A função jurisdicional do Tribunal de Contas no horizonte do Estado Democrático de Direito

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Resumo: O artigo examina a função jurisdicional do Tribunal de Contas no julgamento de contas municipais na perspectiva do Estado Democrático de Direito. O Tribunal de Contas não é um mero órgão auxiliar do Poder Legislativo haja vista que a Constituição da República estabelece no art. 71, II, a competência jurisdicional do Tribunal de Contas da União para julgar as contas dos administradores e outros responsáveis pela gestão pública. O texto defende que a decisão jurisdicional do Tribunal de Contas pode ser discutida no Judiciário. No entanto, a deliberação da Câmara Municipal, de juízo político, não pode modificar um julgamento de critério técnico, mas, ensejar procedimentos em que os gestores públicos, responsáveis pelo ordenamento de despesa, respondam à eventuais demandas em Juízo tendo em vista a responsabilidade objetiva pela atuação estatal, sem prejuízo das eventuais sanções cabíveis. Saliente-se que no horizonte do Estado Democrático de Direito, a suplantação da tripartição de poderes do paradigma do Estado de Direito decorre da pluralidade de mecanismos de gestão e controle previstos na Constituição e da necessidade de uma fiscalidade irrestrita em que atos e procedimentos administrativos devem ser devidamente motivados e se orientam pelos princípios constitucionais da Gestão Pública para amplificar o exercício da cidadania.


Palavras-chave:Função Jurisdicional;Tribunal de Contas.


Sumário: 1. Introdução; 2. A função jurisdicional do Tribunal de Contas no julgamento das contas municipais; 3. Conclusão; Referências.


1 INTRODUÇÃO


A discussão sobre a existência de uma função jurisdicional do Tribunal de Contas no horizonte do Estado Democrático de Direito é pouco debatida. A maior parte dos trabalhos sobre o tema afirma que a competência (poder condicionado) para julgamento das contas municipais é exclusiva da Câmara Municipal sendo que caberia ao Tribunal de Contas somente a edição de parecer prévio, que não vincularia a Casa Legislativa, pois, esta poderia rejeitar um parecer técnico do Tribunal pela votação de 2/3 (dois terços) dos membros da Câmara.


O sistema de freios e contrapesos (checks and balances) previsto na Constituição da República se insere em um contexto panóptico, de vigilância, de regulação do exercício de um poder pelo outro, ou seja, a perspectiva de controle se situa como norma (medida) entre os poderes públicos constituídos. Desta forma, a decisão política da Casa Legislativa Municipal que acata ou rejeita o parecer prévio, de caráter técnico, do Tribunal de Contas se insere em um contexto que a atuação do órgão de contas somente subsidiaria o exercício da função fiscalizadora da Câmara Municipal, o que não se coaduna com a existência de um paradigma de Estado Democrático de Direito, pois, o Tribunal de Contas não é um mero auxiliar ou instrumento do Poder Legislativo haja vista a competência para o julgamento do gestor público responsável pelo ordenamento de despesas. Portanto, a atividade do órgão de contas não é auxiliar à atuação das Câmaras, mas, de efetivo julgamento, o que não exclui a importância da fiscalização a ser exercida pelo Legislativo. Uma leitura conforme a Constituição da República impõe a fiscalidade ampla e irrestrita de todos os atos e procedimentos[1] da gestão pública.


Assim, para a realização de um Estado Democrático de Direito urge superar uma leitura que sobrepõe as funções da Câmara Municipal e do Tribunal de Contas. A primeira se constitui em um mecanismo de representação político-eleitoral em âmbito local que fiscaliza os atos e procedimentos da gestão pública. Os julgamentos legislativos ocorrem por critérios de conveniência e oportunidade, ou seja, é uma forma discricionária de avaliar fatos e pessoas[2].


Nos termos do art. 71, II, da Constituição da República, o Tribunal de Contas tem a função de julgar as contas dos gestores responsáveis pelo ordenamento de despesa, em parâmetros técnicos, conforme disposição de normas constitucionais e legais. A análise técnica dos órgãos de contas é fundamentada, motivada e segue a forma prevista em lei. A decisão só pode ser descaracterizada se descumprir os requisitos necessários para a prolação da sentença – devido processo legal, motivação[3] e fundamentação da decisão jurisdicional.


