Distinções entre os Institutos Jurídicos da Incorporação e Permanência – Efeitos da Emenda Constitucional 103/2019

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João Carlos Dias Chaves [i]

Resumo: A Emenda Constitucional nº 103, de 12 de novembro de 2019, que alterou o sistema de previdência social, acresceu o parágrafo 9º ao artigo 39 da Constituição Federal de 1988, estabelecendo o fim da incorporação para as “vantagens de caráter temporário ou vinculadas ao exercício de função de confiança ou de cargo em comissão”. Diante disso, o presente texto dedica-se a análise da amplitude deste disposto constitucional, bem como à conceituação e distinção entre os institutos da incorporação e o da permanência, este previsto pelo artigo 19, parágrafo 3º, da Lei Municipal nº 13.637/2003, alterada pela Lei Municipal nº 14.381/2007, para os valores atribuídos às funções gratificadas exercidas pelos servidores da Câmara Municipal de São Paulo.

Palavras-chave: Remuneração. Vantagens. Incorporação. Permanência. Institutos Jurídicos.

 

Abstract: Constitutional Amendment nº. 103 of November 12, 2019, which altered the social security system, added paragraph 9 to article 39 of the 1988 Federal Constitution, establishing the end of the incorporation for the “temporary or exercise-related advantages trust function or commissioned position”. In view of this, this text is dedicated to the analysis of the breadth of this constitutional provision, as well as to the conceptualization and distinction between the incorporation and permanence institutes, this provided for by article 19, paragraph 3, of Municipal Law nº 13.637 / 2003 amended by Municipal Law No. 14.381 / 2007 for the amounts attributed to the paid functions performed by the employees of the São Paulo City Council.

Keywords: Remuneration. Benefits. Incorporation. Permanence. Legal Institutes.

 

Sumário: Introdução. 1. Conceito de Incorporação e Permanência. 2. A existência dos dois Institutos após Emenda Constitucional 19/98. 3. Hermenêutica Jurídica – Aplicação do artigo 39, §9º, da Constituição Federal. 4. Fato Correlato. 5. Do Direito Adquirido.  Considerações Finais. Referências.

 

Introdução

Em 2019 ocorreu a tramitação e aprovação da PEC 6/2019 no Congresso Nacional, a qual modifica o sistema previdência social, estabelece regras de transição e disposições transitórias, e dá outras providências.

O legislador almejava com esta reforma customizar os gastos públicos com previdência social por questões de Macro Econômicas, mudando assim regras gerais dos regimes de previdência.

Como se trata de ampla matéria, vamos nos delimitar a analisar um dos pontos controvertidos desta reforma que atingiu vários diplomas legais que previam o Instituto da Incorporação.

Importante antes de analisar a redação do art. 39, § 9º da Constituição Federal, um aspecto da tramitação da Pec 6/2019, que esta redação aprovada não veio do projeto original apresentado pelo Governo Federal, esta redação substituiu o seguinte dispositivo legal do Projeto apresentado à Câmara dos Deputados:

 

“CAPÍTULO III DAS REGRAS DE TRANSIÇÃO RELACIONADAS AOS REGIMES PRÓPRIOS DE PREVIDÊNCIA SOCIAL.

Aposentadoria dos servidores públicos em geral e dos professores

Art. 3º Ressalvado o direito de opção à aposentadoria pelas normas estabelecidas na lei complementar a que se refere o § 1º do art. 40 da Constituição, o servidor público da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas entidades autárquicas e suas fundações públicas, que tenha ingressado no serviço público.

(…)omissis(…)

  • 10. Considera-se remuneração do servidor público no cargo efetivo, para fins de cálculo dos proventos de aposentadoria que tenham fundamento no disposto no inciso I do § 7º, o valor constituído pelo subsídio, pelo vencimento e pelas vantagens pecuniárias permanentes do cargo, estabelecidos em lei de cada ente federativo, acrescidos dos adicionais de caráter individual e das vantagens pessoais permanentes, e observará os seguintes critérios:

(…)omississ(…)

III – se as vantagens pessoais permanentes ou os adicionais de caráter individual forem originados de incorporação à remuneração de parcelas temporárias ou exercício de cargo em comissão ou função de confiança, prevista em lei do ente federativo, o valor dessas vantagens que integrará o cálculo do valor da remuneração do servidor público no cargo efetivo em que se deu a aposentadoria respeitará a proporção de um trinta avos a cada ano completo de recebimento e contribuição, contínuo ou intercalado.”

 

 

Nota-se que o texto original visava criar regra para corrigir distorções quanto à contrapartida feita no Sistema Previdenciário, pois muitos servidores incorporavam vantagens e já se aposentavam, contribuindo, assim, pouquíssimos anos sobre essas vantagens e recebendo-as integralmente nos seus proventos.

Esta redação do texto original foi substituída na Comissão Especial no texto apresentado pelo Deputado Federal Samuel Moreira, que dentre outras alterações acabou optando por retirar este dispositivo e incluir no art. 39 da Constituição Federal, que trata de aspectos gerais dos Servidores Públicos, o parágrafo nono:

 

Diz o mencionado e atual dispositivo da Constituição Federal de 1988:

 

CF, art. 39. (…)

 

  • 9º. É vedada a incorporação de vantagens de caráter temporário ou vinculadas ao exercício de função de confiança ou de cargo em comissão à remuneração do cargo efetivo.

 

  1. Conceito de Incorporação e Permanência

Com essa proibição inserida no texto constitucional, as referidas vantagens não seriam mais incorporáveis. No Direito Administrativo, a incorporação é a absorção de vantagens no padrão de vencimento dos servidores:

 

“Para que essas vantagens passem a integrar os vencimentos, é necessário que a lei assim preveja: é a incorporação, mediante a qual a vantagem adere ao vencimento, não podendo ser suprimida dos vencimentos, salvo opção explícita do servidor. A lei poderá determinar a incorporação automática, como ocorre com o adicional por tempo de serviço; ou exigir tempo de percepção ou prever a incorporação progressiva, proporcional ao tempo de percepção. Se, no decurso da vida funcional, a mesma vantagem é recebida em diversos percentuais, a lei que permite a incorporação deverá definir o respectivo percentual. Os acréscimos pecuniários percebidos pelo servidor não podem ser computados nem acumulados para fins de atribuição de acréscimos ulteriores (CF, art. 37, XIV).” (MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo moderno. 21. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 281)

 

O instituto da permanência, por sua vez, não produz esse efeito de absorção no padrão de vencimento. Como a verba não é incorporada, o efeito da permanência é apenas assegurar a continuidade no recebimento da vantagem, sem que a mesma se confunda com o vencimento para fins de cálculos de outras vantagens pecuniárias.

