Os reflexos da Lei brasileira de inclusão da pessoa com deficiência no Direito Civil brasileiro

Autor: Bruno Ferreira Lima – Acadêmico do Curso de Direito da Universidade Brasil – e-mail: [email protected]

Orientador: Érica Molina Cristina dos Santos – Profª. Orientadora do Curso de Direito da Universidade Brasil – Especialização em Direito Civil e Processo Civi – Mestre em Ciências Ambientais – email: [email protected]

Resumo: Subjugados pelo Estado e pela sociedade, durante muito tempo, as pessoas com deficiência tiveram seus clamores coletivos por reconhecimento e espaço social suprimidos. Mas como resultado de mais de 50 anos de lutas e reivindicações, notáveis avanços legislativos foram alcançados por tais pessoas no Brasil. Nesse compasso, o presente artigo tem como escopo a análise da Lei de Inclusão da Pessoa com Deficiência ou Estatuto da Pessoa com Deficiência, de 2015, e seus efeitos no Direito Civil brasileiro. Para tanto, será estuda a evolução histórica do tema, com ênfase na histórica abertura política que ocorrera no findar da década de 1970, para que se compreenda as motivações e desmembramentos sociais e legislativos que ocasionaram no surgimento da referida lei. Em seguida, analisar-se-ão as mudanças trazidas pelo nos dispositivos, referentes ao tema, do código privado. Por fim, discorreremos acerca dos impasses a serem enfrentados para a efetiva inclusão dessas pessoas, em todos os aspectos.

Palavras-chave: Lei de Inclusão. Estatuto. Pessoa com Deficiência. Reflexos no Direito Civil.

 

Abstract: Subdued by the State and society for a long time, people with disabilities had their collective claims for recognition and social space suppressed. But as a result of more than 50 years of struggles and demands, notable legislative advances have been achieved by such people in Brazil. In this context, the present article aims to analyze the Law of Inclusion of Persons with Disabilities or the Statute of Persons with Disabilities, 2015, and its effects on Brazilian Civil Law. To this end, the historical evolution of the theme will be studied, with an emphasis on the historical political opening that had occurred at the end of the 1970s, in order to understand the social and legislative motivations and dismemberments that caused this law to emerge. Then, the changes brought about by the devices, referring to the theme, of the private code will be analyzed. Finally, we will discuss the impasses to be faced for the effective inclusion of these people, in all aspects.

Keywords: Inclusion Law. Statute. Disabled Person. Reflexes in Civil Law.

 

Sumário: Introdução. 1. Síntese da eclosão histórica dos movimentos de PCD no Brasil e suas repercussões política e legislativa. 1.1 Evolução histórica da abertura política. 1.2 Evolução legislativa decorrente das mudanças políticas engajadas. 2. O Estatuto da Pessoa com Deficiência e seus benefícios gerados frente ao Direito Civil brasileiro. 2.1. Personalidade e capacidade civil. 2.2 Participação das PCD no papel testemunhal. 2.3 Nulidade matrimonial? Não mais. 2.4 A inserção da Tomada de Decisão Apoiada e as mudanças ao instituto da Curatela. 3 Impasses a serem enfrentados a partir da Lei de Inclusão. Considerações finais. Referências bibliográficas.

 

Introdução

Historicamente as pessoas com deficiência sempre encontraram, por todo o globo, barreiras sociais que as impediam de figurar como protagonistas de suas próprias vidas. E no Brasil, tal fato não se distinguiu.

A legislação civil brasileira, por muito tempo, limitou a participação plena das pessoas com deficiência perante a sociedade, sob a escusa de que estaria promovendo a proteção de tal minoria, por entender que tais pessoas estariam envoltas de uma suposta “vulnerabilidade”.

Perante a lei, a existência da deficiência na vida do ser humano era o argumento suficiente para considerá-los inaptos, ineficientes, absolutamente incapazes de praticarem, de per si, atos civis comuns a qualquer outro cidadão.

Contudo, com o crescimento galopante de movimentos sociais no final da década de 1970, as pessoas com deficiência ganhavam, pela primeira vez, voz perante a sociedade e o Estado. Tais movimentos reivindicavam muito além do que apenas a eliminação de barreiras estruturais; eles lutavam pelo direito e pelo espaço de serem vistos como cidadãos por toda a sociedade.

E através de mais de 50 anos de lutas e desafios enfrentados, hoje, com o advento da Lei nº 13.146/2015, intitulada Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, ou também chamada de Estatuto da Pessoa com Deficiência, o Direito Civil brasileiro vivencia significativas mudanças estruturais, de modo a enxergar tal minoria da mesma forma que ela enxerga a si própria: capaz de tudo aquilo que desejar.

A introdução dessa recente norma no ordenamento jurídico brasileiro, demanda maior reflexão acerca dos pontos positivos conquistados às pessoas com deficiência, principalmente pela nova visão de participação de tal grupo nas diversas relações civis comuns.

