Diferentes concepções acerca do conceito de reforma agrária: análise a partir do julgamento do MS 25.184/DF pelo Supremo Tribunal Federal

Resumo: Este artigo pretende expor duas distintas concepções acerca do conceito de reforma agrária tendo por enfoque decisão do ano de 2010 do Supremo Tribunal Federal. O artigo confronta o posicionamento mais restrito adotado na decisão, que entende ser a Reserva Extrativista um instituto incompatível com a reforma agrária, e que expressa uma concepção de propriedade centrada na produtividade, com um posicionamento de viés socioambientalista, baseado na interação entre meio ambiente e cultura, e que se reputa mais adequado à luz do texto da Constituição de 1988.

Palavras-chave: reforma agrária; conceito; socioambientalismo.

Abstract: This paper focus on exposing two different conceptions upon the concept of agrarian reform based on a 2010 Brazilian Supreme Court Decision. The paper confronts the decision’s restrict understanding, which considers an extractive reserve incompatible with agrarian reform and expresses a productivity based conception of property, with a socioambiental view, based on the interaction of the environment and culture and more suited to the Brazilian Constitution of 1988.

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Keywords: agrarian reform; concept; socioambientalism.

Sumário: Introdução. 1. Apresentação do caso: mandado de segurança 25.284/DF. 3. A gêneses do entendimento sobre reforma agrária: compreensão de desenvolvimento e noção de produtividade da terra. 3. Um novo sentido para reforma agrária: a Constituição de 1988 e o socioambientalismo. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

A compreensão dos Tribunais acerca do tema da reforma agrária é importante na definição de estratégias para o desenvolvimento de políticas públicas na área ambiental, sobretudo levando em consideração as potencialidades de mudança da realidade em termos socioambientais.

Em termos propedêuticos, a análise do conceito de reforma agrária é vital para definição das políticas, por se tratar do ponto de partida para a definição de estratégias de atuação, em especial por meio de desapropriações para fins de reforma agrária.

Em breves linhas, este artigo tem por objetivo analisar a compreensão do Supremo Tribunal Federal – STF acerca do conceito de reforma agrária em julgamento tomado no ano de 2010, e criticá-lo a partir de um enfoque socioambiental dado pela Constituição. A análise buscará evidenciar quais elementos são levados em consideração na construção do conceito pelo STF, e confrontá-los com outros elementos reconhecidos pela Constituição. Ao final, conclui-se pela incompatibilidade do conceito dado pelo STF à reforma agrária com o texto constitucional, e propõe-se sua revisão.

1. APRESENTAÇÃO DO CASO: MANDADO DE SEGURANÇA 25.284/DF.

O Mandado de Segurança – MS – 25.184/DF[1] foi impetrado com o objetivo de declarar a nulidade de Decreto Presidencial que criou a Reserva Extrativista – RESEX – “Verde para Sempre”, com um milhão, duzentos e oitenta e oito mil, seiscentos e dezessete hectares, com localização no Baixo Xingu e compreendida na área do Município de Porto de Moz/PA.

Segundo o voto do Relator, Ministro Marco Aurélio, esse Decreto Presidencial é fruto de mensagem da ex-Ministra do Meio Ambiente ao Presidente da República, encaminhada em novembro de 2003. O objetivo da criação da RESEX é o de “(…) destinar espaço territorial de relevante interesse ecológico e social à exploração sustentável e à conservação dos recursos naturais”, além de atender a reivindicações da população local para “(…) atenuar processo de alteração antrópica, inibir a diminuição da diversidade biológica e conservar a cultura tradicional” (folha 309 dos autos judiciais).

O Decreto foi editado no ano de 2003, observando o texto da mensagem da ex-Ministra do Meio Ambiente. Além disso, foi declarado interesse social para fins de desapropriação, a ser tocada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis – IBAMA, dos imóveis particulares existentes nos limites do Decreto, incluindo terras e benfeitorias. O Decreto também dispunha que a administração da RESEX caberia também ao IBAMA, incumbido de celebrar contrato de concessão real do uso gratuito com a população tradicional extrativista.

