A função social dos contratos públicos no Brasil

Resumo: A doutrina vem estudando a função social dos contratos em geral faz notável tempo, partindo da evolução histórica para normas constitucionais e codificações infraconstitucionais,  especialmente da seara cível. Contudo, este tema apresenta-se não exaurido quando envolve relação contratual com a Administração Pública. Aqui se faz necessário um aprofundamento teórico sobre o impacto da função social naquela relação por persistir aparente desarmonia entre as prerrogativas da Administração e a função em foco, denotando uma disparidade de força econômico-financeira entre as partes avençantes e uma possível desvantagem de contratar sob uma desigualdade nem sempre revestida de interesse público. Neste sentir, o presente estudo objetiva trazer uma breve abordagem histórico-doutrinária sobre a função social e os contratos; tecer considerações sobre essa função e sua possível harmonização aos contratos públicos; discutir sucintamente a natureza jurídica daqueles últimos. A abordagem da pesquisa será bibliográfica, tendo a legislação e a doutrina pátria como principais vetores.

Palavras-chave: Função Social, Contratos, Administração Pública.

Abstract: It has been a remarkable time since the doctrine has been studying the social function of contracts, based on the historical evolution to constitutional and infra encodings, especially the harvest civil. However, this issue presents itself not exhausted when involves contractual relationship with Public Administration. Here it's necessary a theoretical deepen about the impact of social function in that relation by persists an apparent disharmony between the Administration prerogatives and focused function, indicating a disparity in economic and financial power between the parties and a possible disadvantage of contracting under a inequality not always covered by public interest. In this sense, this study aims to bring brief historical and doctrinal approach about social function and contracts; make considerations about this function and their possible harmonization with public contracts; briefly discuss the legal nature of those last ones. The research approach will be bibliographic, having the homeland legislation and doctrine as the main vectors.

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Keywords: Social Function, Contracts, Public Administration.

Sumário: Introdução. 1. A função social dos contratos. 2. O contrato público. 2.1. Conceituação e distinção dos contratos públicos. 2.2. Finalidade e a celeuma das prerrogativas. 3. A função social dos contratos públicos. Considerações finais. Referências.

INTRODUÇÃO

O uso do contrato não é um privilégio exclusivo das recentes sociedades, visto que sua construção e avanço no seio social encontraram raízes na antiga civilização romana. Os romanos há muito tempo já se beneficiavam desse instrumento, por o considerarem instrumento não arbitrário de circulação de riquezas, visto que: delimitava a negociação às partes envolvidas; delineava os deveres e obrigações de cada flanco contratual; como também definia meios, para aquele que se encontrou prejudicado, de perseguir a efetiva contraprestação, ainda que indiretamente.

Nas palavras de Baldon (2010, p.3), “para os romanos, o contrato é a convenção tornada obrigatória mediante a utilização da forma que a acompanha, gerando obrigações recíprocas aos contratantes, um vinculum juris entre as partes”. Interessantemente, diversos tipos de contratos, como hoje conhecidos e largamente utilizados, já eram previstos e praticados pelos romanos.

A evolução histórica, embora não seja o cerne deste estudo, deixa bem claro quanto o contrato permaneceu importante e ainda o faz no seio das sociedades; é uma expressão concreta das relações econômicas, da livre iniciativa e, sem dúvida, uma verdadeira ferramenta de desenvolvimento social. Todavia, assim como a propriedade, a intervenção de quem detinha poder econômico e, por consequência, influência – leia-se força – dentro de uma coletividade, promovia o contrato, em diversos momentos da história, como um possível e meio de dominação, quando abusos e excessos ocorriam corriqueiramente em terreno fértil.

A teorização do contrato, outrossim, com o passar do tempo, elevou-o a status de lei entre as partes (lex inter partes), consubstanciando-o como uma verdadeira expressão de não intervenção de terceiros, incluindo o Estado, quando também acrescentou maior relevância à autonomia da vontade e à obrigatoriedade de seu cumprimento (pacta sunt servanda), independentemente de quaisquer consequências econômicas e sociais resultantes para as partes da relação contratual, chegando, no decorrer do século XIX, a imprimir-se um verdadeiro absolutismo contratual.

Ferreira e Guérios (2011, p.1) trazem em seu interessante artigo intitulado "Função social e equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, privados e administrativos”, v.g., a seguinte situação:  não era, e nem é, incomum no curso de uma prestação contratual o cenário fático-econômico ver-se alterado, ou seja, passível de gerarem-se “situações injustas”; assim, mesmo transparecendo evidentes dificuldades para o cumprimento de seu objeto, não se afastava, nem mesmo diminuía, o dever contratual de adimplemento pelas partes. 

