Direito Administrativo de Emergência e Covid-19: A responsabilidade do parecerista público em tempos de pandemia

Autor: Lucas Leonardo Marques do Couto – Acadêmico do Curso de Direito do Centro Universitário Tabosa de Almeida (ASCES/UNITA). E-mail: [email protected]

Orientadora: Roberta Cruz da Silva. Doutoranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Advogada. E-mail: [email protected]

Resumo: O presente artigo apresentou como objeto de análise a responsabilidade do parecerista público em tempos de pandemia causada pela Covid-19. Para tanto, a presente pesquisa desenvolveu-se de modo teórico. A primeira seção tratou da definição de parecerista e parecer jurídico analisando precedentes do STF a respeito do tema e sobre uma possível superação (overruling) de seus motivos determinantes com a eminente entrada em vigor da “Nova Lei de Licitações”[i]. Na seção seguinte, tratamos do regime complexo o qual se submete o advogado público e a definição dos elementos “dolo” e “erro grosseiro”. Na terceira seção, tratamos sobre o “Direito Administrativo de Emergência” advindo da pandemia da Covid-19 e seus impactos na responsabilidade do parecerista público. Em sede conclusiva, chegamos a três parâmetros especiais que devem ser considerados na análise da responsabilidade do parecerista público em tempos de pandemia (Covid-19): a) a análise deve se ater exclusivamente às questões de direito, ainda que exista controvérsia na comunidade científica quanto a medida de combate à enfermidade; b) o atendimento de orientações internas fixadas pelo próprio órgão e c) o pragmatismo jurídico e o princípio do contextualismo a ser levado como critério de ponderação na análise da responsabilidade.

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Palavras-chave: Covid-19. Direito Administrativo de Emergência. Responsabilidade do parecerista público

 

Resumen: Este artículo presentó como objeto de análisis la responsabilidad del abogado del estado por su opinión legal en tiempos de pandemia provocada por Covid-19. Para ello, la presente investigación se desarrolló de forma teórica. El primer tema abordó la definición de abogado del estado y dictamen jurídico, analizando los antecedentes del Supremo Tribunal Federal sobre el tema y sobre una posible anulación de sus determinantes con la entrada en vigencia de la Nueva Ley de Licitaciones. A continuación, nos ocupamos del complejo régimen al que está sometido el abogado público y la definición de los elementos “intención” y “error flagrante”. En el tercer tema abordamos lo “Derecho Administrativo de Emergencia” que surgió de la pandemia Covid-19 y sus impactos en la responsabilidad del advogado del estado por su opinión legal. En conclusión, llegamos a tres parámetros especiales que deben ser considerados en el análisis de la responsabilidad del abogado del estado por su opinión legal en tiempos de pandemia (Covid-19): a) el análisis debe enfocarse exclusivamente en cuestiones de derecho, aunque existe controversia en la comunidad científica sobre la medida para combatir la enfermedad; b) el cumplimiento de los lineamientos internos marcados por el propio organismo y c) el pragmatismo jurídico y el principio de contextualismo deben tomarse como criterio de ponderación en el análisis de la responsabilidad.

Palabras clave: Covid-19. Derecho Administrativo de Emergencia. Responsabilidad del abogado del estado por su opinión legal.

 

Sumário: Introdução. 1 A definição de parecerista público à luz da Constituição Federal de 1988. 1.1 Parecer jurídico: conceito, natureza jurídica, espécies e impactos da “Nova Lei de Licitações” na matéria. 2 Regime jurídico complexo do advogado público e art. 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. 2.1 Proposições jurídicas quanto à interpretação de “erro grosseiro”. 3. Direito Administrativo de Emergência e a responsabilidade do parecerista público em tempos de pandemia (Covid-19). Conclusão. Referências.

 

Introdução

Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu o estado de pandemia provocada pelo novo coronavírus (WHO, 2020), desafiando o Estado a lidar com segurança e cautela no tratamento das relações jurídicas preexistentes e das que serão formadas durante o período de excepcionalidade.

As atividades de representação judicial e extrajudicial, assessoria e consultoria jurídicas exercidas pela advocacia pública são essenciais no contexto de crise, tendo em conta sua indispensabilidade ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.

As tomadas de decisões em caráter de urgência exigem uma advocacia pública com robustez institucional e segurança para analisá-las segundo os parâmetros de legalidade e evitar eventuais práticas criminosas e de improbidade administrativa, a serem praticadas pelos ordenadores de despesa de má-fé.

Nesse contexto, merece reflexão acadêmica o estado de indefinição na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal de Contas da União sobre a responsabilidade do advogado público na emissão dos pareceres jurídicos quando analisadas em um contexto de excepcionalidade como o causado pela Covid-19.

O problema de pesquisa trazido pelo presente trabalho diz respeito a definição de critérios objetivos para se analisar a responsabilidade do parecerista público em tempos de pandemia. Não incorremos em exposições que discutam as medidas estatais de restrição de liberdade (requisição administrativa, lockdown etc.). Ater-nos-emos exclusivamente às delimitações da responsabilidade do parecerista em tempos de normalidade para finalmente se chegar em sua análise sob o contexto de pandemia causada pela Covid-19.

Registre-se, agora em sede de justificativa do tema, fazer menção a experiência como estagiário da 2ª Promotoria de Justiça de Defesa de Cidadania de Caruaru, Pernambuco, que detém atribuições na Curadoria do Patrimônio Público e Probidade Administrativa, o qual nos permitiu refletir de um ponto de vista axiológico as delimitações da responsabilidade do parecerista, devendo essa ser ponderada com cautela no contexto de excepcionalidade causado pela Covid-19.

O objetivo geral do presente trabalho foi discorrer sobre a responsabilidade do parecerista em tempos de pandemia. Os objetivos específicos foram delinear critérios objetivos para afastar a imprecisão jurisprudencial da análise da configuração da responsabilidade do parecerista em tempos de normalidade, notadamente pela interpretação do conceito jurídico indeterminado “erro grosseiro” e identificar meios de analisar, com segurança jurídica, a responsabilidade do parecerista no contexto de pandemia gerado pela Covid-19.

Para tanto, a presente pesquisa desenvolveu-se de modo teórico, dedicando-se ao estudo, análise e comparação entre as teorias doutrinárias, precedentes do Supremo Tribunal Federal e Tribunal de Contas da União, bem como legislação envolvendo a interpretação de normas de Direito Público e a legislação e atos normativos envolvendo a Covid-19. As fontes de pesquisa utilizadas foram a documental e a bibliográfica. O tipo de abordagem utilizado foi de pesquisa qualitativa, reunindo fundamentos constitucionais, doutrinários e jurisprudenciais para se chegar aos resultados.

Assim, o trabalho desenvolveu-se da seguinte forma: inicialmente, na primeira seção, definimos a noção de parecerista e parecer jurídico. Investigamos o conceito, natureza jurídica e classificações dos pareceres jurídicos, apresentando a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre o tema. Defendemos a superação da discussão quanto à existência de pareceres vinculantes no Brasil a partir da entrada em vigor da “Nova Lei de Licitações”[ii].

Na segunda seção, abordamos a existência de um regime jurídico complexo ao qual se submete o advogado público e a consagração dessa posição com o novo art. 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, incluído pela Lei nº 13.655, de 2018. Tratamos sobre o conceito de dolo e erro grosseiro, nos aprofundando sobre as divergências internas na interpretação do que é “erro grosseiro” à luz da jurisprudência do Tribunal de Contas da União. Buscando tratar a matéria com uma abordagem inovadora, buscamos fazer proposições jurídicas quanto à interpretação de erro grosseiro. Após fixar as premissas e pontos de partida quanto a responsabilidade do parecerista em tempos de normalidade, adentramos na responsabilidade do parecerista público em tempos de Covid-19.

Na terceira seção, contextualizamos os impactos do Covid-19 na ordem jurídica vigente, desenvolvendo um “Direito Administrativo de Emergência” que exige do parecerista público, soluções inovadoras e proativas na tomada de decisões da administração pública durante esse período de excepcionalidade. Ao mesmo tempo, como dito em linhas translatas, o advogado público precisa exercer suas atividades com segurança e conforto, de modo que desenvolvemos três parâmetros especiais a serem avaliados na análise da configuração dos pressupostos da responsabilidade do advogado público no exercício de sua atividade consultiva em tempos de Covid-19.

Em sede conclusiva, defendemos a importância institucional da advocacia pública como função essencial à Justiça e ao Estado Democrático de Direito, definimos nossa interpretação da jurisprudência do STF e TCU à luz da ordem jurídica vigente (2020) e os contornos jurídicos de erro grosseiro e propomos três parâmetros objetivos para a análise da configuração da responsabilidade civil no contexto de pandemia causada pela Covid-19.

