Reforma Administrativa: os pontos mais polêmicos

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Por Ricardo Russell Brandão Cavalcanti – Defensor Público Federal, Professor Efetivo do IFPE, mestre em Direito Processual pela Universidade Católica de Pernambuco. Doutorando em Ciências Jurídicas-Públicas pela Universidade do Minho, Braga-Portugal.

Resumo: Trata-se de estudo buscando analisar os principais e mais polêmicos pontos da proposta de Reforma Administrativa recentemente apresentada pelo Governo Federal. Assim, no decorrer do estudo foram analisados sete pontos dentro da proposta que são extremamente controversos e preocupantes e, em seguida, foram realizadas as considerações finais sobre a reforma em testilha.

Palavras-chave: REFORMA ADMINISTRATIVA – PROPOSTA – GOVERNO FEDERAL

 

Abstract: It is a study seeking to analyze the main and most controversial points of the Administrative Reform proposal recently presented by the Federal Government. Thus, in the course of the study, seven points within the proposal were analyzed, which are extremely controversial and worrying, and then the final considerations about the testilla reform were made.

Keywords: ADMINISTRATIVE REFORM – PROPOSAL – FEDERAL GOVERNMENT

 

Sumário: Introdução. Ponto 1. Ponto 2. Ponto 3. Ponto 4. Ponto 5. Ponto 6. Ponto 7. Considerações Finais. Referências.

 

INTRODUÇÃO

            A sociedade evolui, o que torna necessária a existência de mudanças nos atores componentes da mesma, o que inclui a Administração Pública Brasileira, que vem sofrendo mudanças significativas no decorrer das últimas décadas.

Antes do advento da Constituição Federal, o Brasil vivia um modelo patrimonialista de administração pública (SANTOS, 2015), que era extremamente nocivo para a Nação, conforme será visto a seguir. Com o advento do Texto de 1988, no entanto, o Brasil passou a ter um modelo de Administração Pública burocrático, com a adoção de uma série de amarras necessárias para moralizar o serviço público brasileiro, como a obrigatoriedade da realização de licitação e da realização de concurso público. (SANTOS, 2015).

Entretanto, a adoção do referido modelo acabou engessando em demasiado a Administração Pública, principalmente dentro de uma realidade na qual a sociedade exige uma demanda por celeridade. (NOHARA, 2014).

Assim, com as Emendas Constitucionais que sucederam o Texto Originário de 1988, O Brasil começou a migrar para um modelo de Administração Pública Gerencial, mais focado nos resultados do que na forma. (OLIVEIRA, 2015).

            Diante dessa realidade, o atual Governo Federal elaborou uma proposta de Reforma Administrativa a ser apreciada pelo Congresso Nacional, seguindo uma sistemática já adotada pelo governo atual de buscar mudanças em alguns setores sensíveis da sociedade, tal como já aconteceu recentemente com os Direitos Trabalhista e com a Previdência Social.

A referida proposta de Reforma Administrativa teve como foco principal a mudança da atual realidade dos servidores públicos brasileiros efetivos, que representam a base da prestação do serviço público no Brasil.

Entretanto, o texto apresentado pelo Governo Federal veio repleto de polêmicas, o que estimulou o presente estudo.

Desse modo, por meio uma pesquisa exploratória e qualitativa, iremos averiguar os mais relevantes e ao mesmo tempo mais polêmicos pontos do texto atual da proposta de Reforma Administrativa do Governo Federal.

 

Ponto 1.

A primeira alteração proposta pelo Governo Federal se dá em relação aos princípios da Administração Pública, tema extremamente importante, uma vez que a obediência à norma jurídica se dá pela obediência ao mesmo tempos às regras e aos princípios. (ALEXY, 2008), o que se torna necessária a existência de normas-regras e normas-princípios para que um sistema não seja extremamente rígido ou extremamente flexível. (ÁVILA, 2018), sendo por essa razão que Celso Antônio Bandeira de Mello chama os princípios da Administração Pública de “mandamentos nucleares do sistema”. (MELLO, 2009).

