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Letícia Arantes Silva[1]
Resumo: Este trabalho tem por objetivo a análise dos aspectos hermenêuticos relacionados à aplicabilidade da Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874, de 2019) em âmbito local e os possíveis conflitos entre os seus dispositivos e as leis de posturas municipais. A elaboração do trabalho se pautou na ideia de que, apesar da importância de se estabelecer normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício da atividade econômica, muitos aspectos locais não foram considerados, tais como a existência de normas específicas que regulam a liberação da atividade econômica de maneira diferente da preconizada pela legislação federal. A metodologia empregada no texto passou por pesquisa bibliográfica, documental e estudos de casos concretos. Muitos pontos que foram levantados pela doutrina e pela jurisprudência, inclusive quando a Lei nº 13.874, de 2019, ainda era a Medida Provisória nº 881, de 2019, ensejando o ajuizamento de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, foram aqui discutidos. Buscou-se demonstrar as possíveis interpretações da Lei federal em cotejo com a legislação local diversa, e, por fim, concluiu-se com a indicação da necessidade de regulamentação, em âmbito municipal, de normas que se adequem a esta nova realidade de livre mercado e de impacto regulatório.
Palavras-chaves: Lei de Liberdade Econômica. Livre-iniciativa. Impacto regulatório. Lei local. Conflito de normas.
Abstract: This work aims to analyze the hermeneutical aspects related to the applicability of the Law on Economic Freedom (Law No. 13.874, of 2019) at the local level and the possible conflicts between its provisions and the laws of municipal postures. The elaboration of the work was based on the idea that, despite the importance of establishing norms to protect free enterprise and the free exercise of economic activity, many local aspects were not considered, such as the existence of specific norms that regulate the release of economic activity in a manner different from that recommended by federal legislation. The methodology used in the text went through bibliographical, documental and case studies research. Many points that were raised by doctrine and jurisprudence, including when Law No. 13.874, of 2019, was still Provisional Measure No. 881 of 2019, giving rise to the filing of a Direct Action of Unconstitutionality, were discussed here. We sought to demonstrate the possible interpretations of the Federal Law in comparison with different local legislation, and, finally, we concluded with an indication of the need for regulation, at the municipal level, of rules that adapt to this new reality of free market and regulatory impact.
Keywords: Economic Freedom Act. Free Initiative. Regulatory impact. Local law. Conflict of norms.
Sumário: Introdução. 1. A relevância da livre-iniciativa e o papel do Estado como agente regulador das atividades econômicas. 2. A Lei da Liberdade Econômica: competência e objeto. 3. O conflito normativo entre a Lei da Liberdade Econômica e a lei local e as possíveis interpretações quanto à sua aplicabilidade. Conclusão. Referências.
Introdução
O tema objeto deste estudo é a análise da chamada “Lei da Liberdade Econômica”, que trouxe inovações jurídicas consideráveis e sem precedentes na história do nosso ordenamento jurídico, no que tange ao tema das posturas municipais, que ainda não foram devidamente analisadas pela literatura jurídica com grandes aprofundamentos.
A Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019) é fruto da conversão da Medida Provisória nº 881, de 30 de abril de 2019, e institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, estabelecendo garantias de livre mercado, análise de impacto regulatório, dentre outras providências. Trata-se de uma lei recente, sem jurisprudência formada, motivo pelo qual caminha-se em terreno inóspito.
Com a publicação desta Lei Federal, o empreendimento que seja considerado de baixo risco, e para o qual se valha exclusivamente de propriedade privada própria ou de terceiro consensuais, poderá exercer suas atividades independentemente de atos públicos de liberação, tais como a licença, a autorização, o alvará, dentre outros.
Para tanto, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios devem observar o comando federal, por se tratar de uma norma geral (como a própria Lei se autodenomina), mesmo que suas legislações próprias exijam a emissão de atos públicos para o exercício de quaisquer atividades econômicas.
Diante de tal quadro e das interpretações possíveis sobre os limites da atuação da União na expedição de normas gerais em matéria de Direito Econômico, já se adianta que, independentemente da interpretação utilizada, não se revelará inquestionavelmente segura e única. Considera-se o presente estudo como uma análise contextual prévia para fornecer algumas hipóteses interpretativas viáveis.
Registre-se também que não é possível avaliar todas as consequências de eventual aplicação extremada da Lei de Liberdade Econômica sobre a atividade de polícia administrativa municipal. Isso porque existe um emaranhado de licenciamentos para as atividades econômicas em âmbito local, muitas vezes disciplinadas em normas específicas.