O gestor público, na ordenação de despesa, deverá ser inscrito no rol de responsáveis, através de ato do Chefe de Poder, seja Executivo, Legislativo e Judiciário, o que implica em responsabilidade solidária do dirigente de Poder, observados, em linhas gerais, os seguintes aspectos:


a) a previsão legal da despesa;


b) a necessidade ou não da realização de licitação para a criação da despesa, nos ter do art. 37, XXI, da Constituição da República e da Lei 8.666/93(Lei de Licitações);


c) Prévio empenho: é o procedimento utilizado pelo gestor público para garantir receita para o cumprimento de determinada obrigação;


d) Nota de empenho – cártula demonstrativa do compromisso jurídico estatal e se constitui em empenho, liquidação e pagamento;


e) Declaração do ordenador de despesa de que a despesa está adequada orçamentária e financeiramente com os planos de orçamento.


No exame da função jurisdicional do Tribunal de Contas se observa que o Tribunal pode julgar a regularidade da nota de empenho, que engloba: a) o empenho – reserva do montante necessário para pagar àquele que forneceu o bem (art. 58 da Lei 4.320/64); b) liquidação – nesta se comprova e verifica o fornecimento do bem ou a existência do serviço prestado (art. 63 da Lei 4.320/64); c) pagamento – Com a posse da nota fiscal se faz o empenho e, em seguida, a liquidação. Para a ordem de pagamento (art. 64 da Lei 4.320/64) a legalidade dos atos e procedimentos devem ser formalizadas, conferidas e assinadas pelo ordenador de despesas[4].


Os órgãos de contas têm função jurisdicional no julgamento das contas municipais do gestor público responsável pelo ordenamento de despesas e não estão obrigados a prolatar decisões corretas, mas, fundamentadas. O ordenador de despesas pode alegar a existência de nulidade da decisão do Tribunal de Contas, em sede administrativa, junto ao referido Tribunal ou, na esfera do Poder Judiciário Estadual, conforme previsão do art. 125 da Constituição da República e nas respectivas leis procedimentais estaduais e municipais, se for o caso, e de organização judiciária. Contudo, o mérito da decisão não pode ser atacado posto que é uma prerrogativa que compete somente ao Tribunal de Contas. Note-se que a atividade do órgão de contas não é apenas jurisdicional, mas está a cingir as funções quase legislativa, auxiliar do Legislativo e de ombudsman[5]. Para os objetivos deste trabalho, o que se busca é demonstrar a razoabilidade de um argumento que aponta para uma função jurisdicional do Tribunal de Contas no que se refere ao julgamento de contas municipais do gestor público responsável pelo ordenamento de despesas, a partir de uma análise do art. 71, II da Constituição da República.


Assim, a Câmara Municipal pode apreciar politicamente o julgamento do Tribunal de Contas, mas, o acatamento ou a rejeição do parecer prévio não tem o condão de descaracterizar uma decisão técnica e devidamente motivada. Uma decisão da Câmara desfavorável a um ordenador de despesa, em um determinado exercício financeiro pode ensejar procedimentos em que o ordenador responda pelo exercício dos procedimentos praticados, nos termos do princípio da responsabilidade objetiva da atuação estatal, sem prejuízo das demais sanções cabíveis verificadas no caso concreto.


Em um entendimento adequado ao paradigma do Estado Democrático de Direito, um controle da gestão pública deve ser realizado em uma arena ampliada com a participação de diversos atores: Executivo, Legislativo, Judiciário, Indivíduos, Empresas Privadas, Movimentos Sociais, Organizações Não Governamentais, dentre outros, em redes interconectadas, para realizar a cidadania. É mister, também, discutir novas formas, funções e competências dos Tribunais de Contas, inclusive os critérios de escolha para composição do Tribunal para que este possa se afirmar como um órgão protetor dos direitos fundamentais tendo em vista uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição[6].


2 A FUNÇÃO JURISDICIONAL DO TRIBUNAL DE CONTAS NO JULGAMENTO DAS CONTAS MUNICIPAIS


Diferentemente do que costuma afirmar, o Tribunal de Contas não é órgão do Congresso Nacional ou do Poder Legislativo. A redação do art. 44 da Constituição da República estabelece o seguinte:


“Art. 44. O Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, que se compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.”