Diante dessa realidade, atualmente a Constituição da República menciona expressamente 5(cinco) princípios da Administração Pública, quais sejam: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (DI PIETRO, 2020), sem prejuízo da existência de outros.

Pois bem, a proposta de reforma administrativa soma aos princípios expressamente previstos na Constituição da República os seguintes: imparcialidade, transparência, inovação, responsabilidade, unidade, coordenação, boa governança pública e subsidiariedade.

Desse modo, a proposta de reforma em testilha peca logo de imediato por não acrescentar os já reconhecidos princípios constitucionais implícitos da Administração Pública, quais sejam: proporcionalidade e razoabilidade (MARINELA, 2018), que já são consagrados pela jurisprudência (ARAGÃO,2013) apesar da inexistência de expressa previsão constitucional, sendo uma reforma administrativa uma grande oportunidade de corrigir a referida omissão, o que, no entanto, tendo em vista o teor da proposta apresentada, não vai acontecer caso a mesma seja aprovada, o que implicará na continuidade de toda uma discussão doutrinária que poderia ser sanada.

Além disso, inovação, responsabilidade, unidade, coordenação e boa governança pública são apenas desdobramentos do já expresso princípio da eficiência; transparência está dentro de publicidade e imparcialidade decorre da impessoalidade. Ou seja: não há o que se falar em inovação quanto aos mesmos.

Desta feita, a única novidade de fato no presente ponto é o princípio da subsidiariedade, sendo essa uma inovação extremamente preocupante, pois pelo referido princípio, decorrente de uma política de Estado Mínimo, o Poder Público só deve atuar quando as próprias pessoas ou a iniciativa privada não estão dando conta de uma situação, ou seja,  o referido princípio afirma que o Estado não deve fazer nada mais além do que dar autonomia para as próprias pessoas atingirem os seus objetivos(CAVALCANTI, 2009), o que exime o Poder Público de sua obrigação imediata de atingir os interesses da sociedade.

Desse modo, em um país que passa por sérios problemas sociais como o Brasil, a possível adoção do princípio da subsidiariedade é extremamente preocupante, principalmente para as camadas menos favorecidas da população, que efetivamente precisam constantemente de uma tutela direta do Estado e que se encontram em uma situação ainda mais precária em face das reformas trabalhista e previdenciária, não podendo a reforma administrativa caminhar no mesmo sentido.

 

Ponto 2.

Outra mudança significativa na proposta de Reforma Administrativa do Governo Federal se dá especificamente em relação aos servidores públicos efetivos.

Pois bem, atualmente existem várias espécies de agentes públicos, dentre os quais os agentes políticos, os empregados públicos e os servidores públicos. Esses últimos, por sua vez, são divididos em servidores efetivos e servidores comissionados. Os efetivos são os que são aprovados em concurso público e podem vir a adquirir estabilidade e os comissionados são os de livre nomeação e exoneração. (OILIVEIRA, 2020).

Desse modo, a proposta pretende dividir os cargos públicos dos atuais servidores efetivos em duas espécies, quais sejam:

1- Cargos com vínculo por prazo indeterminado.

2- Cargos típicos o de Estado.

Acontece que os primeiros vão ter estabilidade e os segundos não, gerando, assim, uma preocupante diferenciação entre os servidores públicos e que não parece em consonância com o princípio da supremacia do interesse público.

No mais, a proposta deixa para uma Lei Complementar Federal futura definir o que serão carreiras típicas de Estado, ou seja: haverá uma grande disputa perante o Congresso Nacional com todo ocupante de algum cargo público querendo ser considerado carreira de Estado, o que enfraquece a própria luta classista em prol da aprovação de um texto que efetivamente atinja o interesse público primário, que é a busca do bem comum. (DIAS, MATOS, 2017).

