O Mercador de Veneza e a teoria dos contratos

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Resumo:   O presente artigo objetiva analisar a obra de “O Mercador de Veneza” e sua possível relação com o Direito, a fim de se apropriar dos conhecimentos essenciais para a construção de um pensamento jurídico-crítico, que objetiva chegar na ideia de uma possível relação com a Teoria dos Contratos. A investigação parte inicialmente de uma síntese da obra e, em seguida, para a análise histórica em que o enredo se desenvolve. Com essas ideais, é que se faz uma conexão entre a obra em questão, a Teoria Geral do Direito e, finalmente, com a Teoria dos Contratos.

Palavras-chave: Mercador de Veneza. Teoria Geral do Direito. Teoria dos Contratos.

Abstract: his article analyzes the work of "The Merchant of Venice" and its relation to the law, in order to appropriate the knowledge essential to building a legal and critical thinking, which aims to get the idea of a possible relationship to the Theory of Contracts. The first part of the research work of synthesis and then for historical analysis on the plot develops. With these ideals, is that it makes a connection between the work in question, the General Theory of Law and, finally, with the Theory of Contracts.

Keywords: Merchant of Venice. General Theory of Law. Theory of Contracts.

Sumário: Introdução. 1. Uma ideia geral sobre o filme “O Mercador de Veneza”. 2. O contexto histórico da obra “O Mercador de Veneza”. 3. Relações percebidas entre o filme “O Mercador de Veneza” e o conteúdo da Teoria Geral do Direito. 4. Análise do livro “O mercador de Veneza” à luz da Teoria dos Contratos. Considerações Finais. Referências Bibliográficas.

Introdução

O presente artigo objetiva analisar o filme “O Mercado de Veneza” como referência para uma análise de seu conteúdo e uma possível relação e construção crítica em relação à Teoria Geral dos Contratos, objetivando assim, por meio da arte cinematográfica, firmar possíveis aprendizados que estão relacionados com esse ramo do Direito.

Com esse propósito, o trabalho é construído, portanto, em quatro partes.

Na primeira parte, apresenta-se uma síntese do filme, de modo que, de maneira e conectada e coerente, permita uma conexão com o momento histórico, no qual o enredo do filme se encontra inserido. Diversas partes da história, as quais nada ou pouco contribuem para a discussão aqui presente, foram suprimidas, com vistas a não alongar desnecessariamente o texto ou fugir do enfoque sobre a ideia principal do enredo.

Superada essa fase inicial, analisou-se o contexto histórico da época na qual a obra foi realizada, incluindo temas como ideologia, aspectos sociais, economia, relação da obra com o meio jurídico bem como as influências que a obra shakespearina recebeu outra obra produzida nessa época.

Após essa contextualização à época da obra, na terceira parte do trabalho, utiliza-se o raciocínio até então desenvolvido para subsidiar uma análise mais detalhada sobre a obra, precipuamente a relação desta com o conteúdo da Teoria Geral do Direito.

Por fim, com o intuito de arrematar o presente trabalho, analisou-se o contrato feito entre os dois personagens protagonistas da obra, Antonio e Shylock, à luz da Teoria dos Negócios Jurídicos, fazendo um paralelo entre o histórico remoto e o atual, notadamente quanto aos planos de existência e validade, dada a complexidade da temática.

1. Uma ideia geral sobre o filme “O Mercador de Veneza”

A história de O Mercador de Veneza se passa, obviamente, em Veneza, no século XIV. Nessa época, a cidade era uma das mais prósperas e ricas do mundo, e um grande anti-semitismo contaminava seus habitantes. A razão de os judeus serem tão odiados – além da mera diferença de crença – era o fato de eles praticarem usura (empréstimo a juros). O ódio era tão forte que os judeus foram confinados à periferia, ao gueto. Só podiam ir à cidade no período da manhã e somente se usassem um gorro/chapéu vermelho, para serem identificados como judeus.

Ao início, apresenta-se Antonio, um rico mercador, considerado um bom homem pelos Venezianos. Ao momento da história, está a sofrer de uma inexplicável depressão e tem sua fortuna investida em navios mercantes que viajam por águas estrangeiras. Como é de se esperar, nutre um forte anti-semitismo dentro de si.