Assim, a declaração de permanência almeja tão somente esta continuidade de percepção, fazendo com que as vantagens permanentes tornem-se, nas palavras de Hely Lopes Meirelles, irretiráveis após o ínterim mínimo legalmente previsto:

 

(…) “É ainda de Hely Lopes Meirelles a advertência denotando a

existência de ‘vantagens irretiráveis’ (que assumem especial relevância para o debate sobre a irredutibilidade e o teto) adquiridas pelo desempenho efetivo da função (pro labore facto) ou pelo transcurso do tempo (ex facto temporis) em cujo núcleo

se excluem as dependentes de trabalho a ser feito (pro labore faciendo), de um serviço a ser prestado em determinadas condições (ex facto officci) ou de sua anormalidade (propter laborem) ou em razão das condições individuais do servidor (propter personam)” (MARTINS JUNIOR, Wallace Paiva. Remuneração dos agentes públicos, São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 86-87, n. 10)

 

 

A jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo vai também neste sentido de diferenciação dos dois termos como notamos abaixo:

 

“SERVIDOR PÚBLICO. Sexta-parte. Art. 129 da Constituição Estadual – Sexta-parte. Base de cálculo. A sexta parte incide sobre os vencimentos integrais, excetuadas as vantagens eventuais e aquelas que tenham a sexta parte em sua base de cálculo. Distinção de verbas ‘incorporadas’, ‘permanentes’, ‘eventuais’ e ‘não eventuais’. Aplicação do entendimento uniformizado: IUJ n” 193.485.1/6-00. – Procedência. Recurso da Fazenda a que se negou seguimento. (…)omississ(…)

A incorporação é atributo que fica, em regra geral, ao critério da lei: ‘incorpora-se’ o que a lei assim determina, nos limites que a lei fixar. A “permanência’, isto é, o prolongamento no tempo, não se confunde com a incorporação: será paga por

prolongado tempo, mas poderá não servir de base para outras vantagens.(…)omississ(…) a diferença entre vantagens ‘incorporadas’ e vantagens ‘permanentes’: aquelas servem de base para cálculo de outras vantagens, estas podem não servir (mas servirão, se assim dispuser a lei) (…)omississ(…)

‘(iv) são mais apropriados os conceitos de Verbas não eventuais’ e Verbas eventuais’, inclusive para os ativos; o próprio conceito de Verbas permanentes’ parece inadequado ao cálculo da vantagem (uma gratificação paga durante certo tempo, ainda que não se incorpore, é ‘permanente’ enquanto o servidor ocupar aquela função ou cargo e entra na base de cálculo).”” (TJSP, Ap. 788.115.5/0- 00, 10ª Câm. de Dir. Público, Rel. Des. Torres de Carvalho, v.u., j. 4.7.08)

 

 

Este instituto da permanência surgiu com a Lei nº 10.442/88 procurando oferecer um tratamento mais atenuado às contas públicas municipais[ii], conforme bem relata o i. Procurador desta Edilidade e doutrinador Antônio Rodrigues de Freitas Júnior:

“Anteriormente ao advento da Lei 10.442/88, a única modalidade de indenização ficta reconhecida por lei como veículo para ocasionar a insusceptibilidade de revogação de gratificações discricionárias consistia no instituto da incorporação. Como se sabe, ou se deveria saber, a ocorrência da incorporação fazia incidir a parcela incorporada sobre o padrão do vencimento, de sorte não apenas que a gratificação incorporada tornava-se insusceptível de supressão como, no mesmo ato, que ao repercutir no padrão ensejava majoração do produto final da remuneração.

Foi precisamente colimando oferecer tratamento mais parcimonioso que se deu o advento da Lei 10.442/88. Daí a razão pela qual a proibição da incidência constar de parágrafo (nem preciso reiterar qual a função normativa de um parágrafo), e de parágrafo único do artigo que instituiu justamente a permanência, como instituto inovador no Direito Municipal de São Paulo. Diga-se de passagem: instituto originariamente restrito à figura da Gratificação de Gabinete e para essa idealizado. Do exposto, evidencia-se, na boa fé interpretativa, que ao vedar “sua utilização, sob qualquer forma, para cálculo simultâneo que importe em acréscimo de outra vantagem pecuniária”, o endereço do verbo, vale dizer, seu objeto direto consiste na Gratificação “tornada permanente”.

Aliás, permito-me esse desnecessário truísmo na intenção de enfatizar que a proibição do referido parágrafo único evitou conferir, ao ato de reconhecimento da permanência, os efeitos majoratórios até então ínsitos ao ato concessivo da incorporação desde aí já não mais aplicável à Gratificação de

Gabinete.” (Câmara Municipal de São Paulo, Parecer nº 088/2001, de autoria do Procurador Legislativo Antonio Rodrigues de Freitas Jr. – OAB/SP 69.936)

 

“Em minha percepção, o problema resolveu-se não por via do art. 1º, parágrafo único, da Lei 10.442/88, mas em virtude do tratamento legal conferido às demais vantagens. Tenhamos presente que a dicção desse preceito objetivou, como acertadamente afirma o Anexo do Relatório GV, evitar que o ato declaratório de permanência viesse a ser tratado de igual modo que o de incorporação. Assim sendo, a decisão do E. TCM, ao contrário do que se possa supor por uma leitura apressada, não determinou que a GG, ao se tornar permanente, viesse a aderir ao padrão e a repercutir sobre todas as demais vantagens que sobre ele se calculassem.

Considerando a autonomia legislativa da Câmara para dispor sobre suas gratificações, o Parecer que embasa a decisão do C. TCM ocupou-se de interpretar a forma de cálculo dessas últimas e houve por concluir o que determinou como correta fórmula de cálculo dos servidores do Legislativo (e TCM), sem qualquer distinção entre GG discricionária e GG permanente.

Daí que a mesma fórmula de cálculo por ele determinada alcançou indistintamente a GG de todos aqueles servidores, com ou sem direito à permanência. Por sinal, não houvesse a figura da permanência, isso em nada alteraria as premissas por ele esposadas. O que fundamentou a decisão do C. TCM foram as normas destinadas a outras vantagens, diversas daquelas concedidas aos demais servidores do Executivo.” (Câmara Municipal de São Paulo, Parecer nº 086/2002, de autoria do Procurador Legislativo Antônio Rodrigues de Freitas Jr. – OAB/SP 69.936).