Outrossim, o fim da estabilidade para parte dos servidores públicos é extremamente preocupante, pois os funcionários públicos não terão mais autonomia para o exercício das suas funções e ficarão sujeitos a demissões conforme cada mudança ideológica de governo, o que não é aceitável.

É importante lembrar que a estabilidade atual não impede a demissão do servidor desidioso. A estabilidade, em verdade, apenas é a obrigatoriedade de o servidor público efetivo só ser demitido por meio de processo judicial ou processo administrativo no qual sejam assegurados o contraditório e a e ampla defesa, ou seja, a estabilidade praticamente apenas impede a demissão sem justo motivo.

Assim, ao contrário do que alguns tentam fazer crer, o servidor público efetivo pode ser demitido sim. A lei 8112/90, que regula os servidores federais e normalmente tem a redação copiada pelas leis estaduais e municipais, prevê diversas hipóteses de demissão dos servidores públicos, dentre as quais: “inassiduidade habitual”, “aplicação irregular de dinheiro público”, “corrupção”, “receber propina”, “proceder de forma desidiosa”… Desse modo, o mal servidor público efetivo pode e DEVE ser demitido, tal como efetivamente acontece.

Desse modo, o possível fim da estabilidade não servirá para tirar o mau servidor e sim para deixar ao bel-prazer dos políticos a decisão de quem fica e quem sai do serviço público.

Frise-se que não se defende aqui o servidor público ineficiente, porém já existem mecanismos na legislação atual para que os mesmos sejam afastados do exercício de suas funções mediante processo administrativo disciplinar.

Assim, assegurando-se o contraditório e ampla defesa[1], basta a aplicação da lei nos termos já existentes para garantir a boa prestação do serviço público por parte dos servidores públicos brasileiros, sendo desnecessária qualquer alteração legislativa nesse sentido.

 

Ponto 3.

A proposta de Reforma Administrativa do Governo Federal traz uma nova fase para o concurso público, qual seja: o chamado “período de experiência”, que será de um ano para os cargos por prazo indeterminado e de dois anos para as carreiras típicas de Estado. Só será efetivamente aprovado no concurso quem ficar “entre os mais bem avaliados ao final do período do vínculo de experiência”.

Assim, após ser aprovados em todas as atuais fases do concurso, como as provas objetivas, subjetivas e orais, o candidato ainda deverá passar um tempo trabalhando no serviço público para ser considerado aprovado.

Tratar o referido período de experiência como fase do concurso é uma questão extremamente preocupante, pois, na prática, a pessoa vai começar a trabalhar sem efetivamente ter sido aprovada no concurso, o que não parece em consonância com o princípio da supremacia do interesse do serviço público.

Além disso, a pessoa precisará deixar os seus vínculos (públicos ou privados) para começar a trabalhar no serviço público sem efetivamente ter sido aprovado em um concurso público, o que vem a ferir o princípio a segurança jurídica, que também deve ser seguido pela Administração Pública. (OLIVEIRA, 2013).

Inclusive, é possível que quadros extremamente capacitados possuam receios em migrar para o serviço público com receio de trocar um trabalho certo por uma atividade duvidosa.

No mais, a necessidade de ficar “entre os mais bem avaliados” ao final do vínculo de experiência vai gerar uma verdadeira competição dentro da Administração Pública nada saudável para a prestação eficiente do serviço público, sendo algo extremamente contraditório com a proposta de transformar a unidade e a coordenação como princípios constitucionais expressos da Administração Pública, pois dificilmente um candidato vai querer colaborar com o sucesso do outro.

Assim, o atual estágio probatório nos parece muito mais eficiente do que o período de experiência proposto.

