Estupro Marital Sob a Ótica do Ordenamento Jurídico

João Luiz Miguel Ferreira dos Santos

Resumo: estupro, em especial no que se refere a pratica do crime nas relações conjugais e tem como escopo trazer o posicionamento da legislação brasileira acerca do assunto. Como objetivos, são pautadas as análises das leis que o normatizam, buscando conhecer as dificuldades que as vítimas desse tipo penal enfrentam quando passam por essa situação. O método utilizado foi a pesquisa bibliográfica, onde a busca de dados para elaboração do referido artigo se deu na legislação vigente, doutrinas e jurisprudências que tratam do assunto. Em suma o resultado da pesquisa nos possibilitou concluir que embora sejam grandes as dificuldades relacionadas ao tema, as atualizações que vêm acontecendo no Código Penal Brasileiro, nos leva a acreditar na possibilidade de uma transformação da triste realidade de mulheres que vêm sofrendo ao longo desses anos.

Palavras-chave: Estupro. Relações conjugais. Posicionamento. Código Penal Brasileiro.

 

MARITAL RAPE FROM THE POINT OF VIEW OF THE LEGAL SYSTEM

Abstract

The present study was carried out with the aim of improving the knowledge related to the crime of rape, especially regarding the practice of crime in marital relations and has as a goal to bring the positioning of Brazilian legislation on the subject. As objectives, the analyzes of the laws that regulate it are based, seeking to know the difficulties that the victims of this criminal type face when they go through this situation. The method used was the bibliographical research, where the search for data to elaborate said article was given in the current legislation, doctrines and jurisprudence that deal with the subject. In summary, the research results enabled us to conclude that although the difficulties related to this issue are great, the updates that have been happening in the Brazilian Penal Code lead us to believe in the possibility of a transformation of the sad reality of women who have been suffering over the years.

Keywords: Rape. Marital relationships. Positioning. Brazilian Penal Code

 

Sumário: Introdução. 1. Breve contexto histórico. 2. Divergências doutrinárias acerca do estupro marital. 3. Crime de estupro marital com vistas na legislação brasileira. 3.1. Penalidades cabíveis ao marido: sujeito ativo do crime. 4. Violação de princípios personalíssimos da mulher: sujeito passivo do crime.

 

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo elucidar a configuração do crime de estupro pelo marido, o chamado estupro marital, onde o cônjuge se figura como sujeito ativo do crime. Em outras palavras, o marido, ao empreender a violência sexual contra sua esposa, faz com que esta se torne vítima de um crime, lesando o bem jurídico tutelado, sendo este sua dignidade sexual.

O estupro foi severamente repudiado por diversos povos desde o início das civilizações, sendo considerado uma grave lesão a ser reprimida penalmente. Entretanto, a figura feminina era vista com indiferença, e, por muito tempo, afirmava-se que as mulheres não possuíam relevância para tomar decisões referente ao convívio em sociedade, sendo totalmente sujeitas à dominação masculina até mesmo dentro do matrimônio.

Mesmo com a evolução ocorrida ao longo dos anos, não se extirpou a visão de que as mulheres não são propriedades de seus cônjuges; portanto, o estupro, na esfera matrimonial, não era assim considerado pela inaceitável compreensão de que a mulher é propriedade de seu marido, e, por tal razão, tem a função satisfazer sexualmente seu cônjuge, independentemente de sua vontade, ou seja, a hegemonia masculina ainda impera no subconsciente das sociedades atuais.

Busca-se trazer a definição do crime de estupro marital, destacando o posicionamento da legislação brasileira sobre, esclarecendo quais as principais violações que se é cometida quando o mesmo é empreendido, sendo estas muito além da esfera física. Trata-se de assunto de relevada importância pois, ideia de igualdade de gênero hoje é uma realidade inquestionável. Entretanto, nem sempre a mulher teve seus direitos e sua liberdade com uma visão protetiva, pois, numa sociedade eminentemente patriarcal, imperava a submissão destas.

O referido crime é visto como inimigo sem voz, pois periodicamente ocorre dentro das instituições conjugais e, por força cultural, não é externado. Inúmeras vítimas sofrem em silêncio, diante da ausência da concepção de que a relação sexual involuntária não se trata de obrigação. Atrelado ao medo e insegurança, contribuem para que as vítimas continuem vivendo com seus cônjuges mediante violência sexual diária.