O texto constitucional não se refere ao Tribunal de Contas. Trata-se não somente de uma omissão significativa, mas, uma interpretação conforme a redação do dispositivo leva à conclusão de que os órgãos de contas não integram a estrutura do Poder Legislativo[7].


Definir é limitar. Contudo, esta limitação não pode ser feita pelo “não”. Portanto, afirmar que o Tribunal de Contas não integra o Legislativo não é suficiente. É necessário demonstrar no quadro da competência constitucional o papel a ser exercido pelos órgãos de contas e os princípios-garantias expressos da Gestão Pública, a saber: juridicidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, responsabilidade administrativa e eficiência.


Os princípios-garantias constitucionais são o âmago da Constituição, ou seja, o ordenamento constitucional se informa e conforma de acordo com os mencionados princípios, dentre outros, que orientam a Gestão Pública. A existência dos princípios está adstrita ao cumprimento de normas, nos termos das competências fixadas na Constituição da República.


A competência é o exercício pleno do poder vinculado a uma certa finalidade, conferida pelas normas constitucionais, leis procedimentais e de organização judiciária. Observe-se que não se trata de um instituto que distribui o poder estatal mas, estabelece a determinados entes e órgãos a tarefa de  exercitá-lo, seja de modo exclusivo, compartilhado ou em associação[8].


Os governantes, no desempenho do poder, exercitam competências, sejam estas com exclusividade, compartilhadas ou em associação e não direitos subjetivos[9], ou seja, as entidades e órgãos da Gestão Pública são conduzidos pelo exercício do instituto da competência.


“A expressão competência é usada no Direito com intenção muito definida. Significa-se com ela o poder, conferido pelo ordenamento, cujo exercício só é lícito se realizado: a) pelo sujeito previsto; b) sobre o território de sua jurisdição; c) em relação às matérias indicadas na norma; d) para atingir a finalidade que levou à outorga do poder. Em outras palavras, a competência é um poder intensamente condicionado”[10].


A regra de competência, não existe de forma incondicionada, pois é estritamente vinculada a uma determinada finalidade. A existência dos Tribunais de Contas dimanam de previsão constitucional e se destacam, na estrutura do Estado brasileiro, por serem coessenciais à característica da forma de governo constitucionalmente estabelecida.


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Note-se que a Constituição da República de 1988 modificou a estrutura do exercício do instituto da competência, até então existente dos Tribunais de Contas, visto que ampliou os objetos de fiscalização, multiplicou os sujeitos fiscalizáveis e diversificou a finalidade do controle para abarcar a necessidade de um melhor controle da gestão do erário público. Assim, os Tribunais de Contas deixaram uma concepção de serem integrantes apenas dos órgãos do Estado para se constituírem em órgãos da sociedade no Estado[11], de função jurisdicional, no que se refere aos termos do art. 71, II, da Constituição da República.


As competências constitucionais e legais do Tribunal de Contas são:


“Competências constitucionais:


Apreciar e julgar as contas anuais dos prefeitos municipais;


Julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos; (grifos acrescidos).


Realizar inspeções e auditorias por iniciativa própria ou por solicitação do poder legislativo;


Aplicar sanções e determinar a correção de ilegalidades e irregularidades em atos e contratos;


Fiscalizar a aplicação de subvenções e a renúncia de receitas;


Emitir parecer prévio sobre as contas para apreciação das Casas Legislativas;


Apurar denúncias apresentadas por qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato sobre irregularidades e ilegalidades.


Competências legais do Tribunal de Contas:


Decidir sobre consulta formulada por autoridade competente acerca de dúvida na aplicação de dispositivos legais ou regulamentares concernentes à matéria de competência do Tribunal;


Exercer o controle de legalidade e legitimidade dos bens e rendas de autoridades e servidores públicos;


Apreciar representações apresentadas por licitante, por contratado, pessoa física ou jurídica, acerca de irregularidades na aplicação da lei de licitações e contratos”[12].


Uma compreensão adequada acerca da função do Tribunal de Contas suplanta a tripartição clássica de equilíbrio de poderes, do Estado Direito, entre atividades executivas, legislativas e judiciárias.


