, o Estado de Oregon nos Estados Unidos da América (desde 1997), a Holanda (desde 2001) e a Bélgica (desde 2003), não a consideram crime.

Segundo Maura Roberti[8], há notícias, ainda, de que nos Territórios do Norte da Austrália, de 1º de julho de 1996 a 24 de março de 1997, esteve em vigor a primeira lei que autorizou a prática da eutanásia ativa, a qual recebeu a denominação de “Lei dos Direitos dos Pacientes Terminais”.

Observa-se que as legislações dos Estados que permitem a prática da eutanásia possuem pontos em comum, ou seja, todas determinam que a decisão parta do paciente que deve expressar sua vontade de por fim à própria vida; exigem a necessidade de que a enfermidade seja incurável e atestada por dois médicos; e que o sofrimento do paciente seja insuportável.

De outra banda, alguns Países possuem legislações que penalizam expressamente a prática da eutanásia, como por exemplo: a Bolívia[9], o Paraguai[10] e o Peru[11]. Ressalte-se que, em alguns casos, a previsão da eutanásia se apresenta como uma causa de redução de pena, como no ordenamento jurídico da Costa Rica[12].

Já para outros Estados a prática da eutanásia não é permitida, porém não possui uma tipificação expressa, como é o caso do Brasil, cuja subsunção da conduta será abordada a seguir.

4. A Eutanásia no Ordenamento Jurídico Brasileiro

O legislador pátrio não tipificou expressamente a prática da eutanásia e nem mesmo a descreveu como causa de diminuição de pena ou atenuante.

Também não há em nosso ordenamento jurídico nenhuma lei específica que torne lícita a prática de eutanásia.

Assim, tal conduta deve ser subsumida no art. 121 do Código Penal Brasileiro, compreendida como homicídio. Contudo, essa prática poderá ser capitulada como homicídio privilegiado, ou seja, no parágrafo primeiro deste mesmo dispositivo penal, isto porque há que se considerar o efetivo sentimento de piedade e compaixão daquele que pratica a eutanásia, pois o que o leva a cometer este ato é o sentir-se impulsionado por um relevante valor moral, isto é, o pedido do paciente ou de seus familiares.

Sobre o homicídio privilegiado, dispõe o art. 121, §1°, do Código Penal Brasileiro: “Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço”.

Observando o dispositivo, e ainda considerando o já citado, pode-se dizer que o agente que pratica a eutanásia age impulsionado por relevante valor moral, eis que o faz a pedido do paciente ou de familiares seus porque aquele (o paciente) não tem mais forças para prosseguir a vida por encontrar-se em estado terminal, tomado de dores insuportáveis e insanáveis.

Comentando a respeito do relevante valor moral, Vitor Eduardo Rios Gonçalves destaca: “Diz respeito a sentimentos pessoais do agente aprovados pela moral média, como piedade, compaixão, etc.”. Ainda, ressalta que: “A própria exposição de motivos do Código Penal cita a eutanásia como exemplo de homicídio cometido por relevante valor moral”.

Ainda, faz-se importante salientar a existência da Resolução n° 1.805/2006[13], do Conselho Federal de Medicina, que dispõe sobre a possibilidade da prática de ortotanásia pelos médicos. Essa resolução assim traz:

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“Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.

§ 1º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação.

§ 2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário.

§ 3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião médica.

Art. 2º O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar.”

Por outro lado, a prática de eutanásia pode estar incursa no tipo penal do art. 122 do CP – induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio. Nesse caso, estamos levando em conta a hipótese em que o próprio paciente, auxiliado por um terceiro, produz sua morte, ou seja, ele mesmo introduz o medicamento ou injeção que lhe dará fim à existência.

Sobre esse aspecto, cumpre salientar que não há no ordenamento jurídico brasileiro a previsão de punição para quem tenta, a próprio punho, pôr fim a sua vida. No entanto, para aqueles que auxiliam nessa prática, existe punição na esfera criminal. Ainda, importante referir que nesse crime, quem executa o suicídio é vítima e quem o induz ou auxilia é o autor do delito.

O auxílio só existe se a vítima (no caso o paciente) já tem a intenção de cometer o suicídio e o sujeito ativo (profissional da área da saúde ou não) apenas ajuda de alguma forma material para que o ato se concretize.

Trata-se de crime doloso, sendo que necessária se mostra a consciência do autor de que a vítima tem essa convicção.

Merece menção ainda, o tratamento dispensado à prática da eutanásia, tanto ativa quanto passiva, pela Comissão encarregada de elaborar o anteprojeto do Código Penal brasileiro[14].

Ao tratar do delito de homicídio, a Comissão descreveu a eutanásia ativa como causa de diminuição de pena no § 3º do art. 121 “Se o autor do crime é cônjuge, companheiro, ascendente, descendente, irmão ou pessoa ligada por estreitos laços de afeição à vítima, e agiu por compaixão, a pedido desta, imputável e maior de dezoito anos, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável, em razão de doença grave e em estado terminal, devidamente diagnosticada: Pena – reclusão, de dois a cindo anos”. Já em relação à ortotanásia, a Comissão introduziu-a no § 4º do referido art. 121, como excludente de antijuridicidade, “Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio artificial, se previamente atestada por dois médicos a morte como iminente e inevitável, e desde que haja consentimento do paciente ou, em sua impossibilidade, de cônjuge, companheiro, ascendente, descendente ou irmão”.

