Declaração de Direitos de Liberdade Econômica: dispensa de atos públicos de liberação e impactos da Lei Federal 13.874/2019 na atividade fiscalizatória dos Municípios

Orlin Ivanov Goranov – Advogado, Mestre em Direito, Especialista em Direito Tributário, Especialista em Direito Público.

 

Resumo: É corolário de um Estado Democrático de Direito tentar acomodar o pluralismo de interesses que permeiam a Carta Constitucional. O peso atribuído a cada um destes valores depende do momento histórico, social e econômico em que são invocados na medida em que se apresentam como termos abertos e polissêmicos. O avanço da tecnologia e a modernização dos meios de produção exigem uma resposta estatal célere e eficiente, o que, considerando os paradigmas burocráticos do Direito Administrativo, não tem se concretizado. O Poder de Polícia, lento e, por isso, deficiente, não favorece um ambiente empreendedor, exigindo medidas legais que corrijam estes disparates. Esse é o contexto histórico-social que fez surgir diversos instrumentos legislativos de desburocratização de procedimentos para abertura de empresas, do que é exemplo a Lei Federal nº 13.874/2019. No entanto, a recepção desta norma geral deve ser compatibilizada com inúmeros outros valores constitucionais, em especial, àqueles que já possuem instrumentos de concretização à exemplo da vigilância sanitária, proteção contra incêndio, meio ambiente e outras correlatas. Este artigo busca evidenciar os principais impactos da Lei Federal nº 13.874/2019 na atividade fiscalizatória dos Municípios e como a norma geral de Liberdade Econômica deve ser aplicada a fim de alcançar a harmonia, completude e coerência do Ordenamento Jurídico.

Palavras-chave:  Lei da Liberdade Econômica – Impactos – Poder de Polícia municipal – Fiscalização

 

Abstract: It is corollary of a Democratic State reconcile the pluralism of interests that permeate the Constitution. The weight attributed to each of these values depends on the historical, social and economic moment in which they are invoked as they are presented as open and polysemic terms. The advance of technology and the modernization of the means of production require a prompt and efficient state response, which, considering the bureaucratic paradigms of Administrative Law, is not materialized. The slow, and therefore poor, Police Power does not favor an enterprising environment, requiring legal measures to correct such nonsense. This is the historical-social context that gave rise to various legislative instruments for reducing bureaucracy procedures for starting a business, such as Federal Law No. 13.874/2019. However, the reception of this general norm must be compatible with numerous other constitutional values, especially those that already have instruments of implementation of their own, such as sanitary surveillance, fire protection, environment and other related. This article seeks to highlight the main impacts of Federal Law No. 13.874/2019 on the supervisory activity of Municipalities and how the general rule of Economic Freedom should be applied in order to achieve the harmony, completeness and coherence of the legal system.

Keywords: Economic Freedom Law – Impacts – Municipal Police Power – Surveillance

 

Sumário: Introdução. 1. Matriz teórica: livre iniciativa, eficiência e Poder de Polícia. 2. Matriz prática: dispensa de atos públicos de liberação. Interpretações do art. 3º, inciso I, da Lei Federal nº 13.874/2019 e impactos na atividade fiscalizatória dos Municípios. 2.1 Dispensa de atos públicos de liberação e classificação de atividades de baixo risco. 2.2 Dispensa de atos públicos de liberação, taxas e Poder de Polícia. 2.3 Resolução CGSIM nº 51/2019 e seus limites hermenêuticos. Considerações finais. Referências.

 

Introdução

A pluralidade de direitos e garantias que permeiam o texto constitucional exige a reformulação do Direito Administrativo para viabilizar a concretização de diferentes políticas públicas e a convergência de interesses por vezes colidentes.[1] O exercício do Poder de Polícia, como forma de assegurar a segurança e o bem-estar de toda coletividade, e a necessidade de garantir a livre iniciativa (art. 1º, inciso IV, e art. 170, ambos da CR) de forma eficiente (art. 37, caput, da CR) são um exemplo claro desta dicotomia que há mais de 30 anos demanda do Legislador instrumentos infraconstitucionais (leis complementares e ordinárias) de efetivação.

Foi este o caso da Lei Federal nº 13.874, de 20 de setembro de 2019, que institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, estabelece garantias de livre mercado e altera dispositivos de diversos diplomas à exemplo da Lei das Sociedades Anônimas, Lei dos Registros Públicos, Código Civil, Consolidação das Leis do Trabalho, Cadastro Informativo dos créditos não quitados de órgãos e entidades federais e dá outras providências.

O recorte metodológico necessário para que o tema seja abordado com a devida profundidade se resume aos impactos da norma geral de liberdade econômica na atividade fiscalizatória de mais de 5000 (cinco mil) Municípios. A dispensa dos atos públicos de liberação para as atividades de baixo risco e a regulamentação da norma por meio de resolução CGSIM são alguns aspectos que devem ser analisados com a devida cautela.

O objetivo deste estudo é destacar as principais mudanças, positivas e negativas, trazidas pela novel legislação no que se refere a atividade fiscalizatória dos Municípios (alvarás) e iluminar eventuais contradições a fim de auxiliar a gestão pública municipal a convergir estes interesses colidentes, que é o significado de Estado Democrático de Direito.[2]

 

  1. Matriz teórica: livre iniciativa, eficiência e poder de polícia.

A premissa teórica indispensável para esta abordagem exige uma contextualização histórica por razões de cunho hermenêutico. Conceitos como livre iniciativa, eficiência, liberdade, igualdade e interesse público, são termos semânticos abertos, polissêmicos e cujos significados dependem das circunstâncias históricas e da realidade em que invocados. Nos dizeres de Binenbojm:

Assim, as relações de prevalência entre interesses privados e interesses públicos não comportam determinação a priori e em caráter abstrato, senão que devem ser buscadas no sistema constitucional e nas leis constitucionais, dentro do jogo de ponderações proporcionais envolvendo direitos fundamentais e metas coletivas da sociedade.”[3] (destaques no original)

Portanto, para sopesar estes conceitos abstratos (livre iniciativa e interesse público), além de ser necessária a compreensão de seus possíveis significados, é indispensável inseri-los na realidade brasileira contemporânea, identificando as reivindicações dos setores que, direta e indiretamente, são atingidos pela irradiação de seus efeitos.