 

  1. A definição de parecerista público à luz da Constituição Federal de 1988

Por vocação constitucional, a Advocacia Pública recebeu seção específica dentro do capítulo das funções essenciais à Justiça, cabendo a seus membros, a representação judicial e a consultoria jurídica das respectivas unidades federadas previstas no Texto Maior: União, Estados e Distrito Federal. Em virtude do princípio federativo, os Municípios, que detém capacidade de autoadministração, poderão instituir em suas esferas a carreira da advocacia pública para servidores de carreiras, facultando-lhe também a contratação de advogados privados para que desempenhem suas funções.

 

À vista da ordem constitucional vigente, o professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto defende como adoção dos seguintes princípios constitucionais informativos da Advocacia de Estado: essencialidade, institucionalidade, igualdade, unidade, organicidade unipessoal, independência funcional, inviolabilidade, autonomia administrativa e autonomia de impulso. (MOREIRA NETO, 2018).[iii]

 

A abrangência das atribuições constitucionais da advocacia pública é ampla e inclui em quase sua completude toda a organização da Administração Pública no Brasil, nas linhas tracejadas pelo Decreto-lei 200/1967, de modo a excluir apenas as sociedades de economia mista e as empresas públicas, por não ostentarem a natureza pública. Confirmando esse entendimento, em 2019, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 5262, firmou orientação no sentido de que o art. 132 da Constituição Federal estabeleceu a unicidade de representação judicial e de consultoria jurídica para administração pública direta centralizada e também para a administração direta descentralizada (ou indireta), que abrange as autarquias e fundações públicas.

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Assim, ao estruturar a Advocacia Pública e conferir-lhe a unidade de representação judicial e consultoria jurídica para a administração pública direta e direta e descentralizada, no âmbito federal e estadual, a ordem constitucional vigente apresentou significativa mudança em relação ao regime anterior, onde o Ministério Público desenvolvia as referidas atividades.

 

Em relação a primeira atribuição constitucional da advocacia pública – a representação judicial dos respectivos entes federados, convém pontuarmos que o advogado público que atua perante o Poder Judiciário está presenteando a Fazenda Pública, em virtude da teoria do órgão. Sobre o tema, saudosas são as lições de Leonardo Carneiro Cunha, fazendo referência ao clássico Pontes de Miranda (grifos do autor):

 

Na verdade, a Procuradoria Judicial e seus procuradores constituem um órgão da Fazenda Pública. Então, o advogado público quando atua perante os órgãos do Poder Judiciário é a Fazenda Pública presente em juízo. Em outras palavras, a Fazenda Pública se faz presente em juízo por seus procuradores. Segundo clássica distinção feita por Pontes de Miranda, os advogados públicos presentam a Fazenda Pública em juízo, não sendo correto aludir-se à representação. (CUNHA, 2019, p. 06)

 

Sob outro prisma, interessa-nos, para o presente trabalho, tratar da segunda atividade atribuída constitucionalmente aos advogados públicos: a consultoria jurídica pública. A esse respeito, sobrevela registrar o magistério de Diogo de Figueiredo Moreira Neto:

 

Por caber constitucionalmente aos Advogados de Estado a função constitucional de consultoria jurídica pública, os atos de natureza opinativa por eles praticados – denominados Pareceres jurídicos – constituem, em consequência, um tipo constitucional de atos próprios e deles exclusivos. (MOREIRA NETO, 2008, p. 105).

 

Com efeito, quando o advogado público, na condição de consultor da respectiva unidade federada, emite opiniões técnico-jurídicas, que podem ou não ser consideradas para tomada de decisões dos consultores, o faz mediante a elaboração de um parecer jurídico – tipo constitucional de ato próprio, como destacado alhures.

Implica-se dizer então, que o advogado público que emite opiniões técnico-jurídicas, no exercício de consultoria de uma unidade federada, coincide com a noção de parecerista público.

Assim, parecerista público é o advogado público que emite opiniões técnico-jurídicas, no exercício de consultoria da União (no caso da Advocacia-Geral da União), dos Estados e Distrito Federal (no caso dos Procuradores do Estado e do Distrito Federal) ou dos Municípios (no caso dos Procuradores Municipais ou advogados privados, que entendemos ser agentes públicos por equiparação[iv]).

Superada a definição da expressão parecerista público e seu tratamento constitucional, antes de adentrar propriamente no mérito de sua responsabilidade civil, convém pontuarmos algumas considerações sobre o conceito, natureza jurídica e espécies de parecer.

 

1.1 Parecer jurídico: conceito, natureza jurídica, espécies e impactos da “Nova Lei de Licitações” na matéria

Conforme já narrado em linhas translatas, o parecer é uma peça onde se emite uma opinião técnica, que a princípio, não apresenta manifestação de vontade. Dentro dessa compreensão, cabe-nos investigar o conceito e natureza jurídica de parecer jurídico sob a ótica do regime jurídico-administrativo.

 

A esse respeito, Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2018, p. 311) conceitua o instituto como “o ato pelo qual os órgãos consultivos da Administração emitem opinião sobre assuntos técnicos ou jurídicos de sua competência”. Assim, a autora, em obra recente, classifica os pareceres como atos de opinião, o que a princípio, desclassificaria o parecer como ato administrativo, já que dele não se produziria nenhum efeito jurídico (DI PIETRO, 2018).

 

No mesmo sentido acima transcrito, Hely Lopes Meirelles leciona que:

 

O parecer tem caráter meramente opinativo, não vinculando a Administração ou os particulares à sua motivação ou conclusões, salvo se aprovado por ato subsequente. Já, então, o que subsiste como ato administrativo não é o parecer, mas, sim, o ato de sua aprovação, que poderá revestir a modalidade normativa, ordinatória, negocial ou punitiva. (MEIRELLES, 2013, p. 204)

 

De tal entendimento não diverge a orientação ministrada pelo Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do Mandado de Segurança nº 24.073-3/DF, com julgamento ocorrido em 06 de novembro de 2002.[v]

 

No caso em concreto (STF, MS 24.073/DF), discutia-se a possibilidade do Tribunal de Contas da União responsabilizar, solidariamente com o administrador, o advogado que, chamado a opinar, emitiu parecer técnico-jurídico sobre a questão a ser decidida, no caso, a contratação direta pela estatal (Petrobras), de determinada empresa de consultoria internacional.

Nos termos do voto do relator Ministro Carlos Velloso, o parecer “nada mais é do que a opinião emitida pelo operador do direito, opinião técnico-jurídica, que orientará o administrador na tomada da decisão”.

A conclusão que se chegou a Suprema Corte, no julgamento do MS 24.073/DF, era que, tendo em conta a natureza opinativa do parecer, o parecerista só poderia ser responsabilizado no caso de erro grave, inescusável, ou de ato ou omissão praticado com culpa, em sentido largo.

Impõe-se acentuar, contudo, que o Pretório Excelso, no julgamento do Mandado de Segurança nº 24.631-6/DF, julgado em 09 de agosto de 2007, de relatoria do Ministro Joaquim Barbosa, revisou sua orientação e passou a admitir a possibilidade de responsabilização do parecerista pela emissão de pareceres vinculantes[vi].

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No caso sob luzes (MS 24.631-6/DF), foi impetrado o mandamus em face de ato do Tribunal de Contas da União, que elencou procuradores autárquicos entre os responsáveis em processo administrativo daquele órgão. Sustentaram os impetrantes, violação de dispositivos da Lei nº 8.443, de 1992, por extrapolação das atribuições do TCU, bem como a violação de dispositivos constitucionais e legais pertinentes ao exercício das atividades de advocacia, especialmente no tocante à advocacia pública.

O Ministro Joaquim Barbosa, em seu voto (MS 24.631/DF), reconheceu que, sem embargo do entendimento manifestado pelo STF anteriormente (MS 24.073/DF), a obrigatoriedade ou não da consulta tem influência decisiva na fixação da natureza do parecer.

De tal arte, com base na doutrina francesa de René Chapus, classificou a natureza do parecer em (i) facultativa, (ii) obrigatória ou (iii) vinculante. Vejamos:

 

Assim, poder-se-ia dizer que:

 

(i) quando a consulta é facultativa, a autoridade não se vincula ao parecer proferido, sendo que seu poder de decisão não se altera pela manifestação do órgão consultivo;

 

(ii) quando a consulta é obrigatória, a autoridade administrativa se vincula a emitir o ato tal como submetido à consultoria, com parecer favorável ou contrário, e se pretender praticar ato de forma diversa da apresentada à consultoria, deverá submetê-lo a novo parecer;

 

(iii) mas quando a lei estabelece a obrigação de ‘decidir à luz de parecer vinculante’ (décidir sur avis conforme), o administrador não poderá decidir senão nos termos da conclusão do parecer ou, então, não decidir.” (STF. MS 24.631-6/DF. Relator: Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 09/08/2007, publicado DJe em 01/02/2008.)

