O ministério público e a tutela dos direitos sociais

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Sumário: Introdução. Políticas Públicas e Poder Discricionário da Administração. Elaboração e Cumprimento das Políticas Públicas. Atuação do Ministério Público na Elaboração e no Cumprimento das Políticas Públicas. Tutela Jurisdicional dos Direitos Sociais. Ativismo Social, Direitos Prestacionais e Reserva do Possível. Caso Paradigma. Considerações Finais.


01. Introdução.


O art. 127 da Carta da República define o Ministério Público como “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.


Tal definição traz ao Ministério Público especial relevância no rol das instituições que estruturam o Estado Democrático de Direito, colocando-o como base de sustentação de um de seus fundamentos, qual seja, a cidadania (art. 1º, inciso II, CF).


A cidadania, em um de seus aspectos, traz em si a idéia do direito fundamental da pessoa à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, entre outras garantias que o Estado deve assegurar.


Ao lhe atribuir a missão institucional correspondente à defesa dos interesses sociais indisponíveis, o legislador constitucional, representando a soberania da vontade popular, depositou no Ministério Público a confiança de que se caracterizaria como o guardião dos chamados direitos sociais, conforme discriminados no art. 6º da CF[1] .


Na lição de Alexandre de Moraes, os sociais “são direitos fundamentais do homem, caracterizando-se como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria de condições de vida dos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, e são consagrados como fundamentos do Estado democrático, pelo art. 1º, IV, da Constituição Federal”.


A previsão constitucional nos termos em que restou consignada na Carta da República de 1988 revela o traço concernente à indisponibilidade dos direitos sociais, bem como a característica da auto-aplicabilidade da regra prevista no art. 6º.


Diante de tais premissas, mostra-se evidente a conclusão de que a efetiva implementação e cumprimento dos direitos sociais, conforme previstos no art. 6º da CF, caracterizam-se como missão institucional do Ministério Público.


Este trabalho, partindo do raciocínio preliminar até aqui apresentado, tem como objetivo trazer breves considerações sobre o papel que o Ministério Público, de acordo com o seu atual perfil constitucional, deve cumprir na busca do efetivo respeito aos direitos sociais, fazendo com que o Estado cumpra o seu dever de garantir ao cidadão o direito de viver em uma sociedade que busque, por meio da atuação dos poderes constituídos e da sociedade civil organizada, a erradicação da pobreza e da marginalização, reduzindo as desigualdades sociais e regionais e promovendo o bem de todos, nos exatos termos do que estabelece o art. 3º, III e IV, da CF.


02. Políticas Públicas e Poder Discricionário da Administração.


Partindo da clássica divisão apresentada por Montesquieu relativa à divisão dos Poderes do Estado, ao Executivo compete a prática dos atos de chefia, de governo e de administração.


Para que os direitos sociais, previstos no art. 6º da CF, possam ter efetiva implementação, mostra-se necessário que o Poder Executivo promova, enquanto responsável pelos atos de administração do Estado, a elaboração das chamadas políticas públicas, traçando estratégias de atuação na busca da efetivação dos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, etc.


Segundo Eduardo Appio, “as políticas públicas podem ser conceituadas como instrumentos de execução de programas políticos baseados na intervenção estatal na sociedade com a finalidade de assegurar igualdade de oportunidades aos cidadãos, tendo por escopo assegurar as condições materiais de uma existência digna a todos os cidadãos”. E, ainda com Appio, citando Ronald Dworkin, “uma política é aquele tipo de padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado, em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade (ainda que certos objetivos sejam negativos pelo fato de estipularem que algum estado atual deve ser protegido contra mudanças adversas)”.


Posto isto, as indagações que devem nortear a análise do tema ora proposto são as seguintes: a) está o Poder Executivo vinculado à elaboração e cumprimento das políticas públicas que tenham por objetivo a efetiva implementação dos direitos sociais? b) qual o papel que o Ministério Público deve assumir na busca da elaboração e cumprimento de tais políticas públicas?


Conforme ensinamento de Hely Lopes Meirelles, à Administração é concedido o chamado poder discricionário “para a prática de atos administrativos, com liberdade na escolha de sua conveniência, oportunidade e conteúdo”.