Percebeu-se, portanto, no decorrer dos passos contínuos históricos, que a relação protegida pelo contrato não estava respeitando direitos internos e vislumbrou-se, logo, que também seria passível de afrontar os externos, ou seja, alheios ao negócio jurídico, terceiros fora da relação contratual posta.

Entretanto, com o processo de constitucionalização dos Estados e a efetiva mudança de atuação negativa para positivo-fomentativa, notadamente com as Constituições do século XX e com o abandono do liberalismo, passou aquele a interferir nas relações privadas com a finalidade do bem comum, quando as noções sobre o direito de propriedade e de contratar começaram gradualmente a abarcar feições sociais.

Para Gagliano e Filho (2008, p.45), o contrato sempre acompanhou as mudanças de matizes da propriedade, visto que essa e aquele foram e são os principais meios de circulação de riquezas e desenvolvimento. Assim, a partir do momento em que se passou a exigir que a propriedade cumprisse uma função social, esse fenômeno seria percebido e incorporado ao contrato.

Na mesma senda, é importante destacar que, de acordo com Venosa (2007, p.349), o interesse social na vontade privada negocial não foi apenas oriundo da intervenção do Estado nos interesses privados, mas das “modificações de conceitos históricos em torno da propriedade e também de infindáveis interesses interpessoais que devem ser sopesados”.

No Brasil houve outras legislações regulamentando os contratos privados, a exemplo do Código Civil de 1916, que para Reale (2003, p.1) dava maior relevância aos interesses particulares. Porém, os contratos começaram a receber contornos sociais a partir da Carta Política de 1988, tendo forte influência na continuidade desse processo o Código de Defesa do Consumidor, em 1990, até a efetiva positivação no Código Civil de 2002, que expressamente definiu a função social, em seu artigo 421, como “um dever anexo ou colateral, de força cogente, e que derivou de um verdadeiro esforço socializante”, de acordo com Gagliano e Filho (2008, p.47).

Noutro turno, diferente da legislação infraconstitucional de seara cível que fundamentou a função social, os contratos públicos foram abraçados sobretudo pela Lei 8.666 de 1993, de seara público-administrava. Lei esta que se posiciona após o mais relevante marco pela busca da função social no Brasil e antes da consolidação no código civilista vigente.

Há uma discussão, que será melhor aprofundada noutro momento desse texto, sobre a natureza jurídica do contrato público, quanto a ser um contrato propriamente dito, envolto pela teoria geral, ou um ato unilateral perante um regime administrativo. Adianta-se, entretanto, que os contratos públicos encampam certas vantagens para a Administração Pública, essas introduzidas através da própria teorização e constitucionalização do Estado poder / dever, especialmente no tocante à defesa da supremacia do interesse público e à subordinação aos princípios administrativos. Portanto, diferente dos contratos privados, os públicos têm potencial capacidade de desequilibrar uma relação contratual prima facie.

Assim, partindo da hipótese de que existe aparente desequilíbrio que pode ferir a função social dos contratos, esse texto, através de uma análise da legislação, jurisprudência e especialmente da doutrina, buscará confrontar as prerrogativas, da Administração Pública, relacionadas ao contrato público com aquela função, concluindo, ao final, se existe harmonização ou não.

1. A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS

Para grande parte da doutrina, a função social surgiu para limitar, e não excluir, os princípios clássicos do direito contratual de forma a reinterpretá-los e conduzi-los em direção ao interesse da coletividade e ao bem comum.

“A função social não coíbe a liberdade de contratar, como induz a dicção da norma, mas legitima a liberdade contratual. A liberdade de contratar é plena, pois não existem restrições ao ato de se relacionar. Porém, o ordenamento jurídico deve submeter a composição do conteúdo do contrato a um controle de merecimento, tendo em vista as finalidades eleitas pelos valores que estruturam a ordem constitucional” (ROSENVALD, 2010, p.480).

A partir do momento que não mais se aceitou que os efeitos de uma relação contratual permaneceriam adstritos aos contratantes, em outras palavras, poderiam transpassar e repercutir perante a sociedade, viu-se, então, a necessidade de um maior controle, não só da atividade das partes, mas do próprio conteúdo do contrato.

Percebeu-se, portanto, que os efeitos externos ao contrato poderiam afrontar diretamente os interesses dos consumidores, dos trabalhadores, do meio ambiente, dentre outras repercussões. Para Rosenvald (Op. Cit. p.481) “é possível que os contratos satisfaçam aos desígnios particulares dos contratantes, mas ofendam interesses metaindividuais – coletivos ou difusos”.