 

Em outros pareceres da douta Procuradoria da CMSP, temos registro de debate sobre a coexistência destes dois institutos em situações e demandas distintas, tendo como ponto em comum o fato de que ambos proporcionam a integração das vantagens à remuneração do funcionário:

 

“Consequentemente, vemos que ambos os benefícios – a incorporação prevista no art. 33 da Lei nº 9.296/81, e a permanência disciplinada pela Lei nº 10.442/88 e Resolução nº 06/93 — são legalmente previstos, sendo passíveis de serem obtidos pelos servidores deste Legislativo, desde que preenchidos os respectivos requisitos legais. Tratam-se de dois benefícios legalmente previstos, com objetos, critérios e requisitos distintos, mas com semelhante efeito em relação a cada respectivo objeto. Este efeito, como já visto, pode ser assim traduzido: a respectiva vantagem (na permanência, uma gratificação; na incorporação, o conjunto de vantagens próprias de um cargo) passa a integrar em definitivo a remuneração do funcionário.” (Câmara Municipal de São Paulo, Parecer nº 031/2003, de autoria do Procurador Legislativo Sebastião Rocha, OAB/SP nº 138.572)

 

“Ambos os benefícios, a incorporação prevista no art. 33 da Lei nº 9.296/81 (em que são incorporadas todas as vantagens do cargo) e a permanência, disciplinada pela Lei nº 10.442/88 (em que uma vantagem específica é tornada permanente), coexistem e são passíveis de serem adquiridos pelo funcionário do QPL, desde que preenchidos os requisitos próprios estabelecidos nas respectivas leis, não havendo incompatibilidade entre eles.” (Câmara Municipal de São Paulo, Parecer nº 9002/2003, de autoria do Procurador Legislativo Mário Sérgio Maschietto, OAB/SP 129.760)

 

  1. A existência dos dois Institutos após Emenda Constitucional 19/98

Outro ponto a se destacar é que a Constituição de 1988 e as respectivas Emendas Constitucionais nºs 19/98; 20/98 e 41/03 não vedaram ou extinguiram a incorporação ou a permanência, que pertencem ao mesmo gênero como meios de integração de vantagens no âmbito salarial e remuneratório dos servidores públicos, mas são espécies distintas, como demonstrado acima.

Um dos exemplos clássicos jurisprudências, que demonstra a existência da incorporação mesmo após a emenda 19/98 e posteriores, é a reconhecida aplicação do instituto da incorporação, previsto em várias Constituições Estaduais, como exemplo abaixo a redação do art. 129 com a leitura conjunta do art. 115, XVI; e 133 da Constituição do Estado de São Paulo:

 

Artigo 129 – Ao servidor público estadual é assegurado o percebimento do adicional por tempo de serviço, concedido no mínimo por quinquênio, e vedada a sua limitação, bem como a sexta parte dos vencimentos integrais, concedida aos vinte anos de efetivo exercício, que se incorporarão aos vencimentos para todos os efeitos, observado o disposto no art. 115, XVI[iii], desta Constituição.

 

Artigo 133 – O servidor, com mais de cinco anos de efetivo exercício, que tenha exercido ou venha a exercer cargo ou função que lhe proporcione remuneração superior à do cargo de que seja titular, ou função para a qual foi admitido, incorporará um décimo dessa diferença, por ano, até o limite de dez. (NR) “

 

A consolidação destes comandos da Constituição Bandeirante foi feita após amplo debate no Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo desde a emenda 19/98, com o atual texto do art. 37, XIV, da Constituição Federal:

 

Importante ainda ressaltar que o art. 129 da Constituição Estadual não foi revogado pelo novo texto do art. 37, XIV, da Constituição Federal. Isto porque a interpretação teleológica da norma conduz ao raciocínio de que as alterações advindas com a Emenda Constitucional n. 19 visam apenas a evitar a cumulação de acréscimos remuneratórios entre adicionais do mesmo gênero, o que impede tão somente a incidência de quinquênio sobre quinquênios anteriores, bem como de quinquênio sobre a sexta-parte, e vice-versa, uma vez que, embora diversos, ambos os benefícios são concedidos sobre o mesmo fundamento: a retribuição pela prestação continuada de serviço público por determinado lapso de tempo.” (TJ-SP – Apelação n. 1015671-62.2015.8.26.0053, Relatora Desembargadora Heloísa Mimessi, 5ª Câmara de Direito Público, j. 20/08/2019)

 

Com efeito, o fim da norma inserta no art. 37, XIV, da Constituição Federal, até mesmo na redação da EC nº 19/98, não é outro senão o de coibir o chamado “efeito cascata”, pelo qual se tem o risco de operar cálculos remuneratórios cumulativos, que a norma constitucional teve o escopo de obstar. Deste modo e nada obstante a feição periódica (quinquenal) do adicional por tempo de serviço, porque no molde das normas de regência, no trato de sua base de cálculo, pode-se afirmar a existência de controles obstativos da incidência recíproca na medida em que os quinquênios não podem ser computados nem acumulados para concessão de acréscimos ulteriores do mesmo gênero – não há conflito algum com a norma constitucional federal, preservada em seu núcleo finalístico. E, para não haver dúvida, bem agiu o MM. Juiz a quo, ao esclarecer que o quinquênio não recai sobre a sexta-parte, nem esta sobre aquela (fls. 48/51) e, neste ponto, nem sequer há irresignação recursal dos autores. Enfim, como se sabe, o resultado da interpretação teleológica prepondera sobre o da interpretação gramatical, pois, em hermenêutica, enquanto a letra da regra é ponto de partida, sua nobreza axiológica é ponto de chegada (cf. FERRAZ Jr., Tércio Sampaio, Introdução ao estudo do direito, 2ª ed. São Paulo: Atlas, São Paulo, 2a ed., p. 287). E, no fim teleológico da norma constitucional, não se pode afirmar, no caso, que haja repique ou “efeito cascata”. (TJ – SP – Apelação n. 0938918-68.2012.8.26.0506, Relator Desembargador Vicente de Abreu Amadei, 1ª Câmara de Direito Público, j. 10/12/2013)

 

                                    Desta forma, ao se incorporar uma vantagem da forma prevista do artigo 133 da Constituição Estadual, e cumprindo os quesitos legais do artigo 129 do mesmo diploma legal, a vantagem incorporada por aquele artigo servirá de base para a vantagem incorporada prevista neste, cumprindo os dizeres do artigo 115, que segundo jurisprudência do TJ-SP não colide com a alteração feita pela emenda 19/98 no art. 37, XIV, da CF.