Por fim, pela proposta, quem vai definir a aprovação no concurso não será uma banca avaliadora equidistante de questões políticas, mas sim o chefe imediato do órgão público e que muitas vezes é escolhido por critérios exclusivamente políticos, que permitirá a aprovação apenas de quem possui afinidade política com o governo que está em vigor, situação passível de gerar um aparelhamento ideológico na Administração Pública, o que deve ser evitado.

Atualmente se evita que os concursos sejam realizados até mesmo pelo órgão público contratante, sendo preferível a feitura das seleções por bancas examinadoras, o que evita apadrinhamentos. Desta feita, colocar uma fase do concurso públicos dento dos próprios órgãos públicos é um retrocesso não aceitável.

 

Ponto 4.

A Reforma Administrativa proposta pelo Governo Federal busca substituir os atuais cargos em comissão, que são apenas para direção chefia e assessoramento, pelos cargos de liderança e assessoramento, que serão destinados às atribuições estratégicas, gerenciais ou técnicas e que, tal como os atuais cargos em comissão, serão de livre nomeação e exoneração pela autoridade competente, ou seja: sem concurso público e sim com nomeações baseadas na confiança que a autoridade responsável pela a escolha tem no escolhido. (CARVALHO filho, 2020).

A mudança parece ser apenas terminológica com a adoção de termos mais próximos do mercado, mas não é bem assim.

De fato, não existe muita diferença entre as expressões “atribuição gerencial” e “ atribuição de direção e chefia”.

Entretanto, o termo “atribuição estratégica” é bem mais amplo do que o termo “assessoramento”, ampliando a possibilidade de contratação sem concurso público para uma série de atividades.

Além disso, a proposta permite a contração sem concurso público para as funções meramente técnicas, tal como engenheiro, advogado, arquiteto, médico, design, assistente social e qualquer outra.

Assim, na prática, a proposta permite a nomeação de livre nomeação e livre exoneração para praticamente todas as funções públicas, permitindo que o serviço público seja realizado em grande parte por apadrinhados e não por servidores concursados, fazendo com que o Brasil se aproxime de um modelo patrimonial de administração pública, que se dá quando a coisa pública é tratada como se fosse uma propriedade particular do administrador público e os funcionários públicos são tratados como seus empregados particulares. (SANTOS, 2015).

Por outro lado, os servidores estáveis trabalham desvinculados de quaisquer questões ideológica, devendo agir em conformidade com Constituição e as leis de um modo geral.

Ante o exposto, o referido ponto da proposta acaba vindo por diminuir a autonomia dos servidores públicos, o que não é algo desejável, tal como não é desejável um serviço público prestado por pessoas que não foram aprovados por meio de um processo seletivo passível de averiguar as habilidades dos interessados em trabalharem na Administração Pública.

Em verdade, uma proposta de reforma administrativa representa uma grande oportunidade de acabar ou diminuir os cargos em comissão, pois é extremamente preferível a contratação de agentes públicos concursados. Infelizmente, no entanto, esse não foi o objetivo do Governo Federal ao apresentar a proposta.

 

Ponto 5.

A proposta de reforma traz uma série de vedações expressas para os servidores públicos, algumas, inclusive, já existem nas legislações infraconstitucionais ou já decorrem dos próprios princípios da Administração Pública.

Outras, no entanto, aparecem como inovações, existindo, realmente, as que são necessárias, como, por exemplo, a proibição de “aposentadoria compulsória como modalidade de punição”.

De fato, aposentadoria não é punição e sim prêmio, devendo a referida benesse acabar, não sendo necessário, no entanto, uma reforma administrativa para tanto, bastando uma mera alteração legislativa.

Por outro lado, algumas proibições dentro da proposta são desnecessárias e não se justificam.

Por exemplo, a reforma proíbe o recebimento de “adicional ou indenização por substituição, independentemente da denominação adotada, ressalvada a efetiva substituição de cargo em comissão, função de confiança e cargo de liderança e assessoramento”

Na prática isso significa que, quando um servidor se afastar, o outro deverá assumir a atribuição do afastado sem poder receber a mais por isso, ou seja: o Poder Público coloca no servidor público o ônus pelo afastamento de um colega. E o “interessante” é que, pela proposta, essa regra só vai valer para o servidor efetivo e não para o comissionado.