Ao longo desse trabalho utilizar-se-á a metodologia qualitativa e bibliográfica para a resolução da problemática do presente artigo, que será: Quais os reflexos trazidos pela Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência no Direito Civil brasileiro?

O presente artigo visa analisar a origem do conceito de pessoa com deficiência, além de uma retrospectiva histórica dos movimentos sociais no Brasil e seus efeitos sobre a legislação pátria. Após, serão analisados os efeitos trazidos pela Lei nº 13.146/2015 no Direito Civil brasileiro, aprofundando-se, em seguida, nos benefícios gerados, bem como nos impasses a serem enfrentados para a plena efetivação do texto legal. Por fim, concluirá-se o tema tecendo-se comentários e observações sobre quais seriam as transformações sociais necessárias para que as pessoas com deficiência sejam, real e completamente, integradas na sociedade, de modo a ganhar o espaço que tanto lhe é devido.

 

1 A evolução do conceito de Pessoa com Deficiência

            De modo geral, não restam dúvidas de que as sociedades marginalizam as pessoas com deficiência. Uma das claras evidências disso se estampa através da própria linguística, uma vez que, por muito tempo, diversos termos carregados de preconceito e discriminação foram utilizados para se referir às pessoas que possuíam alguma deficiência, como por exemplo “os inválidos”, “os incapacitados”, “os defeituosos”, “os deficientes”, “os excepcionais”, etc. Termos que se propagavam até mesmo para o campo científico, principalmente durante seus primeiros contatos com o estudo da deficiência. Nesse sentido, segundo Diniz (2017, p. 7):

“Para os precursores dos estudos sobre deficiência, a linguagem referente ao tema estava carregada de violência e eufemismos discriminatórios: ‘aleijado’, ‘manco’, ‘retardado’, ‘pessoa portadora de necessidades especiais’, e ‘pessoa especial’, entre tantas outras expressões ainda vigentes em nosso léxico ativo”.

Desse modo, nota-se que tais termos contrastavam, ao menos pelo pensamento da época a qual pertenceram, com o “normal” da figura idealizada de ser humano. Isso porquê, ainda conforme Diniz (2017, p. 4), “a concepção de deficiência como uma variação do normal da espécie humana foi uma criação discursiva do século XVIII, e desde então ser deficiente é experimentar um corpo fora da norma”.

E é em razão disso que, desde 1948, com a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, a Organização das Nações Unidas (ONU) tem trabalhado pela concretização dos direitos dessa parcela da sociedade, através de seus pactos e acordos internacionais firmados ao redor do globo, em razão dos dramáticos efeitos da perversão humana, principalmente durante, mas também após, as duas grandes Guerras Mundiais. Nascem, a partir daí, as diversas convenções internacionais, que visam a proteção e a garantia dos direitos individuais de grupos sociais vulneráveis e de minorias, sendo todas elas reguladas pela, porventura mais conhecida de todas, Declaração Universal dos Direitos Humanos.

E como consequência desse processo de construção do que atualmente conhecemos como direitos humanos, temos a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, internalizada pelo Brasil em 2008, através do Decreto Legislativo nº 186. Tal convenção consagra evidente importância normativa, não só por figurar como o primeiro tratado de direitos humanos recepcionado pelo ordenamento jurídico brasileiro com status equivalente ao de emenda constitucional, como também por tornar visíveis os mais de 46 milhões de brasileiros, que somam 24% da população, que, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em seu último censo realizado em 2010, alegam possuir algum tipo de deficiência.

Ademais, além de seus 30 artigos voltados ao atendimento exclusivo de direitos humanos universais e das necessidades inerentes a tal grupo minoritário, a convenção trouxe revolucionário conceito de pessoa com deficiência, o qual, segundo o Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, Ricardo Tadeu Marques da Fonseca (2008):

            “(…) carrega forte relevância jurídica porque incorpora na tipificação das deficiências, além dos aspectos físicos, sensoriais, intelectuais e mentais, a conjuntura social e cultural em que o cidadão com deficiência está inserido, vendo nestas o principal fator de cerceamento dos direitos humanos que lhe são inerentes.”

Nesse contexto, em seu próprio preâmbulo, a convenção reconhece que “a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras atitudinais e ambientais que impedem sua plena e efetiva participação na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas” (PLANALTO, 2008).

Assim, fora concretizado o termo “pessoa com deficiência” (PCD), o qual influenciou na edição do texto legal da recente Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), que consagra na redação de seu art. 2º o seguinte:

            “Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.”

Nesse compasso, diferentemente dos conceitos ultrapassados já citados, a atual visão do que seja, de fato, deficiência vai muito além de características intrínsecas à vida de determinadas pessoas. Passa-se a considerá-la como fruto das barreiras sociais ou físicas que impeçam pessoas de participar plena e efetivamente na sociedade, pois assim, independentemente de qualquer que seja a deficiência de que se fale, abranger-se-ão todos aqueles que com tal conceito se identifiquem.