 

O Min. Joaquim Barbosa vai além, buscando, em nosso entender, uma nítida superação do precedente invocado, ao relativizar o caráter opinativo do parecer, de modo que, na estreita da classificação de Chapus. Sustentamos o alegado quando interpretamos trecho do voto do eminente Ministro ao dispor que se tratando de parecer de caráter vinculante, há efetiva partilha do poder decisório, de modo a existir maculação, por vício de competência, do ato administrativo expedido sem a observância do chamado ‘avis conforme’ nos casos em que a lei exige.

 

Sem embargo da ratio decidendi invocada, o voto do Min. Joaquim Barbosa foi pela concessão do writ (STF, MS 24.631/DF). Entendeu que o entendimento demonstrado nas informações do TCU, uma concepção de “causalidade perversa, com a responsabilização de todos aqueles que ‘potencialmente’ tenham dado ensejo à irregularidade verificada na auditoria”. De tal arte, entendeu que o TCU não conseguiu demonstrar a culpa ou seus indícios, e sustentou que não se afastou do entendimento manifestado no MS 24.073.

 

O que se deve aquilatar, contudo, que o que mais chamou a atenção da doutrina, quando do julgamento do MS 24.631/DF, foi acerca da classificação doutrinária de Rene Chapus.

Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal também julgou o Mandado de Segurança nº 24.584/DF no dia 09/08/2007, de relatoria do Min. Marco Aurélio. Entendeu-se, na ocasião, que a manifestação técnica solicitada na forma do art. 38, VI e parágrafo único da Lei nº 8.666/1993 possui natureza jurídica de parecer vinculante. Veja-se, a literalidade do dispositivo:

 

Art. 38.  […]

Parágrafo único.  As minutas de editais de licitação, bem como as dos contratos, acordos, convênios ou ajustes devem ser previamente examinadas e aprovadas por assessoria jurídica da Administração.

 

Analisando as decisões acima elencadas, Gustavo Binenbojm e André Cyrino sintetizam a matéria da seguinte forma:

 

Em suma, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal permite a responsabilização do parecerista se houver erro grosseiro, dolo ou sua opinião tiver teor vinculante. Neste último caso, a responsabilidade haverá porque, segundo a Corte, o parecerista seria uma espécie de corresponsável (o que foi destacado pelo Min. Joaquim Barbosa). (BINENBOJM e CYRINO, 2018, p. 211).

 

Avoluma-se, contudo, orientação doutrinária que prefere identificar a análise jurídica prevista no parágrafo único do art. 38 da Lei nº 8.666/1993 como parecer obrigatório, de modo a defender a inexistência de pareceres vinculantes no Brasil.

 

A respeito do tema, José Vicente Santos de Mendonça sustenta que:

 

Além disso, aparentemente não existe, no Brasil, parecer vinculante, ao menos na forma como o ministro Joaquim Barbosa definiu: hipótese legal que obrigue o administrador a “decidir” conforme o parecer ou, então, a nada decidir. Em todos os casos, mesmo naqueles em que a manifestação das assessorias jurídicas é obrigatória, a autoridade sempre poderá refazer/modificar sua proposta de ação, e, assim, submeter novamente a questão à análise jurídica. (MENDONÇA, 2009, p. 171)

 

No mesmo sentido, Maurício Mota (2015), entende o parecer vinculante é instituto típico do direito francês, sem correspondência no direito brasileiro, de modo que a lei francesa estabelece a obrigatoriedade de decidir à luz de parecer vinculante (décider sur avis conforme).

 

Sob outro prisma, Maria Sylvia Zanella Di Pietro e Fabrício Motta, em texto em conjunto, divergem do entendimento acima exposto, pontuando a existência de pareceres vinculantes no art. 38, parágrafo único, da Lei 8.666/1993 (destaques no original).

 

A análise jurídica, para além de obrigatória, é vinculante: as minutas devem ser analisadas e aprovadas. A participação do órgão jurídico não é apenas função de consultoria, já que tem que examinar e aprovar as minutas de edital e de contrato. Tais manifestações, quando acolhidas pela autoridade competente para decidir, constituem a própria motivação ou fundamentação do ato. A aprovação, no caso, integra o próprio procedimento e equivale a um ato de controle de legalidade e não de mérito; trata-se de hipótese em que o parecer é obrigatório e vinculante. (DI PIETRO e MOTTA, 2015, p. 289).

 

Os autores supracitados também pontuam que a regra contida no dispositivo legal mencionado “não foi muito feliz ao usar a expressão ‘aprovar’ as minutas de editais e contratos, o que dá a impressão de que a aprovação, no caso, teria a natureza jurídica de ato administrativo produtor de efeitos jurídicos, vinculante para a Administração, e não mera opinião jurídica. ” (DI PIETRO e MOTTA, 2015, p. 289).

 

Entendemos, data venia, que as discussões no tocante a existência de pareceres vinculantes no Brasil, deixarão de existir com a entrada em vigor da futura Lei de Licitações, oriunda do Projeto de Lei nº 4253, de 2020, na eventualidade dos dispositivos que regem o assunto não serem vetados.

Com efeito, o §2º do art. 52 do Projeto de Lei nº 4253, de 2020, estabelece, com grifos nossos, in verbis:

 

Art. 52 […]

  • O parecer jurídico que desaprovar a continuidade da contratação, no todo ou em parte, poderá ser motivadamente rejeitado pela autoridade máxima do órgão ou entidade, hipótese em que esta passará a responder pessoal e exclusivamente pelas irregularidades que, em razão desse fato, lhe forem eventualmente imputadas.

 

À evidência, a mens legis aponta que a natureza jurídica do parecer jurídico da futura Lei de Licitações é obrigatório (pois exigido por lei) e não vinculante (pois o administrador não está obrigado a decidir nos termos do parecer).

 

Aliás, de lege lata, o §5º do art. 52 do Projeto de Lei nº 4253, de 2020 prevê um parecer jurídico de natureza facultativa, quando das hipóteses elencadas, vejamos:

 

  • 5º É dispensável a análise jurídica nas hipóteses previamente definidas em ato da autoridade jurídica máxima competente, que deverá considerar o baixo valor, a baixa complexidade da contratação, a entrega imediata do bem ou a utilização de minutas de editais e instrumentos de contrato, convênio ou outros ajustes previamente padronizados pelo órgão de assessoramento jurídico.

 

Insta aduzir, sob esse prisma, que a futura Lei de Licitações, da forma que disciplinou o tema, rechaça qualquer possibilidade de elencar o parecer jurídico (utilizado com base no novo diploma) como vinculante e de partilha de decisão com o Gestor Público. A consequência é que as Cortes de Contas não poderão, per si, de maneira “cega” e “automática”, colocar os advogados públicos como responsáveis por atos a serem julgados no âmbito do Controle Externo (MS 24.631/DF) como sucedeu nas questões de fato elencados em torno do julgamento do MS retromencionado, salvo, na eventualidade de cabal demonstração de dolo ou erro grosseiro – elementos subjetivos que exigem uma profunda cognição e arranjo probatório.

 

  1. Regime jurídico complexo do advogado público e art. 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro

O Texto Supremo dispõe no art. 133 que “O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”.

No âmbito infraconstitucional, a Lei nº 8906/1994 define em seu art. 32, que “O advogado é responsável pelos atos que, no exercício profissional, praticar com dolo ou culpa”.

 

À luz dos dispositivos elencados, forçoso se filiar a doutrina que aponta que, por caber aos Advogados de Estado a função constitucional de consultoria jurídica pública, os atos de natureza opinativa por eles praticados constituem um tipo constitucional de atos próprios e deles exclusivos (MOREIRA NETO, 2008).

 

Nesse sentido, a doutrina de respeito trata de um regime jurídico complexo a qual está submetido o advogado público, pois se remete a um duplo sistema estatutário:

 

No caso específico do Advogado de Estado, a sujeição torna-se mais complexa, pois se remete a um duplo sistema estatutário, ambos de adesão voluntária, em que são previstos controles sobre seus atos profissionais, incluídos os de consultoria jurídica: (1) por um sistema geral a cargo de seus pares, através dos órgãos corporativos competentes da Ordem dos Advogados do Brasil, e (2) por um sistema especial, também a cargo de seus pares, através de órgãos corporativos competentes da Procuradoria ou Advocacia de Estado do respectivo ente estatal a que sirvam. (MOREIRA NETO, 2008, p. 105).

 

Assim, a atividade do parecerista exercendo uma função pública deve considerar as peculiaridades e dificuldades enfrentadas no serviço público. Nesse panorama, com o advento da Lei nº 13.655/2018, ocorreram mudanças na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, reforçando o princípio da segurança jurídica quando da tomada de decisões envolvendo o setor público.