A posição do STF sobre a questão de haver ou não atrito ao previsto no artigo 129 da Constituição Bandeirante em relação ao prescrito pela emenda 19/98 é a de que não se pode modificar a interpretação que o Tribunal a quo conferiu à legislação infraconstitucional local, aplicando-se, assim, a súmula STF nº 280 “Por ofensa a direito local não cabe recurso extraordinário”, e que esse óbice não foi afastando com o advento da emenda 19/98, pois não cabe recurso extraordinário quando há alegação de violação reflexa da Constituição Federal:

 

“RECURSO EXTRAODINÁRIO. ADICIONAL DE SEXTA-PARTE. MATÉRIA PROCESSUAL. LEGISLAÇÃO LOCAL. EC. Nº 19/98. Ao rejeitar os embargos declaratórios que tratam da superveniência da EC nº 19/98, o acórdão recorrido assentou-se no fundamento infraconstitucional de que não incidiu no caso das hipóteses previstas no artigo 535 do Código de Processo Civil, tratanto-se, portanto, de matéria processual, insuscetível de ser apreciada por recurso extraordinário. Do mesmo modo, ao reconhecer o direito dos autores ao cálculo do adicional de sexta-parte sobre os vencimentos integrais, o Tribunal a quo baseou-se exclusivamente em lei local. A superviniência da EC nº 19/98, alterando o art. 37, XIV, da CF, não afasta a exigência de ofensa direta à Constituição Federal para que o recurso extraordinário seja conhecido (Súmula STF nº 280). Agravo regimental improvido. ( RE. 310.265-AgR, rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 29.11.2002)

 

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. SERVIDOR PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO. ADICIONAL DE SEXTA PARTE. DIREITO LOCAL. OFENSA INDIRETA À CONSTITUIÇÃO FEDERAL. INVIABILIDADE DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. SUPERVENIÊNCIA DA EC 19/1998. A decisão agravada está em perfeita consonância com o entendimento firmado por ambas as Turmas desta Corte no sentido de que é inviável em recurso extraordinário o debate de questão relativa a direito meramente local. O Tribunal a quo, ao reconhecer o direito dos servidores do Estado de São Paulo à vantagem da sexta parte calculada sobre os vencimentos integrais, fundamentou-se exclusivamente no art. 129 da Constituição Estadual. Assim, eventual violação da Constituição Federal seria indireta. Incidência da Súmula 280/STF. Óbice não afastado pelo advento da Emenda Constitucional 19/1998. Agravo regimental a que se nega provimento.’ (AI 406.697-AgR, rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ de 04.11.2005)

 

EMENTA: CONSTITUCIONAL. SERVIDOR PÚBLICO. ADICIONAL DE SEXTA-PARTE. CÁLCUULO DE ACORDO COM A CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. I – Cálculo da sexta-parte feito em cumprimento às normas do art. 129 da Constituição do Estado-Membro. Controvérsia decidida à luz da legislação local. II. Agravo não provido.’ (AI 510.364-AgR, rel. Min. Carlos Vellosso, DJ de 16.09.2005)

 

 

“EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ADICIONAL SEXTAPARTE. ART. 129 DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO. MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL. A presente controvérsia passa, necessariamente, pela análise da legislação infraconstitucional pertinente, na qual se baseara o acórdão recorrido ( art. 129 da Constituição do Estado de São Paulo). Incide, no caso concreto, o óbice da Súmula 280 desta colenda Corte. Agravo regimental desprovido. (RE 309.542-AgR, rel. Min. Carlos Britto, DJ de 10.09.2004)

 

EMENTA: RECURSO. Extraordinário. Inadmissibilidade. Servidor público estadual. Vencimentos. Cálculo do adicional da sexta-parte. Interpretação de legislação local. Agravo regimental não provido. Aplicação da súmula 280. Não cabe RE que teria por objeto alegação de ofensa que, irradiando-se de má interpretação, aplicação, ou, até, inobservância de direito local, seria apenas indireta à Constituição da República. (AI 284.720-Agr. Rel. Min. Cezar Peluso. Dj de 24.10.2003.)

 

Importante ressaltar, para evitar leituras desatentas, o alerta do Ministro Joaquim Barbosa, ao dizer que na repercussão geral reconhecida no RE 563.708 (tema 24), o qual trata da aplicação imediata da EC 19/98, não se refere que a retirada da parte final do inciso XIV do art. 37 da Constituição Federal[iv]estenderá a vedação da incidência de acréscimos pecuniários sobre acréscimos ulteriores além dos de mesmo título ou idêntico fundamento, mas que, na aplicação do previsto nesta emenda, preservar-se-á a garantia constitucional da irredutibilidade da remuneração e do direito adquirido:

 

“Ressalto, inicialmente, que esta Corte já decidiu, quanto à verba denominada sexta-parte, que a matéria é de natureza infraconstitucional, de modo que a ela se aplicam os efeitos da ausência de repercussão geral ( Tema 563 Incidência do adicional de sexta parte sobre a integralidade dos vencimentos de servidor público estadual estatutário ). Passo a tratar do outro adicional questionado no presente caso, o quinquênio. Observo que a questão ora discutida difere da questão constitucional posta no RE 563.708 , julgado no regime de repercussão geral ( Tema 24 ). Isso porque, naquele caso, o STF decidiu quanto à aplicabilidade imediata da Emenda Constitucional 19/1998, na parte que alterou o inciso XIV do art. 37 da Constituição, em face da garantia constitucional da irredutibilidade da remuneração e do direito adquirido. Já, no presente feito, o que se discute é a natureza salarial de determinadas verbas (Gratificação Fixa, Gratificação Extra, Gratificação Extraordinária, Abono) que devem compor a base de cálculo do quinquênio, porque são pagas de forma genérica, conforme consta do acórdão recorrido questão esta circunscrita ao âmbito infraconstitucional.

Destaco que quando do julgamento do RE 563.708 acima mencionado, a relatora, min. Cármen Lúcia, afastou do debate a matéria similar à constante do presente feito, referente à interpretação dada pelo Tribunal de Justiça ao texto legal estadual quanto à base de cálculo do adicional por tempo de serviço, por se tratar de matéria de índole infraconstitucional. Confira-se trecho do julgado:

(…)

O mérito

  1. O núcleo da questão debatida no processo é a aplicabilidade imediata da Emenda Constitucional 19/1998, na parte que alterou o inciso XIV do art. 37 da Constituição da República, em face da garantia constitucional da irredutibilidade da remuneração, realçando o Recorrente também a questão arguida do princípio do direito adquirido.
  2. Afasto, desde logo, as duas argumentações do Recorrente.

