O poder público não pode proibir a cobrança de estacionamento em áreas privadas


1. Introdução


O presente estudo analisa a constitucionalidade de lei que venha proibir que estabelecimentos comerciais e de prestação de serviços cobrem pelo estacionamento de veículos de seus usuários, nas áreas destinadas ao estacionamento de veículos destes estabelecimentos, como por exemplo, em “shopping centers”, parques de diversões etc.


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Para análise da questão, impõe-se breve exame das disposições do ordenamento acerca do urbanismo.


2. O Direito Urbanístico


É pacífico na doutrina o reconhecimento da existência da ciência do urbanismo como instrumento de correção dos desequilíbrios urbanos, nascidos da urbanização e agravados com a chamada explosão urbana do nosso tempo, constituindo-se o urbanismo como matéria interdisciplinar.


Daí que, também assenta a doutrina, constata-se que o Direito também é uma das ciências que regula o fenômeno do urbanismo, lançando sobre este seus elementos, conceitos e princípios, os quais são encontrados, desde logo, nos artigos 24, 182 e 183 da Constituição, como bem aponta Nathália Arruda Guimarães, em alentado estudo a respeito da matéria[1].


Ainda como indica Nathália Arruda Guimarães, com a Lei Federal 10.257/2001, que institui o “Estatuto da cidade”, ficou definitivamente consolidada a chamada “Ordem Urbanística”, entendida como conjunto de normas de direito urbanístico, ramo autônomo na disciplina jurídica.


À luz dos comandos constitucionais, reproduzido no “Estatuto da Cidade” e em diversas outras leis infraconstitucionais, colhe-se que o objeto do Direito Urbanístico é ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.


Nesse sentir Hely Lopes Meirelles ensina:


“[…] o Direito Urbanístico ordena o espaço urbano e as áreas rurais que nele interferem, através de imposições de ordem pública, expressas em normas de uso e ocupação do solo urbano ou urbanizável, ou de proteção ambiental, ou enuncia regras estruturais e funcionais da edificação urbana coletivamente considerada.” [2]


3. A conjugação das normas de direito urbanístico com demais princípios da Constituição


Não obstante o reconhecimento do direito urbanístico como meio para se ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes, é imperioso também reconhecer que suas normas, mesmo as de cunho constitucional, devem se harmonizar com os outros princípios do ordenamento jurídico, especialmente os também contidos na Constituição.


Assim é que o direito urbanístico deve harmonizar-se, por exemplo, com o direito de propriedade (art. 5°, XXII), com o direito de proteção à propriedade privada (art. 1709, II), com o direito de livre iniciativa e de liberdade da atividade econômica (art. 170, parágrafo único), dentre outros.


E não poderia ser diferente, pois como se sabe, o direito traduz-se num sistema de normas que são interligadas e que se harmonizam entre si.


4. A competência dos municípios no tocante a parcelamento do solo urbano 


Ao tratar da competência dos Municípios, o art. 30 da Constituição, em seu inciso VIII, ainda confere-lhes a atribuição de:


“VIII – promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;”


5. A inconstitucionalidade de lei municipal que venha a proibir a cobrança de estacionamento de veículos de usuários de estabelecimentos comerciais


Qualquer dispositivo legal que proíba que estabelecimentos comerciais e de prestação de serviços cobrem pelo estacionamento de veículos de seus usuários, nas áreas destinadas ao estacionamento de veículos destes estabelecimentos padece de flagrante inconstitucionalidade.


É cristalino que a legislação municipal em análise adentra no campo contratual, de direito civil, ferindo o art. 22, I, da Carta, porquanto pretende regular contrato de prestação de serviços (implícito) que ocorre quando o estabelecimento comercial ou de prestação de serviços disponibiliza vagas de estacionamento.


E não se diga que não tem natureza contratual a relação entre o comerciante e prestador de serviços, também no que diz respeito à oferta de estacionamento, porquanto é justamente por esta natureza que a Jurisprudência, pacífica e abundantemente reconhece a obrigação dos estabelecimentos em indenizar o usuário do estacionamento, em caso de furto ou danos, mesmo que tal estacionamento seja ofertado gratuitamente.