Na matriz do Estado Democrático de Direito há uma pluralidade de centros constitucionais de imputação do poder, ou seja, diversificadas matrizes constitucionais, com suas diversas funções públicas que articulam as normas de competência com a idéia da responsabilidade constitucional dos órgãos constitucionais para conter o poder, exercido em todas as formas e funções em que se possa apresentar, para dividir, limitar e fiscalizar e controlar a Gestão Pública[13]. Em uma perspectiva ampla, esta análise deve abarcar o Executivo, Legislativo e Judiciário tendo em vista a superação de divisões estanques entre os poderes do paradigma do Estado de Direito.


“Assim, acrescem-se incessantemente às funções tradicionais constitucionalizadas – a normativa, a administrativa e a jurisdicional – novas outras funções constitucionais, como à falta de consenso científico sobre a nomenclatura, a para-normativa,[14] a para-administrativa,[15] para-jurisdicional,[16] a fiscalizadora,[17] a provocativa,[18] a participativa,[19] a defensiva[20] (haberliana) e tantas outras mais que venham a ser caracterizadas na lei ou na doutrina juspublicista contemporâneas, como, por exemplo, destacadamente assoma no Brasil a importante função consultiva vinculadora da advocacia pública,[21] bem como, no Direito Comparado, outras destacadas funções como a de jurisdição constitucional (exercida por cortes constitucionais independentes) ou de regulação monetária (a cargo de bancos centrais independentes)”[22].(grifos do autor).


O Tribunal de Contas não possui somente atividade judicante, pois exerce outras funções na estrutura de funcionamento do Estado. À função jurisdicional do órgão, pode-se acrescer a quase administrativa, a de auxiliar do Legislativo e a de ombudsman, ou seja, se trata de um órgão de matriz constitucional policêntrico.


A função quase administrativa se caracteriza pelo papel exercido pelo Tribunal em atividades que, para configurarem um ato completo, passam pela instância do Tribunal. Ocorre quando o Tribunal atua na condição de Administração.


“Um exemplo dessa função ocorre é a apreciação, para fins de registro, da legalidade dos atos de admissão de pessoal e das concessões de aposentadorias, reformas e pensões. Nessa função, o Tribunal não julga a admissão ou demissão, mas concede ou nega registro a esses atos administrativos”[23].


A atividade de auxiliar do Legislativo se caracteriza pelas funções que são exercidas pelo Tribunal de Contas por demanda do Poder Legislativo, em co-ordenação de poderes federativos, que poderão servir de subsídio (embora não esteja vinculado somente a este aspecto) a uma decisão legislativa final. Exemplo da função de auxiliar do Legislativo realizado pelo Tribunal de Contas são as solicitações de auditorias das Comissões Parlamentares ou da mesa diretora do Congresso Nacional.


A função de ombudsman é uma forma de controle social, na esfera do Tribunal de Contas e ocorre quando o órgão recebe representações de cidadãos que relatam irregularidades na Gestão da coisa Pública e o Tribunal determina as medidas cabíveis, aproximando os poderes públicos constituídos do cidadão concreto. É mister afirmar que o direito brasileiro não contempla a figura jurídica personalizada do ombudsman. Estas funções estão pulverizadas e dispersas em competências constitucionais e legais. Frise-se que, no exercício fiscalizatório da função de ombudsman, a Instituição do Tribunal de Contas não substitua com sua própria ação a da gestão pública. 


Em uma leitura conforme a Constituição, o Tribunal de Contas integra a estrutura do Poder Judiciário, nos termos dos arts. 71, II, 73, 92 e 96 da Constituição da República. O art. 71, II, estabelece a competência de julgar do Tribunal. O dispositivo previsto no art. 73 confere ao Tribunal de Contas da União as mesmas competências que o art. 96 estabelece privativamente para os tribunais judiciários e o art. 92, §§ 1º e 2º abrange o Tribunal de Contas da União como órgão do Poder Judiciário.


O que se pretende nestas breves linhas é demonstrar a exeqüibilidade de uma argumentação que afirma que os Tribunais de Contas são integrantes do Poder Judiciário no sentido de que o exercício da competência para julgamento de contas de gestores públicos é exclusivo do órgão de contas, que a função auxiliar é exercida de forma compartilhada e associada com o Legislativo e que atividade quase administrativa se configura quando o Tribunal de Contas atua com atribuição Executiva.