Desde o advento do Estado Democrático de Direito inaugurado pela Constituição Federal de 1988 há uma tentativa, no âmbito dos três Poderes, de tornar a atividade estatal mais eficiente, garantindo uma resposta mais célere aos administrados. Isso, ao contrário de ser uma mera aspiração constitucional, decorre de uma demanda social inerente ao mundo globalizado,[4] calcado no avanço da tecnologia e na rapidez com que se concretizam as relações jurídicas, em especial, no mundo corporativo.

A passagem do Estado de Bem-Estar Social para o Estado Democrático de Direito, no que se refere à prestação das atribuições estatais e sua relação com os administrados, tem sido cada vez mais conflitiva e por razões óbvias: a liberdade de atuação da iniciativa privada gera um desenvolvimento científico e tecnológico que a máquina pública, inchada e gigantesca, muito em razão de seus diversos paradigmas ainda não reconstruídos, não é capaz de acompanhar.[5]

Compulsando a exposição de motivos da Emenda Constitucional nº 19/1998, que modificou o caput do art. 37 para inserir o princípio da eficiência como um dos norteadores da atuação do Estado, constata-se que o fundamento de fato que demandou a modificação da carta constitucional se resumia a desburocratização da máquina pública em prol desenvolvimento econômico:

“O revigoramento da capacidade de gestão, de formulação e de implementação de políticas nos aparatos estatais será determinante para a retomada do desenvolvimento econômico e o atendimento às demandas da cidadania por um serviço público de melhor qualidade. Além disso, o aumento da eficiência do aparelho do Estado é essencial para a superação definitiva da crise fiscal.

A revisão de dispositivos constitucionais não esgota a reforma administrativa, mas representa etapa imprescindível ao seu sucesso, promovendo a atualização de normas, concomitante à remoção de constrangimentos legais que hoje entravam a implantação de novos princípios modelos e técnicas de gestão.

No difícil contexto do retorno a democracia, que em nosso país foi simultâneo a crise financeira do Estado, a Constituição de 1988 corporificou uma concepção de administração pública verticalizada, hierárquica, rígida, que favoreceu a proliferação de controles muitas vezes desnecessários. Cumpre agora, reavaliar algumas das opções e modelos adotados, assimilando novos conceitos que reorientem a ação estatal em direção a eficiência e à qualidade dos serviços prestados ao cidadão.[6] (grifou-se)

Gabardo elenca como atributos da eficiência, a economicidade, a racionalização e a celeridade. A norma finalística concretiza-se a partir de uma análise econômico-racional do múnus público que só será eficiente se, dentre todas as medidas possíveis, for adotada aquela que melhor atenda o interesse público (útil) e, ao mesmo tempo, seja a que menos acarrete prejuízos econômicos ao erário (boa administração que se analisa a partir dos resultados).[7]

A Administração Pública, por determinação constitucional, deve ser eficiente (atos racionais, econômicos, úteis e céleres) para, dentre outros vieses, alavancar a economia e propiciar um ambiente favorável para o empreendedorismo. E esta necessidade de eficiência está diretamente relacionada ao Estado Democrático de Direito na medida em que o art. 1º da Constituição Federal traz como um de seus fundamentos a livre iniciativa (inciso IV).

Esta costura de valores constitucionais, de imediato, remete ao art. 170 do texto magno que, mais uma vez, elenca a livre iniciativa e a valorização do trabalho humano como fundamentos da Ordem Econômica. Sobre o tema, cirúrgica a manifestação do Ministro Marco Aurélio na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 46-7-DF:

“É de ressaltar que os preceitos tidos por violados são essenciais à ordem constitucional vigente, configurando princípios e fundamentos da República Federativa do Brasil, como a livre iniciativa – comando este previsto no artigo 1º, inciso IV(…).

A liberdade de iniciativa constitui-se em uma manifestação dos direitos fundamentais do homem, na medida em que garante o direito que todos têm de se lançar ao mercado de produção de bens e serviços por conta e riscos próprios, bem como o direito de fazer cessar a atividade (…).

A eficiência do Poder Público, então, será dimensionada não pelo número de atividades que preste diretamente à população, mas na medida em que consiga manter o mercado plenamente saudável para a livre iniciativa e a livre concorrência das empresas privadas”.[8]

No entanto, a Ordem Econômica é regida por outros princípios, dentre eles, a defesa do consumidor, a livre concorrência e a defesa do meio ambiente (art. 170, inciso IV, V e VI). A equação equilibrada deste emaranhado de normas finalísticas é o que sustenta o Estado Democrático de Direito.

Partindo desta leitura, é incontestável que a Ordem Econômica deve ser garantida pelo Estado a partir da criação de ambientes cada vez mais favoráveis para o desenvolvimento da livre iniciativa. Contudo, o Estado deve atuar, também, para proteger o consumidor, o meio ambiente e a livre concorrência. A livre iniciativa, ao contrário do que se pensa, depende do equilíbrio de todos valores, sob pena de se considerar a liberdade como a máxima constitucional, contrariando uma das mais básicas lições de hermenêutica.[9]

O Estado deve garantir a igualdade de condições. A atuação de órgãos como o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) contra o exercício irregular da livre iniciativa (sonegação fiscal, cartéis, irregularidades administrativas) é o que garante que os empresários que atuam no mercado com responsabilidade e boa-fé não serão prejudicados pela concorrência desleal.

Justamente para garantir este equilíbrio de normas programáticas (metas coletivas colidentes) é que os entes federados foram constitucionalmente incumbidos de zelar pela Ordem Pública, pela segurança dos consumidores, pelo meio ambiente ecologicamente equilibrado, praticando os mais diversos atos administrativos para coibir condutas que pudessem ir de encontro a estes preceitos.