Nesse sentido, confira-se, por exemplo, do Superior Tribunal de Justiça, recente decisão, dentre muitas outras:


CIVIL. REPARAÇÃO DE DANOS. ESTACIONAMENTO DE SHOPPING. A EMPRESA RESPONDE, PERANTE O CLIENTE, PELA REPARAÇÃO DE DANO OU FURTO DE VEICULO OCORRIDOS EM SEU ESTACIONAMENTO, NOS TERMOS DA SUM. 130/STJ. RECURSO NÃO CONHECIDO.(REsp 120.000/SP, Rel. MIN.  COSTA LEITE, TERCEIRA TURMA, julgado em 17.06.1997, DJ 04.08.1997 p. 34757)


De outro lado, nem sequer a União poderia aprovar tal legislação, porque, embora possa estabelecer normas sobre direito privado, não pode, porém, atentar contra o princípio da propriedade privada e contra o princípio da livre iniciativa, tal como posto na exposição supra.


Como já se escreveu, o proprietário do estabelecimento comercial tem o direito público subjetivo de exercer livremente sua atividade econômica, sem qualquer interferência ou tabelamento de preços, respeitada, evidentemente, a função social da propriedade.


O Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.623, decidida em 25.06.97, em votação unânime, sendo Relator o Ministro Moreira Alves, concedeu a medida liminar, para suspender a eficácia da lei estadual nº 2.050, de 30.12.92, do Estado do Rio de Janeiro, que proibia a cobrança ao usuário de estacionamento em área privada, sob o fundamento de que essa lei era inconstitucional.


Da decisão do Supremo, colhe-se:


“quer sob o aspecto da inconstitucionalidade material (ofensa ao artigo 5º, XXII, da Constituição Federal, por ocorrência de grave afronta ao exercício normal do direito de propriedade), quer sob o ângulo da inconstitucionalidade formal (ofensa ao artigo 22, I, da Carta Magna, por invasão de competência privativa da União para legislar sobre direito civil).”


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Também no Rio de Janeiro, no Processo 1998.007.00032, da Representação de Inconstitucionalidade argüida pelo Sindicato das Atividades de Garagens, Estacionamento e Serviços do Estado do Rio de Janeiro, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro decidiu pela inconstitucionalidade da Lei Municipal que pretendia efetuar tal regulamentação, nos seguintes termos:


“inconstitucionalidade da Lei n. 2.620 de 27/03/98, do Município do Rio de Janeiro, esta reproduzindo matéria similar da Lei Estadual nº 2.050/92 e da Lei Complementar Municipal n. 33/94, com liminar concedida em extensão a outra já deferida na Representação por Inconstitucionalidade nº 64/97, todas regulamentadoras do estacionamento de veículos em parte integrante de edificações destinadas a atividades comerciais e serviços. Agravos Regimentais já decididos unanimemente por este órgão, mantendo as liminares. Lei invasora da esfera de competência exclusiva da União Federal para legislar sobre o direito de propriedade, alem de violar o direito adquirido. Contrariedade às Constituições Estadual e Federal.”


Ou seja, é inconstitucional impedir ao contribuinte o exercício de suas atividades sob o pretexto de cobrança de tributos ou qualquer outra exação pública.


6.  Conclusão


Pelo exposto, conclui-se que é inconstitucional qualquer lei que venha proibir que estabelecimentos comerciais e de prestação de serviços cobrem pelo estacionamento de veículos de seus usuários, nas áreas destinadas ao estacionamento de veículos destes estabelecimentos.




Notas:

[1]O direito urbanístico e a disciplina da propriedade”, in Jus Navigandi http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=4884

[2] Direito Municipal Brasileiro. São Paulo : Malheiros. 6ª edição. 1993. p. 381.


Informações Sobre o Autor

Miguel Teixeira Filho

Advogado tributarista. Graduado pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, em 1987. Sócio titular da Teixeira Filho Advogados Associados, com sede em Joinville/SC (www.teixeirafilho.com.br). Consultor Jurídico da Companhia de Desenvolvimento e Urbanização de Joinville – Conurb. Conselheiro Titular da Seccional de Santa Catarina da OAB.


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