Resumo: Na atualidade, a doutrina administrativista considera 03 (três) paradigmas de Estado como modelos existentes, que são o Estado Liberal, o Estado Social e o Estado Democrático de Direito. Ao lado dessa classificação, o Plano Diretor de Reforma do Estado (PDRAE) denominou as 03 (três) diferentes maneiras de administração do patrimônio do Estado de “as três formas de Administração Pública”, que consistem nos modelos de Administração Pública Patrimonialista, de Administração Pública Burocrática, também conhecida como “modelo weberiano”, e, por fim, de Administração Pública Gerencial, ou “modelo de governança”, ou managerialism, surgido em governos de cunho neoliberal (Thatcher e Reagan) e, no Brasil, foi pregado pelo PDRAE. O Estado regulador se insere na terceira fase da Administração Pública, a gerencial, na qual, no Direito Brasileiro, deu-se a criação das Agências Reguladoras.
Palavras-chave: paradigmas. Estado. Administração. Pública. regulador.
Abstract: Currently, administrativist doctrine considers three (03) existing paradigms of State as to the present models, which are the Liberal State, the Welfare State and the Rule of Law. Beside this classification, the Master Plan for State Reform (PDRAE) called the three (03) different ways of administering the assets of the state of "the three forms of Public Administration", which consists of the models patrimonialist Public Administration, Administration public bureaucratic, also known as "Weberian model", and finally, the public Administration Management, or "governance model", or managerialism, appeared in neoliberal governments (Thatcher and Reagan) and in Brazil, preached by PDRAE . The regulatory state is part of the third phase of public administration, public management, in which, in Brazilian law, there was the creation of regulatory agencies.
Keywords: paradigms. State. Administration. Public. regulator.
Sumário: Introdução. 1. Os paradigmas de Estado. 2. Os modelos de Administração Pública. 3. A adoção do paradigma gerencial no regime jurídico brasileiro. Conclusão. Referências.
Introdução
O presente artigo se destina a abordar em linhas gerais os paradigmas de Estado e de Administração Pública, com destaque para suas características principais e para a contextualização com o período histórico em que houve a predominância de cada modelo.
Outro objetivo do estudo em questão consiste em analisar a atividade regulatória no Direito Brasileiro, cujo início se deu no governo de Fernando Henrique Cardoso. O Estado Regulador se insere no último modelo estatal segundo a classificação adotada, ou seja, no paradigma de Estado Democrático de Direito, adotado no País em 1988, com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil.
Nesse contexto, será ressaltado brevemente o aspecto polêmico que a adoção do modelo regulatório trouxe para o Brasil, com todas suas complexidades, vantagens e desvantagens. De fato, há muitas questões sob um assunto tão polêmico, mormente porque as Agências são de suma importância para os recentes processos de privatização e de complexidade fática, em que aspectos da vida cotidiana e do evidente crescimento e desenvolvimento econômico-financeiro e tecnológico do País imprescindem de regulação mais ágil, moderna e flexível.
1. Os paradigmas de Estado:
A Constituição Federal de 1988 (CF) instituiu, em oposição aos regimes então vigentes, um novo paradigma de Estado, o Estado Democrático de Direito, marcado crucialmente pela importância de um amplo rol de direitos (de primeira, segunda e terceira gerações) e pelo destaque que confere à participação popular na tomada de decisões políticas, na definição de políticas públicas e na conferência de legitimidade ao governante.
Porém, como já adiantado, até se chegar a esse modelo, houve outros paradigmas ou modelos de Estado.
Com efeito, em primeiro lugar, a doutrina administrativista entende que se insere o Estado Liberal, marcado pela valorização dos direitos individuais, mormente de liberdade, igualdade (apenas formal) e de propriedade e pela contenção do governante, submetido ao Estado de Direito, em contraposição à monarquia absolutista então reinante.