O artigo 30 da Constituição da República – CR atribui aos Municípios inúmeras responsabilidades: legislar sobre assuntos de interesses local (inciso I); suplementar a legislação federal e a estadual no que couber (inciso II) e promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano (inciso VIII). Além disso, o art. 23 da Carta Constitucional estabelece uma competência comum entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios para: proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas (inciso VI).

Não é menos verdade que a segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, cabendo aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, a execução de atividades de defesa civil (art. 144, § 5º).

Todos os entes federados exercem este Poder de Polícia a partir destas competências comuns, concorrentes e privativas elencadas pelo legislador constituinte originário. O conceito de Poder de Polícia está delimitado pelo art. 78 do Código Tributário Nacional:

“Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interêsse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de intêresse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.”

No entanto, por uma questão de proximidade com os diversos atos que se realizam dentro de determinado território, é dos Municípios o ônus e o bônus de grande parte destas fiscalizações, assim como a responsabilidade pelas consequências que podem advir caso ela seja feita de forma deficiente. Em síntese, a análise teórico-abstrata destes princípios finalísticos diz que para que o exercício da livre iniciativa seja garantido pelo Estado de forma equânime, cabe ao empresário submeter seus atos constitutivos ao Poder Público municipal para que este, dentro das competências comuns, concorrentes e privativas, exerça o Poder de Polícia e expeça o ato público de liberação necessário para o início das atividades empresariais (alvarás).

Se a eficiência da máquina pública conseguisse acompanhar a velocidade das relações particulares não haveria necessidade de legislações simplificadoras de procedimentos cujo objetivo é desburocratizar e facilitar a abertura de empresas. Contudo, na prática, as reivindicações dos empresários, em especial, os de pequeno porte, vão justamente no sentido contrário. A morosidade nos procedimentos, a sobreposição de órgãos fiscalizadores (federais, estaduais e municipais), os altos custos de taxas e tarifas, dentre tantas ouras exigências que decorrem do Poder de Polícia, são a insurgência principal que, teoricamente, não atende, nem o princípio da livre iniciativa e nem o princípio da eficiência.

Todo este substrato fático-normativo serviu de base para os seguintes pontos de partida:

  1. a) a livre iniciativa é um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito e da Ordem Econômica, cabendo aos entes federados serem eficientes e desburocratizados para criar um terreno fértil para o desenvolvimento do empreendedorismo;
  2. b) na prática, o Estado não tem atendido estas normas finalísticas e, diante das suas premissas teóricas, ainda incompatíveis com a velocidade do mundo globalizado, tem criado obstáculos ao setor empresarial que podem impedir o desenvolvimento econômico, indo na contramão daquilo que o legislador constituinte estabeleceu como uma meta coletiva;
  3. c) se a demanda coletiva clama por instrumentos infralegais de efetivação destes princípios, é necessário que o Legislador, dentro da competência outorgada pela Constituição Federal, defina procedimentos mais simplificados que possam conciliar estes interesses colidentes (interesse público versus a livre iniciativa).

A Lei Federal nº 13.874/2019 andou bem sob o aspecto teórico normativo, já que o governo democraticamente eleito atendeu uma das agendas há muito reivindicadas e que estão alinhadas com as metas coletivas elegidas pelo legislador constituinte originário. Instituiu direitos e garantias que, apesar de não inovarem no Ordenamento Jurídico, explicitaram a necessidade de se criarem instrumentos que tornem os atos públicos de liberação mais céleres e eficientes em prol da livre inciativa, da livre concorrência e do desenvolvimento econômico.

Contudo, andou mal a Lei Federal nº 13.874/2019, ou melhor, o órgão encarregado de regulamentá-la (CGSIM), ao estabelecer uma norma geral de liberdades econômicas que, ao que tudo indica, se sobrepõe à todas as demais, ambientais, sanitárias, urbanísticas, de proteção contra o incêndio, estabelecendo uma zona cinzenta de possíveis conflitos normativos, colocando em xeque a efetividade prática do diploma.

O próximo tópico, portanto, será dedicado a apontar os possíveis impactos desta norma geral na atividade fiscalizatória dos Municípios, exigindo enorme cautela dos gestores públicos na implementação de seus instrumentos de efetivação, em especial, os que decorrem de uma interpretação literal da Resolução CGSIM nº 51/2019.

 

  1. Matriz prática: dispensa de atos públicos de liberação. Interpretações do art. 3º, inciso I, da Lei Federal nº 13.874/2019 e impactos na atividade fiscalizatória dos Municípios.

Este tópico tem por finalidade expor os principais impactos da Lei Federal nº 13.874/2019 na atividade fiscalizatória dos Municípios e será analisada a partir de três vieses: (i) em que medida a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica dialoga com a autonomia dos Municípios no que toca a dispensa de atos públicos de liberação e conceituação das atividades de baixo risco; (ii) quais os impactos fiscalizatórias e orçamentários que serão sentidos pelos Municípios; (iii) quais os limites hermenêuticos da Resolução CGSIM nº 51/2019.

 

2.1 Dispensa de atos públicos de liberação e classificação de atividades de baixo risco.

A modificação mais importante trazida pela Lei Federal nº 13.874/2019, e talvez a mais polêmica, gira em torno da norma contida no art. 3º, inciso I, e que já constava na redação original da Medida Provisória nº 881/2019:

“Art. 3º São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal:

I – desenvolver atividade econômica de baixo risco, para a qual se valha exclusivamente de propriedade privada própria ou de terceiros consensuais, sem a necessidade de quaisquer atos públicos de liberação da atividade econômica;”

O conceito de “atos públicos” encontra-se estampado no § 6º do art. 1º, definido nos seguintes termos:

