Resumo: O artigo procura apresentar a exegese da parte final do art. 129, da Lei federal n. 8.112/1990, quando permite, conferindo-lhe apreciação discricionária, que a autoridade administrativa, se entender justificável pena mais grave do que a advertência, aplique pena de suspensão em caso de violação de dever funcional ou de desacato às proibições dos incisos I a VIII do art. 117 do Estatuto dos Servidores Públicos da União
Palavras-chave: Parte final do art. 129, da Lei federal n. 8.112/1990. Discricionariedade da autoridade administrativa de aplicar pena de suspensão em vez de advertência. Casos de violação de dever funcional ou de proibição dos incisos I a VIII do art. 117 da Lei n. 8.112/1990. Tipicidade e vinculação quanto às hipóteses de demissão.
1. Introdução
Questão ainda pouco explorada pela doutrina e que desafia estudo da casuística administrativa é sobre a interpretação da parte final do disposto no art. 129, da Lei n. 8.112/1990. A autoridade administrativa pode, em virtude do texto legal, exercer juízo discricionário quanto a fatos em princípio passíveis de advertência (violação de dever funcional ou não-observância de proibição elencada nos incisos I a VIII do art. 117, da Lei n. 8.112/1990), aplicando pena de suspensão, se considerar justificável na hipótese?
Isto é, pode a autoridade administrativa, em vez de advertência, discricionariamente, de forma motivada, impor pena de suspensão, se entender justificável, em vista das circunstâncias do caso concreto?
2. Disciplina das penas de advertência, suspensão e demissão na Lei federal n. 8.112/1990
Sobre as penas de advertência, suspensão e demissão nela previstas, cumpre transcrever o disposto na Lei federal n. 8.112/1990, aplicável ao Distrito Federal por força da Lei distrital n. 197/1991:
“Art. 129. A advertência será aplicada por escrito, nos casos de violação de proibição constante do art. 117, incisos I a VIII, e de inobservância de dever funcional previsto em lei, regulamentação ou norma interna, que não justifique imposição de penalidade mais grave.
Art. 130. A suspensão será aplicada em caso de reincidência das faltas punidas com advertência e de violação das demais proibições que não tipifiquem infração sujeita a penalidade de demissão, não podendo exceder de 90 (noventa) dias.”
3. Princípio da tipicidade no caso da pena de demissão
É necessária atenta leitura do pontuado no Estatuto dos Servidores Públicos do Distrito Federal para compreender o sistema de punições por ele adotado. Primeira conclusão necessária, que alumia o juízo (que se apresentará mais adiante) acerca da relativa discricionariedade da pena de suspensão em caso de violação de dever funcional, é que a Lei federal n. 8.112/1990 elegeu o princípio da tipicidade nas infrações passíveis de demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade.
A evidência é clara quando se constata que o seu art. 130, caput, fine, adota a expressão “que não tipifiquem infração sujeita a penalidade de demissão”. A seu turno, o art. 132, do diploma legal em comento, enumera, taxativamente, os casos passíveis de imposição da penalidade demissória:
“Art. 132. A demissão será aplicada nos seguintes casos:
I – crime contra a administração pública;
II – abandono de cargo;
III – inassiduidade habitual;
IV – improbidade administrativa;
V – incontinência pública e conduta escandalosa, na repartição;
VI – insubordinação grave em serviço;
VII – ofensa física, em serviço, a servidor ou a particular, salvo em legítima defesa própria ou de outrem;
VIII – aplicação irregular de dinheiros públicos;
IX – revelação de segredo do qual se apropriou em razão do cargo;
X – lesão aos cofres públicos e dilapidação do patrimônio nacional;
XI – corrupção;
XII – acumulação ilegal de cargos, empregos ou funções públicas;
XIII – transgressão dos incisos IX a XVI do art. 117”.