Sucessor desse tipo estatal foi o paradigma do Estado Social, no qual mereceu predominância a tutela de mais direitos, agora de cunho social (direitos sociais) e com uma característica de igualdade mais material, e pela edição de um rol considerável de normas protetivas da saúde, emprego e aposentadoria do trabalhador, com um Estado intervencionista e protecionista na economia e no setor social. Tratou-se de um modelo marcado pela burocracia, pela lentidão e por um inchaço de atribuições, do que resultou, porém, altos gastos públicos, corrupção e pouca eficiência gestora.
Nada obstante, é crucial enfatizar que a existência dos ditos paradigmas não implicou simplesmente uma drástica ruptura com o modelo então vigente. Adotar-se uma premissa purista desse tipo há o sério risco de incorrer em diversas incongruências e equívocos, agravadas pelo contexto histórico e social que acompanham todos modelos estatais. Isso quer dizer que, mesmo com essa “geração de paradigmas”, embora tenha havido certa sucessão, o novo modelo não abandonou totalmente os critérios e objetivos antes tutelados ou previstos em sede legal ou constitucional.
Essa situação se verifica, inclusive, na Lei Maior Brasileira, na qual convivem direitos de gerações diversas (individuais, sociais e coletivos ou transindividuais), proteção ainda forte da Seguridade Social (a qual se triparte em Previdência Social, Assistência Social e Saúde) e, mais, até pela previsão de alguns aparatos e métodos tipicamente burocráticos, como a organização do serviço público e a previsão de concurso de provas e títulos para o provimento de cargos públicos.
De volta ao início desse item, como substituto do Estado Social adveio o modelo do Estado Democrático de Direito, que começou a se desenvolveu no exterior nas décadas de 70 e 80 do século passado, em cenário caracterizado, em breve síntese, pelas crises do padrão ouro do dólar e do petróleo, quando o Estado deixou de adotar uma postura tão ativa e intervencionista.
No cenário interno, tem-se que, voltado aos ideais de eficiência, gerência administrativa e prevalência dos fins aos meios, próprios da reforma administrativa que, no Brasil, durante a gestão do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) o Estado acabou por se desfazer de diversas indústrias de sua propriedade, ao privatizá-las, mas as submeter ao controle do Estado, através de poderes de polícia e disciplinar, por meio da criação de Agências Reguladoras. Assim se deu nos ramos ferroviário, rodoviário, de exploração de energia elétrica, dos serviços de telecomunicações, entre outros.
Em consequência, foram promulgadas várias normas infraconstitucionais sobre o tema, como o Programa Nacional de Desestatização, criado pela Lei n.° 8.031, de 12 de abril de 1990 e posteriormente alterado pela Lei n.º 9.491, de 09 de setembro de 1997, e o Programa Nacional de Desburocratização (Decreto n.° 83.740, de 18 de julho de 1979).
Todavia, tal reforma veio a materializar-se constitucionalmente por intermédio da Emenda Constitucional n.° 19, de 04 de junho de 1998, que traduzia a forte orientação neoliberal do então Presidente Fernando Henrique Cardoso. Antes, por meio da aprovação da Emenda Constitucional n.º 08, de 15 de agosto de 1995, deu-se a modificação do artigo 21, inciso XI, da CF[1], particularmente no ramo das telecomunicações, que passou a atribuir à União, além da competência para explorar serviços públicos, diretamente ou mediante outorga, a criação de órgão regulador, o que significou a quebra da exclusividade de concessão tais serviços a empresas sob o controle acionário do Estado.
Além disso, nesse último e atual paradigma, primou-se por uma releitura da relação entre os setores público e privado. A diferenciação, antes bem delineada, tornou-se difusa e, por vezes, confusa. A propósito, a própria distinção no Direito entre Direito Público e Direito Privado vem sendo hodiernamente desfeita, haja vista a proximidade contínua entre as áreas jurídicas, todas plasmadas pelo conteúdo do texto constitucional, já que não basta que o Estado e seus cidadãos observem a lei, mas também e, muitas vezes, primordialmente a CF.