“§ 6º Para fins do disposto nesta Lei, consideram-se atos públicos de liberação a licença, a autorização, a concessão, a inscrição, a permissão, o alvará, o cadastro, o credenciamento, o estudo, o plano, o registro e os demais atos exigidos, sob qualquer denominação, por órgão ou entidade da administração pública na aplicação de legislação, como condição para o exercício de atividade econômica, inclusive o início, a continuação e o fim para a instalação, a construção, a operação, a produção, o funcionamento, o uso, o exercício ou a realização, no âmbito público ou privado, de atividade, serviço, estabelecimento, profissão, instalação, operação, produto, equipamento, veículo, edificação e outros.” (grifou-se)

Trata-se da dispensa das licenças outorgadas pelo Poder Público, conhecidas, também, como alvarás: atos administrativos que reconhecem a conformidade de determinada operação empresarial com as normas locais de natureza urbanística, ambiental, de vigilância sanitária etc.[10] Esta não é a redação original do dispositivo. Na Medida Provisória nº 881/2019 não constavam as palavras acima grifadas e esta ampliação semântica não pode ser desconsiderada no processo interpretativo. A clara pretensão do Legislador de ampliar a dispensa dos atos públicos de liberação, inclusive o início, a continuação e o fim, indica qual o sentido da norma que deve ser extraído pelo intérprete.

Quando da entrada em vigor da Medida Provisória, levantou-se a hipótese de que a dispensa do ato seria prévia, mas não definitiva. O empresário poderia iniciar suas atividades sem o alvará, mas deveria se regularizar em momento posterior. Aliás, considerando outras normas já existentes no Ordenamento Jurídico e cujos fins eram os mesmos (LC nº 123/2006 e Lei Federal nº 11.598/2007), soava como a interpretação mais harmônica e coerente. Semelhante ao que já ocorre com a sistemática aplicável ao Microempreendedor Individual, a pretensão seria que determinadas atividades econômicas consideradas como de baixo risco fossem iniciadas sem qualquer licença dos órgãos públicos respectivos, observadas as exceções fixadas na própria Medida Provisória. Em momento posterior, o Município teria a prerrogativa de fiscalizar este estabelecimento, ratificar as declarações fornecidas em meio eletrônico pelo empresário e conceder o alvará definitivo.

No entanto, quando da conversão da Medida Provisória em Lei, regulamentada pela Resolução CGSIM nº 51/2019, esta interpretação perdeu bastante força. O art. 3º, § 1º, da Lei Federal nº 13.874/2019, reproduzido na íntegra quando da conversão da Medida Provisória nº 881/2019, prevê que:

“§ 1º Para fins do disposto no inciso I do caput deste artigo:

I – ato do Poder Executivo federal disporá sobre a classificação de atividades de baixo risco a ser observada na ausência de legislação estadual, distrital ou municipal específica;

II – na hipótese de ausência de ato do Poder Executivo federal de que trata o inciso I deste parágrafo, será aplicada resolução do Comitê para Gestão da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (CGSIM), independentemente da aderência do ente federativo à Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (Redesim); e

III – na hipótese de existência de legislação estadual, distrital ou municipal sobre a classificação de atividades de baixo risco, o ente federativo que editar ou tiver editado norma específica encaminhará notificação ao Ministério da Economia sobre a edição de sua norma.”

Em síntese: (i) o Município pode e deve legislar para classificar suas próprias atividades de baixo risco, obviamente, sem extrapolar os limites da razoabilidade e proporcionalidade, mas mantendo a sua competência para dispor sobre assuntos de interesse local, ordenação territorial e demais atribuições fiscalizatórias;[11] (ii) enquanto esta norma não for editada, prevalece a disposição constante do inciso II, qual seja, os procedimentos da Resolução CGSIM nº 51/2019 e a sua lista classificatória.[12] A Resolução CGSIM nº 51/2019 deixa ainda mais explícito que se a atividade do empresário for classificada como de “baixo risco” ou “Baixo Risco A” será dispensada a necessidade de todos os atos públicos de liberação da atividade econômica para plena e contínua operação e funcionamento do estabelecimento.

André Luiz Santa Cruz Ramos, diretor do Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (DREI) e jurista reconhecido, em recente palestra, externou a opinião do órgão, afirmando que, se a atividade for classificada como de baixo risco, o que, na ausência de norma local específica, atrai o disposto na dita resolução, não será necessário qualquer ato público de liberação, nem antes, e nem depois do início das atividades. Inclusive, se ventila a possibilidade de que, no próprio cartão CNPJ, seja inserida uma observação no sentido de que a atividade “dispensa atos públicos de liberação”.

Cumpre advertir que não se trata de instituir uma imunidade fiscalizatória. Muito pelo contrário. O Município, dentre as suas diversas competências, em momento posterior, de ofício ou por denúncia de algum munícipe, irá exercer esta fiscalização a fim de constatar, por exemplo: (i) se o cartão CNPJ confere com a atividade que está sendo exercida no local, (ii) se a documentação relativa aos atos constitutivos atende os requisitos mínimos de formalidade; (iii) se os alimentos comercializados estão acondicionados de forma adequada; (iv) se a atividade apresenta algum risco de incêndio, considerado a natureza e as peculiaridades do negócio; (v) se existe alguma atividade potencialmente poluidora que exija alguma tipo de providência; (vi) quaisquer outras que a natureza e especificidade da atividade exigirem.

Ainda assim, a licença, que antes era concedida ao final desta fiscalização, ou seja, o ato administrativo que resultava no alvará, não será mais necessária. Se a fiscalização constatar a regularidade do estabelecimento empresarial, mantém-se a presunção de boa-fé do empresário e prossegue-se com a liberdade econômica sem qualquer ato formal (licença) da Administração Municipal.

Como se percebe, há uma redução do controle fiscalizatório do ente local que, ao contrário do que era feito até então, deve sair a campo e reestruturar o seu modus operandi para que obtenha, por conta própria, ou seja, sem a iniciativa do empresário, as informações de novos estabelecimentos. Antes, era o empresário que deveria comparecer na Prefeitura e apresentar toda a documentação pertinente à atividade e, caso iniciasse as atividades sem a licença prévia, corria riscos de sofrer autuações dos diversos órgãos municipais.