Antonio logo é visitado por seu grande amigo Bassanio, um nobre jovem veneziano que gastou prodigamente muito de sua herança. Com isso, tem muito de sua vida financiada por doações/empréstimos de Antonio. Bassanio traz notícias de sua última aventura: viajou a uma região chamada de Belmonte e tomou conhecimento de Portia, uma linda, inteligente, solteira e rica herdeira. O caso é que, antes de morrer, seu pai determinou que ela não poderia recusar qualquer pedido de casamento. Ao invés, quem desejasse se casar com ela deveria escolher entre três baús – um de ouro, um de prata e outro de chumbo. Se o pretendente escolhesse o certo, casaria com a herdeira. Caso errasse, além de não ganhar a mão de Portia, não poderia se casar com qualquer outra pessoa até o fim de sua vida.

A razão da visita de Bassanio é que este busca se casar com Portia, e, para tal, precisa (novamente) de dinheiro. Contudo, as riquezas de Antonio estão no mar. Logo, o que este pode e faz por seu grande amigo é dá-lo seu crédito, para que contraia um empréstimo de algum outro mercador, o qual acaba por ser Shylock, um mercador e usurário judeu.

A este é pedido o empréstimo de 3.000 ducats, por três meses, com Antonio como fiador do contrato. Porém, este, devido a seu denso anti-semitismo, costuma ofender – até mesmo cuspir – o judeu, além de emprestar dinheiro sem juros, machucando seus negócios. Portanto, Shylock decide por só  emprestar o dinheiro se a multa pela inadimplência for uma libra da carne de Antonio. Devido à aposta forte no retorno de suas embarcações, este aceita sem preocupação a proposta, e o contrato é assinado. 

Em seguida, conhece-se  Jessica, filha única de Shylock, que mora com ele, porém o odeia, razão pela qual planeja fugir com seu amado, Lourenzo – cristão e amigo de Bassanio e Antonio. Enquanto seu pai encontra-se, relutantemente, em um banquete com estes, Jessica escapa com seu pretendente, levando consigo uma enorme parte da fortuna de seu genitor. À mesma noite, Bassanio parte para Belmont, determinado em conquistar Portia. 

Quando chega a seu lar, ainda durante a noite do banquete, Shylock é levado aos prantos por descobrir a fuga de sua filha e roubo de sua fortuna. Ademais, ele toma conhecimento da razão de sua filha fugir (casar com um cristão), fato que o destrói ainda mais.

Passam alguns dias e Antonio também sofre grandes infortúnios: correm notícias de que todas suas embarcações estão afundando, destruindo, pois, seus meios de pagar Shylock. Este, ainda louco pelo “roubo” de sua filha por um cristão, fica loucamente determinado a retirar a prometida carne de Antonio, e, assim, vingar seus maus tratos vividos.

Nesse meio tempo, em Belmonte, Bassanio torna-se o primeiro pretendente a escolher o baú correto, casando-se com Portia. Paralelamente, um de seus amigos que o acompanhava, Gratiano, casa-se com Nerissa, criada de Portia. Ao receberem a notícia da triste situação de Antonio, os esposos decidem prontamente retornar a Veneza, e partem com vinte vezes o valor devido, quantia essa dada por Portia. E, sem o conhecimento de seu marido, esta e sua criada arquitetam e começam a executar um plano ardiloso, qual seja: se disfarçar como advogados e ajudar na defesa do mercador.

Avança-se, então, para o dia do julgamento, o qual é realizado em uma corte de Veneza, tendo o Doge (o dirigente máximo da República de Veneza) como julgador final. Muitos dos espectadores presentes pedem misericórdia a Shylock, mas este, louco como está, escuta somente a seu desejo de vingança, ou, para ele, justiça (pois, no entendimento do judeu, a execução do contrato é o único modo justo de se resolver a situação). Mesmo quando Bassanio chega à corte e o oferece 6.000 ducats, Shylock não desiste do litígio.

Porém, logo após todas as ofertas serem recusadas e todos estarem prontos para a sentença do Doge, adentram a corte dois jovens juristas: Balthazar e Stephano. Este, Nerissa, aquele, Portia, ambas agindo conforme antes planejado.  A primeira arguição de Balthazar em prol de Antonio é baseada no valor da misericórdia: esta se sobrepõe à justiça e lei humana, além de “abençoar tanto quem a dá quanto quem a recebe”. Tais argumentos também foram incapazes de apaziguar os ânimos do mercador, o qual continua a exigir sua multa em forma de carne. O Doge, sabendo que negar o pedido de Shylock enfraqueceria o direito veneziano, se vê de mãos atadas e concede sua sentença favoravelmente a este, que se prepara para cobrar sua dívida naquele mesmo local e hora.