Nesse sentido, pontuamos em nosso Manual de processo administrativo disciplinar e sindicância: à luz da jurisprudência dos tribunais e da casuística da Administração Pública, recentemente lançado pela editora Fórtium (disponível em www.fortium.com.br – editora, 1.072 páginas)[1]:
“É por esse motivo que tem preponderado, nos estatutos disciplinares, a tipicidade na descrição exaustiva das causas de demissão, além da preponderância de tipos funcionais fechados, com discricionaridade sobremodo reduzida, como as faltas funcionais de abandono de cargo, inassiduidade habitual, a prática de crimes contra a Administração Pública, a acumulação ilícita de cargos públicos, a corrupção.
Somente os comportamentos, especificados de forma expressa em lei como motivos fáticos da penalidade demissória, podem respaldar a punição expulsória do serviço público, como se verifica no art. 132, da Lei n. 8.112/1990, o qual capitula, de forma exaustiva, as condutas apenadas com a pena máxima.
Se o fato praticado pelo servidor público não se enquadrar numa das hipóteses arroladas no art. 132, da Lei n. 8.112/1990, não será possível demitir o funcionário. Sublinhe-se. A idéia de atipicidade vigora, de forma mais ampla, no que concerne às faltas menos graves e nas quais a lei confira discricionariedade administrativa para a Administração enquadrar as ações ilícitas praticadas como falta disciplinar, como é o caso de o servidor ser acusado de deixar de exercer com zelo e dedicação as atribuições do cargo ou descumprir dever previsto em norma administrativa.
Reside aí ampla margem discricionária para ajustar o desregramento de conduta do servidor na previsão genérica estatutária. Assim não sucede nos casos de demissão, cujos motivos são ou vinculados, não discricionários, ou, excepcionalmente, com restrita esfera de discricionariedade nos tipos relativamente abertos do art. 132, da Lei n. 8.112/1990, em face da gravidade da sanção.[…]
No que concerne às penas mais severas, a tendência do direito administrativo disciplinar, em virtude dos avanços democráticos, é de regular o mais precisamente possível as faltas, em tipos disciplinares, deixando margem maior para discricionariedade administrativa somente para as condutas sujeitas a penas mais leves.
Veja-se que, embora seja possível que a lei crie infrações disciplinares com tipo aberto e com margem discricionária para enquadramento pela autoridade administrativa (por exemplo: “o servidor será demitido se cometer grave violação de seus deveres” ou “se incorrer em procedimento irregular gravíssimo”), não é essa a tendência dos estatutos pátrios, particularmente no modelo da Lei federal 8.112/90, que tipifica as condutas passíveis de penalidade demissória em modelos hipotéticos, cujos elementos do tipo disciplinar respectivo são precisos ou rendem pequena margem para discricionariedade.
Aliás, o Estatuto dos Funcionários Públicos federais de 1939 (Decreto-lei 1713/1939) capitulava que seria aplicada a pena de demissão em caso de “procedimento irregular do funcionário, devidamente comprovado” (art. 238, III), de natureza discricionária ampla, mas que nem sequer foi reproduzido na Lei federal 1.711/1952 (Estatuto dos Funcionários Públicos federais), menos ainda na posterior Lei federal 8.112/90.[…]
Constata-se que a idéia antiga, do direito francês, de que as infrações disciplinares não careceriam de previsão legal (nem se lhes aplicaria a exigência de tipicidade como no direito penal), podendo ser punidas todas as condutas dos servidores que infrinjam deveres funcionais em sentido amplo (sem sequer a enunciação das infrações passíveis de penas mais graves, mas somente com a descrição do rol de penalidades cabíveis), tem cedido terreno para a obrigatoriedade de previsão legal, taxativa, das faltas sujeitas a penalidades de demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade, em nome do princípio da legalidade.
