Da Negação da Alteridade a Violência: Uma Reflexão Sobre as Raízes da “LGBTFOBIA”

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Luiz Tiago Vieira Santos[1]

 

As condições sob as quais sou compreendido, sob as quais sou necessariamente compreendido – conheço-as muito bem. Para suportar minha seriedade, minha paixão, é necessário possuir uma integridade intelectual levada aos limites extremos […]”

(Friedrich Nietzsche)

 

Putz! Mais um daqueles “chatos” que querem transformar o Brasil num antro de depravação gay, dirão alguns ao visualizar a sigla LGBT(+) no título acima. De fato, o “preconceito” não é nada além de um “pré-conceito”, e pode facilmente ser direcionado à liberdade de expressão. Caso parta dessa premissa, nem prossiga! Certamente essa não lhe será uma leitura agradável.

Este decerto não possui e nem conseguiria atingir o supracitado desiderato. De igual modo, antes que se argua levianamente qualquer provável tendência a uma prepotência dogmática deste autor em estabelecer verdades incontestes acerca do tema, definitivamente, não há tal insipiência. Tampouco teria este, sob o ponto de vista lógico-estrutural, o condão de esgotá-lo e lhes apresentar todas as respostas. Suscitar, ou mesmo acreditar nisso, seria de uma ingenuidade teratológica, quiçá uma séria propensão à desonestidade intelectual.

Objetiva-se aqui tão somente uma provocação reflexiva sobre os dados a seguir apresentados, na tentativa quase hercúlea de compreender as “prováveis origens” da negação do alter (outro) – nesse caso, o LGBT+ – culminando na construção de um discurso de ódio e até mesmo, em casos extremos, na violência mortífera gratuita.

“O Brasil é o país onde mais se assassina homossexuais no mundo”[2]. “O Brasil segue no primeiro lugar do ranking de assassinatos de transexuais”[3]. “A cada 19 horas, uma pessoa LGBT é assassinada ou se suicida no Brasil”[4]. “O Brasil é um dos países que registram mais agressões contra pessoas LGBTI”[5]. Se esses dados não lhe causam perplexidade, segue mais um: “Mais de 70% dos crimes praticados contra LGBTs não são registrados”[6].

Conquanto possam ser contestadas as afirmações acima (e todo dado social e estatístico é passível de refutação), há quem advogue a tese de sua manipulação, principalmente quanto aos assassinatos na comunidade LGBT+, negligenciando o fato de que todo crime possui certa margem de subnotificação, segundo estudos da Criminologia moderna, o que certamente poderia elevar e muito tais estatísticas (vide nota de rodapé nº 6).

Contudo, ainda que se aceite a teoria da possível maquiagem dos dados, no intuito, como dizem alguns, de supervalorizar o “mimimi” da minoria em detrimento da maioria, há ainda quem negue a existência real tanto do discurso de ódio como da própria violência perpetrada contra esse grupo social específico. A violência que aqui nos referimos deve ser entendida em sentido lato, incluindo desde a física até a social, representada pela exclusão, inclusive no seio da própria família. O Estado é também coautor desse resultado, ao passo que se ausenta de sua obrigação constitucional na garantia dos direitos fundamentais mais elementares, a exemplo do próprio direito à vida. Em que se fundamentaria, então, esse discurso segregacionista e violento de negação do outro, principalmente “do diferente”?

As possibilidades de respostas para a questão acima são quase infinitas, a depender a área de conhecimento humano que as procure, e seguem diretamente proporcionais ao grau de complexidade da própria questão levantada. Ante a esta fatídica constatação, não se despenderá aqui esforços desnecessários para encontrar tais respostas nas possíveis motivações de ordem psicológica dos indivíduos, visto que entraríamos numa espiral sem fim, dada a individualidade única da psique de cada um. Por isso, para evitar incorrer em divagações inúteis, delimitemos o campo de análise, lançando mão da observação do fenômeno de LGBTfobia enquanto fato social que é.

Em artigo publicado no ano de 2015, intitulado “A relação intrínseca entre doença mental e moral sob a ótica de Michel Foucault[7], Santos (2015 p. 09-10), ao nos debruçarmos sobre o tratamento da ideia foucaultiana de loucura, constatamos que em toda a história da humanidade, a problematização da doença mental sempre esteve associada a um conjunto de padrões morais socialmente determinados como “normais” e que a exclusão social era a consequência imediata a todos aqueles que deles se desviassem. Rocha (1988, p. 08), também associa a “ideia de loucura” a um discurso de exclusão dos diferentes, arquitetado de acordo com a conveniência de determinadas momentos.