3.1. A primeira observação a ser afastada é a que se relaciona à circunstância de que os Recorridos nunca teriam tido o direito de perceber o adicional por tempo de serviço calculado sobre a remuneração, pois a Lei Estadual 1.102/1990 previa como base de cálculo o vencimento-base mais as vantagens permanentes, ou seja, estando de fora as parcelas temporárias, daí porque, segundo, nem se haveria de cogitar de direito adquirido. Essa argumentação configura típica questão de ofensa ao texto legal e não ao texto constitucional . A pretensão do Recorrente, nesse ponto, é a de que o Supremo Tribunal Federal corrija o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul quanto à interpretação dada a texto legal estadual, pois aquele órgão concluiu, expressamente, que a Lei Estadual 1.102/1990 fixava a remuneração tomando como base de cálculo do adicional por tempo de serviço. A alegação que se fez constar do acórdão recorrido que a Lei Estadual 1.102/1990 estabelecia a remuneração tomando como base de cálculo o adicional, o que deveria ser considerado por este Supremo Tribunal Federal para examinar a questão subseqüente, qual seja, a aplicabilidade imediata da alteração do inciso XIV do art. 37 da Constituição da República, não é aceitável, pois em recurso extraordinário não se pode modificar a interpretação que o Tribunal a quo conferiu à legislação infraconstitucional local, como reiteradamente vem decidindo este Supremo Tribunal. (Grifei)

 

Assim, nos termos da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a questão debatida neste processo tem índole infraconstitucional. Nesse sentido, os seguintes julgados: ARE 702.106-AgR (rel. min. Dias Toffoli, Primeira Turma, DJe de 20.02.2013), ARE 688.307-AgR (rel. min. Cármen Lúcia, Segunda Turma, DJe de 11.10.2012), ARE 687.443-AgR (rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, DJe de 01.08.2012), RE 593.098- AgR (rel. Min. Eros Grau, Segunda Turma, DJe de 19.12.2008). Em decisão monocrática: RE 763.728 (rel. min. Ricardo Lewandowski, DJe de 05.12.2013), ARE 766.078 (rel. min. Roberto Barroso, DJe de 02.12.2013), ARE 764.704 (rel. min. Cármen Lúcia, DJe de 10.09.2013), RE 702.571 (rel. min. Teori Zavascki, DJe de 21.06.2013), RE 706.026 (rel. min. Luiz Fux, DJe de 05.09.2012) e ARE 696.701 (rel. min. Celso de Mello, DJe de 01.08.2012). Com essas considerações, uma vez que a análise da alegada violação à Constituição federal demandaria o exame prévio de matéria infraconstitucional, manifesto-me pela aplicação dos efeitos da inexistência de repercussão geral.(RE 764332 RG / SP – Rel. Min. Joaquim Barbosa – Dj. 06/02/2014)”

 

Desta forma, as restrições promovidas até agora pelas emendas constitucionais ocorrem em prol da otimização dos gastos públicos, calibrando as incidências destas vantagens entre elas e no âmbito salarial e remuneratório dos servidores, não permitindo a incidência dos acréscimos pecuniários sobre outros com o mesmo título ou idêntico fundamento, sendo prova cabal da existência, assim, do instituto da incorporação, previsto nos artigos citados acima da Constituição do Estado de São Paulo, bem como em outras várias legislações, na sua premissa fundamental: de absorção, de servi de base para outras vantagens, dai a ideia de ‘in corpore‘, de ‘um só corpo’, e não apenas ficar assegurada a continuidade no recebimento da vantagem, conforme na permanência.

 

“Neste aspecto, reportamo-nos ao entendimento da ilustre administrativista, Professora Odete Medauar (doc. 11 – fls. 27/56), em parecer exarado à época por solicitação da Associação dos Funcionários da Câmara Municipal de São Paulo:

‘7.1.1. A Constituição Federal de 1988 não veda a atribuição de gratificações, adicionais, abonos, verbas de representação a servidores públicos em geral. Atente-se que o § 1° do art. 39 menciona a fixação dos padrões de vencimento e dos demais componentes remuneratórios. A propósito, bem nota José Afonso da Silva: ‘Os acréscimos pecuniários ao padrão de vencimento dos servidores públicos continuam admitidos pela Constituição, em relação a vencimentos e remuneração; não aos subsídios, que não os admitem’ (Curso de Direito Constitucional Positivo, 2002, p. 666)

(…)

‘7.1.2. A Constituição Federal de 1988 não vedou a incorporação ou permanência de acréscimos pecuniários, tais como gratificações, adicionais, verba de representação. Nem a Emenda 19/98 impede a incorporação ou permanência dessas vantagens.‘” (Câmara Municipal de São Paulo, Parecer nº 122/2004, de autoria dos Procuradores Marcella Falbo Giacaglia, OAB nº 111.393; Mário Sérgio Maschietto, OAB nº 129.760; Caio Marcelo de Carvalho Giannini, OAB nº 55.289; e Antonio Russo Filho, OAB nº 125.858)

 

“Portanto, o referido Parecer 11/2001 não afirma, como pretende a colega autora do parecer do Tribunal, que a sexta-parte deveria incidir apenas sobre o padrão de vencimentos do servidor, mas sim que esse adicional não poderia incidir sobre os qüinqüênios, devendo, no entanto, continuar a contar em sua base de cálculo com as demais vantagens eventualmente percebidas pelo servidor. Somente com a edição da novel Lei 13.637/03 é que a sexta parte passou a incidir, textual e expressamente, apenas sobre o padrão de vencimentos do cargo titularizado pelo servidor, de modo que antes da edição desse diploma legal o cálculo da sexta-parte corretamente era feito considerando a totalidade dos vencimentos do servidor, exclusão feita aos qüinqüênios.” (Câmara Municipal de São Paulo, Parecer nº 20/2006, de autoria do Procurador Legislativo Luiz Eduardo de Siqueira S. Thiago, OAB/SP 109.429)

 

  1. Hermenêutica Jurídica – aplicação do artigo 39, §9, da Constituição Federal

Analisada a natureza e existência dos dois institutos, o que se nota da atual redação do artigo 39, § 9º, da Constituição Federal é a vedação parcial do instituto da incorporação de vantagens vinculadas ao exercício de função de confiança e de cargo em comissão, bem como de vantagens de caráter temporário, evitando que vantagens sejam absorvidas no vencimento ou vencimentos dos servidores públicos e, desta forma, sejam majorados, gerando uma economia imensurável aos Municípios e Estados, nas palavras do Deputado Federal Samuel Moreira, relator da Proposta na Câmara dos Deputados.

Ocorrendo, desta maneira, a vedação ao instituto da incorporação chegamos a duas conclusões:

 

1) não há extinção do instituto da incorporação, apenas sua vedação em relação alguns tipos de vantagens, quais sejam:

 

(a) de caráter temporário;

(b) vinculadas ao exercício de função de confiança; e

(c) vinculadas a exercício de cargo em comissão.

 

2) não se deve considerar como eventual vedação à permanência.

 

Destas conclusões, a título de exemplo, apenas o artigo 133[v]da Constituição do Estado de São Paulo teria, eventualmente, sua constitucionalidade questionada, devido à natureza das vantagens ali elencadas que se incorporam a remuneração do cargo ou função. Já, por outro lado, não afetará ao previsto no artigo 129 do mesmo diploma legal, uma vez que a natureza das vantagens a serem incorporadas – sexta-parte e quinquênios – são vantagens ex facto temporis, decorrentes do tempo de serviço, tendo, evidentemente, natureza distinta das previstas no artigo 39, §9º da Constituição Federal.