Esta mudança de perspectiva, repita-se, importante para a livre iniciativa, além de conter uma certa margem para críticas sob o aspecto jurídico-constitucional em razão de conferir uma presunção de boa-fé do empresário em detrimento de toda coletividade, meio ambiente e relações de consumo, também cria atribuições ao Executivo Municipal que deverá modificar toda a sua estrutura para conseguir fiscalizar os estabelecimentos ou simplesmente fazer vista grossa, correndo riscos de ser responsabilizado em caso de algum incidente.

 

2.2 Dispensa de atos públicos de liberação, taxas e Poder de Polícia.

A problemática em razão da dispensa do ato público de liberação não se resume a questões meramente administrativas, já que seus efeitos serão sentidos, também, em âmbito orçamentário. Como é sabido, todas estas atribuições fiscalizatórias do Município nada mais são do que o exercício do Poder de Polícia (art. 78 do CTN), pressuposto normativo fático que justifica a instituição da taxa (art. 145, inciso II, da CR).

A taxa de licença e localização, a taxa de vistoria, a taxa de vigilância sanitária, dentre tantas outras, são apenas algumas das espécies tributárias que os entes públicos se utilizam para remunerar os cofres públicos pelos gastos referentes ao Poder de Polícia no sentido de averiguar se àquela atividade que será executada pelo empresário atende, ou não, a norma respectiva. Até o advento da Lei Federal nº 13.874/2019, se a resposta fosse positiva, expedia-se o alvará de localização/funcionamento e as demais licenças, fiscalizando-se o estabelecimento anualmente a fim de confirmar se as condições iniciais ainda se mantinham. Em ambos os casos, cobrava-se, respectivamente, a taxa de licença e localização e taxa de fiscalização e vistoria, dentre outras específicas daquela atividade.

Atualmente, porém, este procedimento, ao que tudo indica, não mais subsiste, o que significa que o Poder de Polícia, num primeiro momento, não será exercido e, consequentemente, não haverá fato gerador (art. 114 do CTN) para justificar a cobrança da exação. Pelo raciocínio inverso, não tendo Poder de Polícia, em tese, não haveria custo para ser ressarcido e os Municípios não deveriam se deparar com déficit orçamentário.

Quando da elaboração e encaminhamento das leis orçamentárias de 2020, estas questões precisam ser devidamente alinhadas, já que é provável que haja um impacto orçamentário, não só em razão dos novos estabelecimentos de baixo risco que não serão tributados pelo início de suas atividades, mas, também, de todos os demais (de baixo risco) que já possuem o alvará. Estes últimos, por uma questão de isonomia, tampouco deverão arcar com a taxa de vistoria anual, estabelecendo-se um tratamento uniforme no território do Município (art. 5º, caput c/c art. 150, inciso II, ambos da CR).

Importante anotar que este tipo de readequação orçamentária não se confunde com benefício fiscal ou renúncia de receita, já que, na ausência de fato gerador do tributo, inexiste receita para ser renunciada. Logo, não haverá violação às condutas vedadas em ano eleitoral (art. 73, § 10º, da Lei Federal nº 9.504/1997) e tampouco inobservância do art. 14 da LRF, o que não significa que os Municípios possam desconsiderar este impacto no orçamento, exigindo as devidas readequações, em especial, das metas fiscais estabelecidas na Lei de Diretrizes Orçamentárias para garantir que não haja o desequilíbrio nas contas públicas.

As taxas, porém, não deverão ser revogadas ou extintas. Isto porque, o Poder de Polícia continuará sendo exercido, mas postergado para momento posterior ao início das atividades. Não se deve confundir o ato público de liberação (alvará) com o Poder de Polícia efetivamente exercido pelo Município. Mesmo que a licença final que resulta do Poder de Polícia (alvará) não seja expedida, se o estabelecimento, mesmo que de baixo risco, for fiscalizado, a cobrança do tributo se torna imperativa tendo em conta a ocorrência de seu fato gerador. Tanto assim é, que a Lei Federal nº 13.874/2019 afastou a aplicabilidade do disposto no art. 1º ao 4º, ao direito tributário e financeiro, ressalvando o inciso X do caput do art. 3º, de modo que os direitos de liberdade econômica, em tese, em nada interferem na competência tributária dos entes federados (art. 1º, § 3º).

Isso significa que se o Município, efetivamente, exercer o Poder de Polícia em determinado estabelecimento, pode cobrar a taxa respectiva. Contudo, a mera estrutura fiscalizatória sem o comparecimento in loco já não se apresenta como uma possibilidade para estas atividades de baixo risco.

Também parece ser uma consequência da norma geral de liberdade econômica que os estabelecimentos fiscalizados passem a pagar, apenas, a taxa de fiscalização e vistoria. Isto porque, considerando a tipicidade cerrada do Direito Tributário, não haverá mais a taxa de licença e localização cobrada pelo Poder de Polícia no início das atividades de baixo risco, já que estas não demandam atos públicos de liberação. Sendo exercida a fiscalização em momento posterior, o que é autorizado pela Lei Federal nº 13.874/2019, terá se perfectibilizado o fato gerador cuja tipologia se assemelha ao Poder de Polícia respectivo: verificação das condições do estabelecimento e a compatibilidade com a legislação respectiva.

Nada impede, aliás, é recomendável, que os Municípios, na lei que irá definir os procedimentos para implementação dos Direitos de Liberdade Econômica em âmbito local, institua uma taxa diferenciada (taxa de fiscalização) para remunerar o Poder de Polícia específico para estas situações de baixo risco, desde que haja a fiscalização efetiva do estabelecimento empresarial.

No art. 4º, da Lei Federal nº 13.874/2019, por sua vez, estão as garantias de livre iniciativa. Trata-se de instrumento que tem como finalidade assegurar os direitos de liberdade econômica arrolados no art. 3º. No que interessa aos Municípios, quando da edição da norma local que irá regulamentar os Direitos de Liberdade Econômica, é dever da Administração Pública, exceto se em estrito cumprimento a previsão explícita em lei, evitar o abuso do poder regulatório de maneira a, indevidamente: “[…] IX – exigir, sob o pretexto de inscrição tributária, requerimentos de outra natureza de maneira a mitigar os efeitos do inciso I do caput do art. 3º desta Lei.”