5. Mistanásia ou Eutanásia Social

O termo mistanásia é empregado para definir a morte de enfermos por causas sociais e políticas.

Trata-se da realidade de milhares de doentes excluídos que não conseguem ter acesso aos sistemas públicos ou privados de saúde, ou que, mesmo conseguindo ingressar no sistema, não têm um tratamento adequado e qualificado.

Deve-se ter em conta que a falta de tratamento pode surgir por vários fatores, negligência médica, falta de estrutura hospitalar, omissão dos gestores públicos que deixam de investir recursos no sistema de saúde e, até mesmo, falta de informação da população acerca de seus direitos frente ao sistema de saúde.

Com o advento do Constituição Federal de 1988 o direito a saúde passou a ser universal, previsto no artigo 196[15] como um direito de todos e dever do Estado, porém as políticas públicas não foram desenvolvidas no sentido de viabilizar o direito constitucional assegurado. O que se constata é um SUS (Sistema Único de Saúde) precário que não consegue atender a todas as pessoas, hospitais superlotados, falta de medicamentos, carência de médicos e profissionais da área de saúde, ineficiência em políticas de prevenção de doenças, enfim, falta de recursos e políticas equivocadas por parte dos gestores públicos.

Nesse cenário é comum que os médicos, por diversas vezes, se vejam obrigados a “escolher” dentre os pacientes graves qual irá ocupar um leito de UTI, já que o número de leitos disponíveis nos hospitais públicos é menor que o número de pacientes que necessitam utilizá-los. Acrescentando-se o agravamento do quadro na atualidade, onde a judicialização da saúde está crescendo cada vez mais, levando o Poder Judiciário a determinar internações, em resguardo ao direito fundamental à saúde, sem que o leito hospitalar esteja disponível na prática o que leva aos administradores de hospitais a “fazer escolhas” para atender à ordem judicial.

Frise-se que não se está a criticar a posição do Poder Judiciário que está garantindo um direito constitucional do enfermo, o que se está colocando para reflexão é o atual sistema de saúde que não comporta as necessidades sociais.

Ou seja, por um lado o ordenamento jurídico pátrio não admite a prática da eutanásia, por outro lado a realidade social e política “obriga” aos médicos a praticá-la de forma velada, mascarada, sem qualquer penalização, que no caso não poderia ser aplicada aos médicos e sim aos agentes que detém o poder de gestão dos recursos públicos e não os empregam, ou os empregam de forma equivocada ocasionando a degradação do sistema de saúde pública.

Entretanto, acredita-se que há possibilidade de mudar a realidade social, com uma reforma na gestão pública, eliminando de nosso cotidiano a “eutanásia social” que embora não discutida abertamente atinge milhares de doentes excluídos que não conseguem ter assegurado o direito à saúde.

Nos dizeres da Dra. Maria do Carmo Lobato[16]: As causas e consequências atingem a todos; para problemas complexos dificilmente há soluções simples. Entretanto, há medidas que, se inspiradas por ética, solidariedade e responsabilidade, podem ser o marco da mudança para que, um dia, o termo mistanásia seja esquecido. Isso quando não mais houver situações que o caracterizem”.

Conclusão

O breve estudo realizado sobre a prática de eutanásia e o posicionamento dos ordenamentos jurídicos de alguns Estados, ora penalizando-a de forma expressa ou não, ora descriminalizando-a, demonstra que ainda se faz necessário uma reflexão aprofundada sobre o assunto, uma vez que estão envolvidos valores éticos e morais que dividem posicionamentos e exigem amadurecimento e profissionalismo para tomada de decisões tanto legislativas quanto jurídicas.

Embora três Estados tenham editado leis que tornam lícita a prática da eutanásia, analisando estas legislações pode-se concluir que essa permissão é pautada em rígidas exigências. Todas exigem que dois médicos atestem que o enfermo terminal está acometido de doença incurável, que o paciente requeira a interrupção da vida e que o sofrimento seja insuportável. Isto demonstra que o legislador procurou evitar que a eutanásia se prestasse para acobertar mortes provocadas por motivos eugênicos, egoísticos ou comodismo de familiares ou médicos diante da necessidade de cuidados com enfermos idosos ou que sejam portadores de doenças terminais.

Em nosso País, a eutanásia não é permitida, embora o anteprojeto de reforma do Código Penal, que está sendo elaborada por Comissão de Juristas, tenha previsto a prática da eutanásia ativa como causa de diminuição de pena para o delito de homicídio e a ortotanásia figure como causa de exclusão da antijuridicidade.

Entende-se que esta previsão é um avanço no ordenamento jurídico, considerando que a eutanásia ativa, motivada por piedade, merece tratamento específico no ordenamento jurídico, até mesmo em homenagem à efetivação dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da inviolabilidade do direito à vida, aplicados com razoabilidade e proporcionalidade.  