Contudo, a meros instantes da execução da sentença, Balthazar encontra uma falha crucial no contrato em questão: Antonio acordou em ter somente sua carne retirada, não fazendo menção alguma a qualquer gota de sangue. Além disso, resta explicitada a quantia exata de uma libra, não menos, não mais. Ou seja, caso Shylock ocorresse em derramar qualquer sangue de seu rival, ou retirasse qualquer quantia que não pesasse uma exata libra, todos seus bens seriam confiscados. Isso porque ficaria caracterizada uma tentativa de homicídio de um cristão, a qual, pelas leis venezianas, tem como pena a sanção acima descrita.

Vendo-se derrotado, o judeu decide aceitar as ofertas monetárias, mas é informado de que não há mais tal possibilidade, devido a sua própria escolha de anteriormente recusá-las. Ademais, por consequência de, legalmente, judeus serem estrangeiros em Veneza, no instante em que pregou por executar o contrato, metade de seus bens foram confiscados ao Estado, outra metade a Antonio, e sua vida ficou à disposição do Doge, pois tal é a pena para o estrangeiro que tenta tirar a vida de um cidadão Veneziano. A vida de Shylock é poupada pelo Doge, bem como Antonio abre mãos de seus bens, porém isto sob uma condição: deveria ele se converter ao cristianismo, além de que, após sua morte, seus bens seriam doados a Lourenzo e Jessica. Brutalmente derrotado e desesperado, rende-se e renega ao judaísmo, levando repúdio a seus iguais.

A história termina, pois, no tradicional “feliz para todos”, a não ser por Shylock. De volta a Belmonte, Antonio descobre que algumas de suas embarcações completaram suas missões, retornando com grandes lucros; Portia e Nerissa revelam a seus maridos suas atuações, surpreendendo-os. Estes se deitam felizmente com suas esposas, assim como Lourenzo e Jessica encontram-se em pura felicidade e amor. Já o ex-judeu, além de continuar severamente machucado pela fuga da filha, agora se vê exilado de seu próprio povo e ainda mais odiado pelos cristãos.

2. O contexto histórico da obra “O Mercador de Veneza”

O filme “O Mercador de Veneza” foi inspirado no livro homônimo escrito por William Shakespeare no século XVI. Além de ser muito conhecido por causa do prestígio de seu autor, o filme conta com grandes nomes do cinema como Al Pacino e Jeremy Irons, e um rico contexto histórico, pois este se passa em uma das maiores cidades da época, Veneza. Em um século de transição entre sistemas econômicos e políticos – houve um fortalecimento das cidades e do comércio, do ouro como moeda de troca e os senhores feudais passaram a perder poder –, aborda também diferentes religiões e costumes.

Embora “O Mercador de Veneza” seja uma obra literária, a história influenciou várias áreas do conhecimento, sendo que, no presente trabalho, o enfoque será dado no âmbito jurídico.

O cenário do filme é Veneza, em 1569, portanto, segunda metade do século XVI. Desde o século IX, aproximadamente, Veneza foi um dos polos mercantis do mundo, dada sua especialidade em transporte marítimo. Na Idade Média, especificamente na Baixa Idade Média, Veneza foi uma das poucas cidades que permaneceu ativa, e, devido a essa constante transação de mercadorias, serviu de fonte para o contato de pessoas vindo de lugares diferentes, fomentando a diversidade cultural e o pensamento liberal, em relação ao conservadorismo do cristianismo – religião dominante na época. Esse contexto histórico é evidente nas palavras de Ronaldo Vainfas

“[…] Através das rotas comerciais vinham especiarias tecido da Índia e da China. Essas mercadorias chegavam ao Mediterrâneo pelo mar Vermelho, costeando o Egito, ou pelo mar Negro, atravessando os estreitos Bósforo e Dardanelos. Foi um tempo glorioso para os mercadores da península Itálica, sobretudo os de Gênova e Veneza, que revendiam tecidos orientais e especiarias – como cravo, noz-moscada, canela e pimenta – ao restante da Europa.”[1]

Além disso, Veneza abrigou vários intelectuais e em alguns casos foi uma das primeiras províncias a aderir a ideias pouco convencionais naquela época. Um exemplo é o próprio conceito de Estado de Direito.

