Acácia Regina Soares de Sá – Juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios; Mestre em Políticas Públicas do Centro Universitário de Brasília. E-mail: <[email protected]>.
Resumo: A proposta do presente artigo é analisar se a celebração de acordo de não persecução civil no âmbito da ação civil por ato de improbidade administrativa ofende o princípio da moralidade, tendo em vista que além da recuperação do dano causado ao erário, a Lei n.º 8.429/92 também se destina a proteger a probidade administrativa, a qual tem como principal expressão, o princípio da moralidade. Assim, é necessário analisar se a alteração legislativa proposta ofende o princípio administrativo acima mencionado. Nessa direção, o presente trabalho visa, primeiramente, a analisar o princípio da moralidade como núcleo central da proteção à probidade administrativa, em sequência será analisada a possibilidade de celebração de termo de ajustamento de conduta no âmbito dos atos de improbidade administrativa para, por fim, avaliar se a utilização de meios de solução alternativas de conflitos no âmbito da ação de improbidade administrativa ofende o princípio da moralidade administrativa.
Palavras-chave: Acordo de Leniência. Moralidade. Improbidade administrativa. Violação.
The Leniency Agreement Under the administrative Improbity Law and the Principle of Morality
Abstract: The purpose of this article is to analyze whether the conclusion of a civil non-persecution agreement within the scope of the civil action for administrative misconduct offends the principle of morality, considering that in addition to recovering the damage caused to the treasury, Law no. 8,429 / 92 is also intended to protect administrative probity, which has as its main expression, the principle of morality. Thus, it is necessary to analyze whether the proposed legislative change offends the aforementioned administrative principle. In this direction, the present work aims, first, to analyze the principle of morality as central core of the protection to the administrative probity, in sequence will be analyzed the possibility of celebration of conduct adjustment term in the scope of the acts of administrative improbity for, finally , assess whether the use of alternative means of resolving conflicts in the context of administrative misconduct offends the principle of administrative morality.
Keywords: Leniency Agreement. Morality. Administrative dishonesty. Violation.
Sumário: Introdução; 1. O princípio da moralidade como núcleo central da proteção da probidade administrativa; 2. A finalidade da celebração de acordo de não persecução civil na ação civil pública por ato de improbidade administrativa; 3. A celebração de acordo de não persecução civil no âmbito da Lei n.º 8.429/92 e o princípio da moralidade administrativa; Conclusão; Referências Bibliográficas.
Introdução
A possibilidade de ressarcimento ao erário em caso de desvios pela prática de atos ímprobos já é prevista na legislação brasileira desde a Constituição Federal de 1824. No entanto, foi a Constituição Federal de 1946 que trouxe maiores avanços acerca do tema, isso porque previu a possibilidade de sequestro e perdimento de bens em razão do enriquecimento ilícito, por influência ou abuso de cargo ou função pública, medidas regulamentadas através da Lei n.º 3.164/57 (previu a tutela extrapenal repressiva da improbidade administrativa), da Lei n.º 3.502/58 (tratou do sequestro e perdimento de bens) e da Lei n.º 4.717/65 (ação popular), sanções que se tornaram mais severas com a promulgação da Emenda Constitucional n.º 01/69.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a improbidade administrativa surgiu como um modelo vinculado ao direito administrativo, possuindo como centro o princípio da moralidade, tendo o art. 37, § 4º, da Constituição Federal elencado as sanções em caso da prática de atos enumerados como ímprobos, no intuito de atender aos anseios da sociedade como forma de combate à corrupção, bem como aos eventuais abusos praticados pelos agentes públicos e preservar a probidade administrativa.
Nesse diapasão, é possível verificar que a nova roupagem dada aos atos de improbidade administrativa após a Constituição Federal e, em especial, após a entrada em vigor da Lei n.º 8.429/92 buscou não só a recuperação do patrimônio público eventualmente desviado, mas também o respeito à coisa pública e sua gestão de forma ética e honesta, tanto que tipificou como ato de improbidade administrativa as condutas que ferem os princípios constitucionais administrativos, independentemente da existência de dano patrimonial (art. 11, da Lei n.º 8.429/92).