 

2 Síntese da eclosão histórica dos movimentos de PCD no brasil e suas repercussões política e legislativa

2.1 Evolução histórica da abertura política

O final da década de 1970 foi um momento decisivo para o futuro da legislação pátria sobre a pauta da deficiência. Isso porquê, nesse momento, os deficientes conquistavam um nível de visibilidade sem precedentes, haja vista a eclosão dos movimentos sociais por eles organizados, principalmente se considerarmos a forte supressão advinda do que podemos chamar de sistema sócio estatal, que durante muito tempo, se não os institucionalizava, forçava-os a se resguardarem em âmbito familiar. Mas para que melhor possamos compreender os resultados políticos que decorreram a partir desses movimentos, faz-se necessária a análise do contexto histórico que lhes deram origem dentro do território nacional.

Para Maior (2015, p. 1) “A história das pessoas com deficiência no Brasil evoluiu no século XIX, com a educação especial de cegos e de surdos em internatos, como na Europa”. Em 1854 foi criado o Instituto dos Meninos Cegos (hoje conhecido como Instituto Benjamin Constant), o qual deu início ao processo de inclusão das pessoas com deficiência visual na sociedade. O surgimento se deu por iniciativa de José Alvares de Azevedo, que trouxe da França o sistema de escrita Braile, apresentando-o, na época, ao Imperador D. Pedro II. A relevância desse instituto é notada por ter sido o primeiro voltado à educação especializada para pessoas com deficiência, no caso, deficiência visual, da época, e o primeiro do movimento na América do Sul.

Dois anos à frente, em 1856, nasce o Instituto Nacional de Educação dos Surdos (INES) com o intuito de suprir a inexistência de meios de educação formal para as pessoas surdas no Brasil da época. Isso porquê, naquele tempo, a sociedade entendia a surdez como uma doença incapacitante, inclusive para o aprendizado e desenvolvimento individual. A criação desse instituto seguiu a tendência europeia dos séculos XVIII e XIX de institucionalização da deficiência, de modo que as instituições surgissem com um viés muito mais assistencialista do que inclusivo.

No século XX, surgem importantes instituições que visavam a educação de pessoas com deficiência intelectual, quais sejam: Pestalozzi, em 1932, e as Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAEs), a partir de 1954. Tais instituições deram início à promoção de educação de crianças e jovens com deficiência nas redes de ensino paralelas ao sistema público, tendo em vista a grave omissão do Estado nesse aspecto.

Já na década de 1950, com o surto de casos de poliomielite, “as pessoas com deficiência física (antes chamadas “deficientes físicos”) eram ligadas à área da saúde, em centros de reabilitação, mantidos por iniciativa não governamental (MAIOR, 2015, p. 1)”. Nas palavras de Maior (2009, s.p.), “o objetivo da época era escamotear a deficiência”. Intensos esforços médicos buscavam a reabilitação das pessoas com deficiência, cujo objetivo era auxiliá-las a alcançar o máximo de funcionalidade, visando garantir-lhes independência como indivíduo. Todavia, esse ideal de independência ainda se encontrava limitado às paredes dos complexos institucionais, visto que, para a sociedade em geral, a inclusão social ainda era apenas um espectro.

Anos à frente, no final da década de 1970, os movimentos sociais ligados a diversos grupos tidos como minorias dentro do meio social começaram a emergir e a ganharem visibilidade. E dentre eles, estava o movimento das pessoas com deficiência. Os movimentos vividos nessa época, em verdade, destacam sua grande relevância por coincidirem com as mudanças políticas que o Brasil vivenciava, principalmente quanto ao processo de redemocratização. A partir daí, a visibilidade política dos grupos de pessoas com deficiência começou a crescer. Nesse contexto:

            “Esse processo se reflete na Constituição Federal promulgada em 1988. A Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988), envolvida no espírito dos novos movimentos sociais, foi a mais democrática da história do Brasil, com canais abertos e legítimos de participação popular (FRANCO; SCHTUTZ, 2011).”

Ainda na década de 1970, mais precisamente em 1979, foi criada a Coalizão Pró-Federação Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes. Seu intuito era organizar os movimentos representativos das pessoas com deficiência em nível nacional. Assim, reuniram-se, pela primeira vez, diversos movimentos e organizações que antes se espalhavam pelo Brasil, com o escopo de delimitar os rumos que seriam adotados na busca pela inclusão social e pela garantia de direitos.

Um ano depois, em 1980, houve a realização do 1° Encontro Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes a partir do movimento gerado pela Coalização, em Brasília. Nesse sentido:

            “O objetivo do encontro foi criar diretrizes para a organização do movimento no Brasil, estabelecer uma pauta comum de reivindicações e, ainda, definir critérios para as entidades que poderiam ser reconhecidas como integrantes da Coalizão (LANNA JÚNIOR, 2011).”

Os resultados foram tão positivos e promissores que ocasionaram a continuidade do evento por mais duas vezes, sendo o 2º Encontro realizado no ano subsequente, em 1981, e o 3º em 1982.