No século XVI, os Estados Nacionais estavam em formação na Europa, sendo, portanto, recente a defesa de um Estado baseado na lei, na defesa dos cidadãos em face da nobreza e da segurança jurídica. Tais conceitos, por sua vez, complementam-se reciprocamente e se fazem presente na obra “O mercador de Veneza”, precipuamente no julgamento executório do personagem Shylock perante o personagem Antonio.

Uma das características dessa cidade é possuir a economia voltada para o comércio, o qual dá extrema importância ao cumprimento dos acordos firmados. Em sua esfera jurídica, por exemplo, caso o Tribunal não obrigasse a execução de um contrato, haveria resultado de insegurança jurídica e, consequentemente, econômica, prejudicando, desse modo, os investimentos comerciais. Como resultado dessa atitude jurídica, a cidade era reconhecida não somente pelas transações comerciais, mas também por se um lugar seguro para se firmar acordos. Dessa maneira, é observado no filme que este é um dos argumentos usado pelo personagem do judeu para que seu contrato seja executado.

Outro aspecto relevante do contexto histórico do livro o qual deu base para o filme “O Mercador de Veneza” é que, segundo Maria da Rosa, seu autor pode ter sido influenciado pela obra “O Judeu em Malta”. Esse livro foi escrito entre 1589 e 1590 por Christopher Marlowe, a obra trata sobre um judeu ganancioso e com desejo de vingança. Posto isso, torna-se evidente a semelhança entre o judeu do livro “O Mercador de Veneza” e do “O Judeu em Malta”, ademais, é possível perceber que elaborar um personagem judeu e com algumas características negativas em uma obra não foi uma ideia original de Shakespeare, e, sim, uma estigmatização presente na sociedade europeia. Desta maneira, entender o contexto histórico em que foi escrito o livro se mostra imprescindível para compreender os temas abordados neste.

3. Relações percebidas entre o filme “O Mercador de Veneza” e o conteúdo da Teoria Geral do Direito

Uma vez já realizada a contextualização do período histórico em que se situa a trama, faz-se necessário estabelecer uma relação entre o conteúdo da Teoria Geral do Direito e a história concebida por Shakespeare.

A obra “O mercador de Veneza” de Shakespeare, muito antes da adaptação cinematográfica, já levantava questões muito interessantes mas igualmente difíceis de serem respondidas, perguntas universais com as quais juristas de todas as épocas lutaram e ainda lutam na tentativa de achar uma resposta correta, se é que existem respostas corretas em um mundo baseado em valores como é o do direito. Inicialmente, a discussão mais latente que se pode abstrair dessa história é aquela acerca das relações entre “direito e justiça”.

Na história, como se sabe, celebra-se um contrato no qual um judeu, conhecido como Shylock, cede a um veneziano, chamado Antônio, 3 mil ducados, com a condição de que, caso Antônio não conseguisse retornar a quantia no tempo estabelecido, Shylock teria o direito de arrancar do corpo de seu devedor 1 quilo de carne de qualquer parte do corpo de Antônio. No momento do julgamento, entretanto, Pórcia, disfarçada de um juiz, consegue persuadir o doge de Veneza e Shylock, além de não conseguir o pedaço de carne que tanto desejava, ainda perde suas posses e deve escolher entre se tornar cristão ou ser condenado à morte.

Com essa pequena contextualização feita, pode-se perceber que a questão posta é bastante profunda, pois será que a decisão tomada em favor do mercador de Veneza foi realmente a decisão mais justa?

Alysson Mascaro[2] apresenta algumas ideias sobre o que seria uma decisão justa, sendo, uma das respostas, a de que a decisão justa é aquela abstraída a partir da norma positiva.