A partir da referida constatação se faz necessário analisar se a alteração trazida na Lei n.º 13.964/19 (Lei Anticrime), a qual possibilita a realização de acordo no âmbito da ação de improbidade administrativa, afronta a finalidade principal da Lei de Improbidade Administrativa que se refere à proteção da moralidade administrativa, uma vez que a Lei n.º 8.429/92 não visa apenas ao ressarcimento ao erário, mas também à aplicação de outras sanções, a exemplo da perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos, como forma de manter uma gestão pública proba, através do afastamento do cenário da Administração Pública de gestores desonestos.
1 O princípio da moralidade como núcleo central da Lei de Improbidade Administrativa
O princípio da moralidade, no direito administrativo, retoma a Maurice Hauriou (1910) quando buscou introduzi-lo no Conselho de Estado da França, órgão responsável pela jurisdição administrativa na França, desenvolvendo as bases do referido princípio através da sanção do desvio de poder, a fim de possibilitar o controle dos atos administrativos discricionários, tendo em vista que, à época, somente era permitido o controle dos atos administrativos vinculados, garantindo, com a referida inovação, uma maior atuação e controle das ações governamentais pelo referido Conselho.
Nesse sentido, segundo Antônio José Brandão (1951) a teoria do enfrentamento do desvio de poder de Hauriou representou a introdução do elemento moral no cenário jurídico.
No Brasil, o princípio da moralidade administrativa foi incorporado legalmente como forma de combate ao desvio de poder nos moldes acima mencionados em 1965 com a sanção da Lei n. 4.7617/65 – Ação Popular.
Nesse diapasão, têm-se que a moralidade administrativa é o precedente lógico de toda conduta administrativa, vinculada ou discricionária, possuindo, segundo José Guilherme Giacomazzi (2002), dois aspectos: o aspecto objetivo, representado pela boa-fé e o aspecto subjetivo, traduzido através do dever de probidade.
Assim, apesar de alguns poucos autores ainda não reconhecerem a autonomia do princípio da moralidade em relação a outros princípios administrativos, em especial em relação ao princípio da legalidade, a controvérsia acerca do tema foi dirimida com a promulgação da Constituição Federal de 1998 que concedeu ao princípio da moralidade patamar idêntico ao do princípio da legalidade nos termos do caput do seu art. 37, razão pela qual não mais se sustenta o argumento de que o princípio da moralidade estaria incluído no princípio da legalidade.
Em face da referida posição alcançada pelo princípio da moralidade, a Constituição Federal de 1988 previu ainda em seu art. 5º, LXXIII a possibilidade de sua apreciação judicial, o que possibilitou a sanção pela prática de atos de improbidade administrativa.
Nesse sentido, a probidade administrativa, nos moldes trazidos pela Constituição Federal, tem o princípio da moralidade em sua centralidade, podendo ser considerada como um dos efeitos da aplicação da boa-fé, isso porque pune o agente público que age com desonestidade, violando o princípio da boa-fé. Apesar de a referida lei ter sido sancionada em 1992, somente em 1999, edição da Lei n.º 9.784/99, foi trazida um conceito legal do referido princípio da moralidade no art. 2º, IV, desse diploma legal.
Ainda que o princípio da moralidade não esteja subordinado ao princípio da legalidade, deve observância ao princípio da juridicidade, o qual tem como base os limites jurídicos da razoabilidade, finalidade e boa-fé, ou seja, para que reste caracterizada a violação ao princípio da moralidade se faz necessário que ocorra também uma lesão àquele princípio.
Dessa forma, a prática de qualquer ato administrativo pode vir a ofender o princípio da moralidade, no entanto, sua maior incidência ocorre em relação aos atos administrativos discricionários, tendo em vista a existência de mais de uma possibilidade disponível ao administrador no momento da tomada de decisão, diferentemente do que ocorre com os atos administrativos vinculados. (GIACOMOZZI, 2002).Por fim, sendo a moralidade administrativa, não apenas um princípio, mas também um valor socialmente definido, pertencente à coletividade de forma indivisível e indeterminada, Wallace Paiva Martins Júnior (2015) defende que sendo um patrimônio social, é passível de recomposição em caso de lesão por meio de condenação do ofensor à compensação financeira a título de dano moral coletivo.