 

A propósito, o novo art. 28 da LINDB, que trata da responsabilidade do parecerista público, assim averba: “O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro. ” O novo dispositivo deve ser entendido como norma especial (advocacia consultiva pública) em relação ao art. 32 do Estatuto da Advocacia (advocacia de modo geral).

 

No âmbito federal, o Decreto nº 9.830/2019 regulamentou o disposto nos arts. 20 ao art. 30 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. No tocante ao que nos interessa, o art. 12 da lex dispõe, in verbis:

 

Art. 12.  O agente público somente poderá ser responsabilizado por suas decisões ou opiniões técnicas se agir ou se omitir com dolo, direto ou eventual, ou cometer erro grosseiro, no desempenho de suas funções.

 

  • 1º Considera-se erro grosseiro aquele manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia.

 

  • 2º Não será configurado dolo ou erro grosseiro do agente público se não restar comprovada, nos autos do processo de responsabilização, situação ou circunstância fática capaz de caracterizar o dolo ou o erro grosseiro.

 

  • 3º O mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização, exceto se comprovado o dolo ou o erro grosseiro do agente público.

 

  • 4º A complexidade da matéria e das atribuições exercidas pelo agente público serão consideradas em eventual responsabilização do agente público. (…)

 

Sobre o dolo, citemos a posição de José de Mendonça:

 

Ele é o mais óbvio, e, ao mesmo tempo, o mais difícil de ser caracterizado. É muitíssimo difícil conseguir configurar, de modo a justificar alguma responsabilização, o dolo, a má-fé, de um advogado público parecerista. A conduta dolosa vai ser verificada provavelmente a partir de provas indiciárias, testemunhos, declarações, quebras de sigilos telefônicos, mas nada que, diretamente, exsurja do parecer. Não há muita coisa a ser dita acerca desse standard, senão que dificilmente vai ser incidente de modo puro, ou porque o advogado público vai alegar erro escusável, ou porque imaginará que sua liberdade de opinião e de exercício profissional serão suficientes para escondê-lo (conferir item VI, supra). (MENDONÇA, 2009, p. 172).

 

Gustavo Binenbojm e André Cyrino também tratam do conceito de dolo:

 

Haverá dolo quando o gestor agir com intenção de praticar um ato contrário à Administração Pública. Ou, ainda, o técnico que deliberadamente recomendou algo indevido (e.g. um laudo médico que opine falsamente pela licença de um servidor por razões de saúde). A demonstração da ocorrência de dolo, normalmente refletida em uma fraude, pressupõe exame de elemento subjetivo, o que traz dificuldade probatória, e dependerá de investigação cuidadosa. (BINENBOJM e CYRINO, 2018, p. 211).

 

O conceito de dolo parece ser bem delimitado pela doutrina, não podendo se dizer o mesmo quanto os contornos jurídicos da terminologia erro grosseiro, havendo, inclusive, divergências internas no âmbito no Tribunal de Contas da União.

Neste viés, o Tribunal de Contas da União passou a se manifestar acerca da interpretação desse último conceito jurídico indeterminado. Vejamos, em apertada síntese, alguns arestos da Corte de Controle da União, com grifos nossos, que demonstram uma falta de clareza quanto a conjuntura do termo:

 

Para fins do exercício do poder sancionatório do TCU, erro grosseiro é o que decorreu de grave inobservância do dever de cuidado, isto é, que foi praticado com culpa grave (TCU, Acórdão 2391/2018).

 

Para fins de responsabilização perante o TCU, considera-se erro grosseiro (art. 28 do Decreto-lei 4.657/1942 – LINDB), aquele que pode ser percebido por pessoa com diligência abaixo do normal ou que pode ser evitado por pessoa com nível de atenção aquém do ordinário, decorrente de grave inobservância do dever de cuidado (TCU, Acórdão 4447/2020).

 

A ausência de critério de aceitabilidade dos preços unitários em edital de licitação para contratação, em complemento ao critério de aceitabilidade do preço global, configura erro grosseiro que atrai a responsabilidade do parecerista jurídico que não apontou a falha no exame da minuta do ato convocatório, pois deveria saber, como esperado do parecerista médio, quando as disposições editalícias não estão aderentes aos normativos legais e à jurisprudência (TCU, Acórdão 611/2020).

 

Em relação ao primeiro aresto (TCU, Acórdão 2391/2018), de relatoria do Min. Benjamim Zymler, houve a associação entre o denominado erro grosseiro e a culpa grave, a partir da classificação de erro em (i) leve, (ii) sem qualificação e (iii) grosseiro. O segundo aresto (TCU, Acórdão 4447/2020) seguiu a mesma linha de entendimento em relação ao dever de cuidado. A respeito do tema, professores Thiago C. Araújo, Fernando Ferreira Jr. e Alice Voronoff comentam com bastante clareza a primeira decisão:

 

O primeiro, “erro leve”, para que não ocorra, exigiria um grau de atenção superior ao esperado do tomador de decisão. O segundo, “erro sem qualificação”, seria evitado a partir de uma diligência normal, média, por parte do administrador. Já o terceiro, “erro grosseiro”, poderia ser identificado e evitado por gestores que atuassem com um nível de atenção mesmo abaixo do esperado. Somente nesse caso, portanto, estariam os gestores sujeitos à responsabilização por terem agido com culpa grave. Importante frisar: há associação entre o denominado erro grosseiro e a culpa grave. (ARAÚJO, FERREIRA JÚNIOR e VORONOFF, 2019).

 

De outro vértice, no terceiro aresto (TCU, Acórdão 611/2020), o TCU em vez de adotar como critérios anteriormente utilizados, adotou a figura do parecerista médio, que consoante o voto condutor, “deve saber quando os dispositivos editalícios estão aderentes aos normativos legais e à jurisprudência sedimentada que regem a matéria submetida a seu parecer”.

 

Sobrevela registrar ainda, que no Acórdão nº 2.677/2018, o TCU adotou mais uma vez a figura do homem médio para definir o erro grosseiro:

 

Dito isso, é preciso conceituar o que vem a ser erro grosseiro para o exercício do poder sancionatório pelo TCU. Por se tratar de conceito jurídico indeterminado, há sobre o assunto algumas hipóteses. No Acórdão 1628/2018-TCU-Plenário, de minha relatoria, houve entendimento no sentido de adotar o critério do administrador médio para a aferição da presença ou não de erro grosseiro. A comparação com um ‘gestor médio’ novamente foi efetuada no Acórdão 1695/2018-TCU-Plenário […]

 

De tal arte, um dispositivo que buscava garantir segurança jurídica ao administrador e pareceristas (art. 28 da LINDB), passou a causar ainda mais insegurança jurídica aos administradores e emitidores de opinião.

 

A esse respeito, merece reflexão o pensamento dos professores Thiago C. Araújo, Fernando Ferreira Jr. e Alice Voronoff, com grifos nossos:

 

Enfim, a máxima efetividade da LINDB depende, para além de um administrador – médio ou não –, também de um legislador atento à lógica de uniformização aliada ao fomento à inovação. Somente assim será possível atingir a finalidade máxima dos dispositivos acrescidos à LINDB: reforçar a segurança jurídica, superando o “Direito Administrativo do Medo” (ARAÚJO, FERREIRA JÚNIOR e VORONOFF, 2019).[vii]

 

Sem embargo do dispositivo da Lei de Introdução, o §6º do art. 52 do Projeto de Lei nº 4253, de 2020 estabelecerá (caso não seja vetado) um novo regime de responsabilidade para os pareceristas públicos, ao prever que “O membro da advocacia pública será civil e regressivamente responsável quando agir com dolo ou fraude na elaboração do parecer jurídico de que trata este artigo. ”

 

Com efeito, como já narrado em linhas pretéritas, o art. 28 da LINDB é especial em relação ao art. 32 do Estatuto da Advocacia, sob o argumento de que enquanto o Estatuto prevê a responsabilidade do advogado em uma perspectiva geral, a Lei de Introdução dispõe sobre a advocacia pública consultiva (o que indubitavelmente, é mais específico).

 

Insta aduzir que o art. 52, §6º da “Nova Lei de Licitações” é mais específico em relação ao art. 28 da LINDB e o art. 32 do Estatuto da Advocacia, tendo em conta que esse trata da advocacia pública consultiva nas licitações e contratos administrativos.

Trata-se de norma especial (art. 52, §6º da “Nova Lei de Licitações) que prevalece sobre a lei geral (art. 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e art. 32 do Estatuto da Advocacia).

Assim, parece-nos que no âmbito do direito administrativo sancionador, deverá haver a aplicação simultânea de ambos diplomas (“Nova Lei de Licitações” e LINDB). Os pareceristas de licitações e contratos administrativos somente responderão quando agirem com dolo ou fraude. Por exclusão, os demais pareceristas, que não lidem com direito contratual público, poderão ser responsabilizados no caso de dolo ou erro grosseiro.