Rudolf Von Ihering argumenta que a decisão foi injusta, pois, em suas próprias palavras: “desde o momento em que a lei de Veneza declarava válido um escrito daquela natureza, o judeu era porventura um patife porque tirava partido dele?”.[3] Ihering segue questionando que: “Tenho eu porventura exagerado sustentando que o judeu se vê aqui defraudado no seu direito? Certamente tudo isso se faz no interesse da humanidade, mas a injustiça cometida no interesse da humanidade deixa por isso de ser uma injustiça?”[4]

No entanto, Norberto Bobbio, realiza, em sua obra “A Era dos direitos”, uma belíssima defesa contra a pena de morte que pode ser adaptada para o caso aqui analisado.[5] Segundo Bobbio, a principal base argumentativa dos defensores da abolição da pena de morte é a de que ela não é útil como meio de prevenção de crimes, enquanto que os defensores da pena capital apontam que, dependendo do crime cometido, não existe nenhuma pena tão justa quanto tirar a vida do indivíduo que o cometeu. Percebe-se que o principal ponto dos abolicionistas é a utilidade da pena, enquanto que para os não-abolicionistas é a justiça da mesma. Bobbio aproxima o problema de um ângulo bastante inusitado, ele afirma que a pena de morte é um erro, não porque ela seja injusta ou porque ela não é o melhor meio de se prevenir crimes, mas porque em sua experiência jurídica uma das coisas que ele melhor compreendeu é que violência gera violência. Ora, olhando-se a questão da justiça posta em “O mercador de Veneza”, sob a perspectiva de Bobbio, chega-se à conclusão de que a decisão mais justa que poderia ter sido tomada assim o foi, uma vez que se impediu um ato incalculavelmente mais violento que o não pagamento de uma dívida.

Ainda na questão da justiça, e que pode visivelmente ser percebido ao confrontar a opinião dos dois juristas acima, é o seu caráter histórico. Se em tempos passados era permitida a ideia de que seria injusta a decisão de não deixar um homem tirar um pedaço de carne de outro em função do não pagamento de uma dívida, essa mesma visão jamais poderia ser acolhida no atual universo jurídico, especialmente levando em conta a grandiosa evolução que a proteção dos direitos humanos obteve nos ao longo dos últimos 50 anos.

Outro aspecto que pode ser abstraído no filme é a relação entre decisão jurídica e argumentação. Alysson Mascaro[6] apresenta duas teorias acerca de como funciona um processo decisório: a primeira indica que a decisão é uma mera subsunção, ou seja, uma aplicação mecânica das normas ao caso analisado, enquanto que a outra teoria afirma que a decisão jurídica busca,  acima de tudo, o convencimento das partes e do restante da sociedade, então mais do que um mero processo lógico de aplicação de normas e técnicas ao caso, a decisão usa mais de lugares comuns, ou topois, o que dará origem ao termo argumentação tópica.

Analisando as teorias e comparando-as ao caso que ocorreu na história percebe-se que a decisão final do doge de Veneza, de salvar Antônio e tirar todos os bens de Shylock, se baseou muito mais no poder que este possuía de ir além das leis e no convencimento de todos os presentes que a lei poderia ser dobrada com o objetivo de se impedir uma calamidade, fato que não ocorreria se a decisão jurídica fosse meramente uma subsunção, isso é, uma aplicação automática da norma ao caso.

Ainda nessa questão da decisão, uma ponderação muito pertinente que deve ser feita é a seguinte: caso Shylock não fosse um judeu mas sim um cristão, e caso Antônio não fosse um cidadão respeitado mas um moribundo qualquer, a decisão final teria sido a mesma? Esse tipo de questionamento não é capaz de obter uma resposta absolutamente correta, mas é possível fazer suposições, sendo que, provavelmente, a decisão teria sido outra.

Essa constatação demonstra a relação muito próxima que existe entre a visão social de mundo que o jurista possui, seus preconceitos, ideologias, utopias e crenças, com as decisões que ele toma ao longo de sua carreira, uma vez que, levando em consideração as questões sociais da época, é muito mais fácil para o Doge passar por cima do direito de um judeu, devido à longa tradição de perseguição à essa religião, do que o seria caso fosse o reclamante um cristão, sujeito com quem compartilharia a mesma fé.

Há que se recordar, ainda, da hermenêutica. No filme, a esposa de Bassânio, Pórcia, traveste-se de um juiz e vai para o julgamento, no lugar do juiz oficial, com o objetivo de salvar o amigo de seu marido da morte certa nas mãos de Shylock.

Uma vez no local do julgamento Pórcia argumenta que o contrato estabelecido entre Shylock e Antônio proporciona ao primeiro 1 quilo de carne do segundo, mas não lhe dá direito ao sangue do corpo de Antônio, consequentemente, se Shylock arrancasse seu pedaço de carne, mas derramasse uma única gota de sangue de seu devedor, ele próprio estaria infringindo a lei.