Outra circunstância que incontestavelmente refletiu no aumento de visibilização do movimento pelo Brasil e também pelo mundo, foi a proclamação do Ano Internacional das Pessoas com Deficiência (AIPD), em 1981, pela ONU. Fato que ocorreu durante a 31ª sessão da Assembleia Geral, cujo tema em destaque era “Participação Plena”. Observa LANNA JÚNIOR (2011) que:

“Os objetivos principais do AIPD em relação às pessoas com deficiência eram: ajudar no ajustamento físico e psicossocial na sociedade; promover esforços, nacional e internacionalmente, para possibilitar o trabalho compatível e a plena integração à sociedade; encorajar projetos de estudo e pesquisa visando à integração às atividades da vida diária, aos transportes e aos edifícios públicos; educar e informar o público sobre os direitos de participar e contribuir em vários aspectos da vida social, econômica e política.”

Ainda em 1981, houve o I Congresso Brasileiro de Pessoas Deficientes, o qual abordou o tema “A realidade das pessoas com deficiência no Brasil, hoje”, levantando diversas problemáticas e buscando abordagens que fomentassem o tema e o movimento. A partir de então, diversos outros encontros e congressos ocorreram até o final da década de 1980, resultando na criação de novas federações e organizações que se responsabilizaram em abordar, cada qual, um grupo específico dentro do movimento das pessoas com deficiência.  Assim, podemos citar: o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), criado em 6 de junho de 1981; a Organização Nacional das Entidades de Deficientes Físicos (Onedef), criada em 1984; a Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis), fundada em 16 de maio de 1987; dentre outras. Esses e diversos outros movimentos, inclusive internacionais, engajaram o fortalecimento da união entre as próprias comunidades de pessoas com deficiência, fazendo com que essas, além de se reconhecerem como iguais na busca pelo mesmo ideal, se unissem na luta por direitos individuais e coletivos.

 

2.2 Evolução Legislativa Decorrente das Mudanças Políticas Engajadas

Pode até soar contraditório, mas quando falamos de direitos sociais, fora a Constituição Federal de 1967, promulgada durante o regime militar, que, pela primeira vez, reconheceu a existência de direito expresso às pessoas com deficiência. E diga-se direito expresso, pois fora apenas um: o reconhecimento de que o Estado, mediante lei especial, deveria dispor sobre a educação das pessoas com deficiência, que à época eram chamados de “excepcionais” (PLANALTO, 1969). Todavia, tal reconhecimento não surgiu desde a promulgação da Constituinte, tendo sido esculpido no § 4º de seu art. 175 por força da Emenda Constitucional nº 1, de 1969.

Apenas cerca de dez anos depois, em 1978, com a Declaração dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência emitida pela ONU, o Brasil acolheu novas mudanças legislativas. Isso ocorreu através da Emenda Constitucional nº 12º, que prometia garantir aos deficientes melhores condições sociais e econômicas, através da educação especial e gratuita; da assistência, reabilitação e reinserção na vida econômica e social do país; da proibição de discriminação, inclusive quanto à admissão ao trabalho ou ao serviço público e a salários; e da possibilidade de acesso a edifícios e logradouros públicos (PLANALTO, 1978).

E durante mais uma década, esse foi o cenário jurídico que encampava a deficiência no Brasil, sendo que, como visto no subtópico anterior, socialmente, tais medidas não se mostraram eficazes o suficiente para promover verdadeira a inclusão dos grupos que compunham essa parcela da sociedade.

Todavia, em razão de todo o contexto da abertura política já analisado, foi em 1988, com a promulgação da sétima Constituição Federal brasileira, que as verdadeiras transformações legislativas deram seus primeiros passos. No processo de redemocratização do país, os movimentos sociais ganharam tamanha força que não se via outra alternativa senão a promoção de audiências públicas, convocadas por diversas comissões parlamentares (sendo o movimento das pessoas com deficiência anexado à comissão intitulada “Da Ordem Social”), para ouvir suas reivindicações e entender quais eram as mudanças urgentemente necessárias a serem promovidas. E assim foi feito com todos os grupos minoritários, incluindo o de pessoas com deficiência.

A maior conquista nesse período, com certeza, foi a distribuição de direitos por todo o texto da magna carta. Isso porque, houve uma proposta que estipulava a criação de um capítulo próprio para tratar do tema, o que claramente feria os ideais de igualdade e inclusão que eram pilares do movimento. Com a divisão da matéria-tema pelo texto constituinte, marcava-se o início de novas lutas que buscavam pela efetiva inclusão social da pessoa com deficiência na sociedade, começando, de fato, do próprio texto constitucional.

Destarte, desde 1988, o sistema jurídico brasileiro tem se transformado a cada dia, buscando atualizar-se frente às reivindicações promovidas pelos movimentos de pessoas com deficiência. Nesse contexto, cumpre ressaltar que nosso sistema já fora considerado como o melhor das Américas, bem como um dos mais inclusivos de todo o globo (BENEVIDES, 2004).

