Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar os diversos posicionamentos doutrinários a cerca do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, perpassando pelo posicionamento da doutrina tradicional e atual, além das diversas críticas de doutrinadores que sustentam o uso da ponderação como melhor forma de resolução de conflitos de interesses. Uma vez que também visa respeitar o texto constitucional de 1988 em conformidade ao Estado Democrático de Direito. [1]
Palavras-chave: princípio da supremacia do interesse público sobre o privado; constitucionalismo; ponderação; Administração Pública
Abstract: This study aims to analyze the various doctrinal positions about the principle of the supremacy of the public interest over the private, permeating the positioning of the traditional and current doctrine, in addition to several scholar critics who support the use of weighting as the best way of resolution of interest's conflicts. It also aims to respect the constitutional text of 1988 in accordance to the Democratic rule of Law.
Keywords: principle of the supremacy of the public interest over private; constitutionalism; weighing; Public Administration
Sumário: Introdução. 1. O princípio do interesse público sobre o privado no Direito Administrativo. 2. Desconstrução do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. 3. Poder de polícia e a restrição de direitos individuais. Conclusão. Referências bibliográficas.
Introdução
O princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado, nas palavras de Alexandre Mazza, estaria implícito na atual ordem jurídica, e seria a demonstração de que os interesses da coletividade são mais importantes que os interesses individuais, fazendo com que a Administração, defensora dos interesses públicos, receba da lei poderes especiais, situando-a em uma posição de superioridade diante do particular. Assim, uma desigualdade jurídica entre a Administração e administrado.(MAZZA, 2012)
Na doutrina administrativa tradicional a existência do princípio em questão é reconhecida, estabelecendo que em caso de conflito entre interesse público e interesse privado, o interesse público prevalecerá.(CARVALHO FILHO, 2012)
No mesmo sentido se posiciona Maria Sylvia Zanella di Pietro, no qual expõe: “princípio que hoje serve de fundamento para todo o direito público e que vincula a Administração em todas as suas decisões: o de que os interesses públicos têm supremacia sobre os individuais”.(DI PIETRO, 2012).
A doutrina moderna em conformidade com o atual direcionamento do direito acredita que os princípios e regras do Direito Administrativo estão sujeitos à constitucionalização do Direito, onde a Constituição passa a estabelecer os valores, fins públicos e comportamentos em seus princípios e regras, condicionando a validade e sentidos das normas presentes no direito infraconstitucional.(BARROSO, 2005).
Nesse sentido, a constitucionalização do Direito Administrativo sofre influência dos princípios gerais e específicos consagrados no sistema jurídico constitucional. Sendo assim, o Direito Administrativo tem fundamento em seu regime jurídico próprio e também na Constituição, estando o primeiro, obrigatoriamente, em conformidade com o segundo.
Dessa forma, surge diversas questões e críticas quanto ao princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, pois a Constituição estabelece diversos Direitos Fundamentais (Direitos Individuais), que possuem caráter essencialmente privado, sendo incompatível a prevalência do interesse público sobre o privado quando este se configurar como direito fundamental.
1. O princípio do interesse público sobre o privado no Direito Administrativo
O princípio do interesse público sobre o interesse privado, também chamado de princípio da rinalidade pública (DI PIETRO, 2012), princípio do interesse público ou finalidade pública (MAZZA, 2012), é princípio que não se radica em dispositivos específicos da Constituição Federal, pois é a condição da própria existência da sociedade e pressuposto lógico do convívio social. Apesar de divergências existentes entre autores quanto alocar em manifestações concreta, como o art. 170, III, V e VI (respectivamente, princípio da função social da propriedade, da defesa do consumidor ou do meio ambiente).(MELLO, 2009)
Para Maria Silvia Zanella di Pietro, esse princípio se encontra tanto no momento da elaboração da lei, quanto no momento de sua execução em concreto pela administração pública.(DI PIETRO, 2012)
Esse princípio se expõe como base para a atuação tanto do legislador como da autoridade administrativa no desempenho de seus atos. Serve também como fundamento para todo o direito público e vincula a Administração em todas suas decisões. Além disso, se inclui como norma de direito público, por serem normas do interesse público, mesmo que ocorra de reflexamente proteger interesse individual.