 

1 BREVE CONTEXTO HISTÓRICO

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, especificamente em seu artigo 5°, inciso I, a igualdade entre homens e mulheres se tornou uma realidade. Além deste, a Carta Magna em seu artigo 226, §5º, tratou especificamente da igualdade entre os gêneros dentro da relação conjugal, referindo tanto a direitos quanto a deveres, nos seguintes termos:

“Art. 226. A família, base da sociedade, tem proteção especial do Estado. […]

(Omissis)

  • 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. ” (BRASIL, 1988)

Apesar desse reconhecimento da igualdade entre homens e mulheres, até mesmo dentro do casamento, notou-se que algumas legislações infraconstitucionais necessitavam de reformas e atualizações, visto que um dos princípios mais disseminados da Constituição Federal é o da dignidade da pessoa humana; portanto, era inconcebível que legislações infraconstitucionais disseminassem essa discriminação.

O Código Civil que estava vigente era o de 1916, sendo esses direitos e deveres completamente diferentes. O homem era considerado, conforme o artigo 233 do antigo Código Civil, o chefe da sociedade conjugal e a mulher estava a ele submetida, sendo, até mesmo, elencada no rol dos relativamente incapazes, conforme se vê:

“Art. 6. São incapazes, relativamente a certos atos (art. 147, n. 1), ou a maneira de os exercer:

  1. Os maiores de dezesseis e menores de vinte e um anos (arts. 154 a 156).
  2. As mulheres casadas, enquanto subsistir a sociedade conjugal.

III. Os pródigos.

  1. Os silvícolas. ” (BRASIL, 1916)

Desta forma, o princípio da isonomia foi incorporado na legislação civil no que diz respeito ao casamento com o advento do Código Civil no ano de 2002, que dispôs em seu artigo 1.511 que “O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges. ” (BRASIL, 2002)

No que diz respeito ao âmbito penal, o Código Penal de 1940 (decreto-lei 2.848 de 1940) foi elaborado em uma época em que a cultura patriarcal estava ainda mais firmada nas raízes do legislador, bem como da sociedade como um todo. Diante disso, o Título VI do Código Penal referia-se a “Crime contra os Costumes” que, segundo Jesus (2007), visavam proteger a moral pública sexual e conservar a ética sexual.

A nomenclatura dada a um título de uma legislação é de máxima importância, pois, segundo Greco (2011, p. 449):

“O nome dado a um título ou mesmo a um capítulo do Código Penal tem o condão de influenciar na análise de cada figura típica nele contida, pois, mediante uma interpretação sistêmica ou mesmo de uma interpretação teleológica, em que se busca a finalidade da proteção legal, pode-se concluir a respeito do bem que se quer proteger, conduzindo, assim, o intérprete, que não poderá fugir às orientações nele contidas. ”

Diante da necessidade de atualizações das normas infraconstitucionais no âmbito Penal, foi aprovada a Lei 12.015 em 07 de agosto de 2009, na qual alterou o Título VI do Código Penal de 1940 que deixou de ser Dos Crimes contra os Costumes e passou a ser Dos Crimes contra a Dignidade Sexual.

Afirma Greco (2011, p. 449):

“Os crimes contra os costumes já não traduziam a realidade dos bens juridicamente protegidos pelos tipos penais que se encontravam no Título VI do Código Penal. O foco da proteção já não era mais a forma como as pessoas deveriam se comportar sexualmente perante a sociedade do século XXI, mas, sim, a tutela da sua dignidade sexual. ”

À vista disso, a objetividade jurídica desta retificação foi a de proteger a liberdade sexual da mulher, levando em consideração seu direito de dispor de seu próprio corpo no que tange aos atos genésicos, indo muito além de somente ponderar sua integridade física.

Partindo dessa evolução conceitual, tem-se o estupro marital como uma modalidade específica do crime tipificado como estupro. Diferencia-se, portanto, do crime em questão no tocante ao sujeito ativo: o próprio cônjuge. Consiste, então, num constrangimento ilegal por parte do marido, utilizando-se da violência efetiva ou psíquica, para forçar sua companheira a um ato sexual indesejado.

 

2 DIVERGÊNCIAS DOUTRINÁRIAS ACERCA DO ESTUPRO MARITAL

A violência sexual marital é uma violência que nega os valores matrimoniais e constitucionais, na medida em que submete a mulher a uma degradação moral e física, bem como viola os princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da igualdade entre os sexos, sendo que sua negligência favorece a impunidade. Entretanto, existem duas correntes acerca da possibilidade de o marido ser o agente do crime de estupro, sendo que os posicionamentos circundam em torno da aceitação, ou não, da existência do delito.