Entretanto, no âmbito dos direitos sociais, o poder discricionário da Administração deve ser analisado com profunda cautela posto que, conforme anteriormente salientado, a elaboração das políticas públicas e a realização dos atos administrativos tendentes à efetiva implementação de tal modalidade de direitos estão vinculadas ao cumprimento de dispositivo constitucional de ordem pública, arraigado aos critérios da imperatividade e inviolabilidade, possuindo natureza de norma auto-aplicável e, assim, não podendo ser afastada pela discricionariedade do Administrador.


Surge, desta forma, o conceito de políticas públicas constitucionais vinculativas, a partir do qual se chega ao entendimento de que, para a garantia dos direitos sociais, a Administração estará compelida à elaboração de estratégias de atuação visando implementá-los.


Desta forma, temos que o Poder Executivo não poderá furtar-se à elaboração das políticas públicas relacionadas aos direitos sociais, bem como à efetiva implementação destes, sob pena de descumprir norma constitucional de ordem pública, imperativa, inviolável e auto-aplicável.


Caso a Administração não cumpra tais deveres, deixando de elaborar (ou elaborando de maneira inadequada) as políticas públicas relacionadas aos direitos sociais, ou, ainda, deixando de cumprir as políticas públicas elaboradas, competirá ao Ministério Público dar efetividade a seu dever institucional de defender os interesses sociais indisponíveis.


03. Elaboração e Cumprimento das Políticas Públicas.


Mais uma vez colhendo os ensinamentos de Eduardo Appio, temos que “as políticas públicas no Brasil se desenvolvem em duas frentes, quais sejam, políticas públicas de natureza social e de natureza econômica, ambas com um sentido complementar e uma finalidade comum, qual seja, de impulsionar o desenvolvimento da Nação, através da melhoria das condições gerais de vida de todos os cidadãos”.


Tradicionalmente, o próprio Poder Executivo, por meio do planejamento de suas estratégias de atuação, é quem elabora as políticas públicas, inclusive aquelas vinculadas à implementação dos direitos sociais.


Atualmente, o Poder Executivo muito tem se auxiliado das atividades dos chamados Conselhos de Gestão no que diz respeito à elaboração das políticas públicas, sobretudo nas áreas da saúde, crianças e adolescentes, educação e assistência social. Tais Conselhos, que contam com a participação de diversos segmentos da sociedade (poder público, entidades de classe, associações, clubes de serviço, etc.), contribuem para o diagnóstico das prioridades dos Municípios nas áreas correspondentes aos direitos sociais, formulando projetos, encaminhando sugestões e requerimentos ao Poder Executivo no sentido de que sejam implementados.


Também o Poder Legislativo, por meio das atividades de seus membros, sobretudo na elaboração e votação de projetos de leis (mormente de natureza orçamentária), possui papel fundamental na elaboração das políticas públicas.


A sociedade civil organizada, em especial as instituições que atuam no chamado “terceiro setor”, também colaboram no encaminhamento de diversas questões inerentes aos direitos sociais, promovendo gestões a respeito do tema junto aos órgãos do Poder Executivo e demonstrando quais as prioridades a serem implementadas em suas respectivas áreas de atuação.


Mostra-se importante observar que no campo das políticas públicas a questão orçamentária revela-se como de especial relevância posto que todo e qualquer projeto a ser desenvolvido pela Administração demanda investimento.


Neste ponto, vale acentuar a necessidade de que todos os envolvidos na elaboração e cumprimento das políticas públicas tenham como ponto de partida o conhecimento da forma pela qual o orçamento é elaborado e executado.


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É de extrema importância compreender o papel da Lei do Orçamento Anual (LOA), do Plano Plurianual (PPA) e da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) posto que desempenham função relevante “na definição e priorização das ações governamentais”.


De se destacar, ainda, que “as principais determinações legais para elaborar e executar os orçamentos públicos encontram-se presentes na Constituição Federal (Capítulo II, Das Finanças Públicas). A Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, que institui Normas Gerais de Direito Financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal, por sua vez, estabelece as normas específicas sobre a elaboração e a organização orçamentária, e a Lei Complementar nº 101, de 5 de maio de 2000, Lei de Responsabilidade Fiscal, dispõe sobre diversas outras exigências, em busca do estabelecimento da responsabilidade fiscal na gestão orçamentária. Para a plena compreensão da forma e do conteúdo do orçamento público, a consulta dessas leis é certamente obrigatória. (…) Todo esse processo de planejamento, priorização e detalhamento de ações envolvendo as três leis constitui o ciclo orçamentário. Nele, segundo a Constituição Federal, a LDO deve ser compatível com o PPA e, logicamente, como a LDO orienta a estruturação da LOA, esta também acaba devendo ser compatível com o PPA”.