José Bernejo Vera defende a tipicidade das faltas disciplinares:
La reserva de Ley cubre principalmente la tipificación de las infacciones (penales y administrativas) y la determinación de los castigos correspondientes (penas o sanciones administrativas) […] tiene que ver siempre una norma com rango de Ley la que contenga una verdadera tipificación de lãs infracciones y la que señale com tanta precisión como le sea possible las sanciones pertinentes y las reglas sobre responsabilidad […] Establecer como elementos esenciales de la infracción administrativa los mismos de la infracción del Derecho Administrativo sancionador al Derecho Penal a que hemos aludido antes. Lo cierto es que el TS lo há proclamado reiteradamente. Por ej., su sentencia de 17 de abril de 1990, entre otras similares, define la infracción administrativa como ‘conducta antijurídica, típica y culpable’. Y la STS de 23 de febrero de 2000 (Ar. 7047) afirma: ‘Para que una determinada acción u omisión pueda ser objeto de sanción es necessario que sea típica, antijurídica y culpable; pressupuestos que quedan eliminados por la concurrencia de causas de justificación o excluyentes de la culpabilidad o antijuridicidad. […] Para que um conducta sea infracción administrativa es necessário que, además de ser antijurídica, este concretamente prevista por uma norma como tal infracción y tenga atribuída una sanción administrativa. Las normas sancionadoras, como las penales, acotan una parte de las conductas antijurídicas para convertirlas em infracciones administrativas. Las normas establecen los ‘tipos’. Em este sentido se habla del requisito de la tipicidad de la conducta: sólo son infracciones las acciones u omisiones tipificadas como tales o, lo que expresa la misma Idea, las conductas ‘típicas’. La acción u omisión antijurídica pero no típica no constiuye infracción ni puede ser castigada, sin perjuicio de que si lê correspondan otras consecuencias.[2][…]
Sim, a propalada atipicidade das faltas disciplinares, se comparadas à previsão dos crimes no direito penal, deve ser compreendida como a possibilidade de existirem tipos disciplinares, relativamente abertos (caso dos preceptivos dos artigos 117, XV, 132, V e VI, todos da Lei federal 8.112/90), cujos elementos podem ser interpretados com relativa margem discricionária pelo administrador público, o qual poderá considerar que certa conduta constitui, ou não, por exemplo, ato de insubordinação grave.
Daí a tendência do direito administrativo disciplinar atual de tipicidade das faltas disciplinares cominadas com penas mais graves, admitindo-se pequena parcela de discricionariedade no enquadramento de algumas condutas (como a demissão por “ato de insubordinação grave”), enquanto absoluta tipicidade quanto a outras, cujos elementos típicos são rigorosa e precisamente enunciados (como, por exemplo, abandono de cargo, inassiduidade habitual, prática de crime contra a Administração Pública, etc.).
A tendência da tipificação das faltas administrativas é apontada por Justino Vasconcelos:
Não se deve exagerar crendo que o poder disciplinar seja, ou possa ser, livre de vínculos. Antes de tudo, é exigência de uma boa ordem jurídica se prevejam com amplitude as possíveis infrações disciplinares e se fixem, com precisão, as sanções correspondentes. Subsiste, assim, a tendência de estabelecer, com normas jurídicas, a noção de falta disciplinar e a natureza e entidade da pena, segundo o preceito nullum crimen sine lege, de graduar a pena, de agravá-la pela reincidência, de presumir a inocência do acusado, e de instituir procedimentos contenciosos para a aplicação das penas disciplinares. Tendência idêntica se verifica relativamente à individualização e previsão da falta disciplinar no texto legal, acomodando-a ao princípio que condiciona a configuração e a punibilidade do delito.[3]
Regis Fernandes de Oliveira aponta:
No campo do Direito Administrativo prevalece o que se rotula de tipicidade, isto é, a infração administrativa há que se estar devidamente delimitada pela regra normativa. As exigências são as mesmas que aquelas para identificação dos crimes. A garantia da Administração para obstar qualquer ação infracional ou arbitrária do agente público está em que deve ela pautar sua conduta pelos ditames legais.[4]
Pedro Guillermo Altamira anota que a incidência do princípio da tipicidade do direito penal deve incidir, no possível, na punição das faltas disciplinares, para prevenir arbitrariedade: “Em derecho penal rige el principio nulla poena sine lege que em lo posible debe hacerse extensivo a la ‘potestad’ disciplinaria, dejando escaso margen a la discrecionalidad para evitar la arbitrariedad. [5][…]
Carlos S. de Barros Júnior cita Tito Prates da Fonseca para afiançar que as penas expulsivas não se podem aplicar sem determinação legal e que é taxativa a enumeração dos tipos das faltas passíveis de demissão no estatuto disciplinar, ao mesmo tempo em que lembra o escólio de Marcelo Caetano no sentido de que existe
a tendência de fixar na lei os casos em que taxativamente é lícito aplicá-la […] em face do nosso direito positivo, só as faltas enunciadas, como suscetíveis de demissão, podem acarretar essa penalidade.[6]
Themistocles Brandão Cavalcanti aduz: “A aplicação da pena disciplinar pressupõe uma infração prevista e punida pela lei e uma pena também consignada por uma disposição legal.”[7] (destaque não original)
Com efeito, sublinhe-se, a Lei n. 8.112/1990 previu, exaustivamente, no seu art. 132, as condutas sujeitas à pena de demissão. Faltas disciplinares ou comportamentos ali não previstos expressamente não podem ensejar a pena demissória.