A primeira corrente dispõe de uma concepção retrógrada, onde, de acordo com Vasconcelos (2015), é encabeçada pelos seguintes doutrinadores tradicionais: Nelson Hungria e Magalhães Noronha.  Segundo a concepção desses defensores, o marido não pode ser acusado do estupro de sua própria esposa, uma vez que o Código Civil traz como consequência do casamento: o dever de coabitação. Para eles, isso significa que os cônjuges têm o dever de manter relação sexual, tendo em vista a obrigação matrimonial; assim, na hipótese de recusa injustificada da mulher, o marido pode forçá-la ao ato sexual sem que responda pelo crime de estupro, estando acobertado pela excludente de ilicitude do exercício regular de direito.

Para Noronha (2002, p. 70):

“As relações conjugais são pertinentes à vida conjugal, constituindo direito e dever recíproco dos que casaram. O marido tem direito à posse sexual da mulher, ao qual ela não se pode opor. Casando-se, dormindo sob o mesmo teto, aceitando a vida comum, a mulher não se pode furtar ao congresso sexual, cujo fim mais nobre é o da perpetuação da espécie. A violência por parte do marido não constituirá, em princípio, crime de estupro, desde que a razão da esposa para não ceder à união sexual seja mero capricho ou fútil motivo, podendo, todavia, ele responder pelo excesso cometido.

[…] mulher que se opõe às relações sexuais com o marido atacado de moléstia venérea, se for obrigada por meio de violências ou ameaças, será vítima de estupro. Sua resistência legítima torna a cópula ilícita.”

Por este paradigma, as relações sexuais constituíam um dever no matrimônio, não podendo a esposa se recusar a fazer o ato por motivos fúteis ou por falta de vontade, somente sendo aceita para fins penais, se pautada numa justificativa de relevante valor, como, por exemplo, o fato do marido estar portando doença venérea. Dessa forma, o que tornaria a conduta ilícita não era o constrangimento ao qual a mulher seria exposta, mas sim, a atitude típica prevista no art. 130 do Código Penal, do marido transmitir moléstia venérea à esposa.

Compartilhando deste mesmo pensamento, Hungria (1959, p.126), diz que:

“O marido violentador, salvo excesso inescusável, ficará isento até mesmo da pena correspondente à violência física em si mesma (excluído o crime de exercício arbitrário das próprias razões, porque a prestação corpórea não é exigível judicialmente), pois é lícita a violência necessária para o exercício regular de um direito.”

O mesmo autor ainda fazia referência ao termo prestação sexual, ou seja, a mulher tem a obrigação de submeter seu corpo ao capricho do marido. Ainda, esclarece que o “sexo ilícito” é o coito realizado fora do casamento, e que o sexo dentro do casamento é dever recíproco dos casados, comungando, assim, com a definição do débito conjugal.

A segunda corrente, conforme magistério de Vasconcelos (2015), dispõe de concepções mais contemporâneas, sendo composta por: Guilherme de Souza Nucci, Carolina Valença Ferraz e Julio Fabrini Mirabete. Para estes doutrinadores, haverá estupro sempre que houver o constrangimento, uma vez que a lei não autoriza o emprego de violência ou grave ameaça para fazer valer o dever de coabitação, não se podendo falar em exercício regular do direito, e sim abuso de direito, portanto há crime. Entende, ainda, que o desrespeito a esse dever poderia gerar, na esfera civil, a decretação do divórcio.

No que diz respeito a tal discussão, Greco (2010, p. 466) esclarece da seguinte forma: “Modernamente, perdeu o sentido tal discussão, pois, embora alguns possam querer alegar o seu ‘crédito conjugal’, o marido somente poderá relacionar-se sexualmente com sua esposa com o consentimento dela”.

Deve se ter em vista que, mesmo que ao contrair o matrimônio surja a obrigação de se manter relação sexual, isso não deve ser fundamento indispensável para a defesa de uma violência tão ilógica quanto o estupro. A mulher, mesmo dentro do instituto do casamento tem o direito de dispor de seu corpo de forma livre, deste modo, se não for da vontade dela manter relação sexual, não tem o marido o direito de forçá-la à prática de tal ato.