Sem a correta compreensão do funcionamento do ciclo orçamentário toda e qualquer discussão em torno da elaboração e cumprimento das políticas públicas tende a se revelar absolutamente inócua, posto que dificilmente serão implementadas sem recursos para tanto.


04. Atuação do Ministério Público na Elaboração e no Cumprimento das Políticas Públicas.


Conforme já salientado neste trabalho, o Ministério Público, em virtude de seu atual perfil constitucional, possui especial relevância entre as instituições que compõem a base de sustentação do Estado Democrático de Direito.


Corroborando tal entendimento, tenho a destacar que durante o ano de 2006 os Grupos de Estudos do Ministério Público do Estado de São Paulo, tendo na coordenação geral o Dr. Darcy Paulillo dos Passos, Procurador de Justiça aposentado, elegeram o seguinte tema central de suas palestras e debates: “O Ministério Público e a defesa do Estado Democrático de Direito”. Tomando como norte este tema geral, os diversos grupos regionais estabeleceram temas correlatos para seus trabalhos, sendo que o Grupo de Estudos “Roberto Gugliotti”, que congrega os Promotores de Justiça das Comarcas das regiões de Assis e Ourinhos e que durante este ano tive a honra de coordenar, estabeleceu o seguinte tema para análise e discussão: “A participação do Ministério Público na formulação e no cumprimento das políticas públicas”.


Contando com brilhante participação como palestrante do Dr. Paulo Afonso Garrido de Paula, Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, atual membro do Conselho Superior do Ministério Público, Professor Universitário e uma das maiores autoridades do país na área dos direitos da criança e do adolescente, o Grupo de Estudos “Roberto Gugliotti”, no dia 12.08.2006, reuniu-se no auditório da Universidade Paulista (UNIP) na Cidade de Assis e, depois de magnífica palestra e debates sobre o tema, elaborou as seguintes conclusões, aprovadas por aclamação:


1. Os sistemas políticos repousam sobre uma base de sustentação e têm faixas (degraus) sócio-econômicas;


2. Independentemente do nível de consciência, organização e combatividade políticas, a base social de sustentação ou se amplia, quando os direitos sociais (emprego, salário, habitação, saúde, educação, etc.) são atendidos, ou se retrai, quando os direitos sociais se restringem em favor dos privilégios dos setores mais “elevados”;


3. Se a base social é ampla, o sistema político é estável e pode ser democrático; se a base social é estreita, o sistema político é instável e tende a ser autoritário;


4. Assim, quando o membro do Ministério Público atua na formulação e no cumprimento de políticas públicas, que atendam aos direitos sociais, está defendendo o regime democrático;


5. O Ministério Público possui legitimidade para a tutela dos direitos sociais definidos no artigo 6º da Constituição Federal, relacionados às políticas públicas constitucionais vinculativas;


6. O Promotor de Justiça deve atuar como articulador da mobilização e fomento dos organismos sociais e dos Conselhos Municipais na formulação das políticas públicas;


7. O Ministério Público deve atuar de forma ativa no que diz respeito à elaboração do Plano Plurianual e da Lei de Diretrizes Orçamentárias;


8. O Ministério Público deve promover esforços na busca de alteração legislativa que possibilite a implementação do “Orçamento Impositivo”;


9. O Ministério Público deve atuar não só na busca da implementação das políticas públicas especificamente definidas mas também visando garantir a qualidade do respectivo serviço público;


10. O Ministério Público deve buscar o respeito ao princípio da eficiência no âmbito da Administração Pública, procurando a responsabilização, civil e criminal, do administrador que atua de maneira negligente e ineficaz.


Tais conclusões evidenciam a relevância que o Ministério Público possui tanto na elaboração quanto no cumprimento das políticas públicas.


A construção de um legítimo Estado Democrático de Direito passa pela garantia do acesso de todos à educação, saúde, segurança, trabalho, enfim, aos direitos sociais previstos no art. 6º da CF.