A partir de então, notáveis leis surgiram, garantindo direitos de pessoas com diferentes aspectos de deficiência. Tratando-se de um âmbito mais geral, a Lei nº 7.853/1989 (regulamentada pelo Decreto 3.298/1999) foi a primeira que dispôs garantias às pessoas à época chamadas de “portadoras de deficiência”. Isso fica claro a partir da redação de seu art. 1º, o qual prevê que ficam estabelecidas normas gerais que asseguram o pleno exercício dos direitos individuais e sociais das pessoas portadoras de deficiências, e sua efetiva integração social, nos termos desta lei” (Planalto, 1989). Em consonância, a referida norma dispôs sobre a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência – Corde, órgão responsável por reconhecer, na estrutura do Estado brasileiro, o interesse público em relação aos direitos das pessoas com deficiência (LANNA JÚNIOR, 2011). Além disso, a Lei nº 7.853/1989 instituiu a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos das pessoas portadoras de deficiência, bem como disciplinou a atuação do Ministério Público, e definiu crimes.

Focando-se na questão de acessibilidade, na transição do século XX para XXI, foram criadas as leis nº 10.048 e 10.098, ambas do ano 2000. A primeira, responsável por regulamentar a prioridade de atendimento às pessoas com deficiência e às pessoas com mobilidade reduzida, quais sejam, idosos com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, gestantes, lactantes, pessoas com crianças de colo e obesos (PLANALTO, 2000). A segunda, estabeleceu normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, mediante a supressão de barreiras e de obstáculos nas vias e espaços públicos, no mobiliário urbano, na construção e reforma de edifícios e nos meios de transporte e de comunicação (PLANALTO, 2000). Em 2004, surge o Decreto nº 5.296, responsável por regulamentar as duas leis supramencionadas e trazer novas providências.

Ainda sobre o tema de acessibilidade, tem-se a Lei nº 10.436/2002, responsável pela oficialização da Língua Brasileira de Sinais – Libras como principal meio legal de comunicação e expressão para as pessoas surdas, ficando a língua portuguesa em segundo plano. Inclusive, sobre a matéria educacional, o Decreto nº 5.626/2005 regulamentou a Lei nº 10.436/2002, definindo, por exemplo, a inclusão da Libras como disciplina curricular; a formação do professor e do instrutor de libras; o uso e a difusão da Libras e da língua portuguesa para o acesso das pessoas surdas à educação, entre outras coisas.

Diversas outras normas também surgiram com o decorrer dos anos, mas, sem dúvidas, uma das mais importantes fora inserida na legislação civil brasileira em 2009: o Decreto nº 6.949 – responsável por promulgar a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Esse decreto foi, e ainda é, de suma importância para o movimento das pessoas com deficiência, haja vista que, em seu texto, foram consolidadas as bases fundamentais para a promoção de igualdade e inclusão das pessoas que façam parte do movimento em questão.

Tal Convenção busca, como propósito, promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência, além da promoção do respeito pela sua dignidade inerente (PLANALTO, 2009).

Atualmente, a legislação mais recente promulgada foi a Lei nº 13.146/2015, denominada Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, e também chamada de Estatuto da Pessoa com Deficiência. Tal Estatuto, se assim podemos dizer, sintetiza toda a história de lutas e reinvindicações das pessoas com deficiência, por ser, basicamente, criada com o propósito de promoção da real inclusão de tais pessoas no meio social. Além de toda regulação a respeito do tema, ressaltam-se as alterações que o Estatuto trouxe ao Direito Civil. Ora, foram mais de quarenta alterações em dispositivos da legislação de direito privado, incluindo um novo capítulo ao Livro IV, referente ao Direito de Família, regulando o que a lei chamou de “Tomada de Decisão Apoiada”. Tais mudanças serão melhor analisadas no tópico subsequente.

 

3 O Estatuto da Pessoa com Deficiência e seus benefícios gerados frente ao Direito Civil brasileiro

            Além das significativas mudanças e inserções legais em benefício das pessoas com deficiência, a Lei nº 13.146/2015 certificou-se de que sua abrangência alcançaria até mesmo o Direito Civil. Isso porquê, quando falamos em inclusão social, o Estado, além de se preocupar com a promoção de suas próprias ações afirmativas, deve normatizar regras que sujeitem a sociedade a fazer o mesmo, enquanto tal medida demonstrar-se necessária. Assim, a referida lei trouxe quarenta mudanças na legislação de direito privado, visando adequar seu texto às novas políticas de acessibilidade e inclusão. Esse capítulo, a partir de agora, tratará das mudanças mais relevantes.

 

3.1 Personalidade e Capacidade Civil

            Com certeza, uma das mudanças mais significativas inseridas pelo EPD foi a alteração da redação do art. 3º do Código Civil de 2002. Seu texto anterior expressava que menores de 16 (dezesseis) anos, pessoas com deficiência mental ou enfermidade que, por conta disso, não tivessem o necessário discernimento para a prática, pessoalmente, dos atos da vida civil, ou os que, mesmo por causa transitória, não pudessem exprimir sua vontade, eram considerados absolutamente incapazes (PLANALTO, 2002). Agora, a legislação privada prevê que apenas as pessoas menores de 16 (dezesseis) anos de idade podem ser consideradas absolutamente incapazes.