Outro ponto interessante é que o Estado começou a atuar em parceria com o setor privado em atividades que correspondem aos chamados espaços públicos não estatais, ou seja, serviços públicos entendidos como competitivos ou atividades não exclusivamente estatais, como saúde, educação, cultura, etc. É o chamado Terceiro Setor, exercido por meio de Organizações Sociais e Organizações da Sociedade Civil, instituídas, respectivamente, pelas Leis n.ºs 9.637, de 15 de maio de 1998, e 9.790, de 23 de março de 1999, que celebram com o Estado o polêmico contrato de gestão, pois é objeto de fiscalização atenuada pelo ente estatal, no processo conhecido como publicização.
Sobremais, consoante brevemente exposto, no Estado Democrático, o Estado passa a assegurar ao seu povo maior oportunidade de participação da vida política e de controle no governo, o que se dá de formas multifacetadas, como através da opinião pública, da participação de audiências públicas sobre temas relevantes em debate nas Cortes Supremas e no amplo acesso ao Poder Judiciário, preconizado pela Carta Magna, e na disponibilização de informações sobre as atividades da Administração, que ganhou proteção legal há poucos anos[2].
2. Os modelos de Administração Pública:
Segundo classificação mencionada pelo professor Fernando José Gonçalves Acunha, o Plano Diretor de Reforma do Estado (PDRAE) denominou as 03 (três) diferentes maneiras de administração do patrimônio do Estado de “as três formas de Administração Pública[3].”
A primeira dessas Administrações é a Administração Pública Patrimonialista, vigente no Antigo Regime, em que o aparelho estatal funcionava como uma extensão do poder do soberano.
Em reação a esses abusos, surgiu na primeira metade do século XIX, na época do Estado Liberal, um modelo de dominação racional-legal, marcado pela formalidade e pela legalidade, característico da Administração Pública Burocrática, também conhecida como “modelo weberiano”, em que o interesse público passou a ser distinto do interesse do governante e se baseava numa forma de administrar o aparelho estatal em que há criação de vários órgãos, marcados por profissionalização de seus servidores, num figura específica, o funcionário burocrático, e ligados por uma estrutura hierárquica funcional rígida e que se enfatizam os procedimentos formais, notadamente os meios utilizados para a prática dos atos administrativos (mais do que os próprios fins).
Nesse modelo, o Estado formou um grande aparelho burocrático de órgãos (desconcentração) e de entidades da Administração Pública Indireta (descentralização), submetidos ao regime jurídico administrativo, o qual se pauta em alguns princípios fundamentais, como a supremacia do interesse público sobre o privado, a indisponibilidade, pela Administração, dos interesses públicos, a legalidade, a continuidade do serviço público, a isonomia entre os administrados em face de Administração, o controle administrativo ou tutela, a publicidade, o controle jurisdicional dos atos administrativos, entre outros. Ainda, a Administração goza de alguns tratamentos diferenciados com o fim de atender o interesse de toda coletividade (interesse público primário), como se dá com as presunções de veracidade e legitimidade dos atos administrativos e os prazos prescricionais e processuais diferenciados.
Porém, como bem observa o jurista Celso Antônio Bandeira de Mello[4], essas prerrogativas se tratam, na verdade, de “deveres-poderes”, eis que “(…) a Administração exerce função; a função administrativa. Existe função quando alguém está investido no dever de satisfazer dadas finalidades em prol do interesse de outrem, necessitando, para tanto, manejar os poderes requeridos para supri-las. Logo, tais poderes são instrumentais ao alcance das sobreditas finalidades. Sem eles, o sujeito investido na função não teria como desincumbir-se do dever posto a seu cargo. Donde, quem os titulariza maneja, na verdade, “deveres-poderes”, no interesse público.”