O ente público municipal, por exemplo, não pode exigir alvarás para autorizar a impressão de documentos fiscais (nota fiscal de serviços) ou inscrever o contribuinte no cadastro fiscal de ISS, vinculação que é praxe em grande parte dos Municípios. É necessário segregar estes pressupostos para as atividades de baixo risco, viabilizando que o cadastro seja feito mesmo que o empresário não tenha qualquer tipo de licença no Município. Em suma, o alvará não deve mais ser vinculado ao cadastro do contribuinte. Até porque, se o empresário não possuir alvará e iniciar atividade de baixo risco, não cometerá nenhuma irregularidade. No entanto, se esta atividade for de prestação de serviços e o empresário não recolher o imposto devido e não cumprir as demais obrigações acessórias, deverá ser autuado por não recolher o ISS (obrigação principal) e por não emitir o documento fiscal (obrigação acessória).

 

2.3 Resolução CGSIM nº 51/2019 e seus limites hermenêuticos

A interpretação ampliativa da novel legislação deu margem para, por meio de Resolução do CGSIM, órgão eminentemente econômico, definir classificações de baixo risco de incêndio, baixo risco ambiental e dispensar os atos públicos respectivos.[13] Ainda, definiu uma classificação de médio risco, utilizando-se da semântica a partir de conceitos de “Baixo Risco A” e “Baixo Risco B”, hipóteses inexistentes na redação original da Medida Provisória nº 881/2019 e na redação atual dada pela Lei Federal nº 13.874/2019.

Salvo melhor juízo, os atos fiscalizatórios realizados pelas Secretarias dos Municípios encontram seu fundamento de validade em normas distintas (legais e constitucionais). São sistemas específicos criados a partir de critérios técnicos e cujo objetivo é assegurar o exercício responsável da livre iniciativa, considerando os mais diversificados impactos.

A LC nº 140/2011, por exemplo, traz toda uma estrutura administrativa a fim de coibir atividades potencialmente poluidoras, manter o ambiente ecologicamente equilibrado e garantir para estas gerações e as futuras, um desenvolvimento sustentável com maior preservação possível dos recursos naturais (art. 23, inciso VII, 24, inciso VIII e o art. 170, inciso VI, todos da CR).

Já a Lei Federal nº 13.425/2017, encontra seu fundamento de validade no art. 21, inciso I, na parte final do art. 24, no § 5º do art. 144 e no caput do art. 182 da Constituição Federal. Esta norma, que objetiva a proteção contra o incêndio, estabelece que o processo de aprovação da construção, instalação, reforma, ocupação ou uso de estabelecimentos, edificações e áreas de reunião de público perante o poder público municipal, voltado à emissão de alvará de licença ou autorização, ou documento equivalente, deverá observar o estabelecido na legislação estadual sobre prevenção e combate a incêndio e a desastres e nas normas especiais editadas (art. 4º, inciso I). Não é diferente com a Vigilância Sanitária que, dentro do seu âmbito de competência, está adstrita a Lei Federal nº 9.782/1999, que criou o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, e a Lei Federal nº 8.080/1990.

Como se percebe, há um conjunto de normas e estruturas administrativas autônomas para lidar com a pluralidade de valores constitucionais na medida em que o exercício pleno e irrestrito de um deles pode conflitar ou aniquilar outro, resultado que é inadmissível dentro de um Estado Democrático de Direito. Ademais, sendo sistemas autônomos, cada um deles atua num campo específico vinculado a determinado desdobramento da atividade exercida pelo particular. Uma determinada atividade pode exigir a atuação de todos estes sistemas em conjunto (alvará sanitário, ambiental e do Corpo de Bombeiros), apenas um deles, ou somente dois. Em tese, são sistemas que estão adstritos a questões técnicas, estudadas por Ciências alheias ao Direito e que, via de regra, não possuem pontos de intersecção.

Traduzindo, a concessão de alvará sanitário não significa que a atividade pode ser exercida, já que, se por sua natureza, for necessário, também, o alvará ambiental por exemplo, sem este documento é provável que o empresário infrinja a legislação respectiva. Somente a liberação de todos os atos necessários para execução daquele objeto social é que tornariam lícito o início das atividades.

Porque seria diferente com a Lei Federal nº 13/874/2019? Trata-se de uma norma geral de Direitos de Liberdade Econômica e, assim como os demais sistemas fiscalizatórios, deve se manter adstrito ao seu campo de atuação.

Há, portanto, uma premente necessidade de harmonização da declaração de Direitos de Liberdade Econômica e das demais normas existentes no Ordenamento Jurídico, mormente se tratar de instrumentos de concretização de valores constitucionais distintos, portanto, metas coletivas de igual importância. Carece, o Legislador infraconstitucional, de legitimidade para criar uma norma geral das normas gerais que, por meio de Resolução, atinge normas ambientais, sanitárias, de proteção ao incêndio, reestrutura a atividade fiscalizatória do Poder Executivo municipal, impacta no orçamento e atinge a autonomia dos entes federados de legislarem sobre assunto de interesse local e sobre a ordenação territorial do Município, atribuições que, a partir da Constituição Federal de 1988, decorrem de cláusula pétrea (art. 60, § 4º, inciso I, da CR).

Por estas razões de ordem teórica e prática é que os Municípios devem empreender esforços para editarem normas locais específicas que definam como devem se dar os atos públicos de liberação e como irá ser exercida a fiscalização dos estabelecimentos que iniciarem atividades de baixo risco. A Resolução CGSIM nº 51/2019 apresenta algumas incompatibilidades que extrapolam a sua competência e não pode se sobrepor à outras normas técnicas de cunho específico. Em caso de eventual conflito, as últimas devem prevalecer (ambientais, sanitárias e de proteção contra o incêndio), mesmo que o ente local ainda não tenha editado uma norma que implemente os instrumentos de liberdade econômica em âmbito local.