Quanto a não se confundir a eventual vedação à permanência, afora a diferenciação técnica entre os dois institutos, a boa hermenêutica jurídica recomenda que toda norma que restringem direitos deve ser interpretada restritivamente. Sendo assim, a vedação trazida deverá ser interpretada de maneira restritiva. Caso abranja também a permanência, tratar-se-á de indevida interpretação extensiva, conforme recomenda doutrina:

 

“Para praticar os atos mencionados na segunda parte da norma comentada, o advogado necessita de poderes especiais, pois não bastam os da cláusula ad judicia. Como importa em restrição de direito, o rol dessas exceções é taxativo (numerus clausus), não comportando ampliação. Toda norma restritiva de direitos interpreta-se de modo estrito. Não se pode interpretar ampliativamente norma que restringe direitos, como é o caso do CPC 105. Para a prática de qualquer ato de disposição de direito (renunciar ao direito sobre o qual se funda a ação, reconhecer juridicamente o pedido, confessar, transigir, receber e dar quitação, prestar depoimento pessoal, receber citação, desistir da ação, desistir do recurso interposto etc.), o advogado precisa estar munido de poderes especiais, além daqueles constantes da cláusula ad judicia. No sistema anterior, para opor exceção de suspeição ou de impedimento não se exige do advogado do excipiente poderes especiais, bastando os da cláusula ad judicia.(Nery Jr., Nelson e Maria de Andrade Nery, Rosa. Código de Processo Civil Comentado 17.ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2018, pág. 402).

 

“A proibição de acumular, sendo uma restrição de direito, não pode ser interpretada ampliativamente. Assim, como veda a acumulação remunerada, inexistem óbices constitucionais à acumulação de cargos e funções ou empregos do serviço público desde que o servidor seja remunerado pelo exercício de uma das atividades acumuladas.” (MEIRELLES. Direito Administrativo Brasileiro. 28ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 420).

 

“Uma interpretação restritiva ocorre toda vez que se limita o sentido da norma, não obstante a amplitude de sua expressão literal. Em geral, o intérprete vale-se de considerações teleológicas e axiológicas para fundar o raciocínio. Supõe, assim, que a mera interpretação especificadora não atinge os objetivos da norma, pois lhe confere uma amplitude que prejudica os interesses, ao invés de protegê-los. Assim, por exemplo, recomenda-se que toda norma que restrinja os direitos e garantias fundamentais reconhecidos e estabelecidos constitucionalmente deva ser interpretada restritivamente. O mesmo se diga para as normas excepcionais: uma exceção deve sofrer interpretação restritiva. No primeiro caso, o telos protegido é postulado como de tal importância para a ordem jurídica em sua totalidade que, se limitado por lei, esta deve conter, em seu espírito (mens legis), antes o objetivo de assegurar o bem-estar geral sem nunca ferir o direito fundamental que a constituição agasalha. No segundo, argumenta-se que uma exceção é, por si, uma restrição que só deve valer para os casos excepcionais. Ir além é contrariar sua natureza.” (FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação, 4ª Ed. São Paulo: Atlas, 2003, em particular, Capítulo 5, item 5.2.2.2.)

 

Igualmente, deve-se salientar o princípio basilar de hermenêutica jurídica segundo o qual a lei não contém palavras inúteis: verba cum effectu sunt accipienda. Ou seja, as palavras devem ser compreendidas como tendo alguma eficácia, sentido próprio e adequado (SILVA, 1994, p. 405), conforme os ensinamentos do ilustre jurista Tércio Sampaio Ferraz Jr.:

 

“Para entender essa peculiaridade da língua hermenêutica (LH), temos de fazer referência a um pressuposto importante da hermenêutica, quando interpreta: o legislador racional. Trata-se de uma construção dogmática que não se confunde com o legislador normativo (o ato juridicamente competente, conforme o ordenamento) nem como legislador real (a vontade que de fato positiva normas). É uma figura intermédia, que funciona como um terceiro metalinguístico, em face da língua normativa (LN) e da língua realidade (LR). A ele a hermenêutica reporta-se, quando fala que “o legislador pretende que (…)’’, “a intenção do legislador é que (…)’’ ou mesmo “a mens legis nos diz que (…)’’. Nino (1980:331) dá-nos, em resumo inteligente, as propriedades que caracterizam o legislador racional:

(…) omississ (…)

Em décimo primeiro lugar, é econômico, isto é, nunca é redundante, nunca usa palavras supérfluas, e cada norma, ainda que aparentemente esteja a regular a mesma facti species, tem na verdade uma função própria e específica.

Em décimo segundo lugar, é operativo, pois todas as suas normas têm aplicabilidade, não havendo normas nem palavras inúteis.

Em décimo terceiro lugar, é preciso, pois, apesar de se valer de palavras da língua natural, vagas e ambíguas, sempre lhes confere um sentido rigorosamente técnico. Essas propriedades confirmam, na verdade, os dois princípios da hermenêutica dogmática: o da inegabilidade dos pontos de partida (deve haver um sentido básico) e o da proibição do non liquet (não deve haver conflito sem decisão). (…) omississ (…) Assim, a atividade de interpretação, desenvolvida pela dogmática jurídica, envolve uma conceptualização ideal do legislador, cuja figura na forma do “legislador racional”, muito mais do que uma imagem retórica empregada na argumentação jurídica, constitui a base (racional) para a fundamentação metodológica da atividade de interpretação jurídica.” (FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação, 4ª Ed. São Paulo: Atlas, 2003, em particular, Capítulo 5, item 5.1.5.2.)

 

“Tais inferências são construtivas de premissas interpretativas, na medida em que a interpretação é um processo de eliminação de possíveis atribuições de sentido. Assim, por exemplo, se o legislador não cria normas que não podem ser executadas, uma atribuição de sentido para uma norma que contrarie o sentido admitido para outra deve ser preterido, pois imputaria uma inconsistência ao legislador racional. Ou ainda, se o legislador usa dois termos distintos em uma regulação, por exemplo, “receita” e “faturamento” (CF, art. 195, I, b), então esses devem ter sentidos distintos, pois o legislador é preciso, caso contrário, teria usado o mesmo termo. Outro exemplo. Se o legislador define um termo em um dispositivo de lei, é esse o sentido que deve ser tomado quando o termo é empregado em outras normas, pois o legislador não pode ser tomado como ambíguo.” (FERRAZ JR., Tercio Sampaio; e MARANHÃO, Juliano Souza de Albuquerque. Parecer sobre a legislação do Programa minha casa, minha vida, consulta feita pela Associação dos Registradores Imobiliários de São Paulo em 2009.)