Da mesma forma que salientado para os paradigmas do Estado, o modelo de Administração Burocrática também está bem presente na Constituição Federal de 1988, particularmente quando disciplina o regime jurídico administrativo, com seus princípios expressos delineados no artigo 37, caput (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, sendo este inserido pela Emenda Constitucional n.º 19/1998), e o regime jurídico dos servidores públicos, a partir do artigo 39, com previsão sobre investidura no cargo, demissão, estágio probatório, regime de aposentadoria, entre outras. A propósito, a exigência de concursos públicos, advinda na década de 30 do século XX, é um importante caráter de impessoalidade e moralidade da Administração Burocrática.
Todavia, as mudanças socioeconômicas que seguiram tanto interna quanto externamente no Brasil, passaram a mostrar que o modelo de Administração Pública Burocrática, tão formal e rígido, não se adequava ao novo cenário. Esse processo coincide com a crise do Estado Social, no cenário nacional, por volta de 1970 a 1980. Era, portanto, vital um modelo que conciliasse a redução de custos com maior otimização do Estado, bem como resolvesse os problemas da “governabilidade” (governos sobrecarregados) e os efeitos da globalização.
Em resposta a essas novas contingências, surgiu o paradigma da Administração Pública Gerencial, ou “modelo de governança”, ou managerialism, em governos de cunho neoliberal (Thatcher e Reagan)[5] e, no Brasil, pregado pelo PDRAE, que defendia uma nova gestão dos recursos públicos, que proporcionasse ao Estado maior eficiência, flexibilização das normas rígidas de hierarquia e de estrutura, redução de cursos e operacionalização, aumento da qualidade dos serviços, entre outras medidas.
O Estado regulador se insere na terceira fase da Administração Pública, a gerencial, que, mediante o modelo de governança, preza o controle finalístico dos entes da Administração Indireta, ou seja, o alcance do objetivo ou fim para o qual foram criados, em primazia ao interesse público primário[6], em busca da maior eficiência da função administrativa[7], ou seja, uma prestação melhor e mais generalizada dos serviços públicos a custos menores.
Na verdade, é interessante frisar que, no caso do Estado brasileiro, este ainda mantém a atuação direta em setores de interesse público relevante, como o monopólio do petróleo e do pré-sal, de caráter estratégico, nos termos do artigo 177 da CF; contudo, o principal aspecto desse Estado regulador é a criação de Agências Executivas ou Reguladoras, Autarquias Públicas destinadas a fiscalizar a atividade privada, com capacidade para editar normas infralegais ou regulamentadoras e para traçar diretrizes e impor limites, com poder sancionatório muitas vezes também.
Como a racionalidade econômica preconizada pelo PDRAE, o Estado optou por se desfazer de serviços que antes eram de incumbência estatal e, assim, houve a privatização de empresas estatais responsáveis pela produção de energia elétrica, pelo transporte ferroviário e rodoviário, de bancos estatais, entre muitas outras entidades que foram transferidas à iniciativa privada, algumas sob a concessão e fiscalização de Autarquias Reguladoras, como a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e a Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL).
Por conseguinte, o Estado deixa de ser executor ou prestador direto de serviços públicos (intervenção direta), para se tornar um Estado regulador, indutor e mobilizador dos agentes econômicos e sociais, cuja principal função se torna simplesmente promover a coordenação estratégica do desenvolvimento, da integração regional e da inserção no mercado internacional, a fim de evitar a precarização dos chamados serviços públicos, encarando tais serviços privatizados como serviços públicos não essenciais (intervenção indireta), forma esta de organização econômico-social do poder público que surgiu no Brasil na década de 90 do século XX, após a implantação do PDRAE e da Emenda Constitucional n.º 19/1998.