“De fato, os princípios vetores de uma ordem econômica sustentada e equilibrada, em que haja respeito ao direito do consumidor, ao meio ambiente e, como já observamos, à própria função social da propriedade, todos eles, reunidos e interligados, dão sustentação constitucional à função social do contrato. […] A liberdade negocial deverá encontrar justo limite no interesse social e nos valores superiores da dignificação da pessoa humana. Qualquer avanço para além dessa fronteira poderá caracterizar abuso, judicialmente atacável. Nesse ponto sim, andou bem o legislador, ao impor limite à liberdade de contratar, em prol do interesse social.” (GAGLIANO; FILHO, 2008, p.53 e 54).

Parte majoritária da doutrina expõe uma bipartição da função social, que seria interna e externa ao contrato. Assim, existe uma atuação para assegurar o equilíbrio entre as partes, observando diretamente as garantias e direitos individuais – interna; e outra com reflexo perante a comunidade – externa.

Na relação interna, prevalece o principio da boa-fé como vetor ético para ajustamento do comportamento e conduta dos contratantes, no sentido de lealdade, honestidade e cooperação, transformando toda relação contratual em guardiã necessária dos direitos fundamentais. Para Rosenvald (2010, p.483):

“A boa-fé é multifuncional. […] Desempenha papel de paradigma interpretativo na teoria dos negócios jurídicos (art. 113); assume caráter de controle, impedindo abuso do direito subjetivo, qualificando-o como ato ilícito (art. 187); finalmente, desempenha atribuição integrativa, pois dela emanam deveres que serão catalogados pela reiteração de precedentes jurisprudenciais (art. 422). Todos os artigos citados são do Código Civil de 2002” (grifo nosso).

Na relação externa, prevalece a função social como abaulamento da liberdade contratual e os reflexos sobre a sociedade.

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“É evidente que a função social do contrato se autonomiza pela sua verticalidade, pois concerne às relações entre as partes e a sociedade. Ela não se compraz imediatamente com a diretriz da eticidade, mas com o paradigma da socialidade. A boa-fé é endógena, a função social do contrato é exógena. Os dois princípios atuam em caráter de complementaridade. Em comum, ambos são emanações do princípio da solidariedade nas relações privadas como limites positivos ao absolutismo da autonomia privada. Enquanto a boa-fé é uma cláusula geral que permite o influxo do solidarismo Constitucional no perfil interno das relações patrimoniais, a função social captura o momento cooperativo na interação dos contraentes com o corpo social que lhes rodeia” (ROSENVALD, 2007, p.12).

É interessante notar que a redação do artigo 421 do Código Civil de 2002, versante sobre a função social do contrato, não é uma mera regra, pois a esta codificação abstratamente não se limita. Para Gagliano e Filho (2008, p.48) não há outro caminho senão a entender como “um princípio jurídico de conteúdo indeterminado, que se compreende na medida em que lhe reconhecemos o precípuo efeito de impor limites de contratar, em prol do bem comum”.

Ao Código Civil não se limita, a função social, por possuir estreita ligação com a evolução da propriedade, de maneira que não persistem dúvidas que a Constituição Federal, via interpretação, em seu artigo 5º, incisos XXII e XXIII, abarcou a função social do contrato. Ademais, combinando o artigo 170, a Constituição também inseriu a função social entre os princípios da atividade econômica. Entende-se, portanto, que o contrato é um representante da livre inciativa e por estes motivos, além doutros, não deve se afastar da justiça social. Neste mesmo toar explana Reale (2003, p.1):

“Um dos motivos determinantes desse mandamento resulta da Constituição de 1988, a qual, nos incisos XXII e XXIII do Art. 5º, salvaguarda o direito de propriedade que “atenderá a sua função social”. Ora, a realização da função social da propriedade somente se dará se igual princípio for estendido aos contratos, cuja conclusão e exercício não interessa somente às partes contratantes, mas a toda a coletividade.”

Para Pereira (2011, p.13), a função social veio a complementar o rol de princípios clássicos do contrato, com a finalidade não apenas de se justapor aos demais, mas “desafiá-los quando houver de prevalecer algum interesse social que ultrapasse a esfera de uma relação contratual”. Para este autor, que participou ativamente do anteprojeto do Código Civil de 2002:

“A redação, do Art. 421, que vingou deve ser interpretada de forma a se manter o princípio de que a liberdade de contratar é exercida em razão da autonomia da vontade que a lei outorga às pessoas. O contrato ainda existe para que as pessoas interajam com a finalidade de satisfazerem os seus interesses. A função social do contrato serve para limitar a autonomia da vontade quando tal autonomia esteja em confronto com o interesse social e este deva prevalecer, ainda que essa limitação possa atingir a própria liberdade de não contratar, como ocorre nas hipóteses de contrato obrigatório” (Op. Cit., p.12).