Possui como sede principal o direito público, mais precisamente no direito constitucional e administrativo, sendo o princípio inspirador do legislador ao editar as normas de direito público, como também de vinculação da Administração Pública na aplicação da lei no exercício de sua função.(DI PIETRO, 2012)
Surge a premissa que era necessário o Estado abandonar a posição passiva e atuar também no âmbito das atividade privadas. Nessa trajetória houve o primada do interesse público, ocorrendo a ampliação das atividades assumidas pelo Estado para atender às necessidades coletivas. Ao exemplo temos, a ampliação do conceito de serviço público, a imposição não só de obrigações negativas (não fazer), mas também positivas para resguardar a ordem pública, além de ampliar sua atuação para a ordem econômica e social.
Com esse princípio surgiu novas formas de interferência do Estado na vida econômica e no direto da propriedade, permitindo a intervenção do poder público no funcionamento e na propriedade das empresas, com o intuito de harmonizar o uso da propriedade com o bem-estar social, como no caso de desapropriação para justa distribuição da propriedade, a reserva de minas e riquezas do subsolo ao Estado. Também cabe ao Estado tutelar e se preocupar com os interesses difusos, aqueles como o meio ambiente e o patrimônio histórico e artístico nacional.
Para Celso Antônio Bandeira de Mello, a manifestação da supremacia do interesse público sobre o interesse privado se manifesta através da possibilidade de a Administração, nos termos da lei, e através de atos unilaterais, constituir terceiros em obrigações. Esses atos estatais são classificados como atos imperativos, sendo exigíveis com a previsão de sanções ou providências indireta que façam com que o administrado o cumpra.
Há também a possibilidade de a administração executar sua previsão, sem antes necessariamente recorrer às vias judiciais, essa possibilidade recebe o nome de auto-executoriedade dos atos administrativos. Tal possibilidade está condicionada mediante duas hipóteses, a expressa previsão legal do comportamento e quanto a urgência da providência, por podê-lo demandar de imediato uma vez que não há outra via de igual eficácia e há o risco de perecimento do interesse público.
Alice Gonzalez Borges leciona que a auto-executoriedade se faz necessário, pois se não houvesse a possibilidade de a Administração Pública, no exercício de sua função, em circunstâncias especiais urgentes delimitados pela lei, usar da imperatividade, exigibilidade e presunção de legitimidade dos seus atos, instauraria se o caos devido a falta de segurança jurídica, configurando em uma sociedade anárquica.(BORGES, 2007)
Outra expressão dessa supremacia ocorre pela possibilidade de revogação, pela própria Administração, dos próprio atos inconvenientes ou inoportunos, assim como o dever de anular ou convalidar os atos inválidos que haja praticado (manifestação do princípio da autotutela dos atos administrativos).
Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, para se atingir a o interesse da coletividade, é necessário que a Administração Pública, tenha suas finalidades legalmente instituídas e objetificadas. Agindo em nome do interesse público e em conformidade com a lei (intentio legis). Para esse autor, há diferenças entre o interesse público e o interesse meramente das pessoas estatais, sendo eles respectivamente o interesse público propriamente dito, também chamado de interesse primário, e o interesse secundário.
O interesse público ou primário seria aquele pertinente à sociedade como um todo, sendo o interesse que a lei consagra e confere ao Estado como seu representante. Já o interesse secundário é aquele que diz respeito ao aparelho estatal enquanto entidade personalizada, só pode ser validamente perseguido pelo Estado quando coincide com o interesse público primário.
Para esse autor, qualquer forma de excesso decorreria em extralimitação da competência, configurando em abuso que pode ser considerado inválido mediante o Judiciário a requerimento do interessado.
2. Desconstrução do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado
Diferentemente dos autores antes apresentados, em conflito com a doutrina majoritária, Humberto Bergmann Ávila realiza uma desconstrução do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado demonstrando o conceito vazio que o mesmo se expõe, não podendo ser entendido como norma-princípio, seja sob a face conceitual, normativo ou postulado normativo.(BINENBOJM, 2005)
Para esse autor, diferentemente do que determina o princípio (preferência em caso de colisões entre o interesse privado e o interesse público, prevaleceria o interesse público), haveria a aplicação de ponderações.