Objetivando a defesa e, mais do que isso, a construção desse legítimo Estado Democrático de Direito, mostra-se necessário que o Ministério Público tenha uma atuação marcante e eficaz na definição das políticas públicas nas áreas que se mostram relevantes para a garantia da cidadania ao brasileiro.


Dentro desta concepção, a atuação do Ministério Público deve se mostrar presente tanto na formulação quanto na busca do efetivo cumprimento das políticas públicas constitucionais vinculativas.


A participação do Ministério Público na elaboração das políticas públicas passa, em primeiro plano, pelo conhecimento da realidade de cada um dos Municípios, Estados e da União no que concerne ao atendimento aos direitos sociais, buscando, em conjunto com os Poderes Executivo e Legislativo, Conselhos de Gestão e sociedade civil organizada definir prioridades a fim de que eventuais falhas nesse atendimento sejam devidamente corrigidas, indicando a melhor forma de fazer com que os orçamentos públicos contemplem recursos suficientes para tanto.


De outra ponta, se o Ministério Público deve atuar na elaboração das políticas públicas, também deve ter ao seu alcance instrumentos eficazes na busca do cumprimento das políticas já formuladas.


Como sabemos, o campo de discricionariedade do Chefe do Poder Executivo no cumprimento das políticas públicas é bastante amplo, sobretudo diante do fato de que o orçamento, atualmente, não possui natureza impositiva.


Questiona-se, portanto, até que ponto o Ministério Público, depois de esgotadas outras instâncias, pode buscar a tutela jurisdicional visando o cumprimento das políticas públicas.


Assim, ao nosso ver, mostra-se profundamente relevante a discussão em torno das possibilidades conferidas ao Ministério Público no que diz respeito à exigência do cumprimento das políticas públicas.


O Ministério Público não deve se sujeitar a discussões intermináveis sobre determinada política pública a ser implementada e cumprida. Para que tais discussões estéreis não se verifiquem sobre o assunto, é preciso que o Administrador tenha sempre presente a possibilidade de que, caso não cumpra o dever constitucional a que está obrigado, o Poder Judiciário poderá ser acionado pelo Ministério Público a fim de que sejam tutelados os direitos sociais de forma efetiva.


Somente contando com um Poder Judiciário aberto à discussão do tema concernente ao cumprimento das políticas públicas, o Ministério Público terá a possibilidade de cumprir sua missão institucional de forma adequada.


Caso o Poder Judiciário se feche para as grandes questões envolvendo o assunto em pauta, o Administrador ineficiente ver-se-á em situação bastante tranqüila, deitando-se sobre o confortável argumento de que o cumprimento dos direitos sociais encontra-se sujeito à discricionariedade de seu poder, cabendo a ele (Administrador) decidir sobre a conveniência e oportunidade da implementação da correspondente política pública.


Ao Poder Judiciário cabe, assim, demonstrar até que ponto a sociedade poderá vê-lo como autêntico sustentáculo do Estado Democrático de Direito, jamais deixando de se debruçar sobre os temais mais relevantes do país, garantindo ao cidadão o acesso aos direitos que lhe são assegurados pelo ordenamento jurídico, sobretudo aqueles que possuem lastro constitucional.


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05. Tutela Jurisdicional dos Direitos Sociais.


Tomando como ponto de partida o fato de que a efetiva implementação dos direitos sociais demanda a elaboração e o cumprimento de políticas públicas e, além disso, a circunstância de que a previsão orçamentária de recursos para tanto se revela absolutamente imprescindível, mostra-se necessária a discussão em torno da possibilidade do Chefe do Poder Executivo ser compelido, por força de decisão judicial, a dar cumprimento às políticas públicas constitucionais vinculativas.


Sobre o assunto, colho a lição de Marcos Felipe Holmes Autran, que lança entendimento muito interessante e inovador:


“Questão de grande debate em âmbito doutrinário e jurisprudencial é o que toca à possibilidade do poder judiciário controlar esses atos administrativos, frutos da atividade discricionária, que a própria lei deixou a critérios de conveniência e oportunidade para o agente público.