3. A adoção do paradigma gerencial no regime jurídico brasileiro
Em face dessas classificações, Robério Fontenele de Caralho observa que a Carta Maior do Brasil de 1988 fez opção pelo capitalismo como sistema econômico, porém não há nela qualquer dispositivo que signifique opção pelo liberalismo como modelo de economia. A respeito, exemplifica com o artigo 170, o qual prevê que a ordem econômica deva ser fundada na livre iniciativa, mas traz como fatores legitimadores da atividade econômica os princípios da livre iniciativa, da propriedade privada, da livre concorrência, da função social da propriedade, da defesa do consumidor e do meio ambiente e da redução das desigualdades sociais e regionais e econômicas e ainda a necessidade da valorização do trabalho de forma a assegurar uma vida digna a todos, conforme os ditames da justiça social.
Sob essa perspectiva, o jurista conclui que “Em tudo, ao analisar o complexo de normas constitucionais dentro de seu contexto geral, se encontra, na verdade, a orientação da Constituição para um modelo econômico de bem estar social, onde se ressalta a garantia ao direito de propriedade e a exigência de que esta mesma propriedade cumpra sua função social[8].”
Em tema correlato, ensina o professor Fernando José Gonçalves Acunha[9], no artigo intitulado A Administração Pública Brasileira no contexto do Estado Democrático de Direito, que a teoria da separação dos poderes se baseia na existência de estruturas orgânicas distintas e separadas no âmbito do Estado, para o exercício de cada uma das funções públicas atribuídas ao que se convencionou chamar de “poderes”, isto é, o Executivo, o Judiciário e o Legislativo, na clássica tripartição arquitetada por Montesquieu nos primórdios da Modernidade.
Nesse prisma, cada Poder exercita preponderantemente as seguintes funções: 1) função legislativa, atribuída, de regra, ao Legislativo, que elabora normas gerais e abstratas, por representantes do povo; 2) função jurisdicional, exercida pelo Poder Judiciário, ao aplicar a lei para solucionar litígios e em busca da pacificação social; e a 3) função executiva, subdividida em 3.1) função política ou propriamente de Governo, tida como aquela ligada à superior gestão da política estatal, no exercício da soberania do Estado brasileiro, em âmbitos interno e internacional; e 3.2) função administrativa, relacionada à execução das normas jurídicas para atendimento direto e imediato do interesse da coletividade, através de atos infralegais, observância do regime jurídico administrativo, baseado na hierarquia e sob controle de legalidade do Judiciário.
Ao lado dessa divisão, a CF tutela funções tidas como essenciais à Justiça, que atuam como uma parcela do poder estatal, mas destacadas dos Poderes do Estado e que visam ao equilíbrio e a harmonia dos Poderes. Trata-se da Advocacia de Estado, Defensoria Pública, Ministério Público e do Tribunal de Contas. O jurista Marçal Justen Filho defende que, hoje, no Brasil, há 05 (cinco) poderes, nos quais inclui esses 02 (dois) últimos[10].
Essa separação está baseada num sistema de freios e contrapesos (checks and balances) entre as diferentes funções estatais, de modo a se obter o equilíbrio e o controle de uma sobre a outra, evitando-se abusos ou intromissões indevidas entre as funções típicas.
Em sendo assim, o Executivo interfere na atividade legislativa, através da iniciativa de leis e emendas constitucionais e, após, do veto e da sanção (artigo 66 da CF), bem como ao editar medidas provisórias, ainda, que limitadas material e formalmente pelo artigo 62 da CF, e atua na função judicante quando indica e nomeia os Ministros do Supremo Tribunal Federal e dos demais Tribunais Superiores (artigo 84, inciso XIV, da CF); ainda, o Legislativo e o Judiciário também exercem função administrativa ao regulamentarem temas como a organização de seus serviços e órgãos internos (artigo 51, inciso IV, artigo 52, inciso XIII, e 96, inciso I, alínea “b”, da CF). Sobremais, o Judiciário atua com função legiferante quando edita súmulas vinculantes (artigo 103-A da CF), que, mesmo não sendo leis, vinculam, inclusive, a Administração Pública, assim como interfere na função normativa quando efetua o controle de constitucionalidade de leis e atos normativos, inclusive por omissão.