2 A finalidade da celebração de não persecução civil na Ação Civil Pública por ato de improbidade administrativa
Em razão da necessidade de modernização do direito administrativo, no intuito de atender aos anseios da população, os administrativistas passaram a defender a utilização de alguns meios alternativos de solução de conflitos a fim de dar mais celeridade e efetividade na resolução das questões administrativas.
Nesse sentido, Juliana Bonacorsi de Palma(2015) defende que a consensualidade na Administração Pública, apesar de recente já integra as cadeias acadêmicas como ramo de pesquisa e consolidada em parte dos sistemas jurídicos brasileiros. Continua a autora: “[…] apesar de reconhecida como tema relativamente recente na agenda de estudos teóricos no direito administrativo, a consensualidade já integra a produção acadêmica neste ramo do Direito, e em torno desse objeto são desenvolvidas análises sobre seus mais variados aspectos. Ao menos como uma linha de pesquisa, a consensualidade na Administração Pública encontra-se sedimentada em significativa parcela dos sistemas jurídicos de direito administrativo.”
Ainda nesse sentido, a celebração de acordos pela Administração Pública não pode ser considerada, em alguns casos, como a mitigação da indisponibilidade do interesse público, mas como uma forma de perseguir uma maior efetividade no serviço público. (DAL POZZO, 2015).
Nesse diapasão, a utilização dos meios de solução alternativas de conflitos descritos no presente item, no âmbito da ação de improbidade administrativa, possuem, prioritariamente, efeitos vinculadas à reparação do dano, já que não estamos tratando aqui do acordo de colaboração premiada mediante o qual é permitida a diminuição de outras penas a serem aplicadas ou até que seja afastada a sua aplicação.
A celebração de acordos no âmbito da ação civil pública por ato de improbidade administrava tem seu fundamento em tratados internacionais, especialmente na Convenção da OCDE – Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico, a qual foi ratificada no Brasil pelo Decreto Legislativo n.º 152/2002 e promulgada pelo Decreto n.º 4.410/2002, passando a fazer parte do microssistema jurídico nacional de combate à corrupção e segundo Antônio Araldo Ferraz Del Pozzo (2015) tem o sentido de “[…] suavizar as sanções aplicáveis àquele que praticar o ato lesivo à Administração Pública — em troca de colaboração efetiva da pessoa jurídica, desde que dessa colaboração resulte a obtenção de elementos probantes para a identificação dos demais envolvidos na prática do ato ilícito e garanta maior celeridade na obtenção de provas que comprovem a materialidade do ato ilícito sob investigação.”
Com a entrada em vigor da Lei n.º 12.846/13, doutrinariamente o acordo de leniência passou a ser considerado como instrumento de direito administrativo sancionador.
No Brasil o instituto passou a ter uma maior visibilidade após a descoberta dos atos de corrupção praticados contra a Petrobrás, quando então o acordo de leniência foi amplamente utilizado a fim de recuperar partes dos recursos desviados e assim minorar os prejuízos sofridos pela estatal.
Nesse sentido, a Medida Provisória n.º 703/15 alterou o art. 11, da Lei n.º 12.846/13, a fim de determinar que “[…] o acordo de leniência celebrado com a participação das respectivas Advocacias Públicas impede que os entes celebrantes ajuízem ou prossigam com as ações de que tratam o art. 19 dessa Lei e o art. 17 da Lei n.º 8.429/92 […]”, no entanto, a referida norma perdeu sua vigência 120 dias após publicação, tendo em vista que não foi convertida em lei. A medida provisória acima mencionada tinha por finalidade adequar as disposições da Lei de Improbidade Administrativa ao microssistema de combate à corrupção, do qual faz parte, juntamente com a Lei n.º 4.717/65 (Ação Popular), Lei n.º 7.347/85 (Ação Civil Pública), a Lei n.º 12.846/13 (Anticorrupção), entre outras.
O acordo de não persecução civil no contexto da ação de improbidade administrativa busca, conforme já afirmado, prioritariamente, a reparação do dano causado ao erário público, sendo celebrado na fase pré-processual ou processual.