Para uma corrente tradicional da doutrina, de acordo com a nossa Carta Política (art. 5º, XXXV), a lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Assim sendo, caso levado ao poder judiciário o ato discricionário, o juiz deverá identificar o âmbito do mérito – de acordo com o espaço deixado pela lei – onde está alojado o desempenho do poder discricionário.


Não se vislumbrando infração, ou verificando que o administrador praticou o ato dentro do círculo que se encontra delineado pela lei, não há possibilidade de modificação – ato compatível com a lei e a ordem jurídica – não podendo o juiz sobrepor ou impor o seu próprio juízo de conveniência e oportunidade no lugar daquele administrador.


E como fundamento do acima exposto está a separação dos poderes, cabendo ao judiciário examinar os atos administrativos sob o ângulo da legalidade. É impossível ao Judiciário o controle extralegal do mérito dos atos administrativos, pois o juiz não é o destinatário dos juízos de conveniência e oportunidade, sendo destinatário exclusivo e final o administrador. Mesmo quando uma norma é discricionária não pode haver dúvidas quanto à necessidade de perseguição de sua finalidade pública.


Todavia, uma corrente mais moderna, a qual nos inserimos, entende que a atuação administrativa está sujeita a dois limites essenciais, quais sejam, o interesse público e a legalidade.


Necessário o judiciário observar a lei não apenas formalmente, mas também a observar substancialmente, nos seus direcionamentos. Daí as afirmações de que a razoabilidade / proporcionalidade podem ser vistas como desdobramentos da legalidade, chamada legalidade substancial. Em outros termos, através do princípio da proporcionalidade / razoabilidade, modernamente concebe-se a cláusula do devido processo legal, no seu sentido substancial, como um mecanismo de controle axiológico da atuação do Estado e seus agentes. Por isso constitui instrumento típico do Estado Democrático de Direito, de modo a impedir toda restrição ilegítima aos direitos de qualquer homem sem um processo previamente estabelecido e com possibilidade de ampla participação.


Os atos administrativos só estarão cumprindo a lei se realmente se mantiverem dentro dos padrões da razoabilidade e proporcionalidade. Se não se mantiverem, esses atos serão ilegais, não estarão realizando os objetivos da lei. Mesmo que formalmente aparentem legalidade, serão ilegais se não tiverem se mantendo dentro dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Há também na doutrina alemã a expressão ‘proibição do excesso’ que para muitos é sinônima desses princípios.


Desta forma, em determinadas situações é possível um controle da discricionariedade administrativa, como no caso de implementação de políticas públicas, desde que se tratem de políticas públicas específicas, socialmente necessárias e constitucionalmente exigidas. Neste caso, o Ministério Público possui legitimidade para zelar pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados constitucionalmente, devendo promover medidas necessárias para a sua garantia. Assim, é possível uma ação civil pública para que o Estado venha a construir um hospital em determinada localidade, desde que fique demonstrado especificamente que se trata de uma necessidade social para determinada localidade e que a demanda coletiva visa implementar direitos e garantias asseguradas constitucionalmente (art. 129, III c/c art. LACP)” – destaquei.


Tal linha de argumentação traz à baila o conceito de “ativismo judicial”, segundo o qual ao Poder Judiciário mostra-se possível uma postura mais presente e eficaz no que diz respeito à garantia dos direitos sociais.


06. Ativismo Judicial, Direitos Prestacionais e Reserva do Possível.


Ainda trilhando a possibilidade da busca da tutela jurisdicional no campo dos direitos sociais, vale destacar o conceito de direitos prestacionais posto que intimamente relacionado ao assunto sob foco.


De acordo com Marcos Maselli Gouvêa, “a expressão direitos prestacionais comporta críticas e perplexidades” (…). Caminhando na seara deste tema e utilizando um conceito bastante genérico, referido autor aponta que os direitos prestacionais servem para “rotular qualquer dos direitos a prestações materiais (excluídas portanto as prestações normativas) do Estado”. Quanto à classificação dos mencionados direitos, Maselli explica que “na Alemanha, o prestigiado publicista Dietrich Murswiek subdivide os direitos prestacionais em quatro classes, a saber: a) prestações sociais em sentido estrito, tais como a assistência social, aposentadoria, saúde, fomento da educação e do ensino, etc.; b) subvenções materiais em geral, não previstas no item anterior; c) prestações de cunho existencial no âmbito da providência social  (Daseinsvorsorge), como a utilização de bens públicos e instituições, além do fornecimento de gás, luz, água, etc.; d) participação em bens comunitários que não se enquadram no item anterior, como, por exemplo, a participação (no sentido de quota-parte), em recursos naturais de domínio público”.