Impetraram o MS cinquenta e quatro pessoas que se diziam legítimos proprietários e possuidores das terras abrangidas pelo Decreto Presidencial, com base em documentos.

Foram apresentadas as seguintes causas de pedir, segundo o relatório do Ministro Marco Aurélio:

a) inconstitucionalidade formal do decreto, pois a Constituição exigiria lei em sentido material e formal para criação da reserva extrativista (art. 225);

b) ofensa à valorização do trabalho humano e da livre iniciativa (CF/88, art. 170; art. 3º, II e III; art. 5º);

c) inexistência de estudo ambiental e nulidade do estudo socioeconômico, já que teriam sido desconsideradas as estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE;

d) nulidade por não ser indicada a população tradicional beneficiada (Decreto 4.340/2002, art. 2º, II, que regulamenta a Lei nº 9.985/2000 – Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC)[2];

e) ausência de indicação das atividades econômicas envolvidas com a criação da RESEX, em violação ao Decreto nº 4.340/2002, ao passo que os impetrantes desenvolvem na área atividade agropecuária e madeireira legal;

f) ausência de consulta pública, prevista na Lei do SNUC, art. 22;

g) não-realização de audiência pública, pois apenas 3% (três por cento) da população do Município teria comparecido;

h) não-constituição de Conselho Deliberativo Gestor da RESEX (Lei do SNUC, art. 18, § 2º);

i) não-participação do Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA (Lei 9.638/1981, art. 6º);

j) tentativa ilegal de realização de reforma agrária, em contrariedade às normas constitucionais que impedem a desapropriação para fins de reforma agrária da pequena, da média, e da propriedade produtiva;

l) ausência de previsão orçamentária para pagamento das indenizações por desapropriação.

Para os objetivos deste artigo, interessa observar o item “j”, que trata da afirmação que o Decreto visaria realizar reforma agrária ilegal, já que a Constituição vedaria a desapropriação para fins de reforma agrária das pequenas e médias propriedades rurais, além da propriedade produtiva.

Interviram no processo a União, por meio de sua Advocacia-Geral e Consultoria-Geral. Foi posta em dúvida a titularidade dos imóveis por parte dos impetrantes, controvertendo-se acerca da cadeia dominial dos bens. Ademais, salientou-se o objetivo da RESEX de proteger os interesses e a cultura de vinte e dois mil ribeirinhos de Porto de Moz/PA, contra o desmatamento e degradação feita por madeireiros e especuladores de regiões diversas, além de demonstrar a ocorrência de estudos prévios e consulta pública.

Todos os argumentos da inicial foram impugnados em contestação.

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Interessa ressaltar, para os fins deste artigo, que no ponto relativo à realização ilegal de reforma agrária por meio de desapropriações, que a União afastou tal argumento com base na Lei nº 4.132/1962, art. 2º, afirmando que as desapropriações a serem realizadas para implantação da RESEX seriam por interesse social.

Houve manifestação do Procurador-Geral da República – PGR, na qual opinou pela não-concessão da segurança. O PGR entendeu que não haveriam desapropriações para fins de reforma agrária no caso, já que estas seriam levadas a cabo sob a égide da Lei nº 4.132/1962, e CF/88, art. 5º, XXIV, as quais tratam sobre a desapropriação por interesse social.