Desse modo, a reforma deveria buscar mecanismos para que o Poder Público assumisse os ônus do afastamento dos servidores, o que geraria até mesmo a melhora no relacionamento dentro de cada repartição pública.

Outra vedação da proposta é a de “progressão ou promoção baseada exclusivamente em tempo de serviço”. Acontece que a progressão por tempo de serviço é a mais objetiva existente e a que me menos dá margem para favorecimentos indevidos. Além disso, a progressão ou promoção por tempo de serviço permite que o servidor público em final de carreira ganhe mais do que o servidor em início de carreira, o que é extremamente justo e também estimulante para os que possuem vários anos de prestação de serviço público.

Caso a proposta seja aprovada no ponto em testilha, haverá margem para que os promovidos sejam justamente os mais alinhados com o governo que estiver no poder, o que transformará o instituto da promoção/progressão em uma forma de dominação do servidor público, pois o mesmo deverá se alinhar ideologicamente com o chefe imediato para conseguir obter uma promoção.

Desta feita, a referida possibilidade acaba vindo a ferir o princípio da impessoalidade, tendo em vista que o referido princípio impede decisões administrativas baseada em subjetividades. (MARINELA, 2018)

Desse modo, a coexistência de espécies de promoção por tempo de serviço com outras formas de promoção nos parece mais salutar do que impedir por completo a possibilidade de promoção por tempo de serviço.

 

Ponto 6.

A reforma proposta amplia as hipóteses de decretos autônomos. O que é um decreto? É uma norma criada pelos chefes do Poder Executivo, ou seja, um ato que manifesta a vontade privativa desses últimos (CARVALHO FILHO, 2020).

Normalmente, o decreto deve apenas regulamentar uma lei existente para possibilitar o fiel cumprimento da mesma, sendo dessa forma chamado de decreto regulamentar ou executivo (OLIVEIRA, 2018), não podendo o decreto extrapolar os termos da lei regulamentada sob pena de ser considerado ilegal.

Não poderia ser de outra, pois a função de legislação cabe efetivamente ao Poder Legislativo, cabendo ao Poder Executivo a função primordial de executar as leis e criar e executar as políticas públicas.

Entretanto, ainda que haja uma forte divergência doutrinária quanto ao tema (MARINELA, 2018), existe no Brasil o chamado decreto autônomo, que se dá quando o Chefe do Poder Executivo edita o decreto diretamente sem que exista uma lei a ser regulamentada, ou seja, o chefe do Poder Executivo diretamente cria uma norma independente de uma lei.

O decreto autônomo só pode acontecer no Brasil em situações excepcionalíssimas, que atualmente são duas, quais sejam:

  1. a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos
  2. b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos;

Pois bem, a Proposta de Reforma Administrativa apresentada pelo Governo Federal amplia as hipóteses de decreto autônomo de duas para seis e duas delas chamam muito a atenção, quais sejam:

– A transformação de cargos públicos efetivos vagos em cargos de comissão e cargos de liderança e assessoramento;

– A extinção de entidades da administração pública autárquica e fundacional;

Ou seja: a proposta permite que, quando um cargo público efetivo fique vago, ele seja transformado por mero decreto em um cargo em comissão/cargo de liderança e assessoramento, permitindo, na prática, que um servidor concursado seja substituído por alguém de livre escolha e nomeação do chefe do Poder Executivo, mais uma vez dando margem para a prevalência de interesses meramente privados no âmbito da Administração Pública em detrimento do interesse público primário, que deveria prevalecer dentro de “um sistema constitucional e democrático”. (BARROSO, 2018).