As legislações locais que disciplinam a expedição de atos públicos de liberação da atividade econômica, em razão da anterior ausência de balizas objetivas, serão passíveis de conflito com a nova disciplina federal e deverão, portanto, ser revistas.
A questão problema levantada neste artigo corresponde, justamente, a essa revisão das legislações locais que não levam em consideração o grau de risco da atividade econômica executada pelo particular (baixo, médico e alto risco) para exigir determinados atos públicos de liberação e, com isso, como poderiam ser interpretadas essas leis locais em cotejo com a Lei da Liberdade Econômica.
Em relação à organização do texto, no primeiro tópico propõe-se a examinar a livre-iniciativa como fundamento da República Federativa do Brasil e qual o papel do Estado na intervenção da atividade econômica, iniciando-se com os aspectos constitucionais, passando pelas formas de atuação estatal na economia, para concluir que a publicação da Lei da Liberdade Econômica é uma das concretizações desta atuação.
No segundo tópico, disserta-se sobre a competência e o objeto da Lei da Liberdade Econômica, mormente em relação à sua autoproclamação como norma geral de direito econômico e à sua amplitude quando impõe que suas disposições sejam observadas por todos os entes da Federação.
Por fim, no terceiro tópico, perquire-se a análise de conflitos entre a Lei da Liberdade Econômica e a lei local que trate de forma diversa sobre os atos de liberação econômica, e as possíveis interpretações que o exegeta poderia extrair da leitura da Lei federal, além de apontar alguns aspectos que podem ser objeto de eventual regulamentação em âmbito municipal, a fim de se adequar à nova realidade regulatória da atividade econômica.
1 A relevância da livre-iniciativa e o papel do Estado como agente regulador das atividades econômicas
A livre-iniciativa é elevada, na Constituição Federal de 1988 (CF/88), a fundamento da República[2], evidenciando a sua relevância jurídica no Estado Democrático de Direito.
Sintetizando o postulado da livre-iniciativa, o parágrafo único do artigo 170 da Constituição da República assegura a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
Assim, a própria Constituição da República permite que, mediante lei, a atividade econômica possa ser restringida, indicando a incidência do poder de polícia estatal, conceituado por JUSTEN FILHO (2019, p.27) como uma das manifestações mais típicas da função administrativa, destinando-se a promover a compatibilização da atuação do sujeito privado com valores, direitos e interesses de dimensão coletiva.
Acerca da estrutura do poder de polícia no Estado Democrático de Direito, disserta Gustavo Binenbojm:
“[…] o poder de polícia é a ordenação social e econômica que tem por objetivo conformar a liberdade e a propriedade, por meio de prescrições e induções, impostas pelo Estado ou por entes não estatais, destinadas a promover o desfrute dos direitos fundamentais e o alcance de outros objetivos de interesse da coletividade, definidos pela via da deliberação democrática, de acordo com as possibilidades e os limites estabelecidos na Constituição” (2017, p. 78).
Especificamente em relação às atividades econômicas, o poder de polícia estatal se revela pelo papel do Estado como agente normativo e regulador, exercendo as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, como dita o artigo 174 da Constituição Federal.
Pela leitura do referido artigo, percebe-se que a função normativa e regulatória do Estado não se limita a restringir e a condicionar a autonomia privada, mas também se orienta a incentivar e a planejar condutas sociais e economicamente desejáveis.
Assim, ainda que a competência regulatória esteja associada, em termos gerais, ao poder de polícia, é preciso compreender que o âmbito da regulação possui contornos mais amplos e especializados, que superam as concepções tradicionais da discricionariedade administrativa, núcleo do poder de polícia (JUSTEN FILHO, 2019, p. 29).
A doutrina de MELLO (2004, p. 641) assevera que há três possibilidades de intervenção do Estado na economia: através de seu poder de polícia; mediante incentivos à iniciativa privada, atuando como propulsor das atividades econômicas; e por meio de sua atuação como agente ativo no setor empresarial, consoante as normas constitucionais.
Com a publicação da Lei Federal nº 13.874, de 20 de dezembro de 2019, que institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica e estabelece garantias de livre mercado, fica evidente a atuação do Estado enquanto agente normativo e regulador, nas funções de incentivo e planejamento para proteger a livre iniciativa e o livre desempenho do ofício, simplificando o registro e a legalização do empreendedor de atividade econômica e estabelecendo direitos e garantias a este exercício.