E os principais pilares que sustentam esse novo posicionamento legal encontram-se nas redações dos arts. 6º e 84 do próprio EPD. Ora, segundo a inteligência do art. 6º da Lei 13.146/2015, a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para casar-se e constituir união estável; exercer direitos sexuais e reprodutivos; exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar; conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória; exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas (PLANALTO, 2015). No mesmo sentido, o art. 84 da referida lei preceitua que “a pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas”. Assim, como bem pontua o douto professor Flávio Tartuce (2015):

            “Em suma, não existe mais, no sistema privado brasileiro, pessoa absolutamente incapaz que seja maior de idade. Como consequência, não há que se falar mais em ação de interdição absoluta no nosso sistema civil, pois os menores não são interditados. Todas as pessoas com deficiência, das quais tratava o comando anterior, passam a ser, em regra, plenamente capazes para o Direito Civil, o que visa a sua plena inclusão social, em prol de sua dignidade.”

            Em consonância, o EPD modificou o art. 4º do vigente Código Privado, de modo a remover do rol taxativo de pessoas tidas como relativamente incapazes; os, nas palavras da lei, “portadores de deficiência mental” e os “excepcionais sem desenvolvimento completo”. Percebe-se que tais modificações se fundamentam na tentativa de alcançar uma plenitude para a inclusão social. Nesse sentido, segundo Gonçalves e Vorcaro (2018):

            “As pessoas antes sujeitas à interdição em razão de enfermidade ou deficiência passam, por força da nova lei, a serem consideradas plenamente capazes. Essa garantia reconhece uma presunção geral de plena capacidade a favor das pessoas com deficiência, o que somente por meio de relevante inversão probatória sucederia à incapacidade, excepcional e amplamente justificada. Inexistindo para estes, ressaltasse a incapacidade absoluta.”

           

3.2 Participação das PCD no Papel Testemunhal

Antes da vigência da Lei nº 13.146/2015, o art. 228 do Código Civil, responsável por elencar as pessoas impedidas de figurar na condição de testemunha, causava evidente exclusão de pessoas com deficiência mental, auditiva e visual, pelo simples fato delas serem deficientes. Ora, a redação anterior expressamente previa que não poderiam ser admitidos como testemunhas aqueles que, por enfermidade ou retardamento mental, não tivessem discernimento para a prática dos atos da vida civil, além de cegos e surdos, quando a ciência do fato que se quisesse provar dependesse dos sentidos que lhes faltassem (PLANALTO, 2002). Em verdade, pode-se dizer que o legislador interpretava as pessoas com deficiência mental, auditiva e visual como incapazes tanto quanto os menores de 16 (dezesseis) anos, de modo que, apenas por possuírem tais padrões de vida, não poderiam figurar como testemunha de um ato negocial, por exemplo. Ainda que a legislação deixasse claro que, em se tratando de fatos que só elas conhecessem, poderia o juiz admitir o depoimento dessas pessoas (PLANALTO, 2002), ficava nítida a segregação gerada pelo instituto legal.

Todavia, a partir da vigência da Lei de Inclusão, as pessoas com deficiências mental, auditiva e visual deixaram de ser segregadas, haja vista a nova redação do art. 228, que removeu os incisos que as proibiam de testemunhar. Inclusive, no mesmo artigo, o Estatuto acrescentou o §2º, o qual preceitua que “a pessoa com deficiência poderá testemunhar em igualdade de condições com as demais pessoas, sendo-lhe assegurados todos os recursos de tecnologia assistiva”. Assim, a pessoa com deficiência terá a possibilidade legal de ser arrolada como testemunha, desde que lhe seja assegurada a disponibilidade de todos os recursos necessários para que consiga expressar-se, de igual modo a qualquer outra pessoa sem deficiência.

 

3.3 Nulidade Matrimonial? Não Mais

O Capítulo VIII, do Livro IV do Código Privado, intitulado “Da invalidade do casamento”, previa no inciso I de seu art. 1.548 que se tinha por “nulo o casamento contraído pelo enfermo mental sem o necessário discernimento para os atos da vida civil”. Atualmente, com a vigência da atual Lei de Inclusão, tal inciso fora revogado, garantindo às pessoas com deficiência o direito ao exercício de capacidades legais em igualdade com as demais pessoas, em consonância ao previsto na redação dos arts. 6º e 84 da referida lei.