Diante de todo o exposto, percebe-se que tabus estão sendo quebrados na sociedade e que a cada dia se busca a igualdade entre os seres humanos, possibilitando-lhes, até mesmo, decidir, por enquanto em parte, sobre o prolongamento do seu sofrimento ocasionado por uma doença terminal.

O maior princípio aqui resguardado é o da dignidade da pessoa humana, que não precisará se expor à dor e ao sofrimento oriundos de uma moléstia grave, podendo optar por um fim menos triste e doloroso para sua vida. Ressaltando-se, entretanto, os cuidados que devem ser tomados pelo legislador a fim de evitar que, acobertados pela legislação mais benéfica, crimes motivados por sentimentos menos nobres venham a ser cometidos.

Para finalizar, cita-se o posicionamento de Trejo García: “La eutanásia es un tema muy delicado que puede ser muy agresivo para algunas personas, la importancia y la fuerza que esta tomando ultimamente esta abriendo las puertas y formando las bases para que en un futuro no muy lejano este considerada como opción médica y deje de practicarse ilegalmente”.

 

Referências
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Notas
[1] PAULO, Antonio de. Pequeno Dicionário Jurídico. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. p. 145.
[2] GARCÍA, Elma del Carmen Trejo. Legislación Internacional y Estúdio de Derecho Comparado de La Eutanásia. Disponível em <http://www.diputados.gob.mx/cedia/sia/spe/SPE-ISS-02-07.pdf> . p. 18.
[3] CF/88: Art. 5º. § 2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
[4] GONÇALVES, Maria Denise Abeijon Pereira. A Lei Nº 9.614/98: considerações acerca do tiro de destruição de aeronaves consideradas hostis ao Estado. In:Âmbito Jurídico, Rio Grande, XV, n. 99, abr 2012. Disponível em: http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11373&revista_caderno=3.
[5] CF/88: Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III – a dignidade da pessoa humana;
[6] Convenção Americana sobre Direitos Humanos: Art. 3º. Toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica.
[7] CF/88: Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[8] ROBERTI, Maura. Eutanásia e Direito Penal. Disponível em <http://www.ibap.org/defensiriapublica/penal/ doutrina/mr-eutanasia.htm>.  p. 3. 
[9] CP. da Bolívia. Art. 257. Se impondrá la pena de reclusión de uno a tres años, si para el homicidio fueren determinantes los móviles piadosos y a apremiantes las instancias del interesado, con el fin de acelerar una muerte inminente o de poner fin a graves padecimientos o lesiones corporales probablemente incurables, pudiendo aplicarse la regla del artículo 39 y aun concederse excepcionalmente el perdón judicial.
[10] CP. do Paraguai. Art. 106. El que matara a otro que se hallase gravemente enfermo o herido, obedeciendo a súplicas serias, reiteradas e insistentes de la víctima, será castigado con pena privativa de libertad de hasta tres años.
Art. 108. 1º. El que incitare a otro a cometer suicidio o lo ayudare, será castigado con pena privativa de libertad de dos a diez años. El que no lo impidiere, pudiendo hacerlo sin riesgo para su vida, será castigado con pena privativa de libertad de uno a tres años. 2º. En estos casos la pena podrá ser atenuada con arreglo al artículo 67.
[11] CP. do Peru. Art. 112. El que, por piedad, mata a un enfermo incurable que le solicita de manera expresa y consciente para poner fin a sus intolerables dolores, será reprimido con pena privativa de libertad no mayor de tres años. 
[12] CP. da Costa Rica. Art. 115. Será reprimido con prisión de uno a cinco años el que instigare a otro al suicidio o lo ayudare a cometerlo, si el suicidio se consuma. Si el suicidio no ocurre, pero su intento produce lesiones graves, la pena será de seis meses a tres años.
Art. 116. Se impondrá prisión de seis meses a tres años al que, movido por un sentimiento de piedad, matare a un enfermo grave o incurable, ante el pedido serio e insistente de este aún cuando medie vínculo de parentesco. 
[13] Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.805/2006. Disponível em HTTP://www.portalmedico.org.br/resoluções/cfm/2006/1805_2006.htm
[14] BATISTA, Américo Donizete. A eutanásia, o direito à vida e sua tutela penal à luz da Constituição. Disponível em http://jusvi.com/artigos/42519/1.
[15] CF. Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
[16] LOBATO, Maria do Carmo. Ausência de atendimento provoca morte com causa social. Disponível em <http://academiademedicinamt.com.br/site/artigo_view.aspx?id=12>


Informações Sobre os Autores

Maria Denise Abeijon Pereira Gonçalves

Especialista em Direito Militar pela Universidade Castelo Branco, RJ. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pelotas, RS. Analista Judiciária da Justiça Militar da União, desde 2000, atualmente lotada em Porto Alegre/RS

Sarah Lopes de Almeida

de Direito na Escola Superior de Administração, Direito e Economia – ESADE


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