Embora Foucault trate, nas obras ora analisadas por Santos (2015), especificamente do discurso implícito de justificação da segregação de pessoas “comodamente rotuladas de loucas”, sua lógica perversa se desnuda também no discurso de ódio à comunidade LGBT+. Aliás, esse tipo de construção moral – que começa com certo ar de superioridade do “eu” sobre o “outro”, dos meus “valores e crenças” sobre os “valores e crenças” dos outros – não se restringe somente ao grupo LGBT+, mas também a vários outros grupos vulneráveis.

O egocentrismo expressado nessas formas de agir e pensar exprimem ipsis litteris o conceito antropológico clássico de Etnocentrismo que, na visão de Rocha (1988, p. 05) representa uma visão de mundo pela qual todos os outros – os diferentes – são percebidos através dos nossos valores e modelos, o que explica muitas vezes os sentimentos de estranheza, medo e hostilidade para com o diferente.

O ideário antropológico etnocentrista nasceu simultaneamente à própria Antropologia, no início do século XVI, a partir da descoberta do “novo mundo”. Serviu, primeiramente, como discurso de justificação dos massacres a comunidades indígenas inteiras, visto que “a diferença é ameaçadora porque fere a nossa própria identidade cultural” (Rocha, 1988, p. 05). Noutro momento, forneceu as bases estruturais para a teoria evolucionista que, por sua vez, foi utilizada para a justificação da invasão e colonização vários povos, sob o argumento de sua involução e que se estaria levando-os ao progresso.

Mesmo o etnocentrismo permeando basicamente toda existência humana, vem sendo amplamente combatido, pela própria Antropologia, desde seu nascimento até os dias de hoje. O conceito também antropológico de Relativização que, conforme Rocha (1988, p 09), se concretiza na medida em que compreendemos o outro nos seus próprios valores e não nos nossos, representa a principal arma de enfrentamento ao etnocentrismo hoje, permitindo que valorizemos a alteridade e voltemos nossos olhos da diferença como possibilidade e não exclusão.

O ideário relativista ganhou força principalmente após as monstruosidades cometidas pelos regimes totalitários fascista e nazista no bojo da Segunda Guerra Mundial. Foi da mais absoluta ojeriza ao que podemos agora chamar de apogeu do discurso etnocentrista, que teve no Holocausto sua maior representatividade, que a base fundante dos Direitos Humanos e da ideia de Dignidade da Pessoa Humana surgiu.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos[8], de 1948,  proclamada pela ONU em Paris no pós-guerra, representa, sob nossa ótica, o mais alto grau do ideário antropológico relativista, uma vez que concretiza no plano jurídico a ideia de Igualdade e repudia qualquer espécie de discriminação, impondo o reconhecimento do outro a partir do olhar da alteridade, sem nenhuma espécie de hierarquização de vida ou valores.

Da declaração como marco inicial, surgiram diversos outros tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, com os quais todos os países signatários, a exemplo do Brasil, se comprometeram a promover modificações em seus ordenamentos jurídicos internos para lhes dar devido e concreto cumprimento. Surge assim o Constitucionalismo Moderno fundado na ideia de Dignidade da Pessoa Humana, sendo essa, inclusive, norma fundante de nosso Estado Democrático de Direito, encontrando-se expressamente prevista na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º, inciso II.

A essa altura, após essa verdadeira cruzada a procura de possíveis respostas a complexa questão ora aventada, outra conclusão não se chega senão a de que o discurso ódio que permeia nossa sociedade, culminando na exclusão social dos grupos vulneráveis em geral, mas em especial a comunidade LGBT+, é construído culturalmente e tem suas bases de justificação fincadas numa postura altamente etnocentrista e dela, como se viu, derivam a segregação e a violência em diversos graus. A LGBTfobia, portanto, nada mais é do que a expressão máxima dessa lógica etnocêntrica.

De igual modo, irrefutável é a inferência de que cabe obrigatoriamente ao Direito, dada sua força cogente, a proteção da Dignidade da Pessoa Humana em todas as suas nuances, como expressão mais pura da ideia antropológica de relativização, que eleva o ser humano ao patamar único de fim em si mesmo e não como um meio para a consecução de um fim qualquer ou meramente um objeto.

Por fim, não poderíamos aqui deixar de citar, dada a sua hodiernidade, decisão recente do Supremo Tribunal Federal – STF[9] a respeito do tema, mais precisamente sobre a criminalização da homofobia e da transfobia. Em 13/06/2019, por 08 votos a 03, o STF determinou que, a partir de agora, a homofobia e a transfobia passam a ser consideradas crime, com persecução penal e julgamento conforme a lei de Racismo (Lei nº 7.716/89).

Embora a decisão tenha sido tomada sob o argumento da Omissão Inconstitucional do Poder Legislativo em regulamentar a criminalização dessas condutas mediante lei em sentido formal, sob nossa ótica, ela merece sérias ressalvas, pois viola o princípio da legalidade estrita que rege o Direito Penal, adota uma espécie de analogia in malam partem (também vedada pelo direito penal) e, em última análise, viola o princípio da tripartição dos poderes, pois neste caso, estaria o STF usurpando função típica do Poder Legislativo.