O Plenário Supremo Tribunal Federal, à unanimidade, denegou a segurança. Estavam presentes dez dos Ministros da Corte. O acórdão foi assim ementado:

“MEIO AMBIENTE – RESERVA EXTRATIVISTA – CONFLITO DE INTERESSE – COLETIVO VERSUS INDIVIDUAL. Ante o estabelecido no artigo 225 da Constituição Federal, conflito entre os interesses individual e coletivo resolve-se a favor deste último. PROPRIEDADE – MITIGAÇÃO. O direito de propriedade não se revela absoluto. Está relativizado pela Carta da República – artigos 5º, incisos XXII, XXIII e XXIV, e 184. ATO ADMINISTRATIVO – PRESUNÇÃO. Os atos administrativos gozam da presunção de merecimento. RESERVA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL – CRIAÇÃO – ALTERAÇÃO – SUPRESSÃO. A criação de reserva ambiental faz-se mediante ato administrativo, surgindo a lei como exigência formal para a alteração ou a supressão – artigo 225, inciso III, do Diploma Maior. RESERVA AMBIENTAL – CONSULTA PÚBLICA E ESTUDOS TÉCNICOS. O disposto no § 2º do artigo 22 da Lei nº 9.985/2000 objetiva identificar a localização, a dimensão e os limites da área da reserva ambiental. RESERVA EXTRATIVISTA – CONSELHO DELIBERATIVO GESTOR – OPORTUNIDADE. A implementação do conselho deliberativo gestor de reserva extrativista ocorre após a edição do decreto versando-a. RESERVA EXTRATIVISTA – REFORMA AGRÁRIA – INCOMPATIBILIDADE. Não coabitam o mesmo teto, sob o ângulo constitucional, reserva extrativista e reforma agrária. RESERVA EXTRATIVISTA – DESAPROPRIAÇÃO – ORÇAMENTO. A criação de reserva extrativista prescinde de previsão orçamentária visando satisfazer indenizações”. (MS 25284, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 17/06/2010, DJe-149 DIVULG 12-08-2010 PUBLIC 13-08-2010 EMENT VOL-02410-02 PP-00298)

Em seu voto, o Ministro Relator afastou a possibilidade de análise do conteúdo dos estudos realizados para implantação da RESEX, o que não pode ser feito por meio de mandado de segurança, prevalecendo a presunção de veracidade dos atos administrativos. Entendeu pela desnecessidade de licença ambiental, pois a RESEX não se configura como atividade poluidora. Afirmou a possibilidade de criação da reserva por meio de ato infralegal, somente se exigindo lei em caso de supressão ou diminuição de unidade de conservação (CF/88, art. 225, III). Também consignou que foi alcançado o objetivo da consulta pública realizada, o de subsidiar os estudos técnicos para criação da reserva. O argumento de que não haveria previsão orçamentária para indenizar os expropriados foi afastado, considerando que a Constituição não vincula a criação da RESEX à previsão orçamentária para indenizações, além de considerar que haveria transferência de recursos da União para regularização fundiária em favor do IBAMA.

No ponto relativo à ilegalidade das desapropriações, pois seriam destinadas à realização de reforma agrária, o Ministro Relator, acompanhado à unanimidade pelo Supremo Tribunal Federal, afirmou em seu voto: “sob o ângulo da alegada tentativa de proceder-se à reforma agrária, presume-se o extravagante e não o que normalmente ocorre. O decreto da criação da reserva é incompatível com assentamento próprio à citada reforma”.

O STF conclui que o instituto da Reserva Extrativista (Lei do SNUC, arts. 14, IV, e 18) não é compatível com a reforma agrária do ponto de vista constitucional. Em outros termos, o Supremo conclui que não se faz reforma agrária por meio da implantação de uma Reserva Extrativista.

Ao expressar esse entendimento, a Corte Constitucional expressou a sua concepção acerca do que entende sobre reforma agrária. Dessa concepção, é possível defluir algumas premissas teóricas, e a partir delas identificar o paradigma científico em que ela se baseia.

2. A GÊNESE DO ENTENDIMENTO SOBRE REFORMA AGRÁRIA: COMPREENSÃO DE DESENVOLVIMENTO E NOÇÃO DE PRODUTIVIDADE DA TERRA.

A ideia da reforma agrária surge como resposta à concentração de terras gerada pelo liberalismo político e pelo modo de produção capitalista.