 

2.1 Proposições jurídicas quanto à interpretação de “erro grosseiro”

Conforme já averbado, a análise da responsabilidade do parecerista em tempos de normalidade institucional da conjuntura da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal de Contas da União. Em apertada síntese, a orientação ministrada pelas Cortes permite responsabilização do parecerista se houver erro grosseiro ou dolo.

O estado de insegurança jurídica nos contornos jurídicos da expressão erro grosseiro, agravada pela situação de excepcionalidade da pandemia do Covid-19, nos permitiu refletir academicamente acerca de alguns padrões que podem ser adotados para, em um primeiro momento, delimitar, mediante critérios objetivos, o conceito de erro grosseiro para fins de responsabilização do parecerista em tempos de pandemia, e, sob outro prisma, as medidas que podem ser tomadas pela advocacia pública a fim de trazer um estado de segurança jurídica no exercício de suas funções durante esse período de estabilidade.

À primeira vista, sendo o erro grosseiro um conceito jurídico indeterminado, forçoso concluir pela que a ausência de exatidão dos contornos jurídicos dá ensejo à abertura de divergências entre os diversos órgãos jurisdicionais e de controle em sua aplicação. O cerne da ideia do erro grosseiro reside na incerteza do conteúdo e da extensão do conceito.

Um primeiro aspecto que poderia ser utilizado diz respeito ao que Enterría e Ramón Fernandez, citados por Gustavo Knaesel Hoffman, denominam de “zonas de certeza e incerteza:

 

Para García de Enterría e Fernández, a estrutura dos conceitos indeterminados compreende (i) um núcleo fixo (Begriffkern), ou zona de certeza positiva, configurado por dados prévios e seguros onde não há dúvidas quanto à aplicabilidade dos conceitos, (ii) uma zona intermediária ou halo conceitual (Begriffhof), onde não se dá certeza quanto à aplicabilidade ou inaplicabilidade do conceito jurídico indeterminado ao caso concreto e, finalmente, (iii) a zona de certeza negativa, certa quanto à exclusão do conceito. (GARCÍA DE ENTERRÍA; FERNÁNDEZ, 1991, p. 396 apud HOFFMANN, 2015, p. 23).

 

Comentando a doutrina comparada acima elencada, José dos Santos Carvalho Filho dispõe que “[…] na interpretação dos atos de concretização dos referidos conceitos, tem que perseguir, evidentemente, a redução da zona de incerteza para alcançar as zonas de certeza positiva ou negativa.” (CARVALHO FILHO, 2001, p. 115)

 

Apesar do critério da zona de certeza e incerteza serem construídos como um parâmetro do controle judicial dos conceitos jurídicos indeterminados, entendemos que é possível buscar traçar os contornos jurídicos de erro grosseiro a partir de tais lições.

À primeira vista, parece-nos que o conceito de erro grosseiro nunca poderá se relacionar com o conceito de homem médio (ou parecerista médio), tendo em vista dois argumentos.

Primeiramente, entendemos que não se pode definir o conteúdo e alcance de um conceito jurídico indeterminado (erro grosseiro) a partir de outro conceito jurídico indeterminado, que também denota uma imprecisão conceitual. Como se sabe, Direito é ciência não exata e que admite amplas interpretações. Afastar as imprecisões conceituais é medida prudente e que mais se aproxima da garantia da segurança jurídica.

Sob outro prisma, o título de administrador médio (que podemos aplicar, por analogia, ao parecerista médio) não pode ser definido no mundo do ser (no julgamento de casos concretos), e sim no mundo do dever ser, isso é, no positivismo jurídico, sob pena de grave violação à segurança jurídica. Buscar intitular o gestor como administrador médio a partir de casos concretos, buscando fonte de validade, tão somente na aplicação fria da lei, sem deixar de considerar as dificuldades burocráticas, financeiras e orçamentárias, busca dar uma solução utópica para os problemas envolvendo as escolhas da Administração Pública.

Veja-se, a esse respeito, interessante reflexão dos professores Gustavo Binenbojm e André Cyrino, nos apresentando a expressão de Hércules Administrativo:

 

Todavia, os órgãos de controle parecem crer no mundo da aplicação ex officio da lei. Na verdade, teimam em advogar – muitas vezes com boas intenções – que basta ao administrador seguir os comandos normativos, para que não venha a ser punido. Esse gestor, tem, inclusive, um título. É o administrador médio, segundo a jurisprudência do TCU. Trata-se de uma mente iluminada, que age irrepreensível, cautelosa e diligentemente. Mesmo que a aplicação da lei implique algum juízo interpretativo, essa exegese (idêntica ao dos órgãos de controle) seria verificável de forma certeira por esse gestor, espécie de Hércules administrativo, num paralelo com o juiz filósofo de Dworkin. (BINENBOJM e CYRINO, 2018, p. 205).

 

Assim, melhor razão nos parece apontar que erro grosseiro é expressão sinônima de culpa grave, definida no art. 12, §1º do Decreto nº 9.830/2019 como “aquele manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia”.

 

Entendemos, outrossim, que a imperícia ou negligência (erro grosseiro) decorrem da grave inobservância do dever de cuidado do parecerista, conforme se extrai de alguns acórdãos do TCU, o que nos parece um parâmetro com maior precisão conceitual do que o termo parecerista médio.

Assoma daí, com nitidez, o standard da não-adoção de condicionantes reais de cautela, proposto por José de Mendonça (2009), podendo ser adotados, a partir do padrão elencado, como critérios objetivos: a) o término do espaço de opinião jurídica e do início da área de decisão administrativa e b) o dever de informar acerca dos riscos jurídicos. Não por outra razão, que Moreira Neto (2008) entende que a opinião expendida no parecer atine apenas a juricidade das questões examinadas, e nada mais do que esse aspecto.

Assim, a ideia do término do espaço da opinião jurídica exposta pode ser conectada com que positiva o Manual de boas práticas consultivas da AGU (2016, p. 32), ao estabelecer que o órgão Consultivo não deve emitir manifestações conclusivas sobre temas não jurídicos, tais como os técnicos, administrativos ou de conveniência ou oportunidade.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro e Fabrício Motta (2015), analisando o manual acima, elenca um rol exemplificativo de questões que estão, em princípio, fora do raio de alcance da análise jurídica:

 

  • oportunidade e conveniência da contratação
  • descrição do objeto, à exceção da indicação injustificada de marca
  • conteúdo dos projetos básicos e executivo
  • indicativos de quantidade, estimativas de consumo
  • planilhas de preço, incluindo sua composição
  • critérios de aceitabilidade de preços
  • questões que demandem conhecimentos técnicos específicos (incluindo os serviços técnicos profissionais especializados)
  • execução do contrato e sua fiscalização
  • comprovação dos fatos invocados como suporte para alterações contratuais

 

À evidência, os órgãos de controle possuem expertise técnica para apurar as questões acima elencadas, tendo em conta possuírem vocação constitucional para proceder a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial dos entes da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, nos termos do art. 70, caput, da Constituição Federal. Todavia, o mesmo não pode se falar em relação aos advogados públicos.

 

Em acréscimo, vale acentuar o pensamento de José de Mendonça (2009), ao pontuar que o uso de expressões denotativas do término do espaço de opinião jurídica e do início da área de decisão administrativa tem seu valor e adequação, desde que o parecerista não desenvolva argumento implausível para ao final, acrescente a um “a juízo discricionário do administrador”.

 

Doutra banda, a não-adoção de condicionantes reais de cautela possui como segunda faceta o dever de informar acerca dos riscos jurídicos. Vejamos como o assunto é tratado por José de Mendonça

 

Outro condicionante de cautela é o dever de informar acerca dos riscos jurídicos. É dever do parecerista informar acerca da existência de riscos jurídicos na adoção desta ou daquela linha de ação. Por riscos jurídicos entenda-se instabilidade nos posicionamentos doutrinários capaz de se refletir em instabilidade jurisprudencial, divergência jurisprudencial capaz de anular a ação, riscos pessoais e/ou de responsabilização do ente federativo. (MENDONÇA, Rio de Janeiro, 2009, p. 175)

 

Parece-nos, face ao exposto, que a definição do conceito de erro grosseiro deve necessariamente ser tratada da seguinte maneira, pelos órgãos jurisdicionais e de contas, notadamente o STF e TCU:

 

  1. a) que seja afastada qualquer interpretação que confira associação de erro grosseiro aos termos “homem médio”, “administrador médio” ou “parecerista médio”, que por também serem conceitos jurídicos indeterminados, apresentam alto grau de abstração e imprecisão conceitual, tornando-se indefinido o alcance do conteúdo e forma das expressões;

 

  1. b) que erro grosseiro seja considerado aquele manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia, nos termos do 12, §1º do Decreto nº 9.830/2019;

 

  1. c) que a negligência ou imperícia sejam associadas com a grave inobservância do dever de cuidado, como propõe o TCU em alguns de seus arestos;

 

  1. d) que a grave inobservância do dever de cuidado, por seu turno, seja interpretada como a não-adoção de condicionantes reais de cautela, como propõe José de Mendonça (2009) como um dos quatro standars da responsabilidade do advogado público, em suas lições doutrinárias.