2 A Lei da Liberdade Econômica: competência e objeto
A Lei Federal nº 13.874, de 2019, em seus artigos 1º a 4º, se autointitulou uma norma geral de direito econômico, exigindo sua observância para todos os atos públicos de liberação da atividade econômica executados pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios.
Impôs, ainda, que todas as normas de ordenação pública sobre as atividades econômicas privadas fossem interpretadas em favor da liberdade econômica, da boa-fé e do respeito aos contratos, aos investimentos e à propriedade.
De rigor, as normas de direito econômico se submetem à disciplina da competência federativa concorrente, nos termos do artigo 24, inciso I, da CF/88.
E na sistemática desta competência concorrente, ditam os §§ 1º a 4º do referido artigo 24, que a União é titular de competência para produzir normas gerais sobre a matéria, cabendo aos entes federativos mencionados o poder jurídico para instituir normas suplementares, afeiçoando a legislação estadual às peculiaridades locais, de forma a superar a uniformização simétrica da legislação federal (HORTA, 2003, p. 356).
Isso significa que as normas gerais editadas pela União, no âmbito da sua competência concorrente, podem ser definidas como normas nacionais, possuindo eficácia vinculante para todos os demais entes federativos, cabendo a estes últimos a competência para editar normas especiais relacionadas a assuntos específicos, em prol dos seus próprios interesses.
Não obstante, como não existe uma delimitação prévia e expressa sobre o que seja “norma geral”, muitas vezes, há dificuldades em se estabelecer o limite onde termina o “geral” para começar o “específico”, o “local”, o “interesse próprio”, o que pode, eventualmente, causar um conflito de normas, tema a ser tratado no próximo tópico.
Em relação ao seu objeto, a Lei Federal nº 13.874, de 2019 visa a instituir a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, dispondo sobre os direitos de toda pessoa natural ou jurídica essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País.
Acerca da denominação “Declaração de Direitos”, dissertam LEAL, ALBUQUERQUE JÚNIOR E COSTA FILHO (2019, p. 102):
“A denominação “Declaração de Direitos” sugere que o diploma legislativo sob análise não almeja criar inovações para o direito brasileiro, posto que diversos dispositivos da nova lei apenas remetem a institutos que já gozavam de reconhecimento na doutrina especializada e na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (STJ).
Essa flexibilização no sentido de impulsionar a livre-iniciativa, contudo, é apontada pela doutrina especializada como uma das genuínas inovações da Lei de Liberdade Econômica. Trata-se de garantia à livre-iniciativa enquanto liberdade de estabelecimento, a fim de assegurar o direito de iniciar uma atividade econômica, o direito de constituir uma empresa, bem como o direito de, pessoalmente ou sob o manto da pessoa jurídica, proceder com a ordenação de certos meios de produção para certa finalidade econômica”.
Dentre estes direitos, destaca-se aquele que será objeto de estudo mais aprofundado no tópico seguinte: o desenvolvimento de atividade econômica de baixo risco, para a qual se valha exclusivamente de propriedade privada própria ou de terceiros consensuais, sem a necessidade de liberação da atividade econômica (inciso I do artigo 3º da Lei Federal nº 13.874, de 2019).
Veicula referido inciso I do artigo 3º uma atuação negativa, impondo à Administração Pública a obrigação de tolerar que aquelas pessoas realizem alguma atividade, que normalmente seria repelida ou condicionada a certos requisitos ou a certas restrições (LEAL, ALBUQUERQUE JÚNIOR E COSTA FILHO, 2019, p. 102).
Ocorre que, em virtude da inexistência, até então, de uma lei geral que tratasse sobre os significados, os parâmetros e a extensão da livre-iniciativa, muitas legislações locais, no exercício do poder de polícia inerente ao Estado, apontaram como restritivas da atividade econômica, tais como as legislações municipais que exigem a emissão de alvará de funcionamento para toda e qualquer atividade, independente do risco que tal atividade gere.
Com isso, há necessidade de que tais leis locais vigentes passem por uma filtragem de legalidade e de constitucionalidade, para análise da sua compatibilidade com a lei geral e com as regras de competência legislativa ditadas pela Constituição da República.
Outro ponto discutível é a amplitude alicerçada na Lei da Liberdade Econômica, de forma a colocar em dúvida se ela realmente se sustenta, sob o ponto de vista jurídico, como uma norma geral, ou se houve uma invasão de competência, a adentrar em temas supostamente de interesse local.