Souza Filho[3] considera que, originalmente, a noção de uso da terra era considerada base do direito de propriedade. No entanto, o advento do modo de produção capitalista converteu a terra em mercadoria, desvinculando seu conceito do uso produtivo. A codificação dos Séculos XVIII e XIX consolidou a compreensão da propriedade como um direito absoluto, assim como concebeu o uso como um direito facultativo do proprietário. Isso possibilitou a utilização da terra como reserva de capital, sujeita a especulação, consolidando-a também como principal meio de garantia bancária.

Esse cenário sofre considerável alteração no momento em que os Estados nacionais passam a submeter a propriedade ao desempenho de uma função social. O reconhecimento da função social da propriedade pelo Estado Social faz surgir a obrigação ao proprietário de dar uma destinação específica ao bem, retirando em parte seu caráter de direito absoluto.

O reconhecimento da função social e a descaracterização da propriedade como direito absoluto são pontos de partida da ideia reforma agrária, concebida como mecanismo de redistribuição para evitar o uso especulativo da terra.

No entanto, para contrapor essa nova concepção, a estratégia adotada pelo modo de produção capitalista foi a de inserir a produtividade como uma qualidade do direito de propriedade, especialmente orientada aos objetivos de produção de matérias-primas como insumos para as indústrias e de manutenção de uma fonte de renda mínima para trabalhadores custearem seu consumo de bens produzidos por essa mesma indústria.

Com a inserção da produtividade como uma qualidade do direito de propriedade, manteve-se seu caráter absoluto e obrigou-se juridicamente os proprietários a produzir, sob pena de perda da propriedade por indenização do Estado[4].

A Lei nº 4.504/1964 – Estatuto da Terra[5], ao dispor sobre a reforma agrária em seu art. 16, reconhece como seus objetivos estabelecer um sistema de relações entre o homem, a propriedade rural e o uso da terra, capaz de promover a justiça social, o progresso e o bem-estar do trabalhador rural e o desenvolvimento econômico do país, com a gradual extinção do minifúndio e do latifúndio.

Nota-se a presença do elemento da produtividade como qualidade do direito de propriedade na expressão “desenvolvimento econômico do país”.

A atual Constituição também dá especial relevo ao elemento da produtividade ao vedar a possibilidade de desapropriação para fins de reforma agrária da propriedade produtiva (CF/88, art. 185, II).

É justamente na produtividade que se baseiam os impetrantes do mandado de segurança para declarar a nulidade do decreto de criação da Reserva Extrativista. Argumentam que desenvolvem atividade agropecuária e de extração madeireira no local, portanto produtiva, pelo que suas terras seriam insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária.

Os impetrantes adotam discurso vinculado a uma compreensão que entende desenvolvimento como crescimento econômico. Em outros termos, para os impetrantes, seus imóveis cumprem função social porque auxiliam no crescimento econômico do Município.

Essa compreensão de desenvolvimento ligada à produtividade da terra tem fortes raízes no país, e repercute no modo de atuação do próprio Estado brasileiro.

A participação do Estado brasileiro é determinante na sua manutenção da “territorialidade do capital”, na medida em que os projetos desenvolvimentistas afastam as populações tradicionais da produção e se alinham à ideologia totalizante do mercado. Aos povos tradicionais resta, quando não o etnocídio, sua naturalização com exclusão do mercado, e uma sobrevivência meramente simbólica para as pessoas inseridas no mercado, como meio de legitimação da apropriação de suas terras para produção de produtos “sustentáveis”[6].

Também é característico desse período, assim como a utilização da macrorregião como escala de análise e elaboração de políticas públicas por parte do Poder Executivo Federal, com caráter fortemente centralizador.[7] A adoção da macrorregião como escala afasta a consideração das populações tradicionais e de suas identidades como fator influenciador de políticas públicas.

Paralelamente, os impetrantes adotam o discurso da ecoeficiência como justificativa para o desempenho das atividades econômicas na área, em que a técnica é suficiente para resolução dos problemas ambientais[8].