Analisando a possibilidade da tutela jurisdicional dos direitos sociais à luz do conceito de direitos prestacionais e da doutrina da reserva do possível, Flávio Dino desenvolve o seguinte raciocínio, bastante esclarecedor:


A reserva do possível (uma leitura em países periféricos).


Suponhamos que um juiz aquiesça aos convites para adotar uma postura de ‘ativismo judicial’, construa uma identidade mais livre dos padrões normativistas e se convença, em determinado caso, de que a discricionariedade pode ser afastada de modo consistente (…). Caso se trate de impor uma abstenção à autoridade administrativa normalmente não se apresentam outras dificuldades. Contudo, quando se cuida de determinar o cumprimento de um direito prestacional ergue-se a limitação à ‘reserva do possível’.


Segundo tal doutrina, há um limite fático ao exercício dos direitos sociais prestacionais, concernente à disponibilidade material e jurídica de recursos financeiros necessários ao adimplemento da obrigação. Demais disso, ‘… a prestação reclamada deve corresponder ao que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade, de tal sorte que, mesmo dispondo o Estado dos recursos e tendo o poder de disposição, não se pode falar em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável’.


Não discordo dessas teses se, por exemplo, cogitarmos de uma decisão judicial, proferida em uma ação civil pública, que – em nome do direito à moradia previsto no art. 6º da Constituição – determina ao Governo Federal a construção de dois milhões de casas no espaço de um ano. A mobilização de recursos financeiros para tanto implicaria um impacto orçamentário não previsto nem previsível, de grande monta, resultando provavelmente no cancelamento de outras políticas referentes à concretização de outros direitos igualmente fundamentais.


Todavia, na trilha do que defende Andreas J. Krell, entendo que ‘a discussão européia sobre os limites do Estado Social, a redução de suas prestações e a contenção dos respectivos direitos subjetivos não pode absolutamente ser transferida para o Brasil, onde o Estado Providência nunca foi implantado’. Assim, a reserva do possível é um limite realmente existente, mas que não deve ser visto no Brasil do mesmo modo que nos países centrais, os quais possuem distribuição de renda menos assimétrica, políticas públicas mais universalizadas e controles sociais (não-jurisdicionais) mais efetivos.


Em conseqüência, a margem de manobra do Judiciário, no exercício do controle em exame, é bem mais larga no nosso país (sem que evidentemente seja absoluta). Dois parâmetros devem ser observados na atividade judicial nesse âmbito, quais sejam, a garantia de um ‘padrão mínimo social’ aos cidadãos e o razoável impacto da decisão sobre os orçamentos públicos. Em nome do citado ‘padrão mínimo social’, os juízes não devem hesitar em inclusive determinar a realização de obras públicas, quando isso se revelar imprescindível e factível. Quanto ao impacto no orçamento público, a razoabilidade deve ser demonstrada à luz do caso concretamente analisado, podendo ser adotadas saídas criativas, como a fixação de prazos flexíveis e compatíveis com o processo de elaboração orçamentária. O que é fundamental é não ignorar este aspecto, sob pena de a decisão ser frágil e condenada à cassação ou à inexecução. Por outro lado, os aspectos orçamentários relativos aos direitos prestacionais não devem ser mitificados, transformados em uma ‘esfera sagrada’, pois não é assim quando o Judiciário declara a inconstitucionalidade de tributos e frustra parcelas expressivas das receitas públicas, em favor – do ponto de vista imediato – de setores socialmente mais fortes. Com efeito, em tais casos nunca se cogitou de o Judiciário decidir de outro modo em nome da reserva do possível. (…) Verificamos então que aquilo que é possível ao Judiciário fazer, em sociedades com nível mais alto de implementação de direitos, é menos do que em países em situação oposta, como o Brasil – em que a meta de um ‘padrão social mínimo’ exige que os juízes façam mais” – destaquei.