No âmbito da ação de improbidade administrativa, o acordo de não persecução civil adota uma feição de negócio jurídico bilateral atípico, possuindo natureza processual e material, isso porque além de servir como instrumento probatório, também põe fim ao conflito, através, por exemplo, do perdão judicial, revelando assim um aspecto material. (DIDIER JR., 2017).
Ainda nesse sentido, devem-se observar que as sanções aplicadas em razão da prática de atos tipificados como de improbidade administrativa têm características de direito administrativo sancionador, o qual é conceituado por Fábio Osório Medina (2015).
Dentro desse contexto, a Lei n.º 13.964/19, mais conhecida como Lei Anticrime, alterou a redação do art. 17 da Lei n.º 8.429/92 passando a permitir a celebração de acordos nas ações civis pública por ato de improbidade administrativa, especialmente a celebração do acordo de não persecução civil.
No entanto, entanto, em razão de se tratar se um instrumento de solução consensual de conflitos incluído recentemente em nosso ordenamento jurídico, ainda que se considere uma aplicação no âmbito do direito penal, é possível observar que ainda não possui seus contornos definidos e ainda suscita dúvidas junto aos aplicadores do direito, especialmente no que se refere a comunhão de vontade dos seus agentes para a sua celebração, tendo em vista a competência concorrente para tanto (Ministério Público e pessoa jurídica lesada) e ainda a possibilidade de comunicação de efeitos entre os acordos de leniência e os acordos de não persecução civil celebrados pela mesma pessoa jurídica.
Tais questões podem ser exemplificas através da afetação em repercussão geral, pelo Supremo Tribunal Federal – STF, em 26.04.2019, do Tema n.º 1043 que trata da “Utilização da colaboração premiada no âmbito civil, em ação civil pública por ato de improbidade administrativa movida pelo Ministério Público em face do princípio da legalidade (CF, art. 5º, II), da imprescritibilidade do ressarcimento ao erário (CF, art. 37, §§ 4º e 5º) e da legitimidade concorrente para a propositura da ação (CF, art. 129, §1º)”.
Nesse sentido, o STF, sob o fundamento de que a ação de improbidade administrativa é instrumento de direito penal sancionador, irá decidir acerca da possibilidade de utilização de instrumentos típicos de direito penal em face da proximidade de ambas, o que demonstra as dúvidas que ainda pairam sobre o tema.
3 A celebração de acordo de não persecução civil no âmbito da Lei de Improbidade Administrativa e o princípio da moralidade
A Resolução n.º 179/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) mesmo antes da sanção da Lei n.º 13.964/19, que alterou a redação do art. 17 da Lei n.º 8.429/92, já trazia autorização para que seus membros celebrassem termos de ajustamento de conduta no âmbito da ação civil pública por ato de improbidade administrativa.
Na mesma linha, autores como Marcelo Figueiredo (2009) e Wallace Martins Júnior (2001) apesar de defenderem ser incabível a realização de transação no contexto da Lei de Improbidade Administrativa, isso anteriormente à alteração legislativa acima mencionada, já defendiam a necessidade da flexibilização da legislação acerca do tema a fim de permitir a celebração de acordos em caso de colaboração nas ações civis públicas por ato de improbidade administrativa, uma vez que traria uma maior efetividade à repressão das condutas ímprobas, além da maior eficiência na reparação do patrimônio público lesado, um dos objetivos da lei que trata dos atos de improbidade administrativa.
Nesse sentido, em outros países, a exemplo dos Estados Unidos da América, os primeiros os acordos celebrados em modalidade similar, apesar de eficientes, não apresentaram limites objetivos, razão pela qual sofriam diversas críticas. Porém, a partir de 1990, quando ocorreu uma intensificação da investigação dos cartéis internacionais, passou a ser adotado um novo modelo, o qual possuía critérios mais objetivos para sua celebração, os quais ainda sofrem críticas de ordem moral nos dias atuais, em razão das vantagens concedidas, as quais chegam a ser consideradas por alguns como prêmios.
Dessa forma, ainda que os atuais acordos celebrados nos Estados Unidos da América, no âmbito das leis que tratam do combate à corrupção, demonstrem uma maior eficiência em razão dos resultados alcançados, podem vir a ofender um sentimento coletivo de moralidade.