Além disso, a proposta permite que, sem passar pelo Congresso Nacional, o Presidente da República extinga o IBAMA, o INCRA, o INSS e as autarquias e fundações públicas de um modo geral, incluindo as Universidades e os Institutos Federais, o que é extremamente preocupante, uma vez que as referidas instituições são criadas por lei, de modo que a forma correta de extinção das mesmas, tal como acontece atualmente, também deveria ser uma lei em respeito ao princípio do paralelismo. (GASPARINI, 2012).

Ante o exposto, o referido ponto da reforma acabar por trazer poderes exagerados ao Chefe do Poder Executivo, colocando em xeque também até o mesmo o equilíbrio entre os Poderes da República.

Outrossim, muitas das autarquias existentes foram criadas em decorrência de todo um processo histórico, tal como acontece com nos           Institutos Federais, que são as antigas Escolas Técnicas Federais e que, dentro de uma política pública de ampliação da educação, foram transformados por meio de leis em institutos. Imaginem se, depois de conquistas históricas, os Institutos Federais voltassem a ser meras escolas técnicas por meio de um simples decreto?? Seria um retrocesso sem precedentes dentro da educação pública brasileira.

Assim, a possibilidade de extinção de autarquias e fundações públicas históricas por meio de atos unilaterais do Chefe do Poder executivo é extremamente danosa para a sociedade, podendo acabar com conquistas históricas, além de ferir o princípio da especialidade garantido pela existência de pessoas jurídicas de direito público criadas para a realização de atividades determinadas. (PESTANA, 2008), tal como INSS faz em relação à seguridade social, o IBAMA faz em relação ao meio-ambiente e o INCRA faz em relação à agrária, inclusive por meio de servidores públicos especializados em cada uma das feridas áreas de conhecimento.

Desse modo, espera-se que o referido ponto da proposta apresentada pelo Governo Federal seja sumariamente afastado.

 

Ponto 7.

O último ponto a ser abordado da Proposta de Reforma administrativa do Governo Federal é o que permite ao Chefe de cada poder estabelecer a perda de cargo público com vínculo por prazo indeterminado em caso de obsolescência das atividades relativas às atribuições do cargo público.

Obsolescência é quando algo se torna obsoleto. Assim, é possível que um cargo criado por lei e ocupado por uma pessoa após aprovação em um concurso público seja extinto pelo Chefe de cada um dos poderes (Executivo, Judiciário e Legislativo) quando, na ótica do mesmo, ficar caracterizado que o cargo é obsoleto.

Acontece que a referida possibilidade fere um princípio básico do Direito, que é o já comentado princípio do paralelismo, que exige, tal como também já foi exposto acima, que a extinção de um ato deve ser feita pelo mesmo instrumento que a criou. (GASPARINI, 2012).

No caso, a proposta pretende permitir que um cargo criado por meio de uma lei seja extinto de forma unilateral pelo chefe de um dos poderes da república, o que pode, inclusive, interferir na independência dos poderes, permitindo, por exemplo, que o Chefe do Poder Executivo discorde da criação de um cargo por lei e o extinga alegando que ele o mesmo já foi criado obsoleto.

No mais, o que é algo obsoleto? Trata-se de um conceito jurídico indeterminado. O atual Presidente da República, por exemplo, é contra o ensino de Filosofia e Sociologia nas escolas, então, caso a proposta seja aprovada no referido ponto, o Chefe do Poder Executivo Federal poderá, em tese, considerar obsoleto os cargos de professores das referidas matérias e os extinguir.

Desse modo, o referido ponto da proposta abre mais uma brecha para a perseguição dos servidores públicos efetivos, o que é algo indesejável e não condizente com os princípios que regem a Administração Pública.

No mais, a proposta também fere o princípio da segurança jurídica, pois os servidores públicos acabarão trabalhando com o receio de que o seu cargo seja em algum momento considerado obsoleto em virtude de uma mera mudança ideológica do governo.