Portanto, a Lei da Liberdade Econômica, aparentemente simples e de fácil leitura, consubstancia exatamente o contrário. Apenas um trabalho cauteloso e acurado de interpretação e análise possibilita a extração do verdadeiro sentido e alcance do que determina o enunciado.
3 O conflito normativo entre a Lei da Liberdade Econômica e a lei local e as possíveis interpretações quanto à sua aplicabilidade
O artigo 3º, inciso I, da Lei nº 13.874, de 2019 estabelece ser um direito de toda pessoa, natural ou jurídica, desenvolver atividade econômica de baixo risco, para a qual se valha exclusivamente de propriedade privada própria ou de terceiros consensuais, sem a necessidade de liberação da atividade econômica.
Convém, inicialmente, abordar as duas expressões-chave do texto legal, quais sejam, “atividade econômica de baixo risco” e “liberação da atividade econômica”.
A classificação como “atividade econômica de baixo risco”, segundo o §1º do artigo 3º da Lei nº 13.874, de 2019, depende de legislação específica estadual, distrital ou municipal.
Não havendo normatização pelos entes federativos, compete tal mister ao Poder Executivo Federal, e, se este último também for omisso, a matéria pode ser objeto de Resolução do Comitê para Gestão da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios – CGSIM, independentemente da aderência do ente federativo à Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (Redesim).
Desta forma, se a legislação local não definir, por meio de legislação específica, aquilo que considera como atividade econômica de baixo risco, a fim de cumprir a Lei da Liberdade Econômica, fica o ente municipal vinculado à definição encartada pelos demais entes.
Nesse aspecto, foi editada pelo Comitê para Gestão da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios – CGSIM, a Resolução nº 51, de 11 de junho de 2019, posteriormente alterada pela Resolução nº 57, de 21 de maio de 2020.
Ao contrário de “baixo risco”, a definição de “liberação de atividade econômica” está na própria Lei nº 13.874, de 2019, que em seu art. 1º, §6º define como atos públicos de liberação a licença, a autorização, a concessão, a inscrição, a permissão, o alvará, o cadastro, o credenciamento, o estudo, o plano, o registro e os demais atos exigidos, sob qualquer denominação, por órgão ou entidade da administração pública na aplicação de legislação, como condição para o exercício da atividade econômica.
Assim, a necessidade de simplificar suas legislações, a fim de melhor adequar o tratamento conferido pelos entes federados àquele que pretende exercer seu ofício surge como produto da observância da Lei em comento e do estudo do rito até então adotado em âmbito regional ou local.
O que pretende a legislação federal é dispensar as atividades consideradas como de “baixo risco” da necessidade de obterem alguns atos públicos de liberação da atividade econômica (como, por exemplo, o “alvará de funcionamento”), devendo tal previsão ser observada pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios.
Relembre-se que a própria Lei Federal nº 13.874, de 2019 se autoproclama como uma norma geral de Direito Econômico, como se verifica da literalidade do §4º do seu artigo 1º.
Vale dizer, ela se arvora na condição de norma geral, no seio da chamada competência legislativa concorrente entre União, Estados e Distrito Federal – e, sob o aspecto do interesse local, dos Municípios – como previsto no artigo 24 da CF/88. Afinal, o inciso I do referido dispositivo constitucional arrola o Direito Econômico no rol de matérias afetas à legislação concorrente.
Em tal situação, o papel da União limita-se a estabelecer normas gerais (§1º), o que não exclui a competência suplementar dos demais entes federativos (§2º e artigo 30, inciso I). Inexistindo norma geral, a competência legislativa dos entes federativos é plena (§3º); advindo, contudo, a norma geral nacional, há a suspensão da eficácia das normas regionais e locais, no que forem a ela contrárias (§4º).
Um ponto importante a ser frisado neste momento, para que não haja dúvidas nesse sentido, é que a norma geral expedida pela União não revoga a lei dos demais entes federativos, apenas suspende-lhe a eficácia. Tecnicamente são coisas diversas.
Em primeiro lugar, a norma local é plenamente válida em relação às atividades não abrangidas pela norma geral, seja qual for a interpretação que se dê a ela em relação à sua amplitude; em segundo lugar, caso a norma geral seja revogada ou retirada do ordenamento jurídico de qualquer modo, volta a ter plenos efeitos a legislação municipal, que não foi retirada do ordenamento jurídico.
Feito este esclarecimento prévio, a atividade do intérprete, regra geral, perpassará pela análise da existência de possível conflito entre as normas federal geral e municipal específica e se haverá a suspensão da eficácia da legislação local no que toca à dispensabilidade de qualquer ato público para o desenvolvimento de atividade econômica de baixo risco.