Já em outros países como a Alemanha, Chile e, especialmente no México, não há críticas pelos motivos acima mencionados quanto à utilização do instrumento de solução consensual em debate, tendo em vista que, nos países elencados, não há discussão quanto à possibilidade de afronta ao princípio constitucional da moralidade, uma vez que priorizam a efetividade no combate à corrupção, aos cartéis e às demais práticas ilícitas criminais vinculadas ao direito econômico.
Por outro lado, países como o Canadá desenharam acordos de leniência e instrumentos similares de modo a buscar, além da reparação patrimonial, preservar a moralidade administrativa como uma das suas bases, distanciando–se de um modelo que visa, prioritariamente, a recuperação dos danos materiais sofridos, relegando a uma posição secundária a proteção do princípio da moralidade.
Realizada a explanação acerca da dinâmica dos acordos destinados ao combate à corrupção e reparação dos danos em alguns países do mundo, passamos à análise no específica do tema no Brasil.
Primeiramente, é importante então destacar que, conforme já discutido em capítulo anterior, o núcleo central da defesa da probidade administrativa é o princípio da moralidade, erigido a princípio constitucional pela Constituição Federal de 1988, isso porque tal princípio tem, segundo José Guilherme Giazomazzi (GIAZOMAZZI, 2012), em seu aspecto objetivo a exteriorização da boa-fé e no aspecto subjetivo a observância dos deveres de probidade e ética no trato da coisa pública.
Dessa forma, a recomposição patrimonial do erário público, apesar de ser de extrema importância, tanto que previsto no art. 37, §4, da Constituição Federal como uma das sanções em razão da prática de ato de improbidade administrativa, é apenas um dos aspectos da reparação nos casos da prática de atos de improbidade administrativa, já que o patrimônio imaterial do Estado também é lesado, especialmente quando se trata dos casos dos atos de improbidade administrativa previstos no art. 11, da Lei n.º 8.429/92, dispositivo que prevê a possibilidade de condenação em caso de ofensa unicamente aos princípios administrativos.
Dentro dessa perspectiva, os defensores do instituto em comento (acordo de não persecução civil), especialmente nas ações de improbidade administrativa, sustentam que tal medida não fere o princípio da moralidade administrativa e, em consequência, não há ofensa ao patrimônio público imaterial, uma vez que o referido instrumento visa o combate à corrupção e à prática de crimes contra a Administração Pública, razão pela qual promovem a recomposição do patrimônio imaterial estatal.
Nessa mesma direção, utilizam como um dos argumentos a seu favor o fato de que a diferença entre a ação civis pública por ato de improbidade administrativa e os atos praticados no âmbito da Lei Anticorrupção (Lei n.º 12.846/13) diz respeito somente ao sujeito ativo, tendo em vista que a primeira lei abrange, necessariamente, o agente público e o particular (pessoa física ou jurídica) e a Lei Anticorrupção tem no seu polo passivo apenas o particular (pessoa jurídica), porém ambas possuem a mesma finalidade, qual seja, combate à corrupção na Administração Pública, de acordo com as obrigações assumidas pelo Brasil no âmbito internacional em razão da ratificação de acordos internacionais que tratam do combate mundial à corrupção.
Ainda em relação aos argumentos que reforçam as vantagens da celebração de instrumentos de solução consensual de conflitos, seus defensores sustentam que os referidos instrumentos materializam o princípio constitucional da eficiência, incluído na Constituição Federal por meio da Emenda Constitucional n.º 45/04, uma vez que pela análise de dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) referentes ao ano de 2015 constatou-se que os percentuais da recuperação dos danos causados ao erário nas condenações em ações civis públicas por atos de improbidade administrativa são muito baixos, o que demonstraria, segundo os referidos defensores, que a utilização dos meios consensuais para a resolução de conflitos se mostra mais resolutivo na recomposição do patrimônio público lesado.
Dentro desse contexto, para uma análise mais aprofundada da acerca do tema é necessário delimitar o objetivo principal das sanções em razão da pela prática de atos de improbidade administrativa.