Isso se alia à crença na ciência como fonte de solução dos problemas ambientais, demonstrando a vinculação da ciência com específicos projetos políticos, ligados mais às necessidades humanas e valores do mercado do que à própria compreensão científica[9].

Na Amazônia, esse cenário é retratado pelo processo de expansão de fronteiras, cujo resultado é a hegemonia da territorialidade do Estado, baseado no centralismo e controle. Essa hegemonia se dá por meio da imposição da lógica da propriedade privada em contraposição à propriedade pública, mas ambas direcionadas à razão instrumental do Estado, seja pela apropriação privada dos bens pelos detentores dos meios de produção, seja pela apropriação do aparato estatal pela burocracia[10].

Ainda, a expansão da fronteira produtiva na Amazônia deixou de ser fomentada pela política de governo interna e passou a ser guiada pelos interesses do mercado internacional, sobretudo no consumo de commodities[11], o que reforça a noção desenvolvimentista econômica como o mote das políticas de Estado.

De tudo que foi exposto, é possível perceber como a decisão do Supremo Tribunal Federal aceita e reproduz essa compreensão de desenvolvimento e de produtividade limitadas ao viés econômico, assim como da propriedade como um direito absoluto.

A criação de uma Reserva Extrativista não se adéqua à noção clássica de direito de propriedade, em que há uma delimitação precisa dos limites do bem. A RESEX se volta à exploração de recursos comuns em uma área por parte de populações tradicionais. Seu objetivo não é somente o de explorar economicamente essa propriedade, mas de garantir a preservação da identidade das populações, por meio da garantia de seu modo de produção próprio e de sua cultura.

No entanto, foge da compreensão do STF que a criação de uma Reserva Extrativista seja um mecanismo para efetivação da reforma agrária. Afinal, a RESEX não redistribui terras em limites definidos, com o objetivo de fomentar a produção e o desenvolvimento nacional, através da exploração econômica da propriedade.

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Isso levou o STF a afastar a alegação de que se estava procurando fazer reforma agrária por meio da criação da RESEX. Assim, foi afastada a alegação de que o Decreto buscaria fazer uma desapropriação para fins de reforma agrária, porque reforma agrária não haveria.

Com isso, o conceito de reforma agrária foi restringido à distribuição de lotes definidos de terra à beneficiários destinados a explorá-los dentro da noção de produtividade econômica, o que não ocorre com a criação de uma RESEX.

Nota-se nessa decisão como o STF limitou um conceito com base em noções anteriores à Constituição de 1988, bem como o usou de maneira inadequada tudo com o intuito de afastar uma alegação dos impetrantes.  O STF não observou todas as possibilidades que o conceito de reforma agrária traz, e o limitou a uma determinada compreensão de propriedade produtiva e de desenvolvimento.

Mas em que consistiria essa atual compreensão de reforma agrária? Seria ela capaz de abarcar o instituto da Reserva Extrativista como um de seus mecanismos?

3. UM NOVO SENTIDO PARA REFORMA AGRÁRIA: A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E O SOCIOAMBIENTALISMO.

A gênese de um novo sentido para o conceito de reforma agrária passa pelo reconhecimento da decadência do paradigma homogeneizador da modernidade.

As críticas a esse modelo principiam no reconhecimento da relatividade de Einstein e na física quântica, que constatou a impossibilidade de observação de um objeto sem alterá-lo. No campo das ciências humanas, vários filósofos verificaram a necessidade de se passar das bases da filosofia da consciência para o reconhecimento do outro como sujeito, de forma contrária ao programa totalizante de homogeneização[12].

A Constituição de 1988 reforça essa mudança ao reconhecer o meio ambiente como objeto de proteção em várias dimensões, não se resumindo somente à natural como abarcando o meio ambiente artificial e o cultural.

Com essa concepção unitária que a Constituição traz entre meio ambiente e cultura, o bem, agora reconhecido como bem ambiental, não incorpora somente os elementos naturais, mas também os culturais, com influência forte do multiculturalismo e do humanismo, em prol da valorização da sociodiversidade[13].