A lição é encampada por Sebastião José Lessa, o qual cita Marcelo Caetano, Victor Nunes Leal e Hely Lopes Meirelles no sentido de que os motivos para a aplicação de pena demissória são vinculados, de maneira que os casos de demissão devem obedecer à regra da tipicidade, com a “prévia definição do comportamento e absoluta correspondência entre o tipo e a conduta.” [8]
Consigne-se que o Superior Tribunal de Justiça referendou a incidência do princípio da tipicidade no processo administrativo disciplinar:
A utilização de analogias ou de interpretações ampliativas, em matéria de punição disciplinar, longe de conferir ao administrado uma acusação transparente, pública, e legalmente justa, afronta o princípio da tipicidade, corolário do princípio da legalidade, segundo as máximas: nullum crimen nulla poena sine lege stricta e nullum crimen nulla poena sine lege certa, postura incompatível com o Estado Democrático de Direito. 5 Recurso conhecido e parcialmente provido para anular a pena demissória aplicada ao Recorrente. [9]
Reafirme-se. Os estudiosos do direito administrativo disciplinar [10] já encimam que a discricionariedade fica sobremodo restrita no caso de faltas passíveis de penas mais graves, que constituem atos vinculados, os quais somente podem ser aplicados se houver a presença, inequivocamente demonstrada nos autos do processo administrativo, dos motivos de fato previstos em lei para a imposição da demissão. Vigora a tipicidade das infrações mais graves. É tendência dos estatutos disciplinares do funcionalismo público relacionar, de forma exaustiva, os casos de condutas para as quais serão aplicadas a pena de demissão, como se vê no art. 132 e nos incisos IX a XVI do art. 117, todos da Lei n. 8.112/1990.”
Estabelecida a conclusão de que as hipóteses de demissão são tipificadas na Lei n. 8.112/1990, tanto que o art. 130, do diploma normativo, refere-se a condutas que “tipifiquem infração sujeita a penalidade de demissão”, segue a assertiva de que a autoridade administrativa não dispõe de discricionariedade de aplicar a pena demissória para fatos em princípio passíveis de penas mais brandas (suspensão ou advertência), devendo o administrador público adstringir-se às hipóteses capituladas no art. 132, do estatuto, para impor a sanção máxima.
Vale dizer, ainda que considere, em tese, justificável agravar a suspensão, em face da gravidade do fato, a autoridade administrativa, entretanto, não poderá infligir pena de demissão, salvo nas estritas hipóteses elencadas no art. 132, da Lei n. 8.112/1990. Mesmo que julgue que a reincidência em falta punida com advertência (art. 130, caput, L. 8.112/1990), por exemplo, ou que o desrespeito pelo servidor a alguma das proibições disciplinadas nos incisos I a VIII do art. 117 da Lei n. 8.112/1990 justificaria a expulsão do serviço público, não obstante, o administrador não dispõe de possibilidade de exercitar consideração discricionária no escolher a sanção demissória, a qual somente pode ser imposta, grife-se, nas situações explicitamente previstas pelo legislador em numerus clausus.
Perceba-se, para robustecer essa ilação, que, enquanto o art. 129, parte final, da Lei n. 8.112/1990, enunciou a expressão verbal “que não justifique imposição de penalidade mais grave”, referindo-se à discricionariedade do administrador público ao decidir entre a pena de advertência ou de suspensão, o dispositivo do art. 130, da Lei n. 8.112/1990, a seu turno, todavia, empregou a locução “que não tipifiquem infração sujeita a penalidade de demissão”.