Nesse sentido, a Lei n.º 8.429/92, editada para regulamentar o art. 37, §4º, da Constituição Federal, tem por objetivo sancionar a prática de atos ímprobos, como uma das formas de assegurar a probidade administrativa e a honestidade na gestão pública, características que podem ser consideradas como reflexos do princípio constitucional da moralidade administrativa.
Assim, ao se permitir que sejam celebrados acordos de não persecução civil ou termos de ajustamento de conduta no âmbito das ações civis públicas por atos de improbidade administrativa, como forma de se afastar uma eventual condenação, é necessário ter cautela a fim de não diminuir a importância e o âmbito de abrangência do princípio da moralidade administrativa, já que tal princípio não se destina apenas a proteger o patrimônio público material, mas busca, precipuamente, garantir uma administração pública honesta, na qual seus administradores persigam sempre o bem da coletividade sem interesses escusos divergentes dos previstos constitucionalmente, ou seja, destina-se também a preservar o patrimonial público imaterial, razão pela qual as soluções consensuais de conflitos adotadas devem ter entre seus objetivos a utilização de cláusulas que prevejam, além do ressarcimento do dano, uma outra sanção de cunho vinculado ao patrimonial imaterial do Estado.
Nesse diapasão, havendo a recomposição patrimonial do erário em razão da celebração de acordo, é certo que os deveres de probidade, honestidade e boa-fé podem vir a ser violados pelas condutas dos réus desde que somente a reparação do dano seja a obrigação do agente que celebra o referido acordo, tendo em vista que apenas a reparação de cunho material não se mostra suficiente para desfazer ou minorar os efeitos lesivos à moralidade administrativa, já que o combate à corrupção não pode se limitar a buscar a recuperação patrimonial do ente público, isso porque a ofensa ao referido princípio constitucional ocorre independentemente do dano patrimonial e sua respectiva reparação.
Dessa forma, é importante não nos distanciarmos da finalidade pela qual as sanções, em razão da prática de atos de improbidade administrativa, foram previstas na Constituição Federal – garantir a que Administração Pública fosse pautada pela honestidade e boa-fé, como forma de proteger os princípios administrativos constitucionais.
Nessa direção, a recuperação do dano ao erário por força da celebração de acordo de não persecução civil ou outra modalidade de solução consensual de conflito ainda que seja uma forma eficiente de combate à corrupção, deve prever ainda alguma outra sanção ao agente a fim de não resumir o combate à improbidade administrativa a uma questão unicamente material, preservando, dessa forma, a moralidade administrativa, pilar de toda a Administração Pública e ainda norteador das relações jurídicas públicas.
Ainda acerca do tema é importante observar que sendo a moralidade administrativa reflexo da honestidade na condução da gestão pública, ao se buscar protegê-la quando da opção por uma das modalidades de solução consensual de conflitos, estar-se-á também efetivando o combate à corrupção nos moldes dos tratados internacionais ratificados pelo Brasil.
Para encerrar o capítulo e corroborar a posição aqui defendida quanto à importância da preservação do princípio da moralidade administrativa no contexto das modalidades das soluções consensuais de conflito no âmbito da ação civil pública por ato de improbidade administrativa, transcrevemos trecho da dissertação de mestrado de Moser Vhoss “A improbidade administrativa e a possibilidade de reparação do dano à legitimidade da administração pública” quando tratou do dano imaterial à Administração Pública em razão da prática de ato de improbidade administrativa e segue “O ato de improbidade administrativa, além de por vezes ocasionar dano material ao patrimônio público, parece poder também ocasionar, portanto, dano à legitimidade do Estado e da Administração, já que contribui para que o cidadão administrado se desestimule no cumprimento de obrigações tributárias, administrativas e, enfim, em portar-se adequadamente como cidadão respeitoso para com os preceitos que a ele são dirigidos.” (VHOSS, 2010).