Segundo Mirabete (2001, p. 1245-1246):

“Embora a relação carnal voluntária seja lícita ao cônjuge, é ilícita e criminosa a coação para a prática do ato por ser incompatível com a dignidade da mulher e a respeitabilidade do lar. A evolução dos costumes, que determinou a igualdade de direitos entre o homem e a mulher, justifica essa posição. Como remédio ao cônjuge rejeitado injustificadamente caberá apenas a separação judicial.”

Nesse mesmo sentido, Nucci (2002, p.655) afirma que: “tal situação não cria o direito de estuprar a esposa, mas sim o de exigir, se for o caso, o término da sociedade conjugal na esfera civil, por infração a um dos deveres do casamento”.

Compreende-se, então, que diante do marido insatisfeito, caso a esposa não cumpra com suas obrigações conjugais, este poderá, por exemplo, pedir a separação do casal, cabendo a ele, ingressar com ação de separação judicial, sendo que jamais o marido poderá utilizar-se de práticas violentas ou ameaçadoras para obter a satisfação sexual, infringindo à liberdade sexual da mulher, bem como sua dignidade.

Nesse contexto, Ferraz (2001, p.194-195) explicita que:

“O estupro da mulher casada, praticado pelo marido, não se confunde com a exigência do cumprimento do débito conjugal; este é previsto inclusive no rol dos deveres matrimoniais, se encontra inserido no conteúdo da coabitação, e significa a possibilidade do casal que se encontra sob o mesmo teto praticar relações sexuais, porém não autoriza o marido ao uso da força para obter relações sexuais com sua esposa. (…) A violência sexual na vida conjugal resulta na violação da integridade física e psíquica e ao direito ao próprio corpo. A possibilidade de reparação constitui para o cônjuge virago uma compensação pelo sofrimento que lhe foi causado.”

Assim, verifica-se que a maioria dos doutrinadores é do entendimento da existência do delito de estupro praticado pelo marido contra sua esposa e o uso da violência não pode ser levado em conta, uma vez que há constrangimento ilegal. Tendo em vista a equiparação entre homem e mulher, o marido não pode obrigar sua consorte a realizar seus desejos sexuais contra sua vontade, podendo somente relacionar-se sexualmente com sua esposa com o consentimento dela.

 

3 CRIME DE ESTUPRO MARITAL COM VISTAS NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

O delito de estupro marital se trata de um crime de violência sexual, pelo qual o marido, por meios coercitivos como a violência, força sua esposa à prática de atos sexuais sem o seu consentimento. Acerca da definição do crime de estupro, o Código Penal Brasileiro traz expresso no art.213, compondo a o Título VI: Dos Crimes contra a Dignidade Sexual, tendo como definição a seguinte redação: “Art. 213.  Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. ” (BRASIL,1940)

O fato de não se ter um artigo presente no Código Penal Brasileiro tratando especificamente do crime de estupro dentro do âmbito matrimonial não conduz à exclusão da tipicidade. O verbo nuclear “constranger” alguém abre um leque de possibilidades para que se ocorra tal delito, não ficando à margem quando o ato for praticado na relação conjugal. Conforme explicita (Maggio, 2013):

“Durante muito tempo entendeu-se que, com o casamento, o homem teria o direito de exigir da mulher a prática de relação sexual pelo chamado “débito conjugal” valendo-se inclusive da violência ou grave ameaça, sob o manto da excludente de ilicitude do exercício regular de direito. Hoje em dia esse posicionamento se modificou na doutrina e na jurisprudência, entendendo-se que, embora com o casamento surja para os cônjuges o direito de manterem relações sexuais um com o outro, indistintamente, verifica-se, porém, que esse direito não pode ser exercido mediante o constrangimento com o emprego de violência ou grave ameaça. Em suma: esse direito apenas garante aos cônjuges o direito de postular o término da sociedade conjugal, em razão de violação dos deveres do casamento, nos termos da legislação civil (CC, art. 1.572).”