4. A exegese da parte final do art. 129, da Lei n. 8.112/1990
A pretensão deste artigo é exatamente precisar a interpretação mais acertada do art. 129, fine, da Lei n. 8.112/1990, o qual capitula:
“Art. 129. A advertência será aplicada por escrito, nos casos de violação de proibição constante do art. 117, incisos I a VIII, e de inobservância de dever funcional previsto em lei, regulamentação ou norma interna, que não justifique imposição de penalidade mais grave.”
O exegeta não pode deixar de assinalar a distinção entre a interpretação gramatical dos artigos 129 e 130, da Lei n. 8.112/1990, porquanto, ao passo que o primeiro maneja o termo “justifique penalidade mais grave”, o segundo alude às condutas que “tipifiquem infração sujeita a penalidade de demissão”. Ora, segundo os elementares postulados da hermenêutica do direito, a lei não contém palavras inúteis, nem distinções ineficazes. Nesse sentido, calha a lição do clássico Carlos Maximiliano[11]:
“Verba cum eefectu, sunt accipienda. ´Não se presumem, na lei, palavras inúteis´. Literalmente: ´devem-se compreender as palavras como tendo alguma eficácia´. As expressões do Direito interpretam-se de modo que não resultem frases sem significação real, vocábulos supérfluos, ociosos, inúteis. […] Dá-se valor a todos os vocábulos e, principalmente, a todas as frases, para achar o verdadeiro sentido de um texto; porque este deve ser entendido de modo que tenham efeito todas as suas previsões, nenhuma parte resulte inoperativa ou supérflua, nula ou sem significação alguma.”
Por que o legislador, ao mencionar a pena demissória, utilizou o termo tipificar, enquanto, no art. 129, que cuidava, em princípio, de penalidade de advertência, usou a expressão justificar pena mais grave?
Resta evidente que nenhum fato poderá render ensejo à aplicabilidade da demissão, salvo as hipóteses taxativas enumeradas no art. 132, da Lei n. 8.112/1990. A autoridade administrativa, em outras linhas, não poderá entender que uma ação ilícita, apesar de passível de advertência ou suspensão, justifique pena de demissão, exceto, marque-se, se tipificado no sobredito art. 132 da norma legal em apreço.
Sendo assim, conclui-se que a parte final do dispositivo do art. 129, do Estatuto dos Servidores Públicos da União, ao prever que a violação de dever funcional seria apenada com advertência, em princípio, desde que “não justifique pena mais grave”, não poderia se referir à pena de demissão, pois o art. 130, do diploma legal, enuncia que os fatos passíveis de pena demissória são apenas os tipificados, leia-se, os exaustivamente descritos no art. 132, da Lei n. 8.112/1990.
Como, então, se deveria interpretar o capitulado no art. 129, fine, do Estatuto dos Servidores Públicos da União? Ora, se o preceptivo legal prevê que a advertência será aplicada, nos casos de violação de proibição constante do art. 117, incisos I a VIII[12], e de inobservância de dever[13] funcional previsto em lei, regulamentação ou norma interna, que não justifique imposição de penalidade mais grave, pode-se deduzir que a violação de dever funcional ou de proibições não tipificadas como passíveis de demissão (art. 132, XIII, L. 8.112/1990) pode render ensejo a pena mais grave do que a advertência? Sim.
Mas não se poderia, como acentuado, entender que a autoridade administrativa teria a oportunidade de julgar, discricionariamente, que um fato justificaria uma demissão, apesar de não tipificado no art. 132, da Lei n. 8.112/1990. A demissão é ato vinculado, manejável nas hipóteses expressamente tipificadas.