Neste ponto, é bastante discutível se tal previsão se adequa aos limites constitucionais, sem que seja possível, contudo, desconsiderar sua existência e seus possíveis efeitos, em especial a interpretação que o Poder Judiciário dará a esta rede normativa.
Sobre o assunto, aduz JUSTEN FILHO (2019, p. 31):
“Não existe definição expressa para a “norma geral” prevista no art. 24, §1º, da CF/88. O tema gera controvérsias significativas, nos diversos ramos do direito. O caso mais conhecido em envolve as normas gerais sobre licitação e contratação administrativa, objeto do disposto no art. 22, inc. XXVII, da Constituição.
A expressão “norma geral” atribui à União uma margem de discricionariedade para editar normas vinculantes para todas as esferas federativas. Cabe à União determinar a amplitude e a profundidade da disciplina a ser observada de modo compulsório pelos demais entes federativos.
O limite para a norma geral veiculada pela União é a autonomia federativa. É vedado à União eliminar a autonomia mínima inerente à forma federativa de Estado.
Essa vedação apanha tanto medidas orientadas diretamente a atingir esse resultado como também as providências de cunho indireto. Uma determinação legislativa proveniente da União infringirá a Constituição quando afetar o núcleo essencial de competências e interesses do ente federativo local”.
Diante do quadro de insegurança hermenêutica, vislumbram-se duas interpretações possíveis, que se passará a expor e que poderão servir de instrumento de aprofundamento de reflexão do intérprete.
A primeira interpretação é aquela que se atém à literalidade da norma (a qual, aparentemente, é a desejada pelo legislador federal), no sentido de que toda a legislação municipal referente ao licenciamento de atividades que sejam contrárias ao que consta da Lei da Liberdade Econômica teve sua eficácia suspensa.
Se a interpretação for neste sentido extremado, a legislação de posturas municipais em relação a atividades econômicas era eficaz pela inexistência de norma geral de âmbito nacional; com o advento da norma geral, não mais possui eficácia as disposições que lhes forem contrárias. Caso a norma nacional seja, um dia, revogada ou retirada do sistema, voltaria a legislação local a produzir efeitos normalmente.
Esta interpretação produz, contudo, profundos efeitos em todo o setor de regulação de atividades no âmbito municipal. Basicamente, no que interessa ao tema ora em análise, aplicar-se-iam, integralmente, as previsões dos artigos 1º e 3º da Lei federal.
Valer dizer, para as atividades de baixo risco seria vedada a exigência de prévio licenciamento para o seu funcionamento (mesmo havendo legislação local neste sentido), sendo que por “atividades de baixo risco”, em caso de omissão da legislação municipal, aplicar-se-iam as definições da Resolução CGSIM nº 51/2019, alterada pela Resolução CGSIM nº 57/2020.
Trata-se, sem dúvida, de uma grande mudança de paradigma no aspecto regulatório nacional. Mas, também, de uma modificação normativa centralizadora e abrupta, posto não ter levado em consideração as atuais previsões legais municipais e as peculiaridades locais.
Inclusive, a constitucionalidade da Medida Provisória nº 881, de 2019 (que deu origem à Lei da Liberdade Econômica) foi questionada no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF) por meio de algumas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs), dentre as quais, a que aqui interessa, é a ADI nº 6.156, ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT).
Impugnava-se desde questões formais (como a falta de urgência e relevância que permitisse a veiculação da matéria por Medida Provisória) à questão de fundo, como o superdimensionamento da livre iniciativa em menoscabo de outros valores constitucionais da mesma hierarquia, vários dos quais fundamentam o exercício do poder de polícia municipal, que se consubstancia na tradicional expedição do “alvará de funcionamento”, abolido para as atividades de baixo risco, se aplicada a norma federal ipsis litteris. Com isso, haveria afronta ao princípio federativo.
Nesse sentido, ditava a petição inicial da referida ADI:
“Como se vê, a MP nº 881/2019 revela um acinte ao princípio da autonomia dos entes federativos, uma vez que invade a competência dos demais entes, não se podendo rotular essa disciplina sob o manto genérico de “norma geral de direito econômico”, por não se enquadrar na previsão do artigo 24 da Constituição Federal de 1988. A União não pode impor sua política econômica aos demais componentes da República Federativa do Brasil. Os denominados “atos públicos de liberação da atividade econômica”, consubstanciados na licença, autorização, no alvará e demais atos exigidos, são circunscritos à competência dos entes municipais, por exemplo, por se tratarem de tema preponderante interesse local, a teor do artigo 30, inciso I, da Constituição”.