Assim, espera-se que o referido ponto da proposta também não seja aprovado e que a extinção dos cargos públicos ocupados continue acontecendo apenas por meio de lei.

 

Considerações finais

No decorrer do presente estudo foram abordados os principais pontos da proposta de Reforma Administrativa recentemente apresentada pelo Governo Federal. A referida reforma não se limita aos pontos abordados, porém os outros assuntos previstos na mesma são menos polêmicos, pois representam principalmente questões já abordadas pela legislação infraconstitucional ou mera mudança de terminologia com o fito de, desnecessariamente, aproximar os conceitos consagrados na Administração Pública dos conceitos usados pelo mercado.

Não concordamos com a aproximação em demasiado com o setor privado porque é fato que o serviço público é diferente do serviço privado, não sendo por outra razão que existem formações diferenciadas de gestão pública e de gestão privada cada qual com as suas peculiaridades. No mais, as entidades privadas possuem como foco ordinariamente o lucro, diferentemente das entidades públicas que são focadas na busca pelo interesse público primário.

Quanto às questões analisadas no decorrer do presente apanhado, facilmente se percebe que a Proposta de Reforma Administrativa apresentada pelo Governo Federal representa um verdadeiro retrocesso, ampliando a possibilidade de aparelhamento do serviço público, gerando um sucateamento dos cargos públicos e dando poderes em demasiado aos chefes dos Três Poderes, em especial, ao Presidente da República.

Mudanças para melhor na Administração Pública sempre serão bem-vindas, porém as mesmas devem ter como viés dar uma melhor estrutura para os servidores poderem prestar os serviços públicos de forma a atender aos anseios da sociedade, o que não parece ser o caso da proposta apresentada.

Assim, urge a necessidade de um pleno debate com a população, com a escuta de gestores púbicos especializados e de acadêmicos da área, sempre se buscando uma gestão pública eficiente, realizada por servidores públicos preparados, compromissados e estimulados em busca de atingir os interesses da sociedade.

Espera-se que a aprovação de uma Reforma Administrativa não seja feita às pressas tal como aconteceu com a recente Reforma Previdenciária, mas sim após uma saudável discussão entre todos os atores da sociedade.

 

REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. 2ªed. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2008.

 

ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 18ed. São Paulo: Malheiros, 2018. p. 147-148.

 

ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de Direito Administrativo. 2ªed. Rio de Janeiro: Forense, 2013.

 

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 7ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

 

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 34ª ed. São Paulo: Atlas, 202.

 

CAVALCANTI, Thais Novaes. O princípio da subsidiariedade e a dignidade da pessoa: bases para um novo federalismo. Revista de Direito Constitucional e Internacional, V.67, São Paulo: Ed. RT, 2009, pp. 258-277.

 

DIAS Reinaldo; MATOS, Fernanda. Políticas Públicas: princípios, propósitos e processos. Atlas: São Paulo, 2017.

 

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33ªed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.p.380.

 

GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

 

MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. 12ªed. São Paulo : Saraiva Educação, 2018.

 

MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2009.

 

NOHARA, Irene Patrícia. Burocracia Reflexiva. In: MARRARA, Thiago. (Org.) Direito Administrativo: transformações e tendências. Coimbra: Almedina, 2014. .[349-372]. p.352.

 

OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. 8ª ed. Rio de Janeiro: Editora Método, 2020. p.322.

 

OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Organização Administrativa. 4ªed. São Paulo: Método, 2018.

 

OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Princípios do Direito Administrativo. 2ªed. São Paulo: Método, 2013.

 

PESTANA, Márcio. Direito Administrativo Brasileiro. 11ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.

 

SANTOS, Clézio Saldanha dos. Introdução à Gestão Pública. 2ªed. São Paulo: Saraiva, 2015.

 

[1]Constituição Brasileira de 1988. Artigo 5º: LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. (Grifos Nossos).

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