Embora não se evidenciem, in momentum, questionamentos calorosos sobre a aplicação da função social nos contratos de direito privado, a doutrina diverge, mesmo que indiretamente, sobre os limites de aderência desta função aos contratos públicos. Porém, tendentemente aponta que, apesar das diferentes finalidades e teorizações, os contratos públicos devem sujeitar-se à função social – o que significa ostentarem o próprio interesse público, tal como a Administração Pública o deve defender -, não fazendo sentido se de forma inversa prevalecer.

2. O CONTRATO PÚBLICO

No panorama de um Estado Democrático de Direito, provedor do bem comum, a Administração Pública passou a celebrar contratos com a finalidade não apenas de fomentar a circulação de riquezas, mas imperiosamente desenvolver parte importante da sua competência: levar obras e serviços públicos aos administrados, dentre outras relevantes atribuições. 

Percebeu-se, portanto, a necessidade de proteger interesses especiais em jogo a partir do momento que o Estado passou a relacionar-se contratualmente com particulares – seja pelo cumprimento da finalidade pública primária; seja a observância dos princípios que regem sua atuação; seja a defesa máxima dos interesses coletivos, difusos e individuais homogêneos, inclusive.

O interesse do particular passou, então, a ser mitigado pela supremacia do interesse público primário de forma que esta relação contratual, prima facie, esquivou-se de proporcionar igualdade entre as partes pactuantes, o que em regra desvirtua a figura de um contrato comum, mas aparentemente tipifica o contrato regido pelo Direito Público.

“Embora típica do Direito Privado, a instituição do contrato é utilizada pela Administração Pública na sua pureza originária (contratos privados realizados pela Administração) ou com as adaptações necessárias aos negócios públicos (contratos administrativos propriamente ditos). Daí por que a teoria geral dos contratos é a mesma tanto para contratos privados (civis ou comerciais) como para os contratos públicos […] Todavia, os contratos públicos são regidos por normas e princípios próprios do Direito Público, atuando o Direito Privado apenas supletivamente, jamais substituindo ou derrogando as regras privativas da Administração” (MEIRELLES, 1998, p.188).

Por outro lado, a própria existência de um contrato público tem sido objeto de discussão na doutrina, gerando fundadas dúvidas em certos autores que tentam encontrar respostas para os seguintes questionamentos, v.g.:

“[…] Como se pode chamar de contrato a um acordo cujas estipulações não possuem, para uma das partes, força obrigatória integral, em nome de uma nebulosa noção de “interesse público”, e, mais que isso, sob o mesmo fundamento poderem ser alteradas unilateralmente por esta parte?

Não seria antijurídica essa ideia, ainda mais considerando-se que uma das partes pode impor à outra penalidades (até mesmo rescisão contratual) sem recorrer ao judiciário, instruções e ordens de serviços, acréscimos contratuais, controle da execução contratual?” (ARAÚJO, 2009, p.633).

Diante destas controvérsias sobre os contratos públicos e os princípios contratuais  clássicos foram desenvolvidas pelo menos três correntes para tentar explicar a posição diferenciada daqueles primeiros no ordenamento jurídico: a Teoria Negativa, a do Contrato Administrativo e a Mista ou Intermediária, segundo Tanaka (2007, p.16).

A primeira afirma que os contratos públicos não devem observar o principio da igualdade entre as partes, da autonomia da vontade e da força obrigatória das convenções, em prol da supremacia do interesse público perante o particular, equiparando-se diretamente ao  ato administrativo unilateral. Talvez por isso, os seguidores dessa teoria considerem que esses contratos, no sentido comum da palavra, não existem, pois neles estariam ausentes o objeto comerciável e os princípios imediatamente expostos, como elucida Tanaka (Op. cit., p. 17-35).

“Quanto ao princípio da força obrigatória das convenções (pacta sunt servanda), seria também desrespeitado no contrato administrativo, em decorrência da imutabilidade das cláusulas regulamentares, que permite à administração fazer alterações, unilaterais do contrato. A autoridade pública por estar vinculada ao princípio da indisponibilidade do interesse público não poderia sujeitar-se a cláusulas inalteráveis como ocorre no direito privado” (DI PIETRO, 2008, p.238).

No mesmo sentido, entende Mello (2007, p.609) que o contrato puro e simples jamais poderia ser a via idônea para propiciar ao administrado senhoria sobre a disponibilidade de serviço ou utilização de bem público, pois não se poderia envolver em uma relação contratual um bem ou serviço fora do comércio, ou seja, não passível de ser um objeto de avença.