Há em sua obra a análise da falta de respaldo normativo de tal princípio, por não decorrer de uma análise sistemática do ordenamento jurídico, por não admitir a dissociação do interesse privado, e por demonstrar-se incompatível com os postulados normativos erigidos pela ordem constitucional.
Em relação ao conteúdo constitucional, Ávila se presta a negar a colisão entre os interesses públicos e os privados, pois haveria uma conexão estrutural entre eles, e não sua contradição. Conforme expões:
"O interesse privado e o interesse público estão estão de tal forma instituídos pela Constituição brasileira que não podem ser separadamente descritos na análise da atividade estatal e de seus fins. Elementos privados estão incluídos nos próprios fins do Estado."(ÁVILA, 2001)
O autor descreve como a "indissociabilidade do interesse privado", pela presença de um ordenamento pautado por garantias e direitos individuais que o Estado deve se submeter, afirmando que a realização de interesse particular quando em conflito com interesse público não configura desvio de finalidade para a Administração, pois também se configurariam em fins públicos. Os interesses privados também estariam constitucionalmente assegurados, e podem, mesmo que parcialmente, realizar interesse público.
Humberto Ávila, também afirma a incompatibilidade da caracterização como norma-princípio através da incompatibilidade do mesmo frente ao postulados normativos da proporcionalidade e da concordância prática, que buscam uma exata medida da realização máxima de bens jurídicos contrapostos. Nesse sentido, afirma que o princípio que direciona a solução em prol do interesse público, não se harmoniza com a ponderação, excluindo-se os interesses privados.
O princípio da proporcionalidade, através da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, se direciona na análise casuística, distanciando da premissa da prevalência do interesse público. Assim também, se distância da concordância com o caso prático com a ponderação.
Ávila se posiciona no sentido que o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado não se configura em postulado normativo, devido vários fatores como a impossibilidade de um princípio do Direito Administrativo se apresentar como regra de preferência, a dissociabilidade entre interesses públicos e privados apesar de sua irresistível vinculação, a relação bipolar entre Estado e cidadão enquanto objeto central do direito administrativo, apesar de na prática inexistir tal contradição entre público e privado, e pelo eventual reconhecimento do princípio como postulado normativo do Direito Administrativo, apesar de não ser possível pela falta de determinação objetiva e abstrata do conceito de interesse público, que só seria possível pela concretização das normas constitucionais e legais vigentes.
Dessa forma, para Humberto Ávila, não é reconhecido a prevalência do direito público sobre o privado, por razões de ordem normativa e lógica, negando a existência de um princípio, seja ele norma-princípio ou postulado normativo, como guia do direito administrativo brasileiro. Sendo ele, congruente ao uso da ponderação devido a pluralidade de interesses em jogo.
Na obra de Gustavo Binenbojm, ele analisa a constitucionalidade, bem como a necessidade do princípio da supremacia dos interesses públicos sobre os privados. Para ele, as descriminações e benefícios do Estado (supostamente da coletividade) sobre os interesses individuais só seriam aceitáveis a medida que não forem arbitrários e servirem para compensar deficiências da defesa em juízo das entidades estatais. Benefícios esses, como as prerrogativas processuais em favor do Estado (exemplo: maiores prazos de resposta e recurso, duplo grau obrigatório, dilação de prazo para propositura de ação).(BINENBOJM, 2005)
A discrepância de benefícios processuais em favor do Estado frente aos particulares estariam em desconformidade com os princípios da isonomia, razoabilidade, proporcionalidade. Afirmando não dever existir a prevalência do interesse coletivo sobre o individual, nem do estatal sobre o particular, mas uma ponderação entre os interesses no caso concreto.