Logo, qual seria o alcance da parte final do art. 129, da Lei n. 8.112/1990, ao sentenciar que a advertência seria infligida nos casos de violação de proibição constante do art. 117, incisos I a VIII, e de inobservância de dever funcional, se não justificarem imposição de penalidade mais grave? Parece não se antever exegese diversa de que o preceptivo legal permitiu a paralela aplicabilidade da suspensão, além das hipóteses enunciadas no art. 130, do estatuto, nos casos do art. 129, quando as circunstâncias o autorizarem (gravidade do fato, repercussão negativa, maior reprovabilidade da conduta do que representaria a sanção branda de advertência).
5. Discricionariedade na aplicabilidade da pena de suspensão
Vale dizer, a suspensão, como pena intermediária na Lei n. 8.112/1990, assumiu relativo caráter discricionário, podendo ser aplicada, além dos casos do art. 130, em caso de violação de dever funcional ou de proibição não passível de demissão, se a autoridade administrativa, discricionariamente, considerar justificável deixar de impor a sanção mais branda de advertência em face das peculiaridades do caso concreto.
Se a demissão, como ato vinculado, não pode ser objeto de apreciação discricionária da autoridade administrativa, a qual somente pode aplicar a pena máxima para as condutas expressamente tipificadas (art. 130, fine, c.c. art. 132, L. 8.112/1990), é intuitivo que a possibilidade de o administrador entender que um fato justifica pena mais grave do que a advertência (art. 129, fine, L. 8.112/1990), mas não tipifica hipótese de penalidade demissória, somente permite a ilação de que o Estatuto dos Servidores Públicos abriu oportunidade para a imposição de pena de suspensão, além das hipóteses do art. 130, da Lei n. 8.112/1990.
Se a Lei n. 8.112/1990 tivesse pretendido limitar a suspensão aos casos expressamente arrolados no seu art. 130, o art. 129, da norma legal, teria disposto que a violação de dever funcional ou de proibição não passível de demissão seria punida com advertência, se não tipificasse conduta passível de suspensão, como foi expressamente consignado relativamente à demissão (art. 130, fine, L. 8.112/1990). Mas não. O Estatuto dos Servidores Públicos capitulou, deliberadamente e de forma distinta da expressão tipificar, escrita no seu art. 130, fine, que a autoridade administrativa poderia considerar que a violação de dever funcional ou dos incisos I a VIII do art. 117 justificaria, e não tipificaria, pena mais grave.
Utilizando o termo justificar, o legislador deferiu apreciação discricionária ao administrador público, conferindo-lhe poder para avaliar a gravidade do fato e decidir, conforme o caso, por pena de suspensão em vez de advertência, enquanto a expressão tipificar (art. 130, fine, L. 8.112/1990) vincula a autoridade administrativa a meramente verificar a ocorrência, in concreto, da conduta punida com demissão, tolhendo-se-lhe, por outro lado, considerar que um fato punido com suspensão ou advertência, não previsto no art. 132, da Lei n. 8.112/1990, justificasse uma demissão, que é ato vinculado.
Insta sublinhar, porém, que a autoridade administrativa não poderá proceder à medida prevista na parte final do art. 129, da Lei n. 8.112/1990 de forma arbitrária, senão de forma motivada, com claros, congruentes e suficientes fundamentos jurídicos e fáticos para manejar a faculdade legal, destinada a preservar a moralidade e a eficácia do regime disciplinar do funcionalismo e do poder punitivo da Administração Pública, com a outorga de poderes ao administrador público que devem ser usados justificadamente, quando a pena de advertência não ostente vigor bastante para apenar a importante ou considerável quebra de deveres funcionais ou de desacato de proibições não punido com demissão.
6. Justificativa do caráter discricionário das penas de suspensão e advertência como medidas corretivas da conduta dos servidores públicos
Não é de estranhar que a Lei n. 8.112/1990 tenha se preocupado em conferir alguma margem de discricionariedade para o administrador público decidir, em certas situações, entre as penas de advertência e suspensão.
É que, em certos casos de violação de dever funcional com característica de pronunciada gravidade e merecida censura, nos quais a aplicabilidade da penalidade mais leve de advertência se afigura muito branda e incapaz de representar efetivo desestímulo à conduta infrativa, o legislador buscou evitar que o poder punitivo da Administração Pública incorresse em frouxidão e ineficácia em seu propósito de, por meio do sentimento vigoroso da apenação, recuperar o procedimento desregrado do servidor transgressor, infligindo ao infrator o peso da sanção como meio de impor a ordem no seio do funcionalismo e de corrigir a maneira indesejada de atuação do funcionário punido.