A segunda teoria afirma que não existe contrato de direito privado com a Administração Pública, considerando todos públicos, posto que qualquer acordo que aquela participe há sempre de sofrer a interferência do regime jurídico-administrativo[1]. A doutrina tende a defender que nesta teoria existe um afastamento integral da função social e que basicamente todo contrato seria de adesão, sem possibilidade de discutir qualquer cláusula, por via da supremacia do interesse público.

Por fim, a terceira teoria, adotada pela maioria dos administrativistas brasileiros, admite a existência de contratos públicos, com características próprias que os distinguem dos demais contratos, mas pode a Administração Pública celebrar com o particular avenças submetendo-se às regras de direito privado.

2.1. Conceituação e distinção dos contratos públicos

Antes da apresentação de qualquer conceito propriamente, deve-se levar em consideração que os termos “contratos administrativos” e “contratos da administração”, no mesmo sentido ou aproximado de contratos públicos, são largamente utilizados pela doutrina, variando de autor para autor.

Celso Antônio Bandeira de Mello, reconhecido nome entre os administrativistas brasileiros clássicos, conceitua o contrato administrativo como

“[…] um tipo de avença entre a Administração e terceiros na qual, por força de lei, de cláusulas pactuadas ou do tipo de objeto, a permanência do vínculo e as condições preestabelecidas assujeitam-se a cambiáveis imposições de interesse público, ressalvados os interesses patrimoniais do contratante privado” (MELLO, 2008, p.614).

Na mesma senda, Meirelles (1998, p.188) define-o como “o ajuste que a Administração Pública, agindo nessa qualidade, firma com particular ou outra entidade administrativa para a consecução de objetivos de interesse público, nas condições estabelecidas pela própria Administração”.

Entretanto, é relevante destacar que, mormente as interessantes conceituações que colocam todos os contratos celebrados pela Administração dentro de um escopo de contrato público, pois previstos em sua maioria pela mesma legislação, a doutrina majoritariamente costuma distingui-los.

“A Administração pode realizar contratos sob normas predominantes do Direito Privado – e frequentemente os realiza – em posição de igualdade com o particular contratante, como pode fazê-lo com supremacia do Poder Público. Em ambas as hipóteses haverá interesse e finalidade pública como pressupostos do contrato, mas, no primeiro caso, o ajuste será de natureza semipública (contrato administrativo atípico, como já o conceituou o extinto TFR), e somente no segundo haverá contrato administrativo típico. Daí a necessária distinção entre contrato semipúblico da Administração e contrato administrativo propriamente dito, como já o fez a lei (art. 62, § 3º, I, Lei 8.666/93)” (Op. Cit., p.190).

A classificação mais adotada pela doutrina é a que subdivide os contratos públicos (ou contratos administrativos) em “contratos administrativos propriamente ditos” (típicos) e “contratos da administração” (atípicos). No entanto, para Filho (2010, p.160), que oferece uma classificação bem peculiar, “Contrato da Administração é gênero, visando alcançar todos os ajustes bilaterais firmados pela Administração, e tem como espécies contrato privado da administração e contrato administrativo”.  Segundo esse autor

“são contratos de direito privado da administração, por exemplo, a compra e venda, a doação, a permuta e outros do gênero […] contratos administrativos são típicos da Administração, sofrem incidência de normas especiais de Direito Público, só se lhes aplicando supletivamente as normas de Direito Privado, como está expresso na Lei. Em última análise, é o regime jurídico que marca a diferença entre os contratos administrativos e os contratos privados da administração” (Op. Cit., p.160).

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2.2. Finalidade e a celeuma das prerrogativas

A criação dos contratos administrativos, para Mello (2007, p.609), veio reconhecer os poderes da Administração Pública através da “prática de atos unilaterais, inerentes às competências públicas”, não considerando tais poderes meras prerrogativas contratuais. Observa, ainda, esse autor, que por essa razão é que “prescindem de cláusulas contratuais que os mencionem (poderes, grifo nosso) e de normas legais sobre contratos efetuados pela Administração”.

Contudo, alerta Meirelles (1998, p.131) que o “conceito de ato administrativo é fundamentalmente o mesmo do ato jurídico, do qual se diferencia como uma categoria informada pela finalidade pública”, de forma que não se confunde com contrato, pois o ato administrativo manifesta uma vontade unilateral da Administração, v.g., de impor obrigações aos administrados ou a si mesma, enquanto contrato propriamente é ato bilateral, no sentido de ter ao menos duas partes com objetivos diversos. Portanto, não se confunde a teoria do ato administrativo com a do contrato administrativo.