Portanto, os Tribunais de Contas não são um órgão de assessoramento do Legislativo e tampouco integram a estrutura do Estado para servir ao interesse de determinados grupos ou indivíduos, como pode parecer. Para admitir e nomear um agente ao Tribunal de Contas, em um horizonte do Estado Democrático de Direito, é necessário modificar os critérios de escolha dos membros dos órgãos de contas. A regra do concurso público pode ser o modo de seleção e nomeação para o Tribunal de Contas, pois o concurso reduz a possibilidade de interferência sob a função do agente nomeado, pois este desempenha a atividade com critério técnico. Saliente-se que na estrutura do Estado brasileiro, compete ao Tribunal de Contas fiscalizar os atos de admissão e nomeação no serviço público.


Não é razoável que o governante, ordenador de despesa, em atividade executiva ou legislativa escolha o conselheiro ou o ministro que fará o parecer sobre a conta de responsabilidade do ordenador de despesa(!) ou designar o conselheiro ou ministro que deve intervir no julgamento de determinada conta. Note-se, ainda, que os atos de escolha dos ministros e conselheiros dos Tribunais de Contas pelos chefes do Poder Executivo são discricionários e imotivados[24], contrariando disposição constitucional expressa.


O quadro[25] abaixo apresenta as características do órgão de contas:


5916a 


Feitas estas considerações, far-se-á uma análise do art. 71, II, da Constituição de 1988 que determina (e por força do art. 75 da mesma Carta se estendem as mesmas regras aos Estados e Municípios – princípio da simetria) que compete ao Tribunal de Contas da União:


“Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:


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II – julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público Federal, e as contas daqueles a que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público”[26].


 Um entendimento sobre a atividade jurisdicional do Tribunal de Contas, nos termos do art. 71, II, da Constituição, é imperativo, pois o atual modelo constitucional positivo define expressamente a competência exclusiva dos Tribunais de Contas no que se refere à matéria contenciosa e administrativa visto que o julgamento de regularidade das contas dos gestores públicos e demais responsáveis pela ordenação de despesas é de competência do Tribunal de Contas, o que configuraria uma restrição do monopólio de Poder Judiciário, constante do texto constitucional.


“Nesse quadro, é impossível sustentar que o constituinte agiu displicentemente por ignorância ou descuido. (…). Nota-se, no elenco da competência, o rigor científico na terminologia empregada, acentuando a diferenciação, inclusive da finalidade de cada mister cometido. Para algumas tarefas empregou-se o termo apreciar, em outras fiscalizar, em outras, realizar inspeção e auditoria e apenas em um caso, julgar”[27].


O art. 71, inciso II, da Constituição da República prevê que o julgamento de contas de gestores públicos deve ser realizado pelo Tribunal de Contas. A prestação das contas deve ser realizada por quem utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos, conforme estabelecido no parágrafo único do art. 70 do texto fundamental. Portanto, o Tribunal de Contas é um órgão de matriz constitucional, investido de função jurisdicional, nos limites de sua competência. Note-se que não há a possibilidade de revisão do Poder Judiciário das decisões dos órgãos de contas quanto ao mérito. Admite-se a revisibilidade nas hipóteses do não cumprimento do direito ao devido processo legal ou na existência de manifesta ilegalidade da decisão[28].


Consoante Delmondes, a função judicante do Tribunal de Contas:


tem caráter responsabilizador e consiste na produção de uma decisão final pelo Tribunal de Contas sobre a prestação de contas dos responsáveis por recursos públicos.


Os processos julgados pelo Tribunal são organizados de acordo com o modelo do Judiciário, isto é, existem o direito de defesa, a possibilidade de recurso da decisão e prazos a serem cumpridos[29].


Neste sentido, o exercício de função pública tem caráter objetivo, ou seja, o ato estatal ocorrido em situação de atividade administrativa aduz responsabilidade objetiva do Estado. Desta forma, demonstrada a existência de lesão ao erário público, o ordenador de despesa, gestor público, responderá a demanda nos termos da Lei, sem prejuízo das demais sanções pertinentes, conforme o caso.