A Lei 11.340/2006 teve finalidade de complementar o Código Penal no que tange à violência sexual contra a mulher no seio familiar, pois é predominante a visão patriarcal no que se refere à composição da família no Brasil, resultando a violência sexual, que é somente uma das inúmeras raízes desse agravante. Osório e Fontoura (2014, p.03), ao discorrer sobre o assunto, mencionam pesquisas realizadas pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), através do instrumento SIPS (Sistema de Indicadores de Percepção Social) e complementam:

“A população ainda adere majoritariamente a uma visão de família nuclear patriarcal, ainda que sob uma versão contemporânea, atualizada. Nessa, embora o homem seja ainda percebido como o chefe da família, seus direitos sobre a mulher não são irrestritos, e excluem as formas mais abertas e extremas de violência. ”

No tocante à violência sexual dentro do âmbito familiar, a Lei Maria da Penha vem com a seguinte definição (BRASIL, 2006):

“Art. 7o  São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:

III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;”

A ocorrência do estupro marital é inegável, visto que se amolda à conduta prevista em lei. A ideia de que este está executando seu exercício regular de direito é nada mais do que retrógrado, visto que a promulgação da Constituição Federal de 1988 destacou tratamento isonômico entre homens e mulheres. Nesse contexto (Nucci 2016, p.269) se posiciona:

“Não é mais tempo para se aceitar tal entendimento, tendo em vista que os direitos dos cônjuges na relação matrimonial são iguais (art. 226, § 5.º, CF) e a mulher dificilmente atingiria o mesmo objetivo agindo com violência contra seu marido, inclusive porque não existe precedente cultural para essa atitude. ”

3.1 Penalidades Cabíveis ao marido: sujeito ativo do crime

No que tange à punição do agente, quando este empreender violência sexual ou grave ameaça, a fim de satisfazer seus desejos sexuais com a esposa, sem que esta expresse devido consentimento, irá se aplicar a pena prevista no art. 213 do Código Penal, visto que o delito em questão é uma vertente do crime de estupro, devendo, portanto, se aplicar a pena já prevista em lei. Referente à punição do crime de estupro:

“Art. 213.  Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso

Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. ” (BRASIL, 1940)

Entretanto, o autor do crime pode ter sua pena majorada com base no art. 226 do Código Penal, desde que se enquadre no dispositivo da lei:

“Art. 226. A pena é aumentada

I – de quarta parte, se o crime é cometido com o concurso de 2 (duas) ou mais pessoas;

II – de metade, se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela; ” (BRASIL,1940)

O crime de estupro marital tem sua existência reconhecida de fato, tanto que no Brasil, embora o número seja pouco, há casos julgados em que admitiram a ocorrência do delito dentro da relação conjugal, conforme o processo a seguir julgado pelo TJ-SC:

“ESTUPRO, VIOLÊNCIA SEXUAL COMETIDA CONTRA CÔNJUGE VAROA (CP, ART. 213). PALAVRAS DA VÍTIMA, INSUSPEITAS, ALIADAS ÀS DO FILHO ADOLESCENTE, QUE PRESENCIOU A AGRESSÃO E À ÍNDOLE BELICOSA DO RÉU QUE NÃO DEIXAM DÚVIDA QUANTO À PRÁTICA DO DELITO. ABSOLVIÇÃO INVIÁVEL. CONDENAÇÃO MANTIDA. DOSIMETRIA. PENABASE EXASPERADA NO ÂMBITO DOS PARÂMETROS PRATICADOS POR ESTA CORTE. PROPORCIONALIDADE COM OS LIMITES DA REPRIMENDA OBSERVADA. RAZOABILIDADE DA PUNIÇÃO EVIDENCIADA NA EXPOSIÇÃO DO TOGADO. MANUTENÇÃO. ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. DEFENSOR NOMEADO PARA ATUAR NO PRIMEIRO GRAU. VERBA QUE ENGLOBA EVENTUAL DEFESA. CORREÇÃO DO VALOR ESTIPULADO NA SENTENÇA, SEGUNDO ORIENTA A LC ESTADUAL N. 155/97. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO, NESTE PARTICULAR (TJ-SC – ACR:747841 SC 2008.074784-1, Relator: Irineu João da Silva, Data de Julgamento: 01/04/2009, Segunda Câmara Criminal, Data de Publicação: Apelação Criminal (Réu Preso) n., de Joinville). ” (BRASIL, 2018)

Abrangendo o tempo da pena em si, o TJ-GO julgou procedente um processo em que se condenou o autor a 9 anos, 4 meses e 15 dias, em regime fechado, pelo crime de estupro marital. Para proteger a privacidade da vítima, o processo seguiu em segredo de justiça, não sendo disponibilizado; porém, a magistrada que acompanhou o caso se pronunciou sobre o fato:

“A juíza Ângela Cristina Leão, da comarca de Goianira, condenou a 9 anos, 4 meses e 15 dias de reclusão, em regime fechado, um homem que estuprou a própria mulher. Segundo a magistrada explicou em sentença, o matrimônio não dá direito ao marido forçar a parceira à conjunção carnal contra a vontade. O réu não pode recorrer em liberdade.