Levando-se em conta o brocado jurídico tradicional de que “o contrato faz lei entre as partes”, pode-se perceber claramente que Pórcia se utilizou de técnicas hermenêuticas na análise dessa lei estabelecida entre Shylock e Antônio.

Dentro das diversas classificações propostas por Limongi as técnicas hermenêuticas que mais se aproximam das utilizadas no caso são a interpretações restritiva e gramatical, sendo esta última porque Pórcia levou em conta somente o que estava expressamente posto na “letra de lei” presente no contrato, e a primeira porque, embora não esteja presente no contrato, a presença do sangue se encontra implícita.

Essa posição é apoiada por Ihering que, ainda na introdução de seu livro “A Luta pelo Direito”, postula que a técnica utilizada por Pórcia não passa de uma perfídia, uma vez que não existe possibilidade de se cortar um pedaço de carne sem que não haja sangue e, consequentemente, o direito de retirar parte do sangue de Antônio se encontra subentendido.[7]

 Em resumo, a interpretação gramatical de Pórcia foi tão extrema, que restringiu a “mens legislatoris” das partes que realizaram o contrato.

4. Análise do livro “O mercador de Veneza” à luz da Teoria dos Contratos

Em primeiro lugar, o contrato, conforme leciona Carlos Roberto Gonçalves, é uma espécie do gênero “negócio jurídico”, que depende, para a sua formação, da participação de duas partes, as quais elaboram “um acordo de vontades, na conformidade da lei, e com a finalidade de adquirir, resguardar, transferir, conservar, modificar ou extinguir direitos”[8].

Ademais, dentre os princípios fundamentais do direito contratual, os mais relevantes nessa discussão são o princípio da autonomia de vontade e da obrigatoriedade dos contratos, sendo que o primeiro é o fundamento da ampla liberdade contratual, abrangendo o direito das partes estipularem cláusulas, obrigações e direitos a fim de realizarem, ou não, o contrato, enquanto que o segundo princípio, por sua vez, também nominado como princípio da intangibilidade dos contratos[9], é a força vinculante que surge do negócio pactuado, o dever de obrigatoriedade para com a ordem jurídica vigente, personificada na máxima pacta sunt servanda (i.e., os pactos devem ser cumpridos). Em outras palavras, em um primeiro momento, as partes possuem ampla liberdade para estipularem as condições que lhe cabiam, assinar o contrato ou não, entretanto, uma vez assinado em conformidade legal, esse contrato terá força obrigatória tutelada pela esfera jurídica, devendo, portanto, ser cumprido.

Posteriormente, cumpre transcrever trechos do livro “O Mercador de Veneza” para situar claramente ao tema:

“Portia de Belmonte é uma dama jovem e bela, além de rica e virtuosa possuidora de muitos admiradores, entre os quais se encontra Bassanio. Pobre, embora sendo da nobreza veneziana, Bassanio vê-se obrigado a recorrer ao auxílio de Antonio […] rico mercador e velho amigo. Este se dispôs a emprestar-lhe 3 mil ducados pelo prazo de 3 meses, segundo lhe fora pedido, porém, não tendo no momento toda a quantia necessária, foi pedir dinheiro a Shylock, judeu rico que fazia empréstimos monetários. Shylock vê a ocasião para vingar-se de Antonio por quem guardava ódio antigo, sem contudo revelar seus propósitos sinistros. Concordava, portanto, como empréstimo sem juros, desde que o mercador aceitasse assinar um contrato, no qual estaria estipulado que, se não fosse pago, Shylock teria o direito de exigir um libra de carne, que seria cortada de qualquer parte do corpo de agrado do credor […]”[10]

Desta forma, vê-se que no plano existencial foram satisfeitas as condições, visto que ambos os agentes manifestaram suas vontades (Antonio com o intuito de ajudar o amigo e Shylock almejando vingança), em torno de objetos (3 mil ducados e 1 libra de carne) e em conformidade com direito daquela época[11].

Entretanto, conforme ressaltado por Leonardo Gomes[12], indaga-se: o empréstimo de 3 mil ducados, cuja garantia seria 1 libra de carne, seria válido?