 

Assim, fixadas as premissas e pontos de partida acima abordados, poderemos adentrar no mérito acerca da responsabilidade do parecerista público em tempos de COVID-19.

 

  1. Direito Administrativo de Emergência e a responsabilidade do parecerista público em tempos de pandemia (Covid-19)

Em 31 de dezembro de 2019, a Organização Mundial de Saúde (OMS) foi notificada sobre a existência de um vírus desconhecido em corpo humano, na cidade de Wuhan, na China. O vírus até então desconhecido foi nomeado como novo coronavírus (COVID-19) e atingiu o status de pandemia em 11/03/2020 (WHO, 2020). Após quase ano do registro oficial (17/12/2020), o coronavírus (COVID-19) já infectou mais de 72.851.747 de pessoas e somou a marca de 1.643.339 mortes. (OPAS, 2020).[viii]

 

Os impactos causados pela pandemia atingiram abruptamente a forma como se vive em sociedade, suscitando questões sanitárias e sociais que desafiam a forma de aplicação de ciências jurídicas. Nesse sentido, o federalismo cooperativo desenvolvido pelos Estados e Municípios na adoção de medidas sanitárias; os impactos da perda de receita em diversos setores da economia; a necessidade do Estado arrecadar em colisão com as dificuldades econômicas das empresas e a manutenção do emprego em contexto de direito empresarial de crise são apenas singelos exemplos que desafiam os operadores do Direito a refletir medidas de pacificação social nessa situação de excepcionalidade.

O Direito Administrativo de Emergência[ix] ganha notoriedade em razão das questões jurídicas, sanitárias e sociais suscitadas pela Covid-19. Com efeito, é a partir de medidas estatais, desenvolvidas na função administrativa, que os gestores poderão tomar decisões envolvendo as medidas sanitárias, como sucedeu com a restrição de direitos fundamentais de liberdade de locomoção e de reunião;

Sobre a expressão, Marçal Justen Filho (2020) comenta que se tratar de medidas que afastam, suspendem ou extinguem o direito administrativo até então vigente, de modo a impor a submissão das relações jurídicas em curso a um modelo jurídico diferenciado, ainda que não configurado por via legislativa.

Dito isto, passemos a fixar três parâmetros a serem avaliados na análise da configuração dos pressupostos da responsabilidade do parecerista em tempos de pandemia.

O parecerista público, que ordinariamente já desempenha um munus publico e função essencial à Justiça, ganha destaque na situação de excepcionalidade, possuindo a árdua tarefa de conciliar a atividade consultiva com as questões sanitárias e sociais suscitadas pela COVID-19.[x]

No grave contexto de pandemia do Covid-19, o direito administrativo precisou se reinventar para buscar soluções jurídicas envolvendo tanto as relações jurídicas já firmadas, como as futuras relações jurídicas a serem firmadas neste cenário pandêmico.[xi] Sobre o tema, merece destaque a reflexão de Marçal Justen Filho:

 

A pandemia afetou o direito vigente e as relações jurídicas preexistentes. Medidas legislativas e administrativas e decisões judiciais adotaram soluções inovadoras para disciplinar não apenas os eventos futuros, como também aqueles do passado – mais precisamente, os efeitos presentes e futuros de atos jurídicos perfeitos e acabados ocorridos no passado. (…) Os institutos jurídicos disponíveis foram concebidos em vista de um cenário radicalmente distinto e incomparável. E se tornou inviável resolver os impasses ocorridos mediante a aplicação dos mecanismos jurídicos já existentes. (JUSTEN FILHO, 2020, publicação eletrônica).

 

O Direito, ciência do dever-ser, já disponibilizava institutos jurídicos disponíveis, a exemplo da teoria da imprevisão. Contudo, como bem aponta o autor, o cenário trazido pela pandemia tornou inviável resolver os impasses ocorridos mediante a aplicação de como o dever-ser era previsto. Há uma distância incalculável entre o dever-ser dos institutos já previstos e o ser que sucedeu os eventos pandêmicos do ano em curso.

 

Assomasse, daí, a pandemia legislativa/normativa causada pela Covid-19: foram editados mais de 200 atos normativos federais. Imagine-se ainda, os atos normativos dos 26 Estados, do Distrito Federal e ainda dos 5571, e ainda, as decisões judiciais e recomendações do Ministério Público, Defensoria Pública e da Advocacia Pública. (LEITE, 2020).

 

Indaga-se, portanto, como pode o (bom) parecerista orientar da melhor forma o administrador público, sem o risco de incorrer no “inseguro” erro previsto no art. 28 da Lei de Introdução?

Ab initio, não se pode ignorar que na emissão da opinião jurídica, o parecerista pode ser desafiado a se deparar com questões de fato envolvendo controvérsias na comunidade científica, no tocante o combate à enfermidade. Na ocorrência de casos dessa natureza, deve-se ressaltar mais uma vez que as questões de fato envolvendo matéria fora da expertise jurídica do parecerista não podem levar a sua responsabilização.

Portanto, define-se como primeiro parâmetro, na análise de sua responsabilidade, a análise exclusiva das questões de direito, ainda que exista controvérsia na comunidade científica quanto a medida de combate à enfermidade.

Acentue-se, contudo, que se o órgão consultor evidenciar a inexistência de consenso científico, o parecerista possui o poder-dever de avaliar a melhor solução à luz dos princípios da prevenção e precaução, conforme proposto pelo Ministro Barroso no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6421, 6422, 6424, 6425, 6427, 6428 e 6431 MC, onde se analisava a constitucionalidade de dispositivos envolvendo a responsabilidade de agentes públicos em atos relacionados à Covid-19.

Superado o primeiro parâmetro, cabe acentuar que a ação coordenada dos advogados de estado lotados na Procuradoria Consultiva, se planejando e discutindo em equipe, as diretrizes jurídicas a serem adotadas, tem o condão de trazer maior segurança jurídica para o exercício de suas funções.

Nesse sentido, vejamos algumas diretrizes jurídicas elencadas no Boletim Informativo de Março de 2020, da Procuradoria Consultiva da Procuradoria-Geral do Estado de Pernambuco, quanto ao regime de contratação especial e diferenciada da COVID-19:

 

Caracterização da situação emergencial ou calamitosa que justifique a dispensa (art. 26, parágrafo único, I, da Lei 8.666/93). Diante da inegável celeridade que há de se empregar aos processos de contratação em lume, o requisito já se encontra atendido pelo reconhecimento do legislador federal e estadual, sem que haja necessidade de a autoridade administrativa proceder a explicações adicionais. É suficiente que seja evidenciada a relação entre a demanda administrativa e o fato emergencial, com declaração no sentido de que a contratação pretendida é imprescindível ao atendimento da população no enfrentamento da crise e que o quantitativo contratado é o mínimo necessário para tanto.

 

Prazo. Essa específica dispensa de licitação é temporária e está adstrita ao prazo em que perdurar a emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, sem, contudo, haver qualquer limitação quanto ao prazo máximo de 180 dias, que é previsto no art. art. 24, IV, da Lei nº 8.666/93. (art. 2º da LCE nº 25/2020).

 

Regra Excepcional. É admitida a contratação de empresas que estejam com inidoneidade declarada ou com o direito de participar de licitação ou contratar com o Poder Público suspenso, quando se tratar, comprovadamente, de única fornecedora do bem ou serviço a ser adquirido. (§3º do art. 4º da Lei nº 13.979/2020, incluído pela MP 926/2020)

No tocante ao regime de execução contratual especial e diferenciado do COVID-19, o mesmo Boletim Informativo prevê que:

 

Antecipação de Pagamento. É admitido pagamento antecipado, mediante justificativa expressa, consideradas as condições do mercado em face da situação crítica de pandemia

 

Possibilidade de entregas parceladas. O fornecimento de bens sob a forma de entregas parceladas não desconfigura a contratação emergencial. Em determinadas circunstâncias, não será possível impor ao fornecedor a entrega imediata de todo o quantitativo contratado.

O Boletim Informativo supracitado também prevê orientação em relação ao regime de transição dos contratos administrativos vigentes e a suspensão de prazos em processos licitatórios, contratações diretas e parcerias com o setor privado.