A fiscalização seja contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, em âmbito municipal, deve ser exercida numa rede de co-ordenação entre a Câmara Municipal e o Tribunal de Contas, dentre outras instituições e órgãos responsáveis pelo controle da gestão pública de modo a configurar uma vasta fiscalidade e publicidade dos atos e procedimentos da res pública.


3 CONCLUSÃO


No paradigma do Estado Democrático de Direito, qualquer cidadão tem o direito de saber, ou seja, de tomar parte, de argumentar e debater publicamente o exercício da atividade financeira do Estado, pois há uma ampliação latu sensu dos intérpretes do texto constitucional, ou seja, dos atores na arena pública. Os responsáveis pela ordenação de despesas, devem demonstrar os gastos públicos, lastreados nos princípios constitucionais da Gestão Pública.


Pelo aqui exposto, o Tribunal de Contas é um órgão que exerce função jurisdicional a partir de uma leitura dos arts. 71, II, 73, 92 e 96 da Constituição da República. O termo julgar não é empregado gratuitamente no art. 71, II, pois tem um objetivo definido: estabelecer competência jurisdicional para julgamento de contas públicas, nos limites da Constituição. Contudo, se trata de uma argumentação refutável, de pouco assento na maioria dos trabalhos publicados sobre o assunto. Saliente-se, ainda, que os órgãos de contas exercem as funções quase administrativa, auxiliar do Legislativo e ombudsman. A partir da função judicante do Tribunal de Contas, a proposta do texto foi realizar uma reflexão e propor uma interpretação sobre a função constitucional do Tribunal de Contas tendo em vista a superação da tripartição clássica de equilíbrio entre os poderes.


O ordenador de despesa, gestor público responsável financeiro pelo empenho, liquidação e pagamento está sujeito à jurisdição do Tribunal de Contas, conforme se apreende da leitura do texto constitucional. A competência para julgamento de atos e procedimentos de lesão a erário público é da esfera do mencionado Tribunal. Portanto, não se trata de um mero instrumento do Legislativo, mas, atua em co-ordenação com este, dentre outras instituições e órgãos de controle da gestão pública, em uma ótica do exercício da cidadania como aprendizado, de experimentação, mediada pelo uso público da razão dos intérpretes (cidadãos) do texto constitucional, com a participação e controle mútuos dos mais diversos atores da arena pública ampliada: Executivo, Legislativo, Judiciário, Indivíduos, Empresas Privadas, Movimentos Sociais, Organizações Não Governamentais, dentre outros, em redes interconectadas, para realizar a cidadania em uma determinada comunidade sócio-política ordenada. Além disso, no horizonte do Estado Democrático de Direito, o ordenador de despesa, chefe do Poder Executivo ou membro do Legislativo não pode escolher os membros dos Tribunais de Contas posto que a atividade dos órgãos de contas é, dentre outras, julgar as contas dos responsáveis pela gestão pública. Um critério de escolha razoável é a admissão e nomeação do agente através da realização de concurso público.


Doravante, o pluralismo e não o povo tem uma certa centralidade referencial para a Constituição da República, que se faz concreta através de debates e decisões entre os intérpretes sobre alternativas e possibilidades das ordenações de convivência societal em comum.


 


Referências

ANDRADE, Nilton de Aquino. Contabilidade Pública na Gestão Municipal. São Paulo: Atlas, 2003.

ANGÉLICO,João. Contabilidade Pública. São Paulo: Atlas, 1994.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. São Paulo: Saraiva, 2009.

BRITTO, Carlos Ayres. O regime constitucional dos Tribunais de Contas. In: O Novo Tribunal de Contas: órgão protetor dos direitos fundamentais, org. Alfredo José de Sousa et al. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p.175-191.

DELMONDES, Edna. Interação do Tribunal de Contas com o Parlamento. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.

FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Tribunais de Contas no Brasil: jurisdição e competência. Belo Horizonte: Fórum, 2005.

HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: a contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição.  Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo.  O Parlamento e a Sociedade como destinatários do Trabalho dos Tribunais de Contas. In: O Novo Tribunal de Contas: órgão protetor dos direitos fundamentais, org. SOUSA, Alfredo José de et al. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p.33-86.

SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. São Paulo: Malheiros, 2006.