Note-se, portanto, que a divisão funcional de poderes não é estática e limitada às funções típicas de cada um. Com efeito, nos termos da lição trazida por Marçal Justen Filho, cada um dos Poderes exercita preponderantemente uma das funções, mas não exclusivamente um tipo de função, mesmo porque a independência absoluta geraria efeitos negativos, pois dificultaria o exercício do controle[11].
Nesse contexto, através do PDRAE que se desenvolveu ao longo da década de 90 e ganhou destaque no governo de Fernando Henrique Cardoso, muitas empresas estatais nacionais passaram para a iniciativa privada (privatização) e se adotou a técnica da descentralização da Administração Pública Indireta, com a criação de Agências Reguladoras, destinadas a normatizar e regular setores específicos da economia, como a exploração do petróleo, de serviços de telecomunicações e de aeronavegabilidade, e a controlar os setores recentemente privatizados e as concessionárias, como as estradas e ferrovias antes de titularidade pública. Esse modelo teve influência no direito comparado, precisamente em paradigmas adotados nos EUA e na França, a despeito de se ignorar, aqui no Brasil, as peculiaridades do regime jurídico pátrio.
Repise-se que a Administração Pública Gerencial prega um Estado não mais prioritariamente produtor de bens e serviços (atuação direta na economia), mas sim regulador da economia e da sociedade (intervenção indireta). A propósito, prevê o artigo 174 da CF que “Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.”
Com base nessas premissas, e sem negar, no entanto, os avanços advindos do modelo anterior (burocrático), passa-se a defender que a Administração efetuasse não mais um controle estrito de procedimentos, do “como agir”, mas sim dos “fins” a serem alcançados, ou seja, se os objetivos almejados com determinada ação estatal foram ou não conquistados. O Estado também passou a conferir maior autonomia para as entidades representativas, controladas pelos tão polêmicos contratos de gestão, numa espécie de “competição administrada” no interior do próprio Estado, entre as entidades públicas e até mesmo com aquelas do Terceiro Setor.
Fernando Luiz Abrúcio[12] observa com maestria que:
“Mas nos últimos anos o modelo gerencial não tem sido somente utilizado como mecanismo para reduzir o papel do Estado. O managerialism se acoplou, dentro de um processo de defesa da modernização do setor público, a conceitos como busca contínua da qualidade, descentralização e avaliação dos serviços públicos pelos consumidores/cidadãos. Portanto, há atualmente mais de um modelo gerencial; ou, melhorando a argumentação, no embate de idéias proporcionado pela introdução do managerialism na administração pública surgiram diversas respostas à crise do modelo burocrático weberiano, todas defendendo a necessidade de se criar um novo paradigma organizacional.”
O professor Fernando José Gonçalves Acunha[13] conclui que o formato da Administração Pública brasileira é o resultado do influxo de todos modelos, pois ainda conta com estruturas burocráticas, como concurso público, profissionalização e legalidade, e resquícios de patrimonialismo, como a privatização de espaços e meios públicos colonizados por particulares em busca de seus próprios interesses.
Esse assunto está relacionado também com o novo papel desempenhado pelo Estado Democrático de Direito, nos termos desenvolvidos pela Reforma do aparelho estatal. Ao se defender uma atuação mais célere e eficiente do Estado e que a Administração Pública valorize mais os fins do que os meios de seus procedimentos, a nova estrutura administrativa, baseada na descentralização da Administração, visa justamente atingir esses objetivos, primando por um Estado mais atento às mudanças e complexidades técnicas e fáticas e que a escolha regulatória se enquadre como uma nova categoria das escolhas administrativas[14].
Destarte, a competência reguladora do Executivo põe em crise a definição clássica do princípio da legalidade. Ainda, a novidade provocou certa releitura do dogma clássico da separação dos poderes, eis que, aquela divisão estanque de atribuições entre Executivo, Legislativo e Judiciário, consagrada pelo artigo 2º da Lei Maior, já não mais significava que cada poder detinha seu setor fixo de atuação.