 

Dito isto, fixamos que segundo parâmetro, a ser avaliado na análise da responsabilidade do parecerista: o atendimento das orientações internas fixadas pelo próprio órgão. Assim, se o parecerista profere um parecer totalmente dissonante do trabalho coordenado de seus colegas, é mais factível a configuração do dolo ou erro grosseiro aptos a autorizar sua responsabilização.

Sob outro prisma, imperioso destacar como terceiro e último parâmetro, o pragmatismo jurídico e o princípio do contextualismo, previstos no art. 22 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, in verbis:

 

Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.

 

A norma em elenco trata do pragmatismo jurídico, na estreita das lições de Rafael Carvalho Rezende de Oliveira, com grifos nossos:

 

O pragmatismo não possui concepção unívoca, mas há relativo consenso de que as suas características básicas são: a) antifundacionalismo: rejeita a existência de entidades metafísicas ou conceitos abstratos, estáticos e definitivos no Direito; b) contextualismo: a interpretação jurídica é norteada por questões práticas e o Direito é visto como prática social; e c) consequencialismo: as decisões devem ser tomadas a partir de suas consequências práticas (olhar para o futuro e não para o passado) (POGREBINSCHI, Thamy. Pragmatismo: teoria social e política. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2005. p. 27-62; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. A releitura do direito administrativo à luz do pragmatismo jurídico. RDA, v. 256, p. 129-163, 2011. A relevância do pragmatismo jurídico, destacada nas edições iniciais desta obra, foi confirmada, por exemplo, nos arts. 20 e 21 da LINDB, inseridos pela Lei 13.655/2018, que exigem a consideração e a demonstração das consequências práticas, jurídicas e administrativas das decisões estatais. (OLIVEIRA, 2019, p. 567)

 

Dentro da noção de contextualismo, podemos indagar, em termos mais comuns: Eu posso comparar os atos da administração em um contexto de crise, com os atos de um administrador em um contexto de normalidade? A pergunta, por mais óbvia que seja a resposta, deve ser refletida pelo julgador ou órgão de controle no momento da aplicação de qualquer penalidade.

 

Avoluma-se, ao princípio da contextualidade, o standard proposto por José de Mendonça (2009), intitulado de necessidade de preservação de heterogeneidade de ideias, de modo a impor que a configuração do que é dolo quanto o que é erro inescusável devem ser interpretados de modo restritivo, sob pena de “risco de censura”.

 

Concordamos integralmente com o autor, e ainda ressaltamos que essa interpretação deve se tornar ainda mais restrita (restritíssima) quando o conteúdo opinativo envolver os atos de combate ao Covid-19, à luz do princípio do contextualismo previsto no art. 22 da LINDB.

Impende destacar que a interpretação restritíssima das opiniões proferidas pelos pareceristas não se trata de um “salvo conduto” ou ausência de qualquer responsabilização. Tal interpretação contraria o princípio republicano (accountabily). Pede-se, tão somente, bom senso e cautela redobrados na análise de opiniões técnicas emitidas pelos pareceristas durante o cenário pandêmico. Nesse sentido, Irene Patrícia Nohara, em obra coletiva, tece importantes considerações sobre a aplicação do art. 22 da LINDB nos atos de combate à pandemia do Covid-19:

Assim, não se trata de um “salvo conduto” para todo e qualquer desrespeito às determinações normativas, mas da necessidade de ponderação e calibramento, com bom senso, das exigências legais em função do contexto de dificuldades faticamente enfrentado pelo gestor público. Logo, na imposição de futura responsabilização por determinada ação da gestão, deve-se considerar que o “estado da arte” de conhecimento sobre o comportamento do vírus, quando da declaração da circunstância da Pandemia, era em alguma medida obscuro. (NOHARA, 2020 in LIMA et al, 2020, p. 231)

Em conclusão, arremata com precisão a supracitada autora:

 

Também o controle deve ser equilibrado, ponderado e considerar o primado da realidade, o que não implica em “passar por cima” dos limites jurídicos, pois, se não, toda e qualquer situação grave implicaria rasgar a Lei Maior e legitimar ações sem freios por parte de todos os envolvidos, sendo, então, uma situação muito perigosa e pouco desejável para a sociedade, pois perderíamos os parâmetros mínimos de limites e possibilidades das medidas de enfrentamento da Pandemia, o que nos faria deparar com ações desmedidas do Estado. (NOHARA, 2020 in LIMA, Fernando Rister de Sousa (coord.) et al, 2020, p. 233)

 

Assim, a responsabilidade do parecerista público em tempos de Covid-19 deve observar os parâmetros acima fixados, de modo a desempenhar seu relevante ministério e atividades essenciais à Justiça e a comunidade com segurança jurídica.

 

Conclusão

O parecerista público desenvolve a atividade de consultoria jurídica pública, função essencial à Justiça por expressa vocação constitucional. À vista disso, o advogado público no exercício da função consultiva deve ser orientado pelo princípio da independência funcional, conforme propõe Diogo Neto, buscando sempre, a partir de suas opiniões técnicas, a visão que melhor atende o interesse público, evitando-se qualquer tempo de pressão ou constrangimento.

A jurisprudência do STF tradicionalmente permitia a responsabilização do parecerista se houver erro grosseiro, dolo ou sua opinião tiver teor vinculante. A Lei nº 13.655/2018 seguiu o entendimento da Corte Suprema no tocante a adoção do dolo e erro grosseiro como pressupostos da responsabilidade do agente público, não podendo se falar o mesmo quanto à obrigatoriedade do parecer, que desde de 2018, perdeu seu sentido.

Com a entrada em vigor da Nova Lei de Licitações e passada sua vacatio legis de 02(dois) anos, as discussões no tocante a existência de pareceres vinculante no Brasil serão encerradas, tendo em conta que a única hipótese que sustentava sua existência (art. 38, parágrafo único, da Lei 8.666/1993) deixará de existir. O novo regime jurídico prevê a possibilidade da autoridade motivadamente rejeitar o parecer jurídico (art. 52, §2º do PL n. 4253/2020).

Apesar de tradicionalmente o STF não adotar a teoria da transcedência dos motivos determinantes, entendemos que há boas chances do Pretório Excelso declarar a existência de superação (overruling) em relação aos precedentes que adotaram a divisão dos pareceres na classificação proposta por René Chapus, substituindo-os por um novo precedente, de modo a se harmonizar com a nova ordem jurídica prevista na LINDB, com as inclusões da Lei nº 13.655/2018.

Os advogados públicos sujeitam-se a um regime jurídico complexo, em razão da dupla vinculação estatutária (OAB e regime jurídico-administrativo). Apesar do TCU tradicionalmente buscar responsabilizar o advogado público nos termos do art. 32 da Lei nº 8.906/1994, com o advento do art. 28 da LINDB em 2018, a referida Corte passou a responsabilizar o advogado apenas por dolo ou erro grosseiro.

O dolo previsto no art. 28 da LINDB é entendido como a intenção voluntária de agir, não havendo grandes divergências quanto à sua definição. Por outro lado, há forte imprecisão conceitual na jurisprudência do TCU quanto à interpretação do que é erro grosseiro.

Em alguns arestos, o TCU associa o erro grosseiro à culpa grave. Em outros julgados, o TCU utiliza o critério do homem médio, o que causa insegurança jurídica e propaga um Direito Administrativo do Medo.

A fim de pacificar a celeuma jurisprudência do TCU, propomos delimitar os contornos jurídicos do conceito jurídico indeterminado intitulado erro grosseiro, a partir de critérios objetivos aclamados pela doutrina, como as chamadas zonas de certeza e incerteza.

De tal arte, a definição de erro grosseiro deve afastar qualquer interpretação que lhe associe aos termos “homem médio”, “administrador médio” ou “parecerista médio”, por também se tratarem de conceitos jurídicos indeterminados e apresentarem algo grau de abstração, subjetividade e imprecisão conceitual.

Portanto, entendemos que erro grosseiro deve ser considerado aquele manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia, nos termos do art. 12, §1º do Decreto Federal nº 9.830/2019. A negligência ou imperícia devem ser associadas com a grave inobservância do dever de cuidado, como propõe o TCU em alguns julgados. A grave inobservância do dever de cuidado, por seu turno, deve ser interpretada como a não-adoção de condicionantes reais de cautela, como propõe José Vicente Santos de Mendonça como um dos quatro standards da responsabilidade do advogado público.

Com a entrada em vigor da Nova Lei de Licitações, o parecerista que atuar nesse setor somente poderá ser responsabilizado no caso de dolo ou fraude, caso o dispositivo não seja vetado.

Após definir as premissas acima, finalmente podemos adentrar na análise da responsabilidade civil do parecerista público em tempos de Covid-19.