 

Nesse sentido, do legislador usar dois termos distintos numa mesma legislação, abundam exemplos em que os institutos da incorporação e da permanência são citados nos mesmos dispositivos legais, explicitando o fato de que não podem ser confundidos como se expressões sinônimas fossem, pois o legislador é preciso:

 

DECRETO Nº 46.861, DE 27 DE DEZEMBRO DE 2005

(…)

Art. 17 Aos servidores que, até 10 de agosto de 2005, tenham implementado as condições estabelecidas na legislação então vigente para incorporação ou permanência (…)

Art. 18  A partir de 11 de agosto de 2005, os servidores que não implementarem as condições estabelecidas na legislação específica para incorporação ou permanência (…)

 

DECRETO Nº 46.860, DE 27 DE DEZEMBRO DE 2005

(…)

Art. 3º A base de contribuição referida no artigo 2º deste decreto corresponde ao total dos subsídios e vencimentos do servidor, compreendendo o vencimento do cargo, acrescido das vantagens pecuniárias que a ele se integram, nos termos da lei ou de outros atos concessivos, bem como os adicionais de caráter individual e quaisquer outras vantagens, excluindo-se: (…)

  • 1º Para os efeitos deste artigo, integram a base de contribuição:

I – as vantagens tornadas permanentes ou que sejam passíveis de se tornarem permanentes e as vantagens incorporadas ou que sejam passíveis de incorporação, todas na atividade;

(…)

III – as vantagens cuja incorporação ou permanência tenha sido assegurada nos termos do artigo 17 do Decreto nº 46.861, de 27 de dezembro de 2005, enquanto forem ou quando voltarem a ser percebidas na atividade, na forma da lei. § 2º As vantagens de que tratam os incisos VI e VII do “caput” deste artigo que não sejam passíveis de se tornarem permanentes ou de serem incorporadas na atividade, na forma da legislação específica, previstas na Tabela “A” do Anexo I deste decreto, integrarão, automaticamente, a base de contribuição, garantido ao servidor o direito de opção por sua exclusão, exceto na hipótese do artigo 17 do Decreto nº 46.861, de 27 de dezembro de 2005.

 

LEI Nº 13.637 DE 04 DE SETEMBRO DE 2003

(…)

Art. 6º Os Gabinetes dos Vereadores compõem-se de cargos de direção, chefia e assessoramento. (Redação dada pela Lei nº 16.671/2017)  (…) omississ (…)

  • 3º É vedada a percepção do padrão de que trata este artigo com a Gratificação de Gabinete ou Gratificação de Apoio Legislativo, ainda que regularmente incorporadas ou tornadas permanentes nos termos da legislação anterior. (Redação dada pela Lei nº 16.671/2017)

(…)

Art. 15 – Ficam instituídas, para os cargos efetivos do Quadro do Pessoal do Legislativo, as Escalas de Vencimentos Básicos, componentes da Tabela A1 constante do Anexo IV integrante desta lei.

  • 1º – Ficam absorvidos, no novo vencimento básico, os valores relativos aos adicionais de terços; a Gratificação de Gabinete do cargo e a tornada legalmente permanente ou incorporada; e a Gratificação de Apoio Legislativo regularmente tornada permanente na forma da lei, previstos no artigo 100, inciso I da Lei nº 8.989, de 29 de outubro de 1979 e Resolução nº 8, de 19 de outubro de 1990.

 

  1. Fato Correlato

Recentemente, outro fato evidenciou a diferenciação dos institutos da incorporação e da permanência foi a tramitação do Projeto de Lei Complementar n° 149/2019, que “estabelece auxílio financeiro da União aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para mitigar os efeitos da pandemia da Covid-19; dispõe sobre a aplicação da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000; e dá outras providências.”

 

No Senado Federal, esse PLP recebeu, em 30/04/2020[vi], preliminarmente, relatório com substitutivo do Senador Davi Alcolumbre, no qual houve algumas alterações no texto aprovado na Câmara dos Deputados, dentre as quais estava a inclusão do seguinte inciso IX , art.[vii]8º:

 

“Art. 8º[viii]Na hipótese de que trata o art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios afetados pela calamidade pública decorrente da pandemia do Covid-19 ficam proibidos, até 31 de dezembro de 2021, de:

(…) omissis (…)

IX – contar esse tempo como de período aquisitivo necessário para a concessão de anuênios, triênios, quinquênios, licenças-prêmio, promoções, progressões, incorporações, permanências e demais mecanismos equivalentes que aumentem a despesa com pessoal em decorrência da aquisição de determinado tempo de serviço; (…) omississ (…)”

 

Nota-se que, no inciso IX do artigo, elencam-se institutos jurídicos distintos, embora muitas vezes com pontos em comum, como promoções e progressões, que se trata de evolução de carreira, mas que têm distinções no âmbito do direito administrativo. Assim como os anuênios, triênios e quinquênios, que, embora sejam gratificações temporais, são institutos distintos quanto à sua aplicabilidade.

Da mesma forma, ocorre com a incorporação e permanência. Embora tenham pontos em comum – ambos proporcionam a integração das vantagens à remuneração do funcionário –, são institutos distintos quanto à sua aplicabilidade.                                               Conforme já posto acima, na incorporação, ocorre a absorção de vantagem para fins de cálculos de outras. Na permanência, por sua vez, apenas fica assegurada a continuidade no recebimento da vantagem, em homenagem ao Princípio Constitucional da Estabilidade Financeira, que garante ao servidor, após certo tempo de exercício de cargo em comissão, função de confiança ou assemelhado, a continuidade da percepção da diferença entre os vencimentos desse cargo ou função e o do seu cargo efetivo.

 

  1. Do Direito Adquirido

Importante, outrossim, destacar que, embora não haja direito adquirido a regime jurídico, ou seja, ser viável a alteração da composição da remuneração dos servidores públicos, o Supremo Tribunal Federal, no sopesamento das cláusulas constitucionais, decidiu, no leading case R.E. 563.708/MS, com repercussão geral, que, pelo princípio da irredutibilidade dos vencimentos, fica preservado o quantum da remuneração:

Recurso Extraordinário n. 563708/MS

“Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos artigos 5º, XXXVI; e 37, XIV, da Constituição Federal, e 17 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT, se servidor público, admitido antes da promulgação da Emenda Constitucional nº 19/98, a qual suprimiu a expressão “sob o mesmo título ou idêntico fundamento” do art. 37, XIV, da Constituição Federal, tem, ou não, direito adquirido ao adicional por tempo de serviço calculado de acordo com a redação original do referido dispositivo constitucional.