Conclusão
Como explicitado, para se chegar ao sistema regulador (direito gerencial), o caminho percorrido implicou diversos marcos históricos e paradigmas estatais (Estado Liberal e Estado Social), que culminaram na democracia social, com o presente Estado Democrático de Direito, consagrado na Carta Magna de 1988.
As Agências Reguladoras constituem instrumento da intervenção estatal no mercado, aptas a exercer a regulação, a editarem normas regulamentares e técnicas em setores específicos em que atuam e garantirem a qualidade dos serviços prestados por particulares, criadas no Direito Brasileiro em virtude de privatizações levadas a feito em nosso País e iniciadas na década de 90 do século passado,
Além dessa classificação, adota-se outra, embasada nas maneiras de administração do patrimônio do Estado, ou seja, “as três formas de Administração Pública[15], segundo as nomenclaturas trazidas pelo PDRAE.
Como visto, enquanto a Administração Pública Patrimonialista, vigente no Antigo Regime, constituía na extensão do poder do soberano em relação ao aparelho estatal, a que a sucedeu, na primeira metade do século XIX, na época do Estado Liberal, tratava-se de um modelo de dominação racional-legal, marcado pela formalidade e pela legalidade, característico da Administração Pública Burocrática, também conhecida como “modelo weberiano.” Nesta forma de Administração Pública, o interesse público passou a ser distinto do interesse do governante e se baseava numa forma de administrar o aparelho estatal em que há criação de vários órgãos, marcados por profissionalização de seus servidores, num figura específica, o funcionário burocrático, e ligados por uma estrutura hierárquica funcional rígida e que se enfatizam os procedimentos formais, notadamente os meios utilizados para a prática dos atos administrativos (mais do que os próprios fins).
Diante dessa situação, o Estado formou um grande aparelho burocrático de órgãos (desconcentração) e de entidades da Administração Pública Indireta (descentralização), submetidos ao regime jurídico administrativo, o qual se pauta em alguns princípios fundamentais, como a supremacia do interesse público sobre o privado, a indisponibilidade, pela Administração, dos interesses públicos, a legalidade, a continuidade do serviço público, a isonomia entre os administrados em face de Administração, o controle administrativo ou tutela, a publicidade, o controle jurisdicional dos atos administrativos, entre outros. E, ainda, a Administração goza de alguns tratamentos diferenciados com o fim de atender o interesse de toda coletividade (interesse público primário), como se dá com as presunções de veracidade e legitimidade dos atos administrativos e os prazos prescricionais e processuais diferenciados.
Em sequência, adveio o paradigma da Administração Pública Gerencial, ou “modelo de governança”, ou managerialism, que pregava nova gestão dos recursos públicos, a proporcionar ao Estado maior eficiência, flexibilização das normas rígidas de hierarquia e de estrutura, redução de cursos e operacionalização, aumento da qualidade dos serviços, entre outras medidas.
Destarte, é imperioso ratificar que, assim como pode se ver com os paradigmas do Estado, que não implicaram uma ruptura total com o modelo atual, pois se mantiveram algumas características dos regimes anteriores, há aspectos de Administração Burocrática também presentes na Constituição Federal de 1988, particularmente quando disciplina o regime jurídico administrativo e o regime jurídico dos servidores públicos.
Em decorrência, tem-se também uma releitura do dogma clássico da separação de poderes, motivada primordialmente pela criação das ditas Agências Reguladoras e da implantação do modelo regulatório no Direito Brasileiro. Assim, a competência reguladora do Executivo põe em crise a definição clássica do princípio da legalidade, pois não há mais uma divisão estanque de atribuições entre Executivo, Legislativo e Judiciário, consagrada pela Lei Maior.
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Informações Sobre o Autor
Graziele Mariete Buzanello
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo 2006. Pós-Graduada em Direito Tributário pela Universidade Anhanguera-Uniderp Rede LFG 2010. Procuradora Federal