Na sentença, a juíza afirmou que embora haja, no casamento, a previsão de relacionamento sexual, o “referido direito não é uma carta branca para o marido forçar a mulher, empregando violência física ou moral. Com o casamento, a mulher não perde o direito de dispor de seu corpo, já que o matrimônio não torna a mulher objeto”.

Em defesa, o marido alegou que apesar da intimidação confessa, sua mulher teria aceitado praticar o ato sexual. Contudo, a juíza explicou que mesmo sem a vítima oferecer resistência física, o crime de estupro é caracterizado, já que, “de um lado, houve a conduta opressora e agressiva do acusado; de outro, a conduta de submissão e medo da vítima”.

Para a configuração do estupro não há, necessariamente, a coleta de provas físicas que demonstrem lesões ou indícios. “A palavra da vítima é uma prova eficaz para a comprovação da prática, se corroborada pelas demais provas e fatos”, como, no caso em questão, o depoimento das testemunhas sobre a conduta agressiva e usual do homem, afirmou Ângela Cristina. (Cury, 2014)”

 

4 VIOLAÇÃO DE PRINCÍPIOS PERSONALÍSSIMOS DA MULHER: SUJEITO PASSIVO DO CRIME

A promulgação da Constituição Federal de 1988 trouxe consigo uma nova modalidade de estado, o Estado Democrático de Direito alicerçado em princípios que foram devidamente expressos no Art. 1º de nossa Carta Magna, sendo o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana considerado por vários doutrinadores do Direito Constitucional a base para que se pudesse estabelecer esse novo estado. Nesse sentido (Awad, 2006, p.113)

“O constituinte de 1988 deixou claro que o Estado democrático de direito tem como fundamento a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal). Aquele reconheceu na dignidade pessoal a prerrogativa de todo ser humano em ser respeitado como pessoa, de não ser prejudicado em sua existência (a vida, o corpo e a saúde) e de fruir de um âmbito existencial próprio. ”

A ocorrência do delito de estupro marital quebra fronteiras que ultrapassa a violência doméstica no tocante ao âmbito sexual, o marido por meios coercitivos que força sua esposa a prática de atos sem a sua vontade, está lesando o maior bem jurídico tutelado a dignidade humana. Sendo este assegurado pela Constituição Federal de 1988 em seu Art. 1º, inciso III, que dispõe da seguinte redação:

“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

III – a dignidade da pessoa humana; ” (BRASIL,1988)

Ao discorrer sobre o assunto, Moraes (2002, p.128) assim leciona:

“A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.”

Portanto mesmo que a situação se dê em uma relação âmbito matrimonial, se constitui em dever do Estado garantir a proteção do bem jurídico lesado pelo agente. Pois esse princípio fundamental é direito natural de qualquer ser humano e não pode ser violado pelo simples fato de que foi cometido pelo cônjuge da vítima. Partindo dessa premissa (Awad, 2006, p.114)

“O princípio da dignidade da pessoa humana tem íntima relação com o direito natural. Se considerarmos que o direito natural é aquele que nasce com o homem a dignidade humana faz parte dele, haja vista que o homem detém capacidades próprias e poder de raciocínio já ao nascer, o que diferencia dos demais seres. Todos os homens, ao nascerem, são iguais em dignidade; o que os diferencia num momento posterior, é o contexto sociocultural e econômico no qual estão inseridos. ”

Ao lesar o referido princípio, fere, de forma transversa, diversos subprincípios que integram aquele, dentre eles o da dignidade sexual que está diretamente ligado à vítima a quem foi empreendido tal crime. Porém o mesmo só passou a ser considerado lesado efetivamente com a vigência da Lei nº 12.015/2009, que alterou a o título VI do Código Penal Brasileiro de “crimes contra o costume” para “crimes contra a dignidade sexual”.