Assim, diante dos argumentos até aqui expendidos, sempre que junto ao Poder Judiciário for deduzida pretensão relacionada à efetiva implementação de políticas públicas “específicas, socialmente necessárias e constitucionalmente exigidas” (nos dizeres de Holmes Autran), o Poder Judiciário deverá marcar o seu papel de efetivo garantidor dos direitos sociais, não deixando ao desamparo o cidadão.


Citando, mais uma vez, Flávio Dino, “os juízes não podem tudo, nem devem poder. Mas podem muito, e devem exercer esse poder em favor da grandiosa e inesgotável utopia de construção da felicidade de cada um e de todos”.


07. Caso Paradigma.


Sobre a possibilidade do Poder Judiciário decidir sobre a obrigatoriedade da implementação de políticas públicas, recente decisão do E. Superior Tribunal de Justiça no âmbito do Recurso Especial nº 493.811-SP (2002/169619-5), cuja ementa segue adiante transcrita, merece destaque:


Recurso Especial nº 493.811-SP (2002/0169619-5)


Relatora: Ministra Eliana Calmon


Recorrente: Ministério Público do Estado de São Paulo


Recorrido: Município de Santos


EMENTA


ADMINISTRATIVO E PROCESSO CIVIL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – ATO ADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO: NOVA VISÃO


1.Na atualidade, o império da lei e o seu controle, a cargo do Judiciário, autoriza que se examinem, inclusive, as razões de conveniência e oportunidade do administrador.


2.Legitimidade do Ministério Público para exigir do Município a execução de política específica, a qual se tornou obrigatória por meio de resolução do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente.


3.Tutela específica para que seja incluída verba no próximo orçamento, a fim de atender a propostas políticas certas e determinadas.


4.Recurso Especial provido.


Em virtude da lucidez e relevância dos argumentos expendidos pela eminente Ministra Relatora, mostra-se imperiosa a transcrição de parte do voto que proferiu:


“A Constituição Federal de 1988 revolucionou o Direito Administrativo brasileiro, ao substituir o modelo do Estado liberal, traçado na Era Vargas, para o Estado social e democrático de direito.


No primeiro, o Estado distanciava-se da vida social, econômica e religiosa dos indivíduos, mantendo-os independentes em relação a ele, que estava presente para garantir-lhes essa independência, interferindo minimamente e deixando que a sociedade seguisse, como ordem espontânea dotada de racionalidade imanente.


Mas o novo modelo emancipou a sociedade em relação ao Estado, reaproximando-os. Daí o surgimento das políticas intervencionistas, como contraponto de uma sociedade que se politiza.


As transformações no modo de atuar do Estado alteraram a estrutura da sociedade, acarretando a diluição dos limites entre o Estado e a sociedade, vinculados por um número crescente de inter-relações. No dizer de Bobbio, ‘o Estado e a sociedade atuam como dois momentos necessários, separados, mas contíguos, distintos, mas independentes do sistema social em sua complexidade e articulação interna’.


O novo modelo ensejou a multiplicação de modos de solução de problemas, mediante negociações, acordos, protocolos de intenções. Esse intrincamento de vínculos torna impossível a previsão em normas legais de todas as diretrizes de conduta a serem observadas e de soluções a serem adotadas.


Essa digressão sociológica é importante para direcionar o raciocínio de que não é mais possível dizer, como no passado foi dito, inclusive por mim mesma, que o Judiciário não pode imiscuir-se na conveniência e oportunidade do ato administrativo, adentrando-se na discricionariedade do administrador. E as atividades estatais, impostas por lei, passam a ser fiscalizadas pela sociedade, através do Ministério Público, que, no desempenho de suas atividades precípuas, a representa.


Dentre as numerosas funções, estão as constantes do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069/90, especificamente, de interesse nestes autos a de zelar pelo efetivo respeito aos direitos e garantias legais assegurados às crianças e adolescentes. Daí a legitimidade do Ministério Público e a irrecusável competência do Poder Judiciário, porquanto estabelecida a responsabilidade estatal na Resolução Normativa 4/97, baixada pelo Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente, seguimento social em destaque para agir em parceria com o Estado, nos termos do art. 88, II, do ECA.


Conseqüentemente, tenha-se presente que o pleiteado pelo Ministério Público não foi fruto de sua ingerência. O pedido foi a implementação de um programa adredemente estabelecido por um órgão do próprio município, o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, com função normativa fixada em conjugação com o Estado (Município) e a sociedade civil.