É mais que sabido que as penas de advertência e suspensão assumem conotação medicinal, terapêutica, com o escopo marcado de punir e ao mesmo tempo recuperar o agente público faltoso. Em certas situações, de acordo com os motivos lídimos e transparentes expostos pelo administrador público para justificar a medida, pode ser que a mera advertência represente tíbia reprimenda sobre o transgressor, a reclamar, a bem da preservação da moralidade e da normalidade do serviço, a imposição de pena mais dura: a suspensão, a qual pode ser dosada amplamente, entre 1 e 90 dias (art. 130, L. 8.112/1990), prestando-se melhor para os fins do poder punitivo estatal, que não pode ser desacreditado ante a exagerada brandura na punição adotada.
Com efeito, a notícia da reprimenda gera o efeito de desincentivar o comportamento faltoso de outros funcionários públicos, os quais, se testemunhassem o predomínio da impunidade na esfera administrativa, poderiam tender a descumprir as normas de disciplina funcional e a incorrer em condutas indesejadas sob a ótica do interesse público e da condigna atuação como agentes da Administração, sentindo-se livres para consumar ilegalidades e indignidades, em prejuízo da normalidade do serviço e do atendimento das aspirações da sociedade administrada.
Referenda Marcelo Caetano[14]: “A aplicação desempenha ainda um papel semelhante de intimidação quando, pelo exemplo do sofrimento do transgressor, mostra ao comum das pessoas a eficácia das sanções cominadas”.
De fato, as normas punitivas colimam proteger valores caros ao ordenamento jurídico, como a moralidade e a eficiência administrativas, as quais seriam ameaçadas se a prática de condutas a elas ofensivas não sofresse qualquer tipo de repressão, mais ainda se o sentimento de impunidade reinasse no corpo do funcionalismo, rendendo margem a que alguns servidores, desapegados dos fins superiores que deveriam nortear o exercício do cargo público, passassem a consumar atos de indisciplina e improbidade funcionais seguidamente, confiados na leniência das autoridades competentes para punir as infrações disciplinares, quadro que comprometeria os interesses de toda a sociedade.
Diante de certas condutas, pode ser que a simples advertência não corresponda, à altura, à gravidade da conduta praticada, a qual, todavia, não chega a tipificar caso de demissão, previsto no art. 132, da Lei n. 8.112/1990.
Com o objetivo de assegurar que a autoridade administrativa dispusesse de meios de impor a disciplina de forma eficaz no seio do funcionalismo, o Estatuto dos Servidores Públicos Federais deferiu a discricionariedade para o administrador público, motivadamente, aplicar pena de suspensão em caso de violação de dever funcional ou de desrespeito a uma das proibições dos incisos I a VIII do art. 117 da Lei n. 8.112/1990, hipóteses que, em princípio, estariam sujeitas a pena de advertência.
Mas o legislador previu, expressamente, que, se a autoridade administrativa entendesse justificável pena mais grave na hipótese (art. 129, fine, L. 8.112/1990), poderia aplicar suspensão em vez de simples advertência, o que serve de meio de conferir eficácia ao regime disciplinar do funcionalismo, o qual poderia cair no descrédito se algumas condutas mais censuráveis não pudessem ser punidas com penalidade mais rígida que a singela advertência.
Não se pode ignorar, por outro lado, que a advertência é sanção com prazo prescricional sobremodo exíguo, de 180 dias (art. 142, III, L. 8.112/1990), o que poderia fazer campear a impunidade em muitos casos, pela superveniência da perda do direito de punir por causa da prescrição, não fosse a regra excepcional do art. 129, fine, da Lei n. 8.112/1990, que deferiu discricionariedade à autoridade administrativa para aplicar pena de suspensão, se considerar justificável.