Neste ponto, urge ressaltar que a atemporal doutrina desenvolvida por Pontes de Miranda (a chamada “Escada Pontiana”[13]) é adaptável a essa análise porquanto que são condicionantes presentes expressa ou implicitamente nos negócios jurídicos. Igualmente, é notório que o plano da validade corresponde à legitimidade dos elementos existenciais, de sua conformidade, validade, com ordenamento jurídico.

Feita essa digressão, identifica-se que a obra em questão foi elaborada originariamente em 1596-1597, em uma época, anterior à Revolução Francesa, na qual a autonomia da vontade era tida como inviolável. Para Leonardo Gomes:

“[…] conforme a posição demonstrada na obra,  Shylock, Antonio, bem como o Doge e Baltasar achavam e tinham a convicção que cada um deve respeitar inviolavelmente a sua palavra, ou seja, aquilo a que se comprometeu no contrato. De acordo com esta visão, e diante de toda sua clareza, a liberdade dos intervenientes mantém-se intocada até à chegada da conclusão (instantânea) do contrato a qual será seguida pela fase de sua execução, mera realização das virtualidades nele contidas”[14].

Esse entendimento é confirmado em outros pontos da obra, estando presente inclusive na decisão final do “juiz”: (Portia) “Uma libra de carne desse mercador te pertence. O tribunal te adjudica essa libra e a lei ordena que ela te seja dada”[15].

Em contraste, caso a supracitada situação ocorresse nos dias atuais brasileiros, ela seria flagrantemente inválida, pois feriria o requisito manifestação de boa-fé e objeto lícito e possível, visto que, no primeiro caso, o comerciante judeu inegavelmente agiu de má-fé, consoante se depreende o seguinte trecho: “(Shylock) Como se parece com um hipócrita publicano! Eu o odeio […] se um dia conseguir agarrá-lo, saciarei o velho ódio que sinto por ele!” [16]. Assim sendo, Shylock tinha o intuito de se vingar de seu antigo conhecido, infringindo, pois, o artigo 14 do CPC (“CPC/Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo: II – proceder com lealdade e boa-fé”). Quanto à infração ao objeto lícito e possível, não é necessário tecer pormenores haja vista que tal ato seria indubitavelmente inconstitucional aos nossos princípios fundamentais, especificamente ao fundamento da Dignidade da Pessoa Humana.

Por fim, outro dispositivo impeditivo a essa conduta seria o princípio da socialização, adotado pelo legislador do Novo Código Civil, em contraposição ao individualismo do Código de Beviláqua. Nesse princípio, nos dizeres de Carlos Roberto Gonçalves, “reflete a prevalência dos valores coletivos sobre os individuais, sem perda, porém, do valor fundamental da pessoa humana”[17]. Consonância esta prevista no artigo 421 do Código Civil: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.

Destarte, na precisa síntese do mestre civilista,

“a função social do contrato constitui, assim, princípio moderno a ser observado pelo intérprete na aplicação dos contratos. Alia-se aos princípios tradicionais, como os da autonomia da vontade e da obrigatoriedade, muitas vezes impedindo que estes prevaleçam.”[18]

Nota-se, portanto, uma verdadeira conexão entre o filme “O Mercador de Veneza” e a Teoria Geral dos Contratos, de forma a se elucidar, por meio da obra cinematográfica, a visualização entre os seus elementos de conexão.

Conclusão

Por meio da obra cinematográfica “O Mercador de Veneza”, pode-se notar uma intensa e proveitosa relação entre esta e os conteúdos jurídicos, de tal forma a se perceber como podem ser engendradas as relações no pretenso Estado de Direito.

Foi possível também apreciar, sob a ótica dos direitos humanos e do princípio da dignidade da pessoa humana, a relação que se pode fazer do filme com a Teoria Geral do Direito, especialmente na relação entre “Direito e Justiça”, bem como da argumentação tópica e sua relação com o poder de decisão, onde também se encontra inserida a hermenêutica jurídica.

Sob a perspectiva da Teoria Geral dos Contratos, foi possível perceber ainda a noção de negócio jurídico e, especificamente, a de contrato, em sua recomendação de uma perspectiva mais social.

Nota-se, portanto, que a obra cinematográfica em questão pode auxiliar na compreensão das noções mais elementares do direito, sob a perspectiva da Teoria Geral de Direito, mas também (e especialmente) das noções elementares do Teoria Geral dos Contratos.