O descumprimento à Resolução 4/97 foi apurado pelo Ministério Público, via inquérito civil, no qual ficou concluída a insuficiência no atendimento às crianças e adolescentes com problemas de uso de drogas.


Diante da omissão governamental pleiteou:


a)inserção em plano plurianual e na lei orçamentária anual, com destinação privilegiada de recursos públicos para o programa;


b)observância da Resolução 4/97 e das Constituições, Federal e Estadual, e da Lei Orgânica do Município; e


c)inclusão no orçamento de previsão de recursos à implementação do programa de atendimento aos viciados, nos termos do projeto.


Conseqüentemente, até aqui, conclui-se que não se pode alegar ilegitimidade do Ministério Público ou inserção do Judiciário na esfera administrativa, como tradicionalmente acontecia. (…)


A posição do TJ/SP deixa a roboque o Executivo Municipal fazer ou não fazer o determinado pelos seus órgãos, pela Lei Orgânica e pela Constituição, bastando, para o non facere, escudar-se na falta de verba. Se não havia verba, porque traçou ele um programa específico? Para efeitos eleitoreiros e populares ou pela necessidade da sociedade local?


O moderno Direito Administrativo tem respaldo constitucional suficiente para assumir postura de parceria e, dessa forma, ser compelido, ou compelir os seus parceiros a cumprir os programas traçados conjuntamente.


Com essas considerações, dou provimento ao recurso especial para julgar procedente em parte a ação ministerial, determinando seja reativado em sessenta dias o programa constante da Resolução 4/97, devendo ser incluída no próximo orçamento municipal verba própria e suficiente para atender ao programa.


É o voto”.


Como se percebe, o acórdão que acabamos de mencionar acolhe os argumentos sobre os quais discorremos ao longo deste trabalho, caracterizando-se como verdadeiro alicerce para a construção de um novo modelo no qual o Poder Judiciário deverá exercer papel de vital importância no campo da tutela dos direitos sociais.


Considerações Finais.


O tema central deste trabalho, assim como aqueles que lhe são intimamente relacionados, ensejam debates e aprofundamentos que não se mostram possíveis no âmbito destas singelas linhas.


Busquei, entretanto, chamar a atenção do leitor, em especial dos operadores do direito, para o fato de que a sociedade brasileira somente poderá dizer que está inserida em um Estado Democrático de Direito a partir do momento em que os direitos sociais sejam efetivamente respeitados e cumpridos. Caso contrário, continuaremos a viver em uma democracia míope.


O Ministério Público, a quem o legislador constitucional conferiu poderes para adequadamente buscar a tutela dos interesses sociais indisponíveis, deve marcar sua atuação, sem perder o foco, na busca da implementação dos direitos consagrados no art. 6º da Carta da República.


Para tanto, em um primeiro momento, deverá atuar como fonte de mobilização dos diversos atores sociais e de fomento das políticas públicas constitucionais vinculativas, fazendo com que estas possam ser classificadas como específicas, socialmente necessárias e constitucionalmente exigidas (mais uma vez citando Marcos Felipe Holmes Autran). Com isso e diante de tais características, o Ministério Público poderá exigir do Poder Executivo o cumprimento de tais políticas, sendo que, na hipótese do referido Poder deixar de dar atendimento a tal reivindicação, ganhará, de forma adequada, a possibilidade de deduzir a correspondente pretensão perante o Judiciário.


Ao Poder Judiciário, por sua vez, caberá não se afastar dos superiores interesses sociais, mostrando-se aberto às decisões que repercutirão de maneira relevante no cotidiano do cidadão, deixando no passado concepções doutrinárias e jurisprudenciais que hoje se mostram despidas da realidade a que o Juiz deve estar atento quando julga e, assim, decide os caminhos que serão trilhados pela sociedade brasileira.


 


Referencial bibliográfico

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 11ª edição, São Paulo: Editora Atlas, 2002.

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Nota:

[1] Art. 6º – São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.


Informações Sobre o Autor

Leonardo Augusto Gonçalves

Promotor de Justiça no Estado de São Paulo; Professor de Direito Processual Penal das Faculdades Integradas de Ourinhos/SP; Professor de Estrutura Judiciária Brasileira da Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro – Jacarezinho/PR


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