7. Competência decisória nos casos de penas de advertência e suspensão de 30 dias e sua vinculação com a discricionariedade prevista na parte final do art. 129, da Lei n. 8.112/1990
De outro ângulo, a discricionariedade de escolha entre as penas de advertência e suspensão, nos casos de violação de dever funcional ou de desacato às proibições dos incisos I a VIII do art. 117 da Lei n. 8.112/1990, vincula-se à prontidão e eficácia deferida à autoridade administrativa para exercer o poder disciplinar no seio do funcionalismo, sobretudo porque as penas mais leves de advertência ou de suspensão de até 30 dias são impostas pelo chefe da repartição.
A competência decisória foi conferida ao respectivo chefe da repartição e outras a autoridades, na forma dos respectivos regimentos ou regulamentos, nos casos de advertência ou de suspensão de até 30 (trinta) dias (art. 141, III, Lei n. 8.112/1990).
Trata-se de racionalização da atividade administrativa, porquanto, nas infrações funcionais sujeitas a punições menos severas, é o chefe da repartição onde ocorreu a irregularidade quem detém melhores condições de decidir a matéria, porque normalmente tomou conhecimento direto ou indireto do fato e conhece as circunstâncias que o rodeiam, as condições de trabalho, a carência ou suficiência de funcionários, as falhas sob o aspecto logístico vivenciadas na estrutura do órgão administrativo, enfim, é quem está habilitado para apreciar a efetivada gravidade ou censurabilidade que envolve a conduta do funcionário faltoso.
Por isso, reúne melhores informações para julgar o feito disciplinar e decidir pela imposição de penalidades, sobretudo porque, nas transgressões menos graves, haverá maior espaço para o exercício da discricionariedade quanto à escolha da sanção recomendada para a espécie, respeitados sempre os limites determinados pelos princípios da proporcionalidade, da individualização da pena e da legalidade.
Veja-se que nem sequer é obrigatória a instauração de processo administrativo disciplinar para impor penalidades menos graves, como é o caso da suspensão inferior a trinta dias e da advertência, as quais podem resultar de sindicância punitiva (art. 145, II, Lei n. 8.112/1990).
Ademais, não se olvide que esse critério definidor de competência decisória visa a velar pela imediatidade das punições administrativas, pois um dos elementos justificadores do poder disciplinar é precisamente o efeito de exemplo representado pela reprimenda infligida sobre o servidor culpado, não muito tempo depois da prática da transgressão, o que, realmente, tem o condão de funcionar como fator intimidador sobre os colegas de repartição e demais servidores, para evitar a indisciplina funcional generalizada e preservar a regularidade do serviço público.
A remessa dos autos à autoridade superior desafia a burocracia e, às vezes, quando a ela encaminhados os autos para julgamento, a conversão deste em diligências acarreta uma grande perda de tempo entre o despacho do hierarca maior e a devolução ao órgão de origem, até com o efeito de produzir uma prescrição intercorrente do direito de punir, sobretudo nos casos de infrações de menor gravidade e sujeitas a penas de advertência ou suspensão de até trinta dias, que têm prazo prescricional mais reduzido (180 dias ou 2 anos, respectivamente: art. 142, II e III, Lei n. 8.112/1990).
8. Conclusão
Por isso, conclui-se que a Lei n. 8.112/1990 conferiu relativa margem discricionária para que a autoridade administrativa, nos casos de violação de dever funcional ou de proibição não passível de demissão, aplique, em princípio, advertência, ou, se considerar justificável pena mais grave, imponha suspensão nessa hipótese, não se admitindo, todavia, que o preceptivo do art. 129, fine, do Estatuto dos Servidores Públicos da União, abranja, no conceito de justificar sanção mais grave, a imponibilidade de demissão, que somente pode ser infligida para as condutas tipificadas no art. 132, c.c. art. 130, fine, da Lei n. 8.112.
Informações Sobre o Autor
Antonio Carlos Alencar Carvalho
Procurador do Distrito Federal, Procurador-Chefe da Procuradoria de Pessoal da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, pós-graduado em Direito Público e Advocacia Pública pelo Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP. Autor do livro “Manual de processo administrativo disciplinar e sindicância: à luz da jurisprudência dos tribunais e da casuística da Administração Pública” (Editora Fortium, 2008, 1.072 páginas).