Ainda sobre a matéria matrimonial, o EPD incluiu ao art. 1.550 o § 2º, cuja redação prevê que a pessoa com deficiência, seja esta mental ou intelectual, desde que em idade núbia, poderá contrair matrimônio, podendo exprimir tal vontade pessoalmente ou mediante representante ou curador. Além disso, modificou os incisos III e IV do art. 1.557, dando nova redação ao primeiro – que anteriormente previa que se considerava erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge a ignorância, anterior ao casamento, de defeito físico irremediável, ou de moléstia grave e transmissível, pelo contágio ou herança, capaz de pôr em risco a saúde do outro cônjuge ou de sua descendência (PLANALTO, 2002) – e revogando o segundo.

A mudança da redação do inciso III, que com a nova redação passou a ser  “a ignorância, anterior ao casamento, de defeito físico irremediável que não caracterize deficiência ou de moléstia grave e transmissível, por contágio ou por herança, capaz de pôr em risco a saúde do outro cônjuge ou de sua descendência;” (Planalto, 2002), deixa claro que a deficiência, de per si, não é e não poderá ser considerada como vício da vontade capaz de oportunizar a nulidade do casamento, haja vista sua exclusão do rol de erros essenciais sobre a pessoa do outro cônjuge. Nas palavras de Gonçalves e Vorcaro (2018):

            “Tomando-se por base tais alterações, não há mais que se falar em impedimentos para os deficientes em constituir união estável ou celebrar casamento, permitindo a expectativa de inclusão social, uma vez que a incapacidade antes prevista, não mais possui aplicabilidade”.

 

3.4 A Inserção da Tomada de Decisão Apoiada e as Mudanças ao Instituto da Curatela

             A tomada de decisão apoiada foi inserida no Código Civil de 2002 a partir da determinação contida no art. 116 da Lei nº 13.146/2015, que incluiu, na Parte Especial do Código Privado, em seu Livro IV, Título IV, o Capítulo III, tratando-se de uma alternativa à curatela. Esta, que se traduz no encargo através do qual uma pessoa capaz se obriga a administrar os bens de outra incapaz, tornando-se responsável pela prática dos atos jurídicos necessários à garantia e exercício dos direitos individuais daquele por quem se curatela, por força do art. 85, caput, da Lei de Inclusão, e de seu § 2º, tornou-se limitada apenas aos direitos patrimoniais e comerciais, bem como medida extraordinária. Além disso, antes da vigência da Lei de Inclusão, a redação anterior do art. 1.767 do Código Civil vigente expressamente previa que as pessoas com deficiência mental e os que, à época, eram taxados como “excepcionais sem completo desenvolvimento mental”, independentemente de qualquer análise biopsicossocial sobre a capacidade dessas pessoas de praticar autonomamente os atos da vida civil, eram sujeitos à curatela, demonstrando-se cristalino o efeito exclusivo gerado pela própria legislação civil.

Sob esse aspecto exclusivo, a lei civil pôs afrente da curatela, e como prioridade, a tomada de decisão apoiada, apresentada pelo recém inserido art. 1.783-A. Esse novo sistema se resume no processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade (PLANALTO, 2002). Convém ressaltar que o texto legal, em momento algum, define que esse novo modelo seria utilizado apenas quando se tratassem de pessoas com deficiência mental. Desse modo, apenas com a realização de avaliação biopsicossocial, por equipe multiprofissional e indisciplinar, poderá ser definido grau de deficiência que configure ausência de autonomia sobre as questões da vida privada, de modo a impedir que a pessoa com deficiência possa optar, de per si, por tal medida.

Por conseguinte, atenta-se que esse requerimento deverá ser efetuado judicialmente, assim como a curatela, e deverá indicar expressamente as pessoas consideradas aptas a prestarem tal apoio. Para formular seu pleito, a pessoa com deficiência e os apoiadores devem apresentar termo em que constem os limites do apoio a ser oferecido, bem como os compromissos dos respectivos apoiadores. Além disso, o pleito deve também apresentar o prazo de vigência do acordo e o respeito à vontade, aos direitos e aos interesses da pessoa com deficiência que devem apoiar. Ressalta-se, ainda, que a decisão tomada por pessoa apoiada terá validade e efeitos sobre terceiros, sem restrições, desde que esteja inserida nos limites do apoio acordado. Nas palavras de Requião (2015):

            “Privilegia-se, assim, o espaço de escolha do portador de transtorno mental, que pode constituir em torno de si uma rede de sujeitos baseada na confiança que neles tem, para lhe auxiliar nos atos da vida. Justamente o oposto do que podia antes acontecer (e, formalmente, ainda pode!), em algumas situações de curatela fixadas à revelia e contra os interesses do portador de transtornos mentais.”

 

4 Impasses a serem enfrentados a partir da Lei de Inclusão

            Como visto, com o decorrer das lutas sociais e por consequência das diversas reivindicações emanadas dos grupos de pessoas com deficiência, muitos avanços foram alcançados quanto à ótica jurídica. A pessoa com deficiência, hoje, deixou de ser tida por absolutamente incapaz para prática, por si só, dos atos da vida comum, passando a serem observadas, pelo menos sob a ótica da lei, como sujeitos comuns de direitos, fugindo-se da falsa ideia de que a deficiência geraria necessidade de proteção à medida em que causaria demasiada “fragilidade”. Todavia, ainda com a grande repercussão jurídica das mudanças trazidas pela Lei de Inclusão, diversos são os impasses a serem enfrentados para que, dentro do estado democrático de direito consolidado, tais grupos sejam efetivamente incluídos.