 

Considerações Finais

A livre iniciativa, por expressa disposição constitucional, é um dos alicerces do Estado Democrático de Direito e um dos fundamentos da Ordem Econômica. O Estado, também por expressa determinação constitucional, deve ser eficiente na sua atuação como agente normativo e regulador das atividades econômicas, sob pena de violar o dito princípio.

O Direito Administrativo, com paradigmas ainda não reconstruídos frente ao avanço globalizado da sociedade contemporânea, não consegue ser suficientemente eficiente para atender a velocidade com que se concretizam as relações negociais no mundo corporativo. Logo, a criação de uma lei instituidora de instrumentos que possam compensar esta deficiência em prol do desenvolvimento da liberdade econômica é necessária e urgente, o que exige dispensar elogios aos fins buscados pela Lei Federal nº 13.874/2019. No entanto, a frase maquiavélica ainda prevalece: os fins não justificam os meios!

Garantir a liberdade econômica a que preço? A ausência de qualquer fiscalização prévia, a depender da atividade, mesmo que de baixo risco, traz enormes riscos aos consumidores, ao meio ambiente e coloca o gestor municipal na obrigação de reformular toda a sua estrutura para fiscalizar os novos estabelecimentos que, ao que tudo indica, serão cada vez mais frequentes. Não fazer isso seria uma irresponsabilidade que, em caso de algum incidente, não afastará o ente público de ser responsabilizado (art. 37, § 6º, da CR).

Além disso, a aplicação cega da Resolução CGSIM nº 51/2019 como norma geral das demais normas gerais (ambientais, sanitárias e de proteção contra o incêndio) parece um equívoco hermenêutico e em caso de eventual conflito da norma regulamentar expedida pelo Órgão Econômico e àquelas dos órgãos técnicos específicos, as últimas deverão prevalecer, não podendo o empresário escudar-se na Declaração de Direitos de Liberdade Econômica para se eximir do cumprimento de medidas que confiram um mínimo grau de segurança no exercício de suas atividades.

A partir de toda esta regulamentação e dos evidentes conflitos gerados entre o Poder Público e a iniciativa privada, acredita-se que é urgente a necessidade de os Municípios exercerem a competência que a própria Lei Federal nº 13.874/2019 lhes outorgou (art. 3º, § 1º, inciso III) a partir de um estudo integrado entre as Secretarias do Meio Ambiente, Vigilância Sanitária, Secretaria da Fazenda e, se for operacionalmente viável, com a manifestação do Corpo de Bombeiros da localidade, instituindo uma classificação própria de atividades de baixo risco que dispensam atos públicos de liberação. Fazendo isso, porém, o ente municipal deve se atentar para a necessidade de notificar o Ministério da Economia acerca da sua existência a fim de que o órgão se manifeste sobre a compatibilidade da norma local com a norma geral.

Ainda, há uma nítida diferença entre a dispensa do alvará e a imunidade fiscalizatória. Os entes municipais também deverão disciplinar os procedimentos para que esta fiscalização seja feita de ofício, a partir do momento que o ente público tomar conhecimento da abertura de um novo estabelecimento.

Instrumento interessante para garantir este controle por parte dos Municípios seria a adesão a Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios – REDESIM, cuja finalidade é propor ações e normas aos seus integrantes na busca de uma integração do processo de registro e de legalização de empresários e de pessoas jurídicas e articular as competências próprias com aquelas dos demais membros, buscando, em conjunto, compatibilizar e integrar procedimentos, de modo a evitar a duplicidade de exigências e garantir a linearidade do processo, da perspectiva do usuário (Lei Federal nº 11.598/2007).

Esta alternativa fará com que, independentemente de a atividade ser de comércio ou prestação de serviços, o empresário, ao requerer o arquivamento de seus atos constitutivos no órgão respectivo, seja também inscrito nos cadastros do Município onde irá exercer suas atividades (estabelecimento), ainda que, repita-se, se for de baixo risco, não seja necessário o ato público de liberação (alvará). Até porque, em sendo atividade de prestação de serviços, a inscrição no cadastro fiscal de contribuintes de ISS é obrigatória, assim como a emissão do documento fiscal respectivo, de modo que o início da atividade sem o atendimento desta obrigação acessória, em tese, acarreta a aplicação de penalidade com base no Código Tributário Municipal respectivo ou outra lei esparsa que trate desta matéria.

São estes os principais impactos que os Municípios passarão a sentir em razão da Declaração de Direitos de Liberdade Econômica e o Poder de Polícia exercido pelas Secretarias respectivas (atos públicos de liberação). O fim buscado é relevante e os instrumentos de efetivação urgentes, o que torna louvável a Lei Federal nº 13.874/2019. Contudo, a Resolução CGSIM nº 51/2019 extrapolou os limites da norma geral e adentrou em conceitos alheios a sua seara, podendo resultar em conflito normativo. Caso isso ocorra, a boa hermenêutica exige que as normas específicas (ambientais, sanitárias e de proteção contra o incêndio) sejam preservadas. De bom grado, portanto, que os Municípios editem suas próprias normas classificatórias de baixo risco e os demais procedimentos necessários à efetivação de uma fiscalização de ofício, garantindo o exercício do poder de polícia em harmonia com o exercício responsável da livre iniciativa.

Sem qualquer pretensão de esgotar a matéria, estas são as diretrizes interpretativas obtidas a partir da experiência prática e das reflexões teóricas que, entende-se, melhor atendem a convergência dos interesses plurais e diversificados inerentes a um Estado Democrático de Direito.

 

Referência

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2. ed. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2015.

BAPTISTA, Patrícia Ferreira. Transformações do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do Direito Administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 2ª ed. Revista e atualizada. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

GABARDO, Emerson. Princípio da eficiência, O. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/82/edicao-1/principio-da-eficiencia,-o

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 1994.