Não obstante, a Medida Provisória nº 881, de 2019, foi convertida na Lei nº 13.874, de 2019, antes que a ADI pudesse ser julgada. Em razão da falta de aditamento da petição inicial pelo autor da ADI, o Relator julgou a ação extinta, por falta de objeto, atendendo à jurisprudência pacífica no âmbito do Supremo Tribunal Federal.
Crê-se que este tipo de questionamento formulado na ADI é bastante adequado à previsão que ora se analisa na Lei da Liberdade Econômica. No mínimo, é deveras discutível se ela realmente se enquadra como “norma geral em matéria de Direito Econômico” ou se ultrapassou o “geral” para se tornar o “específico” ou o “exauriente”.
Em especial, parece ser problemática a previsão de aplicação de rol de atividades de baixo risco previstas em regulamento federal ou em ato subalterno de um Comitê vinculado à Administração Federal, em inversão hierárquica que coloca uma resolução infralegal de órgão federal acima de uma lei municipal.
Sobre o assunto da invasão de competência, assevera ALMEIDA (2005, p. 97):
“O problema nuclear da repartição de competências na Federação reside na partilha da competência legislativa, pois é através dela que se expressa o poder político cerne da autonomia das unidades federativas.
De fato, é na capacidade de estabelecer as leis que vão reger as suas próprias atividades, sem subordinação hierárquica e sem a intromissão das demais esferas de poder, que se traduz fundamentalmente a autonomia de cada uma dessas esferas. Autogovernar-se não significa outra coisa senão ditar-se as próprias regras. (…)
Está aí bem nítida a ideia que se quer transmitir: só haverá autonomia onde houver a faculdade legislativa desvinculada da ingerência de outro ente autônomo. Assim, guarda a subordinação apenas ao poder soberano no caso o poder constituinte, manifestado através de sua obra, a Constituição -, cada centro de poder autônomo na Federação deverá necessariamente ser dotado da competência de criar o direito aplicável à respectiva órbita.
E porque é a Constituição que faz a partilha, tem-se como consequência lógica que a invasão não importa por qual das entidades federadas do campo da competência legislativa de outra resultará sempre na inconstitucionalidade da lei editada pela autoridade incompetente. Isso tanto no caso de usurpação de competência legislativa privativa, como no caso de inobservância dos limites constitucionais postos à atuação de cada entidade no campo da competência legislativa concorrente”.
Mas tudo isso, por enquanto, é exercício de reflexão. Como cediço, eventual controle de constitucionalidade da Lei deve ser feito, se o caso, de forma concentrada no âmbito das ADIs pelo Supremo Tribunal Federal. Até lá, a Lei da Liberdade Econômica é válida, vigente, eficaz e presumivelmente constitucional, devendo ser interpretada e aplicada.
De outro giro, na hipótese de haver legislação local que exija, como regra geral, a emissão de atos públicos (tais como o alvará de funcionamento), independentemente do grau de risco da atividade, também é possível interpretá-la de forma restritiva, sem a necessidade de haver uma suspensão sumária do seu texto pelo advento da norma geral.
Nesta interpretação, as atividades consideradas de baixo risco, por dispensarem a exigência de alvará de funcionamento, nos termos da lei geral, estariam excluídas da legislação local e deveriam ser regulamentadas no âmbito municipal por ato próprio.
Vale dizer, por exclusão, seria possível que ato legislativo municipal explicitasse essa interpretação restritiva da lei, veiculando lista de todas as atividades consideradas, pela Administração Pública, como de “baixo risco” e que não exigiriam prévio alvará de funcionamento (ou seja, que não se enquadrariam na lei local que o exige).
Não obstante, esta lei continuaria válida e eficaz para outras atividades (por exemplo, de médio e alto risco, em que o ato público de liberação fosse exigido), uma vez que, neste ponto, não haveria contradição com a norma geral.
Apesar disso, entende-se que, mesmo para aplicação desta interpretação restritiva, é imprescindível uma delimitação, no âmbito municipal, da classificação das atividades econômicas de baixo risco, a fim de dar concretude à Lei da Liberdade Econômica, evitar problemas casuísticos e discussões judiciais por parte dos particulares que considerarem ter seu direito à liberdade econômica ofendido. Considera-se esta regulamentação extremamente importante para a segurança jurídica deste tema em âmbito local.