 

Notas:

[1] O termo procedimento(s) deve ser entendido como gênero, do qual o processo é espécie. Para efeitos deste texto a noção de procedimento engloba a de processo.

[2] BRITTO, Carlos Ayres. O regime constitucional dos Tribunais de Contas. In: O Novo Tribunal de Contas: órgão protetor dos direitos fundamentais, org. Alfredo José de Sousa et al. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p.177.

[3] A motivação são as razões fundamentais explicitadas no ato, em virtude das quais o órgão tomou esta ou aquela decisão. A simples fundamentação legal não é motivação. Assim, as decisões têm de ser motivadas. Se não forem motivadas, as decisões são anuláveis.

[4] ANGÉLICO, João. Contabilidade Pública. São Paulo: Atlas, 1994, p. 87.

[5] DELMONDES, Edna. A interação do Tribunal de Contas com o Parlamento. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 28-31.

[6] HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2004. Para Häberle a Constituição é um texto aberto inserida em uma sociedade de intérpretes. Neste diapasão, o sentido da Constituição não é construído somente pelos profissionais do direito, ou de exclusividade de um determinado grupo ou camada social, mas, por toda uma coletividade, que é destinatária do texto constitucional e, logo, sua legítima intérprete. 

[7] BRITTO, Carlos Ayres. O regime constitucional dos Tribunais de Contas. In: O Novo Tribunal de Contas: órgão protetor dos direitos fundamentais, org. Alfredo José de Sousa et al. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p.176.

[8] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo.  O Parlamento e a Sociedade como destinatários do Trabalho dos Tribunais de Contas. In: O Novo Tribunal de Contas: órgão protetor dos direitos fundamentais, org. SOUSA, Alfredo José de et al. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 53.

[9]  SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. São Paulo: Malheiros, 2006, p.112.

[10]  Idem, 112.

[11] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo.  O Parlamento e a Sociedade como destinatários do Trabalho dos Tribunais de Contas. In: O Novo Tribunal de Contas: órgão protetor dos direitos fundamentais, org. SOUSA, Alfredo José de et al. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p.85-86.

[12] ANDRADE, Nilton de Aquino. Contabilidade Pública na Gestão Municipal. São Paulo: Atlas, 2003, p. 33.

[13] Idem, p. 55-56.

[14] Exemplo: art. 217, I, CR/88.

[15] Exemplo: art. 177, § 2º, III, CR/88.

[16] Exemplo: art. 217, § 1º, CR/88.

[17] Exemplo: art. 129, II e III, CR/88.

[18] Exemplo: art. 71, XI, CR/88.

[19] Exemplo: art. 74, § 2º, CR/88.

[20] Exemplo: art. 103, I a IX, CR/88.

[21] Prevista nos arts. 131, caput e 132, caput, da Constituição da República que vinculam as autoridades ao teor do parecer ou, no caso da não concordância com o documento técnico-jurídico, motivar juridicamente a discordância. Os exemplos dos tópicos 11 ao 18 são uma adaptação do texto de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, constante das referências deste trabalho.

[22] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo.  O Parlamento e a Sociedade como destinatários do Trabalho dos Tribunais de Contas. In: O Novo Tribunal de Contas: órgão protetor dos direitos fundamentais, org. SOUSA, Alfredo José de et al. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p.54.

[23] DELMONDES, Edna. Interação do Tribunal de Contas com o Parlamento. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 29.

[24]  FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Tribunais de Contas do Brasil: jurisdição e competência. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 680.

[25]  A tabela é uma adaptação de FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Tribunais de Contas do Brasil: jurisdição e competência. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 158.

[26] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. São Paulo: Saraiva, 2009.

[27] FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Tribunais de Contas do Brasil: jurisdição e competência. Belo Horizonte, Fórum, 2005, p.148.

[28] Idem, p.155.

[29] DELMONDES, Edna. Interação do Tribunal de Contas com o Parlamente. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p.30.


Informações Sobre o Autor

Elpídio Paiva Luz Segundo

Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG). Especialista em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG). Especialização em Elaboração, Gestão e Avaliação de Projetos Sociais em Áreas Urbanas no Departamento de Sociologia e Antropologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).Ex-coordenador do Projeto Rondon Minas. Advogado. Professor da Faculdade Independente do Nordeste (BA). Pesquisador do CNPQ.


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