MOREIRA, Alexandre Mussoi. A transformação do estado: neoliberalismo, Globalização e conceitos jurídicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.

SILVA, José Afonso da. O Estado Democrático de Direito. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, jul./set. 1998, p. 15-34, p. 20. Disponível em: < http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/viewFile/45920/44126>. Acesso em: 20 ago. 2017.

 

[1] “Direcionada para o respeito à dignidade da pessoa humana, Administração, constitucionalizada, vê-se compelida a abandonar o modelo autoritário de gestão da coisa pública para se transformar em um centro de captação e ordenação dos múltiplos interesses existentes no substrato social.” BAPTISTA, Patrícia Ferreira. Transformações do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 129/130.

[2] SILVA, José Afonso da. O Estado Democrático de Direito. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, jul./set. 1998, p. 15-34, p. 20. Disponível em: < http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/viewFile/45920/44126>. Acesso em: 20 ago. 2017.

[3] BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do Direito Administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 2ª ed. Revista e atualizada. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 33.

[4] O termo globalização ou sociedade global é um processo complexo analisado a partir de diferentes perspectivas que buscam estabelecer uma ideia de mercado de consumo em âmbito mundial, reduzindo a ideia de soberania e autonomia dos Estados e que tem impactos em diversas searas. Resulta ou decorre de conflitos que estabelecem novas formas de estratificação social. O Direito interno acaba sofrendo fortes influências de modelos internacionais geralmente provenientes de países desenvolvidos. MOREIRA, Alexandre Mussoi. A transformação do estado: neoliberalismo, Globalização e conceitos jurídicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 95/96.

[5] BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do Direito Administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 2ª ed. Revista e atualizada. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 25/26.

[6] https://www2.camara.leg.br/legin/fed/emecon/1998/emendaconstitucional-19-4-junho-1998-372816-exposicaodemotivos-148914-pl.html

[7] GABARDO, Emerson. Princípio da eficiência, O. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/82/edicao-1/principio-da-eficiencia,-o

[9] O conflito entre normas do tipo princípio é o que atrai o postulado aplicativo normativo conhecido como proporcionalidade ou técnica da ponderação. Não se trata de simplesmente escolher qual princípio deve prevalecer no caso concreto. A técnica exige do interprete a adoção de um raciocínio lógico-argumentativo que sopese todas as possibilidades e consequências (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) a fim de que a norma (princípio) que sucumbir frente ao caso concreto, seja preservada na maior medida possível, considerando as possibilidades fáticas e jurídicas existentes (mandamentos de otimização). ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2. ed. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 93/94.

[10] Segundo Meirelles: “[…] Compete ao Município a polícia administrativa das atividades urbanas em geral, para a ordenação da vida da cidade. Esse policiamento se estende a todas as atividades e estabelecimentos urbanos, desde a sua localização até a instalação e funcionamento, não para o controle do exercício profissional e do rendimento econômico, alheios à alçada municipal, mas para a verificação a segurança e da higiene do recinto, bem como da própria localização do empreendimento (escritório, consultório, banco, casa comercial, indústria etc.) em relação aos usos permitidos às normas de zoneamento da cidade.” in Direito Municipal Brasileiro. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 372-373.

[11] A própria Resolução CGSIM nº 51/2019 ressaltou a liberdade dos órgãos responsáveis pela emissão do ato público de liberação para classificar, em âmbito local, as atividades de baixo risco: “Art. 3º […]§ 2º Consideram-se também de baixo risco ou “baixo risco A”, para os fins do caput, todas as demais atividades econômicas que, independentemente de sua natureza, forem assim classificadas pelos próprios órgãos responsáveis pela emissão do respectivo ato público de liberação.

[12] Essa é a redação do art. 7º da Resolução CGSIM nº 51/2019: Art. 7º Inexistindo a definição das atividades de baixo risco ou “baixo risco A”, conforme previsão constante no inciso II do § 2º do art. 3º da MP nº 881, de 2019, deverão ser adotadas pelos órgãos e entidades estaduais e municipais as disposições desta Resolução.

[13] De acordo com esta resolução:

Art. 2º Para fins de padronização de redação, passam a ser denominados pelo CGSIM como:

I – baixo risco ou “baixo risco A”: a classificação de atividades para os fins do art. 3º, § 2º, inciso II, da Medida Provisória nº 881, de 30 de abril de 2019, cujo efeito específico e exclusivo é dispensar a necessidade de todos os atos públicos de liberação da atividade econômica para plena e contínua operação e funcionamento do estabelecimento;

II – médio risco ou “baixo risco B”: a classificação de atividades cujo grau de risco não seja considerado alto e que não se enquadrem no conceito de baixo risco ou “baixo risco A” do inciso I deste artigo, cujo efeito é permitir, automaticamente após o ato do registro, a emissão de licenças, alvarás e similares de caráter provisório para início da operação do estabelecimento, conforme previsto no art. 7º, caput, da Lei Complementar nº 123, de 14 de novembro de 2006, e no art. 6º, caput, da Lei nº 11.598, de 3 dezembro de 2007; e

III – alto risco: aquelas assim definidas por outras resoluções do CGSIM e pelos respectivos entes competentes, em atendimento aos requisitos de segurança sanitária, metrologia, controle ambiental e prevenção contra incêndios.

  • 1º As atividades de baixo risco ou “baixo risco A”, nos termos do art. 2º, inciso I, desta Resolução não comportam vistoria para o exercício contínuo e regular da atividade, estando tão somente sujeitas à fiscalização de devido enquadramento posterior nos termos do art. 3º, § 3º da Medida Provisória nº 881, de 30 de abril de 2019.
  • 2º As atividades de médio risco ou “baixo risco B”, nos termos do art. 2º, inciso II, desta Resolução comportam vistoria posterior para o exercício contínuo e regular da atividade.
  • 3º As atividades de alto risco, nos termos do art. 2º, inciso III, desta Resolução exigirão vistoria prévia para início da operação do estabelecimento.

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