Em consonância com a Constituição, Morin[14] propõe o pensamento ecologizado como uma revolução na compreensão da relação do homem com a natureza. Tem a preocupação de superar a tradição científica ocidental, de separação total do homem para com a natureza, e colocá-lo em seu contexto, baseado num princípio de duplo comando, do homem dirigindo a natureza, e vice-versa. Isso permite a criação de uma nova ética, fundada no respeito à complexidade da organização viva do planeta, assim como do estabelecimento de um novo paradigma, não mais cartesiano, mas o da inclusão recíproca entre homem e natureza, em que o homem não só retira energia do meio para viver como também respeita a organização exterior que lhe fornece essa mesma energia. Esse novo paradigma também se funda o princípio hologramático, que consiste no reconhecimento da organização exterior em toda organização interior, e vice-versa.

Com isso, a noção de função social da propriedade não vinculada exclusivamente à noção de produtividade de bens para o mercado, mas, sobretudo, para manutenção da biodiversidade e da sociodiversidade, elementos base para uma definição constitucionalmente adequada do instituto[15].

O papel das comunidades tradicionais nesse novo paradigma de desenvolvimento é determinante, sobretudo no aproveitamento dos recursos naturais. Ostrom expõe e analisa exemplos práticos de sistemas auto-organizados de gestão de recursos comuns, com usuários capazes de coordenar suas atividades em prol da fruição bem ordenada. Define os usuários de tais sistemas como atores “(…) con demandas de propriedad de largo plazo, que se comunican, desarrollan sus proprios arreglos, establecen posiciones para los monitores y sancionan a aquelleos que no se ajustan a sus reglas[16].

Esse paradigma pós-moderno operou uma mudança na concepção de território na Geografia, passando da antiga consideração centrada no domínio, no poder e no controle para uma ideia de territorialidade vinculada à identidade de grupos, e que o território serve como elo para a formação dessas mesmas identidades[17].

É com base nesses pressupostos que Morato Leite constrói um conceito de Estado de Direito Ambiental, concebido como “(…) conceito e cunho teórico-abstrato que abrange elementos jurídicos, sociais e políticos na persecução de uma condição ambiental capaz de favorecer a harmonia entre ecossistemas e, consequentemente, garantir a plena satisfação da dignidade para além do ser humano[18].

E esse diálogo entre ecologia e direito só pode ser viabilizado com uma evolução da linguagem normativa para atender às peculiaridades do meio ambiente, considerando todas as suas dimensões. Isso pressupõe não só amainar os mecanismos de estabilidade próprios do direito em favor de uma maior flexibilidade de seus instrumentos[19], como também a revisão desses mesmos conceitos.

Igualmente, a RESEX reproduz condições necessárias para o estabelecimento de uma nova sociedade baseada na biomassa, fonte tanto de matérias-primas como de alimento e renda. A RESEX atende aos objetivos de prudência ecológica, relevância social e viabilidade econômica[20].

Logo, um conceito constitucional de reforma agrária que se baste na produtividade é desatualizado, pois não leva em consideração a dimensão socioambiental que a produtividade deve ter.

Daí se afirmar que não há incompatibilidade entre o instituto da Reserva Extrativista com o conceito de reforma agrária, podendo aquele ser um mecanismo deste.

A RESEX é definida pela Lei nº 9.985/2000, art. 18, caput, como “uma área utilizada por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, e tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações, e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade”.

Seus objetivos estão, portanto, ligados à preservação da natureza e do modo de vida das populações tradicionais, e tem por base o extrativismo e a agricultura de subsistência. Todos esses elementos estão de acordo com o texto da Constituição, e com a noção de socioambientalismo.

A RESEX não se limita à produtividade econômica como critério para redistribuição de terras. Pelo contrário, alia produtividade econômica com preservação socioambiental.

Disso deflui uma das mais categóricas afirmações do líder ambientalista Chico Mendes: “a Reserva Extrativista era a reforma agrária dos seringueiros[21].