Os problemas se iniciam com a falta de concretização do dever tripartite delimitado pelo texto do art. 8º da Lei nº 13.146/2015. A redação legal prevê que:

            “É dever do Estado, da sociedade e da família assegurar à pessoa com deficiência, com prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à sexualidade, à paternidade e à maternidade, à alimentação, à habitação, à educação, à profissionalização, ao trabalho, à previdência social, à habilitação e à reabilitação, ao transporte, à acessibilidade, à cultura, ao desporto, ao turismo, ao lazer, à informação, à comunicação, aos avanços científicos e tecnológicos, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, entre outros decorrentes da Constituição Federal, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo e das leis e de outras normas que garantam seu bem-estar pessoal, social e econômico (Planalto, 2015).”

Todavia, é notável que existe grande falha aplicacional desse texto no cotidiano da sociedade, visto que o Estado, mesmo sendo o detentor do poder de fomento às políticas públicas que incentivem à inclusão de minorias e de grupos mais vulneráveis, nem sempre está disposto a zelar por tal efetividade. A título de exemplo, temos os problemas de acessibilidade nos transportes públicos, enfrentados diariamente por esmagadora parcela da comunidade de pessoas com deficiência física, o que desde a promulgação da Lei nº 10.098/2000, bem como sua regulamentação mediante o Decreto nº 5.296/2004, já não mais deveria existir. Ora, segundo matéria publicada no portal de notícias G1, dados levantados pelo IBGE em 2018 apontam que 88% dos municípios que têm transporte público descumprem a lei de acessibilidade, sedo apenas 11,7% dos que têm o serviço que cumpriram a lei (G1, 2018). Ainda segundo o levantamento, dentre os 1.679 municípios que dispunham de ônibus intramunicipal, apenas 197 (11,7%) tinham toda a frota adaptada às normas de acessibilidade. Outros 820 (48,8%) tinham sua frota parcialmente adaptada, e os demais 662 (39,4%) tinham frota sem adaptação (G1, 2018).

Em consonância, à sociedade e às famílias também são impostas o dever de zelar pelos direitos das pessoas com deficiência. Mas, na prática, não é o que se percebe. Os movimentos existentes não são amplamente divulgados, o que inviabiliza com que o restante da sociedade, que muitas vezes detém pouco ou nulo conhecimento sobre o tema, tome ciência não só das reivindicações por eles promovidas, mas também de suas legítimas motivações, entendo a necessidade e urgência da inclusão de tais pessoas. Entendendo que seus direitos não são “privilégios”.

Percebe-se, assim, que ainda são diversos os impasses existentes a serem enfrentados, mesmo com a legislação amplamente desenvolvida para que tais processos sejam efetivados o mais rapidamente possível. Todavia, o maior desses impasses ainda é, sem sombra de dúvidas, a conscientização do dever tripartite supramencionado, visto que apenas a partir de tal consciência coletiva entre o Estado, a sociedade e as famílias de tais pessoas, é que resultados promissores da inclusão serão vislumbrados no dia-a-dia de 46 milhões de brasileiros.

 

Considerações finais

Diante de todo o exposto, podemos coligir que os resultados da revolução legislativa acerca da problemática proposta, em razão das diversas lutas e reivindicações já aduzidas, foram positivos. Restou nítido que o Estado captou a necessidade de melhor abranger as pessoas com deficiência ao todo social. Através de políticas públicas, bem como mediante força legal, o Estado tem trabalhado para amenizar as barreiras que impedem tais grupos de se desenvolverem social e individualmente.

Observamos, através da legislação e das demais obras aqui abordadas, as significativas mudanças, através do tempo, em ramos do direito brasileiro sobre o tema, focando-se, principalmente, no Direito Civil.

Evidenciou-se, ainda, que o desenvolvimento de uma legislação inclusiva é sim uma das ferramentas necessárias à diminuição das inúmeras barreiras criadas ante as pessoas com deficiência. Todavia, não deve ser considerada como a única opção. Como visto, é necessário que o Estado, a sociedade e as famílias reconheçam seu dever, legalmente imposto, de juntos lutarem para amenizar as dificuldades de inclusão social.

Por fim, tem-se que a problemática proposta, qual seja, “quais os reflexos trazidos pela lei brasileira de inclusão da pessoa com deficiência no Direito Civil brasileiro?”, dentro dos parâmetros desta pesquisa, fora compreendida. Destarte, demonstram-se inúmeros os reflexos trazidos pela referida lei ao Direito Civil. Contudo, restou nítido que tais reflexos devem deixar de fazer parte apenas do campo normativo, devendo se estenderem ao campo fático, de maneira a ser vivencialmente experimentado pelos milhões de brasileiros com deficiência.

 

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