Tese: I – O art. 37, XIV, da Constituição Federal, na redação dada pela Emenda Constitucional 19/98, é autoaplicável;

II – Não há direito adquirido a regime jurídico, notadamente à forma de composição da remuneração de servidores públicos, observada a garantia da irredutibilidade de vencimentos.”

 

A própria alteração feita pela Emenda Constitucional nº 103,  (Reforma da Previdência), está alinhada ao entendimento do leading case R.E. 563.708/MS, ao consagrá-lo em seu artigo 13:

 

Art. 13. Não se aplica o disposto no § 9º do art. 39 da Constituição Federal a parcelas remuneratórias decorrentes de incorporação de vantagens de caráter temporário ou vinculadas ao exercício de função de confiança ou de cargo em comissão efetivada até a data de entrada em vigor desta Emenda Constitucional.

 

Considerações Finais

Após toda análise deste artigo, fica evidente de que existem espécies distintas de institutos jurídicos quanto ao gênero de garantia esculpida no Princípio Constitucional da Estabilidade Financeira, e que pela boa hermenêutica jurídica normas de restrição de direitos não se interpreta de maneira extensiva, logo não cabe o interprete ir além do que o constitucionalista derivado legislou que no caso foi a vedação do Instituto Jurídico da Incorporação em algumas situações, vantagens, que o próprio legislador listou no art. 39, § 9º da CF.

 

REFERÊNCIAS

MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo moderno. 21. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018, 1, 281.

 

MARTINS JUNIOR, Wallace Paiva. Remuneração dos agentes públicos, São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 86-87, n. 10

 

Câmara Municipal de São Paulo, Parecer nº 088/2001, de autoria do Procurador Legislativo Antonio Rodrigues de Freitas Jr. – OAB/SP 69.936.

http://www.saopaulo.sp.leg.br/assessoria_juridica/parecer-88-2001/

 

Câmara Municipal de São Paulo, Parecer nº 086/2002, de autoria do Procurador Legislativo Antônio Rodrigues de Freitas Jr. – OAB/SP 69.936.

http://www.saopaulo.sp.leg.br/assessoria_juridica/parecer-86-2002/

 

Câmara Municipal de São Paulo, Parecer nº 031/2003, de autoria do Procurador Legislativo Sebastião Rocha, OAB/SP nº 138.572.

http://www.saopaulo.sp.leg.br/assessoria_juridica/parecer-31-2003/

 

Câmara Municipal de São Paulo, Parecer nº 9002/2003, de autoria do Procurador Legislativo Mário Sérgio Maschietto, OAB/SP 129.760.

http://www.saopaulo.sp.leg.br/assessoria_juridica/parecer-9002-2003/

 

Câmara Municipal de São Paulo, Parecer nº 122/2004, de autoria dos Procuradores Marcella Falbo Giacaglia, OAB nº 111.393; Mário Sérgio Maschietto, OAB nº 129.760; Caio Marcelo de Carvalho Giannini, OAB nº 55.289; e Antonio Russo Filho, OAB nº 125.858.

http://www.saopaulo.sp.leg.br/assessoria_juridica/parecer-122-2004/

 

Câmara Municipal de São Paulo, Parecer nº 20/2006, de autoria do Procurador Legislativo Luiz Eduardo de Siqueira S. Thiago, OAB/SP 109.429.

http://www.saopaulo.sp.leg.br/assessoria_juridica/parecer-20-2006/

 

Nery Jr., Nelson e Maria de Andrade Nery, Rosa. Código de Processo Civil Comentado 17.ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2018, pág. 402.

 

MEIRELLES. Direito Administrativo Brasileiro. 28ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 420.

 

FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação, 4ª Ed. São Paulo: Atlas, 2003, em particular, Capítulo 5, item 5.2.2.2.);

 

 

FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação, 4ª Ed. São Paulo: Atlas, 2003, em particular, Capítulo 5, item 5.1.5.2.);

 

FERRAZ JR., Tercio Sampaio; e MARANHÃO, Juliano Souza de Albuquerque. Parecer sobre a legislação do Programa minha casa, minha vida, consulta feita pela Associação dos Registradores Imobiliários de São Paulo em 2009.

 

 

[i] Advogado;

Supervisor de Equipe das Comissões do Processo Legislativo – Câmara Municipal de São Paulo;

Especialista em Direito Eleitoral e Processo Eleitoral – Centro Universitário Claretiano – 2014;

Bacharel em Direito – Universidade de São Paulo – USP – 2012.

Email: [email protected]

[ii] Importante destacar que o STF já assentou tese de que pela Autonomia Legislativa dos Entes Federativos há possibilidade de Legislação Infraconstitucional dispor sobre vantagem ou garantia não vedada ou não disciplinada pela Constituição da República. (AI 784.572 AgR, rel. min. Cármen Lúcia, j. 8-2-2011, 1ª T, DJE de 25-3-2011.)

[iii] Artigo 115 – Para a organização da administração pública direta e indireta, inclusive as fundações instituídas ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das seguintes normas:

(…) omississ (…)

XVI – os acréscimos pecuniários percebidos por servidor público não serão computados nem acumulados para fins de concessão de acréscimos ulteriores sob o mesmo título ou idêntico fundamento; (…)omississ(…)”

[iv] “Art. 37 (…)

XIV  – os acréscimos pecuniários percebidos por servidor público não serão computados nem acumulados, para fins de concessão de acréscimos ulteriores sob o mesmo título ou idêntico fundamento.”

[v] Revogado pela Emenda Constitucional nº 49, de 06/03/2020, assegurada a concessão das incorporações que, na data da promulgação da Emenda Constitucional nº 103, de 12/11/2019, tenham cumprido os requisitos temporais e normativos previstos na legislação então vigente.

Efeitos desta Emenda suspensos devido a decisão em Ação Direita de Inconstitucionalidade em tramitação no TJ-SP, Processo nº 2044985-25.2020.8.26.0000 :  https://www.tjsp.jus.br/Noticias/Noticia?codigoNoticia=60625

[vi]https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/04/30/davi-apresenta-relatorio-preliminar-sobre-auxilio-a-estados-e-municipios

[vii]  https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8102276&ts=1589571456761&disposition=inline

[viii] No trâmite da respectiva matéria legislativa, houve, por acordo político, alterações do proposto no relatório inicial do Senador Davi Alcolumbre, sendo retirado grande parte das parcelas mencionadas no inciso XI do artigo 8º citado acima, ficando apenas as gratificações temporais.

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One Reply to “Distinções entre os Institutos Jurídicos da Incorporação e Permanência…”

  1. continuei em duvida , eu estou nomeado em Função de Confiança desde antes da EC 103/2019 , tenho direito a incorporação? se sim tenho apenas antes da promulgação da Emenda, ou consigo incorporar até o presente momento uma vez que a nomeação não foi interrompida

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