Então, não há razões para afirmar que não compreende o conceito de reforma agrária a implantação e uma Reserva Extrativista, como faz o Supremo Tribunal Federal. O que o STF compreende como reforma agrária não se sustenta quando confrontado com a Constituição.

CONCLUSÃO.

O Supremo Tribunal Federal, com base em decisão tomada no ano de 2010, ainda reproduz conceito de reforma agrária vinculado à produtividade econômica da terra em lotes delimitados de propriedade, conceito que se adéqua a uma compreensão de propriedade como direito absoluto e direcionado ao crescimento econômico.

A decisão do STF está em descompasso com a concepção constitucional de reforma agrária, a qual não considera a propriedade somente em seu viés econômico, mas como detentora de uma função social a repercutir nas dimensões natural, cultural e social. Enfim, uma função socioambiental da propriedade.

Por isso que não se vislumbram empecilhos para se considerar a criação de Reserva Extrativista como um instrumento de reforma agrária. Todas as dimensões do direito de propriedade, em busca de uma função social aliada ao desenvolvimento humano, não restrito ao desenvolvimento econômico, estão presentes na RESEX.

A decisão do STF é sintomática a respeito de uma prática jurídica desvinculada de uma análise mais acurada dos conceitos jurídicos, caracterizada pelo uso seu estanque, sem evolução. Mais do que isso, trata-se de um uso de conceito dentro do paradigma da modernidade, e de uma lógica orientada a beneficiar o crescimento do mercado como desenvolvimento.

Assim, as estratégias dos gestores públicos com relação ao tema da reforma agrária devem considerar o sentido dado ao conceito pelo Supremo Tribunal Federal, em especial no que concerne à disponibilização de recursos financeiros em espécie para as indenizações em desapropriações, sob pena de se inviabilizar políticas públicas na área.

 

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________. Supremo Tribunal Federal. MS 25284, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 17/06/2010, DJe-149 DIVULG 12-08-2010 PUBLIC 13-08-2010 EMENT VOL-02410-02 PP-00298. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=613326. Acesso em 10 de jul. de 2015.
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Notas:
[1]    BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MS 25284, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 17/06/2010, DJe-149 DIVULG 12-08-2010 PUBLIC 13-08-2010 EMENT VOL-02410-02 PP-00298. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=613326. Acesso em 10 de jul. de 2015.

[2]    BRASIL. Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000. Regulamenta o art. 225, § 1o, incisos I, II, III e VII da Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/leis/L9985.htm. Acesso em 10 de jul. de 2015.

[3]    SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. Função social da propriedade. In: SONDA, Claudia; TRAUCZYNSKI, Silvia Cristina (orgs.). Reforma agrária e meio ambiente: teoria e prática no estado do Paraná. Curitiba: ITCG, 2010, p. 181-197.

[4]    “Para isso, um novo conceito se fazia necessário. Sendo o uso um direito do proprietário, era necessário inventar a produtividade. O que se tinha que exigir não era que o proprietário ou quem que fosse usasse a terra, mas que o proprietário, e só ele, a tornasse produtiva. O uso é um direito, a produtividade é uma qualidade. Isto é, o proprietário teria a obrigação de dar esta qualidade à terra no exercício de seu direito de uso. O sistema estava, como uma única cajadada, resolvendo dois problemas jurídicos: garantir a propriedade absoluta e o uso como direito, e, ao mesmo tempo, criando uma obrigação legal, a de produzir. Já que o capitalismo precisava de terras para produzir matérias-primas ou alimentos, o Estado pagaria o preço ao proprietário inadimplente e próprio capitalismo sairia fortalecido. (SOUZA FILHO, op. cit., p. 190).

[5]    BRASIL. Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964. Dispõe sobre o Estatuto da Terra, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4504.htm. Acesso em 10 de jul. de 2015.