Embora seja possível extrair esta interpretação restritiva da norma municipal, para o fim de adequá-la à legislação federal superveniente, ressalve-se que a Lei de Liberdade Econômica foi enfática ao se constituir como norma geral, aplicando-se as regras da competência concorrente, segundo a qual haverá suspensão das legislações estaduais (ou locais) que lhe forem contrárias.
Logo, a interpretação que parece mais consentânea com a vontade do legislador federal é aquela que leva em consideração a sua literalidade, motivo pelo qual, havendo legislação local que não distinga as atividades de baixo, médio e alto risco, dispensando o mesmo tratamento àquele que empreende, sem considerar a complexidade, a dimensão e outras características da empresa, conflita com a novel Lei da Liberdade Econômica, estando, portanto, com a sua eficácia suspensa, nos termos do art. 24, §4º, da CF/88.
Neste contexto, apontam-se alguns aspectos que podem ser objeto de eventual regulamentação municipal, tais como a necessidade de reflexão e regulamentação para harmonizar a aplicação da previsão nacional às questões urbanísticas (licenciamento de localização, regulado pela Lei de Uso e Ocupação do Solo) e à questão da inscrição municipal, que continua obrigatória para toda e qualquer atividade[3].
Também há a necessidade de implementação de fiscalização ostensiva adequada à nova realidade, para as atividades cujo agente se autointitular como de baixo risco e que, por consequência, não necessite de nenhum licenciamento prévio[4], seja para verificação de seu efetivo enquadramento no baixo risco, seja para questões de localização, conforme o zoneamento urbano ou ambiental.
E, por fim, a regulamentação clara das atividades de baixo risco de forma adequada ao interesse local, com posterior encaminhamento de notificação ao Ministério da Economia, nos termos do artigo 3º, §1º, inciso III, da Lei da Liberdade Econômica.
Conclusão
O papel do Estado como agente normativo e regulador das atividades econômicas se revela pelas funções de fiscalização, incentivo e planejamento, consagradas constitucionalmente. Assim, possui o Estado a competência de, mediante lei, incentivar e planejar condutas sociais e economicamente desejáveis.
Foi no exercício destas funções que se instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, inicialmente por meio da edição da Medida Provisória nº 881, de 30 de abril de 2019, a qual, apesar da controvérsia a respeito da sua constitucionalidade formal e material, foi convertida na Lei Federal nº 13.874, de 20 de dezembro de 2019, denominada de Lei da Liberdade Econômica.
A Lei da Liberdade Econômica se propõe a desburocratizar os empreendimentos de baixo risco, visando a garantir um livre mercado por meio da Declaração dos Direitos da Liberdade Econômica, dispondo sobre os direitos de toda pessoa natural ou jurídica essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País.
Ocorre que um desses direitos tem gerado discussões jurídicas: o desenvolvimento de atividade econômica de baixo risco, para o qual se valha exclusivamente de propriedade privada própria ou de terceiro consensuais, sem a necessidade de liberação da atividade econômica, impondo que este direito seja observado por todos os entes federativos.
Por atos públicos de liberação entende-se a licença, a autorização, a concessão, a inscrição, a permissão, o alvará, o cadastro, o credenciamento, o estudo, o plano, o registro e os demais atos exigidos, sob qualquer denominação, por órgão ou entidade da administração pública na aplicação de legislação, como condição para o exercício da atividade econômica.
Assim, o que pretende a legislação federal é dispensar as atividades consideradas como de baixo risco da necessidade de obterem alguns atos públicos de liberação da atividade econômica (como, por exemplo, o “alvará de funcionamento”), devendo tal previsão ser observada pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios.
Impõem-se aos entes federativos uma atuação negativa de tolerar que determinados empreendimentos, considerados de baixo risco, exerçam sua atividade, sem que, para isso, haja a necessidade de eventuais atos de autorização estatal.
No entanto, como até então inexistia uma lei geral que disciplinasse os significados, os parâmetros e a extensão da livre-iniciativa, os entes federativos, no exercício do poder de polícia que lhe é inerente à atuação regulatória, editaram legislações específicas que restringiam o exercício da atividade econômica, tais como as legislações municipais que exigem a emissão de alvará de funcionamento para toda e qualquer atividade, independentemente do risco que tal atividade gere (baixo, médio ou alto risco).
Por este motivo, discute-se a existência de possível conflito entre as normas federal geral e municipal específica, e se a eficácia destas legislações locais restritivas deveria ser suspensa pela publicação de uma norma geral, nos termos do §4º do art. 24, da Constituição Federal.