Em virtude da pandemia causada pelo Covid-19, tem-se aludido a um Direito Administrativo da Emergência, de modo a impor a submissão das relações jurídicas em curso e as que se formarão a um modelo jurídico diferenciado. O parecerista público ganha destaque neste contexto, tendo em vista que é peça fundamental na tomada de decisões do gestor público durante esse período de excepcionalidade.

À vista disso, definimos três parâmetros especiais a serem avaliados para a análise da configuração do parecerista público em tempos de pandemia (Covid-19): a) análise exclusiva de questões de direito, ainda que exista controvérsia na comunidade científica quanto a medida de combate à enfermidade. O primeiro parâmetro baseia-se na ideia do término do espaço da opinião jurídica, uma das facetas do standard não-adoção de condicionantes reais de cautela proposto pelo José Vicente Santos de Mendonça, de modo a excluir do alcance do parecerista, exemplificativamente: a.1) oportunidade e conveniência da contratação; a.2) descrição do objeto, à exceção da indicação injustificada de marca; a.3) indicativos de quantidade, estimativas de consumo; a.4) planilhas de preço e critérios de aceitabilidade de preços; dentre outros.

O segundo parâmetro é b) o atendimento das orientações internas fixadas pelo próprio órgão. Noutro dizer, os advogados públicos devem realizar um trabalho em equipe e coordenado, estabelecendo as diretrizes jurídicas a serem adotadas e as divulgando em meios eletrônicos, como através de Boletins Informativos e Pareceres Referenciais. Uma opinião jurídica dissonante das diretrizes jurídicas fixadas pelo próprio órgão é um indício de má-fé apto a caracterizar dolo ou mesmo o erro grosseiro por negligência ou imperícia.

O terceiro parâmetro é c) o pragmatismo jurídico e o princípio do contextualismo. Com efeito, o art. 22 da LINDB prevê o pragmatismo jurídico ao estabelecer que na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados. Conforme saudosas lições doutrinárias. Uma das facetas do pragmatismo jurídico, consoante lições doutrinárias de Rafael Oliveira, é o contextualismo, onde a interpretação jurídica é norteada por questões práticas da época, de modo que eu não posso comprar os atos da administração em um contexto de crise, com atos de administração em tempos de normalidade. Preserva-se, à luz do pragmatismo e contextualismo, a necessidade de preservação de heterogeneidade de ideias (quarto standard de José Vicente Santos de Mendonça), o que deve levar o intérprete realizar uma interpretação extremamente cautelosa e restrita para que exista a configuração do dolo ou erro grosseiro.

Assim, entendemos que os critérios objetivos fixados no presente trabalho acadêmico podem contribuir para que os advogados públicos desempenhem seu relevante ministério e funções essenciais à Justiça com a garantia da segurança jurídica, tendo por base o Estado Democrático de Direito.

 

Referências

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[i] Pedimos vênias para se referir ao Projeto de Lei n º4253, de 2020 (Substitutivo da Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei do Senado nº 559, de 2013), como “Nova Lei de Licitações”, termo que vem sendo popularmente utilizado por diversos professores de Direito Administrativo em sítios eletrônicos da internet ao se referir a dispositivos do PL. Advirta-se, contudo, que até a presente data (04/01/2021) não houve sanção presencial. Há a possibilidade de apresentação de vetos de dispositivos mencionados no trabalho.

[ii]    Vide nota de fim acima.

[iii] Adotaremos a expressão “Advogado de Estado”, utilizado pelo Professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto como sinônimo de Advocacia Pública em alguns momentos do presente trabalho. Vide MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. A responsabilidade do advogado de estado. R. de Dir. Proc. Geral. Rio de Janeiro, vol. 63, 2008.

[iv] Adotamos o conceito de agente público previsto no art. 1º da Lei 8.429/1992 – Lei de Improbidade Administrativa.

[v] EMENTA: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. TRIBUNAL DE CONTAS. TOMADA DE CONTAS: ADVOGADO. PROCURADOR: PARECER. C.F., art. 70, parág. único, art. 71, II, art. 133. Lei nº 8.906, de 1994, art. 2º, § 3º, art. 7º, art. 32, art. 34, IX. I. – Advogado de empresa estatal que, chamado a opinar, oferece parecer sugerindo contratação direta, sem licitação, mediante interpretação da lei das licitações. Pretensão do Tribunal de Contas da União em responsabilizar o advogado solidariamente com o administrador que decidiu pela contratação direta: impossibilidade, dado que o parecer não é ato administrativo, sendo, quando muito, ato de administração consultiva, que visa a informar, elucidar, sugerir providências administrativas a serem estabelecidas nos atos de administração ativa. Celso Antônio Bandeira de Mello, “Curso de Direito Administrativo”, Malheiros Ed., 13ª ed., p. 377. II. – O advogado somente será civilmente responsável pelos danos causados a seus clientes ou a terceiros, se decorrentes de erro grave, inescusável, ou de ato ou omissão praticado com culpa, em sentido largo: Cód. Civil, art. 159; Lei 8.906/94, art. 32. III. – Mandado de Segurança deferido.(MS 24073, Relator(a): CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno, julgado em 06/11/2002, DJ 31-10-2003 PP-00029  EMENT VOL-02130-02 PP-00379)

[vi] EMENTA: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CONTROLE EXTERNO. AUDITORIA PELO TCU. RESPONSABILIDADE DE PROCURADOR DE AUTARQUIA POR EMISSÃO DE PARECER TÉCNICO-JURÍDICO DE NATUREZA OPINATIVA. SEGURANÇA DEFERIDA. I. Repercussões da natureza jurídico-administrativa do parecer jurídico: (i) quando a consulta é facultativa, a autoridade não se vincula ao parecer proferido, sendo que seu poder de decisão não se altera pela manifestação do órgão consultivo; (ii) quando a consulta é obrigatória, a autoridade administrativa se vincula a emitir o ato tal como submetido à consultoria, com parecer favorável ou contrário, e se pretender praticar ato de forma diversa da apresentada à consultoria, deverá submetê-lo a novo parecer; (iii) quando a lei estabelece a obrigação de decidir à luz de parecer vinculante, essa manifestação de teor jurídica deixa de ser meramente opinativa e o administrador não poderá decidir senão nos termos da conclusão do parecer ou, então, não decidir. II. No caso de que cuidam os autos, o parecer emitido pelo impetrante não tinha caráter vinculante. Sua aprovação pelo superior hierárquico não desvirtua sua natureza opinativa, nem o torna parte de ato administrativo posterior do qual possa eventualmente decorrer dano ao erário, mas apenas incorpora sua fundamentação ao ato. III. Controle externo: É lícito concluir que é abusiva a responsabilização do parecerista à luz de uma alargada relação de causalidade entre seu parecer e o ato administrativo do qual tenha resultado dano ao erário. Salvo demonstração de culpa ou erro grosseiro, submetida às instâncias administrativo-disciplinares ou jurisdicionais próprias, não cabe a responsabilização do advogado público pelo conteúdo de seu parecer de natureza meramente opinativa. Mandado de segurança deferido. (MS 24631, Relator(a): JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 09/08/2007, DJe-018  DIVULG 31-01-2008  PUBLIC 01-02-2008 EMENT VOL-02305-02  PP-00276 RTJ VOL-00204-01 PP-00250)

[vii] O “Direito Administrativo do Medo” é expressão utilizada para indicar uma tendência do administrador em desistir de decidir, apoiado em um instinto de autoproteção, em virtude do medo de sofrer as reprimendas do controle externo. Nesse sentido: GUIMARÃES, Fernando Vernalha. O Direito Administrativo do Medo: a crise da ineficiência pelo controle. Disponível em <http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/fernando-vernalha-guimaraes/o-direito-administrativo-do-medo-a-crise-da-ineficiencia-pelo-controle>. Acesso em 24/12/2020.

[viii]  Disponível em <https://www.paho.org/pt/covid19>. Acesso em 24/12/2020

[ix] Sobre a expressão Direito Administrativo de Emergência, vide texto publicado por Marçal Justen Filho no site Migalhas. Disponível: <https://migalhas.uol.com.br/depeso/325042/direito-administrativo-da-emergencia-um-modelo-juridico>. Acesso em 25/12/2020

[x] Não por outra razão, no âmbito federal, as atividades de representação judicial e extrajudicial, assessoria e consultoria jurídicas exercidas pela advocacia pública da União foram previstas como serviço público e atividade essencial, indispensável ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, assim considerados aqueles que, se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população, nos termos do art. 3º, §1º, do Decreto Federal nº 10.282, de 20 de março de 2020.

[xi] A descrença da sociedade com os gestores públicos acaba por aumentar quando nos deparamos com a notícia de suposto superfaturamento na compra de 50 respiradores pulmonares pela Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro/RJ. Disponível em <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/04/15/mprj-investiga-se-compra-de-respiradores-pulmonares-pelo-governo-foi-superfaturada.ghtml>. Acesso em 24/12/2020.

 

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