Conclusão
Pela exposição realizada, podemos constatar que a vedação original de celebração de transação no âmbito da ação civil pública por ato de improbidade administrativa decorreu do momento histórico e legal na qual foi criada, onde não existiam exceções ao princípio da indisponibilidade da ação penal pública, uma vez que a Lei n.º 9.099/95 só veio a ser promulgada três anos após a Lei n.º 8.429/92, bem como o fato de ainda não existir, à época, uma consistente regulamentação acerca das soluções alternativas de conflitos que também veio ocorrer alguns anos após, tendo sua maior expressão com a promulgação da Lei n.º 13.140/15 e o atual Código de Processo Civil – CPC, o qual possui como um dos seus princípios basilares a conciliação como forma de resolver conflitos.
De igual modo, alguns dos princípios tratados internacionais tratados internacionais que tratam do combate à corrupção somente foram ratificados pelo Brasil também após a publicação da Lei n.º 8.429/92, a qual não possuía parâmetros mais atuais e modernos a fim de balizar sua forma de execução, especialmente no que se refere à possibilidade de utilização de modalidades de soluções consensuais de conflitos, ainda excipientes no Brasil à época no âmbito do direito administrativo.
Corroborando com a conclusão acima, é possível observar que com o transcorrer do tempo as soluções consensuais de conflitos no país, especialmente após a vigência da Lei n.º 9.099/95 se desenvolveram e hoje já podem ser encontrados em praticamente todas as áreas do direito, como forma de trazer mais eficiência e rapidez nas soluções dos conflitos jurídicos interpessoais.
Baseados nos argumentos acima expostos e ainda no fato de que a lei que trata dos atos de improbidade administrativa (Lei n.º 8.429/92) faz parte, conjuntamente com outros diplomas legais, a exemplo da Lei 4.717/65 (Lei que trata da ação popular), Lei n.º 7.377/85 (lei que trata da ação civil pública) e da Lei n.º 12.846 (Lei Anticorrupção), entre outras, do microssistema de combate à corrupção, nos moldes dos tratados internacionais acerca do tema ratificados pelo Brasil, um dos problemas nacionais mais combatidos na atualidade dada sua importância e consequências que trazem não só para a Administração Pública, mas para toda sociedade, razão pela qual a possibilidade de utilização de meios consensuais de solução de conflitos se mostra como um instrumento em busca da efetividade na execução da referida tarefa.
No entanto, é importante observar que a questão também deve ser observada não somente do ponto de vista pecuniário, canalizando-se os esforços na recuperação do dano causado ao erário, mas deve também buscar a concretização da finalidade de proteção do patrimônio imaterial do Estado, trazido na observância da probidade administrativa, uma das finalidades constitucionais que justificaram a edição da Lei n.º 8.429/92, especialmente no que se refere à proteção dos princípios administrativos constitucionais, a exemplo do princípio da moralidade, considerado como um dos pilares da Administração Pública, razão pela qual é possível concluir que as soluções consensuais de conflitos acima mencionadas e legitimadas pelo nosso ordenamento jurídico, para preservarem o princípio constitucional em comento, devem prever, além das sanções pecuniárias, especialmente no que se refere à reparação do dano ao erário, uma outra sanção ao agente responsável a fim de não reduzir a questão da probidade administrativa a uma questão unicamente vinculada ao patrimônio material da Administração Pública, afastando-se de um dos objetivos precípuos do Diploma Legal em comento.
Nesse contexto como forma de cumprir o preceito constitucional de combate à improbidade administrativa, deve-se buscar conjugar a reparação do dano causado à Administração Pública com a proteção do seu patrimônio imaterial, representado pelos seus princípios administrativos.
Dessa forma, podemos então chegar a uma conclusão final no sentido de que os instrumentos de solução consensual de conflitos admitidos na legislação pátria, para que cumpram, no âmbito da Administração Pública, a finalidade de blindar ou, pelo menos, prevenir que atos praticados em desacordo com os princípios e leis, que firam a probidade administrativa, possam ser reiteradamente praticados pelos mesmos agentes públicos e particulares, devem prever sanções, aos agentes que vierem a celebrar acordos de não persecução civil ou outra modalidade de solução consensual de conflitos, sanções que não se limitem a condições unicamente patrimoniais, ligadas à reparação dos danos materiais ao erário em consequência, mas também prevejam outras condições como forma de buscar reparar o patrimônio imaterial do Estado e, em consequência, preservar o princípio constitucional da moralidade administrativa, pilar da Administração Pública brasileira.
Referências
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