Nucci (2014)

“Referida alteração de nomenclatura indica, desde logo, que a preocupação do legislador não se limita ao sentimento de repulsa social a esse tipo de conduta, como acontecia nas décadas anteriores, mas sim à efetiva lesão ao bem jurídico em questão, ou seja, à dignidade sexual de quem é vítima deste tipo de infração. ”

O questionamento se ocorre a devida lesão da dignidade sexual é inquestionável, seja ela casada, solteira, virgem, prostituta, todas essas características são irrelevantes, pois possuem a liberdade de dispor do seu corpo para pratica de atividades sexuais com quem consentir, não podendo se “fechar os olhos” para a humilhação a quais foram submetidas quando forçadas a atuarem em tal situação, sendo agravada quando esta ocorre em seu lar, que em tese seria um lugar seguro. Nesse diapasão ensina Nucci (2014)

“Ainda no tocante ao sujeito passivo, são irrelevantes, para a incidência do artigo 213, os aspectos envolvendo a moralidade da vítima, podendo esta ser uma prostituta ou, também, um garoto de programa. Destarte, é irrelevante à existência do estupro o estado ou qualidade da vítima: solteira, casada, virgem ou não, honesta, devassa ou prostituta, porque, em qualquer caso, tem a mulher direito à tutela da lei, visto que a proteção se dirige ao direito de livre disposição do próprio corpo. Não importa seja a vítima solteira, casada ou viúva, uma vestal inatacável ou uma meretriz de baixa formação moral. Em qualquer hipótese é ela senhora de seu corpo e só se entregará livremente, como, quando, onde e a quem for de seu agrado. ”

Baseando no que diz o referido doutrinador, a lei não deve fazer distinção do indivíduo em questão, sendo visto que o mesmo está tipificado nos moldes do Código Penal Brasileiro, tendo ocorrido a lesão do bem jurídico que deve ser protegido pelo Estado em sua totalidade, não podendo ser considerada uma excludente de ilicitude da conduta praticada no âmbito matrimonial.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde os primórdios a figura feminina esteve em posição de sucumbência à masculina, sendo essa situação de forma arraigada no que tange aos direitos onde os homens gozavam de uma vasta gama, enquanto as mulheres eram mantidas a margem da sociedade civil, não possuindo voz ativa para se posicionar perante diversos assuntos. Contudo, com o passar dos anos as mulheres conseguiram conquistar seu espaço perante a sociedade, conquistando posição de igualdade com o gênero masculino.

Todavia, mesmo com uma serie de conquistas frente ao seio social, as mulheres continuam sendo vítimas silenciadas no seu próprio lar, seja por seus maridos ou companheiros, os quais mediante a força física obrigam suas esposas ou afins a manterem consigo relações sexuais, tornando-as vítimas de um crime extremamente especifico, que ainda é tão enraizado em nossa sociedade atual.

Entretanto, para que hoje se possa tipificar tal conduta foi preciso o surgimento de diversas ampliações na legislação brasileira, destacando-se como uma das mais importantes garantidas pela Constituição Federal, o princípio da dignidade da pessoa humana sendo este o cerne de todo o convívio de uma sociedade. Ademais, o princípio da isonomia também presente no rol de direitos da Constituição Federal, positivou de fato a equiparação entre homens e mulheres em nossa sociedade.

No compasso do tempo, a legislação brasileira foi ganhando diversas leis anexas que vieram com o objetivo de regular de fato o crime de estupro e suas vertentes. Podendo-se dizer que a Lei nº 11.340/2006 “ Lei Maria da Penha” foi o grande “divisor de águas” no que se refere aos casos de violência doméstica, protegendo com afinco as vítimas de violência nesses ambientes, garantindo as mesmas direitos e proteção.

Ainda nesse contexto, a Lei nº 12.015/2009 alterou o Título VI do Código Penal Brasileiro, que anteriormente era tido como Crimes contra o costume e com a alteração pela referida lei passou se ler Crimes contra a dignidade sexual. As alterações trazidas por essa lei também revogaram o art. 214 revogando o crime de atentado ao pudor e unificando o crime de estupro elencando também o marido como possível sujeito ativo do crime de estupro podendo ser punido de acordo com o Código Penal Brasileiro.

Enfim, o crime de estupro marital será sempre configurado quando houver grave ameaça ou violência para que haja relações sexuais no âmbito matrimonial, ressaltando-se que tal delito não violado somente a integridade física e moral da mulher, fere diretamente sua dignidade humana juntamente com sua dignidade sexual, asseguradas constitucionalmente.

 

REFERÊNCIAS

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