Pode-se, portanto, inferir que existe uma diferença semântica entre contrato no âmbito privado e no administrativo – no tocante ao último, o contrato administrativo propriamente dito -, e que talvez não seja apropriada a utilização da nomenclatura “contrato” para esses atos da Administração que, embora importem uma pactuação, transpiram unilateralidade em atendimento à supremacia do interesse público perante o particular. Diferente são os contratos da administração (atípicos), que iminentemente regidos pelo direito privado, a priori, comportam-se como  bilaterais.

Assim, são a necessidade de processo licitatório, salvo quando inexigível ou dispensável por lei, a finalidade e o interesse público que distinguem os contratos de direito privado dos públicos. Entretanto, Meirelles (1998, p.190), sustenta que “é a participação da Administração, derrogando normas de Direito Privado e agindo publicae utilitatis causa, sob a égide do Direito Público, que tipifica o contrato administrativo”. Ademais, outra característica relevante aos contratos públicos é a existência de prerrogativas, ou poderes, conhecidas como cláusulas exorbitantes, implícitas ou não ao contrato administrativo (típico e atípico), que são, pois,

“as que excedem do direito comum para consignar uma vantagem ou uma restrição à Administração ou ao contratado. A cláusula exorbitante não seria lícita num contrato privado, porque desigualaria as partes na execução do avençado, mas absolutamente válida no contrato administrativo, desde que decorrente de lei ou dos princípios que regem a atividade administrativa, porque visa estabelecer uma prerrogativa em favor de uma das partes para o perfeito atendimento do interesse público, que se sobrepõe sempre aos interesses particulares” (Op. Cit., p.191).

Organizando as ideias: no contrato administrativo, por ser uma direta expressão da própria competência do Estado, apenas delegando ao particular sua execução mediante contraprestação, cabe a utilização das clausulas exorbitantes como medida, talvez saneadora, para melhor e eficientemente alcançar a finalidade pública. Por outro lado, o contrato da administração é utilizado para situações de menor complexidade, onde a Administração celebra com o particular contratos regidos pelo direito privado, como regra, em pé de igualdade. Neste, em tese, não seriam cabíveis as mesmas vantagens.

Porém, a legislação que regulamenta os contratos administrativos, e que também o faz para os “da administração” trouxe em seu artigo 62, § 3º, inciso I, Lei 8.666/93, uma extensão das principais prerrogativas da Administração, no que couber, a estes últimos, incluindo: a cláusula Exceptio Non Adimpleti Contractus; possibilidade de modificação e rescisão unilateral do contrato; além de fiscalização e possibilidade de sanções; desfazendo, sem dúvidas, a necessária paridade de armas dos contratos submetidos ao direito privado. Repousando aqui o principal ponto de discussão sobre a aplicação da função social aos contratos públicos.

Observa-se, portanto, que a legislação específica, embora tenha definido que certos contratos sejam regidos predominantemente pelo direito privado, imputou prerrogativas aos contratos da administração (atípicos), no que couber, sem determinar o momento e em que medida aquelas poderiam ser invocadas em favor da Administração Pública. Aparenta revestir-se tal situação de um verdadeiro afrontamento ao princípio da segurança jurídica.

3. A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS PÚBLICOS

Salta aos olhos o entendimento de que todo contrato que atenda a função social está preservando o interesse da coletividade. Porém, o fato da Administração Pública valer-se das clausulas exorbitantes ou meios que desequilibrem a relação contratual, em nome da supremacia do interesse público, não necessariamente significa dizer que, por fundamento nos princípios administrativos, estará atendendo os requisitos daquela função.

A função em foco busca aproximar as partes, equilibrar e encaminhar o contrato para uma resolução adequada, sem abuso de direito, observando a boa-fé interna à relação – como todos os princípios contratuais – e, ainda, afastar os contraentes e a comunidade de danos evitáveis.

A partir de então, nasce a duvida: se o Poder Público, colocando-se em posição desigual e possuindo prerrogativas garantidas pela própria teorização do Estado, estaria  observando a teoria social do contrato.

Todavia, é interessante entender precipuamente que não é uma tarefa simples fazer distinções semânticas entre o interesse social do contrato e o interesse público defendido pela Administração Pública, ambos repousam em sentido muito aproximado, e, portanto, indistintamente devem ser preservados pela atuação daquela, visando maior segurança e equilíbrio nas relações contratuais.

Se se observa o termo “interesse social”, o qual surge diretamente dos anseios da sociedade, essa como principal destinatária da coisa pública, associativamente deve se falar em “interesse público”. Neste sentido, então, não poderia a Administração Pública cumprir sua finalidade atendendo um interesse e maculando outro, ou vice versa, até porque a ela não pertence o interesse público primário.

No entanto, há de se fazer ponderações quando se tratarem de serviços, bens e obras públicas necessárias ao bem comum da sociedade, de forma que o Estado não pode esquivar-se de cumpri-las, por força normativa.