Referências
AQUINO, Leonardo Gomes. “O Mercador de Veneza: Uma visão do contrato celebrado entre Shylock e Antonio”. Disponível em: <http://conteudojuridico.com.br/artigo,o-mercador-de-veneza-uma-visao-do-contrato-celebrado-entre-shylock-e-antonio,22407.html>. Acesso em 20 jan 2015.
BOBBIO, Norberto. O debate atual sobre a pena de morte. In: A Era dos Direitos. 19. ed. São Paulo: Campus, 2004. Tradução de: Carlos Nelson Coutinho.
DA ROSA, Maria Eneida Matos. A estética da crueldade em “Judeu de Malta”. Porto Alegre: EdiPUCRS, s/d. Disponível em: <http://www.pucrs.br/edipucrs>. Acesso em 20 jan 2015.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro, volume 3: Teoria dos contratos e atos unilaterais. São Paulo: Saraiva, 2012.
SHAKESPEARE, William. O mercador de Veneza. 2ª edição (trad. Fernando Carlos Medeiros e Oscar Mendes). São Paulo: Martin Claret, 2013.
VAINFAS, Ronaldo…(et al.) HISTÓRIA: volume único.. Saraiva: São Paulo, 2010.
VON IHERING, Rudolf. A luta pelo Direito. 8. ed. São Paulo: Martin Claret, 2013.
 
Notas:
[1] VAINFAS, Ronaldo. (et al.) História. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 129.

[2] MASCARO, Alysson. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Atlas, 2012.

[3] VON IHERING, Rudolf. A luta pelo Direito. 8. ed. São Paulo: Martin Claret, 2013. p. 19.

[4] Ibidem. p. 18

[5] BOBBIO, Norberto. O debate atual sobre a pena de morte. In: A era dos direitos (Tradução de: Carlos Nelson Coutinho). 19. ed. São Paulo: Campus, 2004. p. 164-185.

[6] MASCARO, Alysson. Introdução ao estudo do direito, cit.

[7] VON IHERING Rudolf, ob.cit. pág. 19

[8] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro, volume 3: Teoria dos contratos e atos unilaterais. São Paulo: Saraiva, 2012, pg. 53.

[9] Ibidem. 123.

[10] SHAKESPEARE, William. O mercador de Veneza. 2ª edição (trad. Fernando Carlos Medeiros e Oscar Mendes). São Paulo: Martin Claret, 2013, pg. 07.

[11] “(Shylock) Vinde comigo a um notário, lá assinareis simplesmente uma caução.[…] (Antonio) Por minha fé, estou de acordo; assinarei a caução e direi que há muita generosidade no judeu”. Shakespeare, William. Ob. cit., pg 34-35.

[12] Mestre em Ciências Jurídico-Empresariais, pós Graduado em Ciências Jurídico-Processuais e Ciências-Empresariais, sendo todos os títulos pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra(Portugal). Especialista em Direito Empresarial. Professor Universitário na área de Direito Comercial no Unieuro.

[13] Deve-se a Pontes de Miranda, conforme ressalta Flávio Tartuce e Pablo Stolze em suas respectivas obras, a esquematização teórica do negócio jurídico em “planos” ou “escadas”: existência, validade e eficácia.

[14] “O mercador de Veneza: uma visão do contrato celebrado entre Shylock e Antonio”, disponível em: <http://conteudojuridico.com.br/artigo,o-mercador-de-veneza-uma-visao-do-contrato-celebrado-entre-shylock-e-antonio,22407.html>. Acesso em: 17 jan 2015.

[15] SHAKESPEARE, William, ob. cit., pg. 105.

[16] Idem, pg. 31.

[17] GONÇALVES, Carlos Roberto, ob. cit., pg. 60.

[18] Idem, pg. 62.


Informações Sobre os Autores

Carlos Eduardo Silva e Souza

Doutor em Direito pela Faculdade Autnoma de Direito de São Paulo; Mestre em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso; Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso; Líder do Grupo de Pesquisa Direito Civil Contemporneo da FD/UFMT; Sócio-Diretor do Escritório Silva Neto e Souza Advogados

Bruno Henrique Morais de Oliveira

Acadêmico da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso; Membro do Grupo de Pesquisa Direito Civil Contemporâneo da FD/UFMT

Fernando Flores Fanaia

Acadêmico da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso

Gabriela Araújo Ubirajara

Acadêmica da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso

Saulo Niederle Pereira

Acadêmico da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso


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