Para tanto, foram analisadas algumas críticas à amplitude da Lei da Liberdade Econômica, especialmente se os seus termos se adequam aos limites constitucionais, ou se houve uma invasão de competência em assuntos locais, além de um superdimensionamento da livre iniciativa em menoscabo de outros valores constitucionais da mesma hierarquia, vários dos quais fundamentam o exercício do poder de polícia municipal.
No entanto, em razão da constitucionalidade presumida da Lei Federal nº 13.874, de 2019, é preciso extrair do seu texto possíveis interpretações que poderão servir de instrumento de aprofundamento de reflexão do intérprete.
Dentre essas interpretações, desponta a interpretação literal, no sentido de que toda a legislação local referente ao licenciamento de atividades que sejam contrárias ao que consta da Lei da Liberdade Econômica teve sua eficácia suspensa.
Esta interpretação extremada produz, entretanto, profundos efeitos em toda a política regulatória das atividades econômicas em âmbito municipal, ou seja, para as atividades de baixo risco seria vedada a exigência de prévio licenciamento para o seu funcionamento, ainda que haja legislação local neste sentido.
Por outro lado, na hipótese de haver legislação local que exija como regra geral a emissão de atos públicos (tais como o alvará de funcionamento), independentemente do grau de risco da atividade, também seria possível interpretá-la de forma restritiva, sem a necessidade de haver uma suspensão sumária de seu texto pelo advento da norma geral, excluindo-se apenas as atividades de baixo risco, que deveriam ser regulamentadas em ato próprio.
Em outras palavras, haveria uma filtragem da lei local em vigor para excluir da sua abrangência os empreendimentos de baixo risco, continuando válida e eficaz para outras atividades disciplinadas em seu texto (por exemplo, atividades de médio e alto risco, em que o ato público de liberação fosse exigido), uma vez que, neste ponto, não estaria em contradição com a norma geral.
Os empreendimentos de baixo risco, por sua vez, deveriam ser veiculados em ato legislativo municipal, para dar publicidade e transparência ao não enquadramento na lei local que exige atos públicos de liberação para o seu exercício, evitando-se problemas casuísticos e discussões judiciais por parte de particulares que considerarem ter seu direito à liberdade econômica ofendido.
Neste contexto, independentemente da interpretação que seja dada a este complexo normativo pelo exegeta, aponta-se a necessidade de regulamentação em âmbito local da Lei da Liberdade Econômica, objetivando a sua adequação à nova realidade normativa, mormente no que tange à fiscalização e à observância de todas as normas de zoneamento urbano, ainda vigentes e de interesse local.
Referências
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HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 4 ed. rev. e atual. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
JUSTEN FILHO, Marçal. Abrangência e Incidência da Lei. Comentários à Lei de Liberdade Econômica: Lei 13.874/2019/Coordenadores Floriano Peixoto Marques Neto, Otávio Rodrigues Jr., Rodrigo Xavier Leonardo – São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2019.
LEAL, Larissa Maria de Moraes; ALBUQUERQUE JUNIOR, Roberto Paulino; COSTA FILHO, Venceslau Tavares. Direito da Liberdade Econômica. Comentários à Lei de Liberdade Econômica: Lei 13.874/2019/Coordenadores Floriano Peixoto Marques Neto, Otávio Rodrigues Jr., Rodrigo Xavier Leonardo – São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2019.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 17. Ed. São Paul: Malheiros, 2004.
[1] Pós-Graduada em Direito Civil, Direito Processual Civil, Direito do Consumidor e Direito Público. E-mail: [email protected]
[2] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(…)
IV – os valores sociais do trabalho e a livre iniciativa (Vide Lei nº 13.874, de 2019)
[3] Art. 1º (…) §3º O disposto nos arts. 1º, 2º, 3º e 4º desta Lei não se aplica ao direito tributário e ao direito financeiro, ressalvado o inciso X do caput do art. 3º.
[4] Resolução CGSIM nº 51/2019. § 1º As atividades de nível de risco I – baixo risco, “baixo risco A”, risco leve, irrelevante ou inexistente, nos termos do art. 2º, inciso I, desta Resolução não comportam vistoria para o exercício contínuo e regular da atividade, estando tão somente sujeitas à fiscalização de devido enquadramento posterior nos termos do art. 3º, § 2º da Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019. (Redação do parágrafo dada pela Resolução CGSIM Nº 57 DE 21/05/2020).