A visão de Daniel Sarmento sobre o tema também se converge na ideia da desconstrução do princípio da supremacia e valorização do exame do caso concreto diante do princípio da proporcionalidade, semelhante às obras de Humberto Ávila e Alexandre Santos, porém faz uma ressalva, afimando que "a desvalorização total dos interesses públicos diante dos particulares pode conduzir à anarquia e ao caos geral, inviabilizando qualquer possibilidade de regulação coativa da vida humana em comum".(SARMENTO, 2007)
Alice Gonzalez Borges também apresenta crítica em sua obra, não focando na problemática do princípio em si, mas em sua aplicação prática, o reconstruindo através de nova noção inserido no contexto constitucional, para que possa ser defendido e aplicado pelo Poder Judiciário. Critica-se a forma como os administradores públicos utilizam o princípio da supremacia para justificar todos seus atos, e assim, desvalorando a supremacia do interesse público.(BORGES, 2007)
3. Poder de Polícia e a restrição de direito individuais
O poder de polícia está entre um dos poderes da Administração Pública, o qual pode ser considerado como manifestação do princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado devido a restrição de direitos individuais sob a justificativa da defesa da necessidade e aspirações da coletividade.
Para Gustavo Binenbojm, o uso da justificativa de superioridade do interesse coletivo sobre o interesses individuais dos particulares seria inconsistente, sendo elas restrições administrativas a direitos fundamentais devidamente impostos pelo sistema de princípios e valores constitucionais. Ou seja, ocorre a restrição a direitos fundamentais como forma de garantia e proteção de outros direitos igualmente ou mais relevantes.
A Constituição Federal de 1988 estabelece uma série de reservas e restrições a fim de garantir a proteção e promoção de outro direito fundamental ou de interesse da coletividade, estando legitimado no sistema constitucional. O problema se encontra na ausência da completa ponderação dos interesses conflitantes na lei e na Constituição, restando ao administrador público promover a adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito a fim de encontrar uma ponderação adequada entre o interesse coletivo e individual.
Na visão desse autor, é patente que o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular se demonstra de forma autoritária, mesmo que seja usado como fundamento e princípio normativo do direito administrativo, apresenta incompatível com o sistema constitucional dos direitos fundamentais. E de acordo com Humberto Ávila, convergem na ideia de que essa supremacia não deve ser qualificada como princípio, e que o postulado da proporcionalidade, também chamado de ponderação, seria o mais racional na defesa de interesses.
Para finalizar, Binenbojm reafirma que tal princípio foge a isonomia entre as partes, coferindo tratamento diferenciado ao Poder Público em relação aos particulares, pois para que seja válido, teria que ser instituído por lei, determinando a discriminação em desfavor dos particulares, o grau ou medida (extensão) dessa discriminação, além do grau ou medida do sacrifício imposto à isonomia frente a importância e utilidade para a coletividade.
Conclusão
A Administração Pública justifica seus atos e poderes, ao exemplo do poder de polícia, através do princípio implícito da supremacia do interesse público sobre o privado, justificando toda o exercício da ação administrativa, existindo a prerrogativa de que o interesse publico se prevaleceria sobre o privado antes mesmo da análise do conflito de interesses.
Com o advento do constitucionalismo, através do Estado democrático de direito, passa a possuir a Constituição como referencial para as normas infraconstitucionais, submetendo o Direito Administrativo aos princípios basilares da Constituição.
Nesse cenário, busca-se a concreta manifestação dos direitos fundamentais, sejam eles de interesse coletivo ou privado, porém quando privado, enseja diversas discussões da constitucionalidade de tal princípio, além de abrir discussão para diversas críticas quando ao sua constitucionalidade, conceito, classificação, e existência de fato na atualidade.
Ocorre assim, a divisão doutrinária quanto a compatibilidade desse princípio com a harmonia entre interesses públicos e privados, sendo sugerido por muitos, o uso da ponderação, ou seja, da aplicação do princípio da proporcionalidade a cada caso concreto.
Por fim, resta a crítica quanto a supremacia do interesse público, quando nem explícito no texto constitucional e muito se discute sua legitimidade, o qual abalaria a efetivação dos direitos fundamentais, ou até mesmo sua violação diante de uma prerrogativa que tão pouco analisa o conflito de interesses. Se mostrando mais adequado o uso da ponderação para encontrar a justa harmonia de interesses em cada caso concreto.
Informações Sobre o Autor
Andrei Rossi Mango
Acadêmico de Direito na Universidade Federal de Uberlândia