Dada importância à atuação da Administração Pública no Estado Democrático de Direito e a relevante tarefa de prover o bem comum, para fazer valer a designação de Estado Social, aquela não poderia ficar na dependência única e exclusiva de seus órgãos e agentes para cumprir sua finalidade precípua, visto suas limitações estruturais e econômico-financeiras. Importa pontuar-se, inclusive, a prevalência de modelos gerenciais[2] dos Estados modernos.

Outrossim, atender um quantitativo crescente de administrados sob a égide de uma Constituição defensora do bem estar social implica em buscar terceiros, neste caso o próprio particular, para executar serviços ou obras de competência do Estado. Daí a finalidade da licitação e dos contratos públicos.

Dessa forma, submeter-se a igual posicionamento na relação contratual poderia não ser a melhor solução para garantir eficiência no desenvolvimento dos serviços e obras públicas, sem correr riscos de atrasos ou impropriedades, ou seja, acarretando possíveis danos à sociedade.

Portanto, extrai-se a necessidade de o Estado possuir regras mais vantajosas sim, aproximando o próprio contrato a um ato administrativo, com força de unilateralidade. Assim, deste ponto de vista, não se percebe destoante compactuar com a terceira teoria, exposta anteriormente, e aceitar a existência de contratos administrativos, com exercício de clausulas especiais.

Contudo, aceitando a posição vantajosa da Administração Pública em face do particular e o uso das prerrogativas, como poderes especiais, para melhor desenvolver sua competência, tal como o ordenamento jurídico instituiu os contratos administrativos, não significa aceitar que aquela aja exorbitando a razoabilidade e a proporcionalidade.

Para os contratos administrativos porta-se rigoroso defender que os mesmos ferem a função social de logo, dado o desequilíbrio, em regra necessário às relações contratuais. Todavia, para esses contratos a compatibilização com a função social deve ser auferida na própria atuação do Poder Público, que obrigatoriamente deve agir segundo a lei e sempre observar as garantias, o razoável e o proporcional nas avenças com os particulares.

Tanto é verdade, que a própria legislação vem sofrendo leves alterações para aproximar, em certa medida, os contratos administrativos da função social por via oblíqua, mas com impacto direto, a exemplo da Lei 12.349 de 2010 que deu nova redação ao art. 3º da Lei 8.666 de 1993, acrescentando uma nova finalidade ao processo licitatório e consequentemente àqueles contratos. Essa finalidade traz efetivamente um caminho, não inédito em relação ao ordenamento jurídico pátrio, para o contrato público avançar em direção à proteção de direitos difusos, promovendo o desenvolvimento nacional sustentável. Não parece haver contra-argumentação que ao promover o desenvolvimento sustentável em comento, com destaque à proteção do meio ambiente, os contratos administrativos aproximar-se-ão da função social.

Por outro lado, reconhece-se a existência de contratos celebrados pela Administração Pública regidos pelo direito privado, comumente utilizados para constituir avenças de caráter mais simplificado, v.g., como a compra e venda, a doação e a permuta, segundo Filho (2010, p.160), onde, em tese, tornam-se insustentáveis as prerrogativas da Administração apenas com o fundamento da supremacia do interesse público perante o privado.

Valendo-se da teoria negativa, todos os objetos aqui encontram-se dentro do comércio e não constituem serviços ou obras públicas em caráter de continuidade em regra, ou seja, protegidos pelo homônimo principio. Para estes contratos, qualquer desequilíbrio seria uma afronta à função social. Contudo, a atual legislação buscou dar poderes à Administração Pública mesmo para esses contratos (artigo 62, § 3º, inciso I, da Lei 8.666/93) e criou uma verdadeira confusão ao permitir, no que couber, a aplicação das cláusulas exorbitantes. Uma clara mácula à segurança jurídica na medida em que a legislação não define o limite de aplicação dessas prerrogativas perante os contratos da administração regidos pelo direito privado, em tese caracterizados pelo equilíbrio e bilaterais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Observa-se, portanto, que o estudo da função social dos contratos públicos porta-se como uma matéria de grande abertura para discussões doutrinárias, porém de exigente cautela nos discursos. Não se configura simples confrontar toda uma teorização da administração do Estado – e os seus princípios norteadores – através de uma perspectiva vantajosa na atuação da Administração Pública em contraponto a um princípio de maior profundidade na esfera privada sem correr o risco de uma presunção de afrontamento. Todavia, não deveria ser objeto de discussão que a função social do contrato deva, como demonstrado no decorrer deste estudo, ter uma maior influência na esfera pública.