É visível, portanto, que a análise dessa decisão, pela síntese acima exposta, renderia outra discussão profícua e longa, algo talvez a ser debatido noutro ensaio. No entanto, não se pode negligenciar que o posicionamento de nossa Suprema Corte, ao privilegiar concretamente a relativização em detrimento do etnocentrismo, considerando que nosso Congresso atual talvez seja o mais homofóbico de nossa história republicana, foi louvável, principalmente por seu conteúdo humanístico e contemplador da Dignidade Humana.

 

REFERÊNCIAS

BARIFOUSE, Rafael. STF aprova a criminalização da homofobia. São Paulo/SP, 13 jun. 2019. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47206924. Acesso em: 17 jun. 2019.

BORTONI, Larissa. Brasil é o país onde mais se assassina homossexuais no mundo. Brasília/DF, 16 maio 2018. Disponível em:https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/brasil-e-o-pais-que-mais-mata-homossexuais-no-mundo. Acesso em: 17 jun. 2019.

HIPOLITO, Saullo. Mais de 70% dos crimes contra LGBTs não são registrados. Sergipe, 17 maio 2018. Disponível em: http://www.f5news.com.br/cotidiano/mais-de-70-dos-crimes-contra-lgbts-nao-sao-registrados_47009/. Acesso em: 17 jun. 2019.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – ONU. A Declaração Universal dos Direitos Humanos. [S. l.], [2019?]. Disponível em: https://nacoesunidas.org/direitoshumanos/declaracao/. Acesso em: 17 jun. 2019.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – ONU. Brasil é um dos países que registram mais agressões contra pessoas LGBTI. [S. l.], 14 fev. 2019. Disponível em: https://nacoesunidas.org/brasil-e-um-dos-paises-que-registram-mais-agressoes-contra-pessoas-lgbti/. Acesso em: 17 jun. 2019.

PEREIRA, Cláudia. A cada 19 horas, uma pessoa LGBT é assassinada ou se suicida no Brasil. [S. l.], 25 abr. 2018. Disponível em: https://emais.estadao.com.br/blogs/familia-plural/a-cada-19-horas-uma-pessoa-lgbt-e-assassinada-ou-se-suicida-no-brasil/. Acesso em: 17 jun. 2019.

QUEIROGA, Louise. Brasil segue no primeiro lugar do ranking de assassinatos de transexuais. [S. l.], 14 nov. 2018. Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/brasil-segue-no-primeiro-lugar-do-ranking-de-assassinatos-de-transexuais-23234780. Acesso em: 17 jun. 2019.

ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é Etnocentrismo. São Paulo/SP: Editora Brasiliense, 1988.

SANTOS, Luiz Tiago Vieira A relação intrínseca entre doença mental e moral sob a ótica de Michel Foucault. Revista Científica Semana Acadêmica. Fortaleza, ano MMXV, Nº. 000069, 15/05/2015. Disponível em: https://semanaacademica.org.br/artigo/relacao-intrinseca-entre-doenca mental-e-moral-sob-otica-de-michel-foucault. Acessado em: 18/06/2019.

 

[1] Licenciado em Ciências Naturais pela Universidade Tiradentes – UNIT. Atualmente é bacharelando do curso de Direito pela Universidade Federal de Sergipe-UFS. Trabalha como Assistente de Gestão Administrativa II na Companhia de Saneamento de Sergipe – DESO e nas horas livres, gerencia seu blog jurídico www.dissertandosobredireito.wordpress.com, no qual publica artigos científicos e de opinião desde o ano de 2014.

[2] Disponível em: https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/brasil-e-o-pais-que-mais-mata-homossexuais-no-mundo.

[3] Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/brasil-segue-no-primeiro-lugar-do-ranking-de-assassinatos-de-transexuais-23234780.

[4] Disponível em: https://emais.estadao.com.br/blogs/familia-plural/a-cada-19-horas-uma-pessoa-lgbt-e-assassinada-ou-se-suicida-no-brasil/ .

[5] Disponível em: https://nacoesunidas.org/brasil-e-um-dos-paises-que-registram-mais-agressoes-contra-pessoas-lgbti/.

[6] Disponível em: http://www.f5news.com.br/cotidiano/mais-de-70-dos-crimes-contra-lgbts-nao-sao-registrados_47009/.

[7]Disponível em: https://semanaacademica.org.br/artigo/relacao-intrinseca-entre-doenca-mental-e-moral-sob-otica-de-michel-foucault .

[8] Disponível em: https://nacoesunidas.org/direitoshumanos/declaracao/.

[9] Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47206924 .

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