[6]    LEROY, Jean Pierre. Amazônia: território do capital e territórios dos povos. In: AHOURI, Andréa; LASCHEFSKI, Clemens (orgs.). Desenvolvimento e conflitos ambientais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010, p. 92-113.

[7]    “Os segundo e terceiro quartéis do século XX foram marcados pelo forte poder dos Estados Nacionais na indução de economia. Para tanto, desenvolveram o planejamento centralizado, que, em nível espacial, teve como escala ótima de ação a macrorregião. A meta de unificação do mercado doméstico e a necessária negociação com as elites regionais explicam a primazia da macrorregião como fundamento da organização dos sistemas espaciais nacionais”. (BECKER, Bertha Koifmann. Novas territorialidades na Amazônia: desafio às políticas públicas. In: Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciênc. hum. [online]. 2010, vol. 5, n.1, p. 18. ISSN 1981-8122).

[8]    ALIER, Joan Martínez. O ecologismo dos pobres: conflitos ambientais e linguagens de valoração. 1ª ed., 2ª reimpr. São Paulo: Contexto, 2011, p. 265.

[9]    REDCLIFT, Michael R. Os novos discursos de sustentabilidade. In: FERNANDES, Marciolina; GUERRA, Lemuel (orgs.). Contra-discurso do desenvolvimento sustentável. Belém: Associação de Universidades Amazônias, 2003, p. 59-60.

[10]  LITTLE, Paul E. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia da territorialidade. Série Antropologia: Brasília, 2002, p. 2-31.

[11]  LOUREIRO, Violeta Refkalefsky. A Amazônia no Século XXI: novos dilemas e suas implicações no cenário internacional. In: ROCHA, Gilberto de Miranda; MAGALHÃES, Sonia Barbosa; TEISSERENC, Pierre (orgs.). Territórios de desenvolvimento e ações públicas. Belém: EDUPFA, 2009, p. 95-126.

[12]  PEREIRA, Deborah Macedo Duprat de Brito. O Estado pluriétnico. In: PEREIRA, Deborah Macedo Duprat de Brito (org.). Direito dos povos e das comunidades tradicionais. Manaus: UEA, 2007.

[13]  SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e novos direitos: proteção jurídica à diversidade biológica e cultural. São Paulo: Peirópolis, 2005, p. 79-85.

[14]  MORIN, Edgar. Por um pensamento ecologizado. In: CASTRO, Edna; PINTO, Florence. Faces do trópico úmido. Belém: UFPA/NAEA, 1997, p. 53-77.

[15]  SOUZA FILHO, op. cit., p. 181-197.

[16]  OSTROM, Elinor. Reformulando los bienes comunes. In: SMITH, Richard Chase; PINEDO, Danny (edit.). El cuidado de los bienes comunes: gobierno y manejo de los lagos y bosques em la Amazonía. Peru: Instituto del Bien Comun, 2010, p. 54.

[17]  CLAVAL, Paul. O território na transição da pós-modernidade. Paris: GEOgraphia, ano 1, nº 2, 1999, p. 7-25.

[18]  MORATO LEITE, José Rubens; AYALA, Patryck de Araújo. Dano ambiental: do individual ao coletivo, extrapatrimonial. 3ª ed. rev., atual., e ampl. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2010, p. 37.

[19]  OST, François Baron. Ecologia e direito: qual o diálogo?.  In: CASTRO, Edna; PINTO, Florence. Faces do trópico úmido. Belém: UFPA/NAEA, 1997, p. 79-93.

[20]  SACHS, Ignacy. Caminhos para o desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro: Garamond, 2007, p. 29-46.

[21]  PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. Chico Mendes, um ecossocialista. Disponível em http://biblioteca.clacso.edu.ar/ar/libros/osal/osal25/09porto.pdf. Acesso em 10 de jul. de 2015, p. 153.


Informações Sobre o Autor

João Olegário Palácios

Mestrando em Direitos Humanos e Meio Ambiente pela Universidade Federal do Pará. Procurador do Estado do Pará


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