Na atual conjectura, onde para celebrar-se um contrato que atenda uma finalidade iminentemente pública e de interesse público, primário ou secundário, não se mostra mais justificável, após todo processo licitatório – mesmo quando inexigível ou dispensável por lei -, de planejamento, de previsão orçamentária e empenho, a Administração Pública meramente sustar sua contraprestação e exigir que o particular suporte sozinho por um determinado prazo a execução do contrato.

Mesmo que recaia sobre o particular a responsabilidade de não comprometer um serviço ou obra pública, tocando-se neste ponto a submissão ao principio da continuidade, não há como retirar da Administração Pública – titular do serviço, bem ou obra -, salvo em situações excepcionais, sua própria culpa quando escusa-se de cumprir sua prestação sem uma cabal fundamentação, ou seja, sem invocar a qualquer sombra o interesse público.

A discussão não deve se prender ao fato do Estado reparar ou não possíveis danos que o particular venha a sofrer, ou vice-versa, mas ao alinhamento destes contratos públicos à função social na medida em que se busca uma paridade de forças e um equilíbrio contratual, preservando para a Administração prerrogativas dentro de necessidades mais específicas, quando de fato o uso de cláusulas exorbitantes seja necessário, observando o real interesse público.

A título de sugestão, data vênia, talvez seja interessante uma renovação na legislação pertinente aos contratos públicos, de forma que o legislador possa delinear melhor até onde alcançariam as vantagens da Administração Pública. Por conseguinte, mesmo sendo cediço que o gênero contrato público subdivide-se – considerando típico o “administrativo” e atípico o “da administração”, segundo a doutrina -, melhor seria se a respectiva legislação debruçasse-se sobre cada tipo, dando-lhe contornos definidos e com olhar sempre a atender a função social na medida das particularidades.

Assim, para os contratos administrativos celebrados entre entidades, políticas e  administrativas, a aplicação de cláusulas exorbitantes, em toda sua abrangência, mostra-se amplamente salutar e pacífica, por estarem estritamente os contratantes na esfera pública, direta e indireta, e possuírem  autonomia gerencial, administrativa e financeira. Por outro lado, para os contratos celebrados entre a Administração e o particular, deve-se primeiro observar se o objeto é um serviço ou obra pública que se submeta aos princípios administrativos, sendo obrigatório para as empresas concessionárias, permissionárias e autorizatárias de atividades públicas. Por último, se o contrato for "da administração", submetendo-se às regras de direito privado, para dirimir a insegurança jurídica deste ponto, o artigo 62, § 3º, I, da Lei 8.666 de 1993 poderia ser revogado ou reformulado para determinar até que ponto a Administração Pública poderia valer-se das prerrogativas, buscando, mais uma vez, em sentido amplo, a função social.

 

Referências
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Notas:
 
[1] […] a expressão regime jurídico administrativo é reservada tão-somente para abranger o conjunto de traços, de conotações que tipificam o Direito Administrativo, colocando a Administração Pública numa posição privilegiada, vertical, na relação jurídico-administrativa. Basicamente pode-se dizer que o regime administrativo resume-se a duas palavras apenas: prerrogativas e sujeições (DI PIETRO, 2006, p.64).

[2] A Administração Pública Gerencial constitui, de certa forma, um rompimento com o sistema burocrático tradicional, sem, no entanto, negá-lo in totum, uma vez que esse novo modelo tem muitos de seus princípios fundamentais derivados do anterior, tais como a admissão segundo rígidos critérios de mérito, avaliação de desempenho, sistema de carreiras, profissionalismo e impessoalidade. As semelhanças, porém, não vão muito além disso. […] Com efeito, enquanto a administração tradicional, burocrática, é mais voltada para si mesma, identificando, com frequência, o interesse público com os interesses do próprio Estado e direcionando os recursos públicos para o atendimento das necessidades da própria burocracia e do aparato estatal, a administração gerencial relaciona sua atuação ao interesse da coletividade, sob a ótica do cidadão-cliente, ou cidadão-usuário. […] Nesse sentido, na administração gerencial o foco deixa de ser a própria administração pública para tornar-se a satisfação do cidadão. Cabe ao Estado assegurar, no interesse desse cidadão-usuário, a maior eficiência e qualidade dos serviços públicos, e não apenas verificar o cumprimento da legislação em vigor (JUCÁ, 2003, p.1).


Informações Sobre o Autor

Luiz Gustavo de Oliveira Ramos

Pós-graduando em Direito Civil e Processo Civil pela FaSe, Faculdade Estácio de Sergipe, Aracaju / SE; Graduado em Direito pela FaSe, 2011; Pós-graduado em Docência no Ensino Superior pela FaSe, 2009; Graduado em Sistemas de Informação pela UNIT, Universidade Tiradentes, 2005, Aracaju / SE


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