Juan dos Santos Teixeira [i], Luís Otavio Tonello dos Santos [ii]
Resumo: A pandemia causada pelo coronavírus trouxe consigo inúmeros problemas práticos, decorrentes dos impactos que as medidas restritivas de circulação vêm causando para a economia global. No contexto de paralisação de atividades, um dos dilemas enfrentados pelos setores empresariais é o cumprimento das avenças firmadas antes da descoberta do vírus. Este é o tema que o presente artigo busca enfrentar, desmembrando os contratos empresariais em consumeristas e civilistas, para, a partir disso, solucionar a questão da revisão dos contratos por fato imprevisto à luz dos dispositivos legais correspondentes, com enfoque em uma interpretação teleológica da norma, a fim de que os princípios da função social dos contratos e da preservação das empresas sejam resguardados.
Palavras-chave: Contratos empresariais. Pandemia. Coronavírus. Revisão contratual. Fato imprevisível. Interpretação teleológica.
Abstract: The pandemic caused by the coronavirus has brought numerous practical problems, resulting from the impacts that restrictive circulation measures have been causing to the global economy. In the context of stoppage of activities, one of the dilemmas faced by the business sectors is the fulfillment of the agreements signed before the discovery of the virus. This is the theme that this article seeks to tackle, breaking up business contracts with consumerists and civilians, in order to resolve the issue of contract review due to an unforeseen fact in the light of the corresponding legal provisions, focusing on a teleological interpretation of the norm, so that the principles of the social function of contracts and the preservation of companies are preserved.
Keywords: Business contracts. Pandemic. Coronavirus. Contract review. Unpredictable fact. Finalistic interpretation.
Sumário:
Introdução. 1. Contratos empresariais. 2. Aplicação do CDC aos contratos empresariais. 3. A evolução da teoria da revisão contratual. 4. Revisão de contratos à luz do Código Civil e do Código de Defesa do Consumidor: diferentes requisitos. 5. A revisão dos contratos no Código Civil com enfoque em uma interpretação teleológica. Conclusão. Referências.
Introdução
No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou como pandemia a doença causada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2), tendo em vista a rápida disseminação geográfica do vírus.
A recomendação da maioria dos governos é de que as pessoas adotem o isolamento social a fim de frear o alastramento da doença. Em decorrência disso, passados pouco mais de dois meses, são muitos os impactos sentidos na economia com a paralisação de atividades. Percebe-se um natural recuo na demanda. Esse fator, somado a outros, como a diminuição da exportação, são indicativos de recessão econômica. Conforme o jornal “El País”, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que a “Crise do coronavírus levará mais de 11,5 milhões de latino-americanos ao desemprego neste ano”.
Mais grave ainda se avizinha o cenário dos locais que adotarem o chamado “lockdown” (bloqueio total), pois o tolhimento completo das atividades assolará todos os setores produtivos, levando inúmeros empresários à insolvência, principalmente os de menor porte.
Tendo em vista que o direito é influenciado por aspectos cotidianos e econômicos, muitos são os questionamentos jurídicos que vem surgindo e que, inevitavelmente, serão suscitados no judiciário. Dentre eles, encontra-se a discussão a respeito do cumprimento de contratos frente às adversidades representadas pela pandemia.
Ao mesmo tempo em que o cumprimento pontual das obrigações evita a imposição de encargos relativos à mora (juros, correção monetária, multas, etc.), denota-se, em muitos casos, a infeliz impossibilidade fática de fazer frente aos custos operacionais. Um restaurante, mantido de portas fechadas, não terá clientes para servir refeições, o que afetará o fluxo de caixa, impedindo-o de pagar funcionários, financiamentos bancários, adquirir mercadorias e, até mesmo, de custear despesas básicas de luz, água, internet, entre outras.
Busca este artigo examinar a tormentosa questão referente ao cumprimento dos contratos em vigor à luz dos meios legislativos existentes, com enfoque em uma interpretação teleológica da norma, método consagrado em nosso ordenamento pelo artigo 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, segundo o qual “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.
1. Contratos empresariais
Os contratos são a mais comum fonte de obrigações. Trata-se de um negócio jurídico cujo principal efeito é a assunção da obrigação de cumpri-lo no termo e modo convencionados.
Mas e o que caracteriza um contrato como empresarial?
As avenças pactuadas por um empresário estão sujeitas a cinco regimes jurídicos diversos: administrativo, trabalhista, consumerista, civilista e comercial. E “dependendo de quem seja o outro contratante, as normas aplicáveis ao contrato serão diferentes. (…) Os contratos são empresariais (comerciais ou mercantis), assim, se os dois contratantes são empresários” (Coelho, 2016, pág. 254).
Na mesma linha, Santa Cruz (2018, pág. 639) denomina como “contratos estritamente empresariais” aqueles formulados entre dois empresários.
Até a entrada em vigor do Código Civil de 2002, os contratos empresariais eram regidos pelo Código Comercial de 1850. Da revogação da maior parte dessa norma pelo novo diploma civilista sucedeu a chamada “reunificação do direito civil”, cuja consequência foi tornar o direito empresarial objeto do Código Civil de 2002 (livro ‘II’ da parte especial). E o tema “contratos” não escapou dessa sujeição normativa.
A imposta unidade legislativa é alvo de críticas por parte da doutrina empresarial, que reclama a recriação de uma lei especificamente comercial. A propósito, Santa Cruz (2018, pág. 647) lembra que “enquanto tal diploma legislativo não vem, é urgente que, pela via da interpretação, seja feita a imprescindível distinção entre os contratos cíveis e empresariais, dada a nítida diferença que há entre eles”.
Não há dúvidas de que o trato dispensado a contratos empresariais não pode ser o mesmo conferido aos contratos civilistas. Nos contratos mercantis há uma natural simetria entre as partes, a qual só pode ser relativizada em casos extremos. A ampliativa intervenção estatal em contratos dessa natureza representa afronta ao próprio texto constitucional, que, dentre outras passagens, consagra como princípios da ordem econômica a livre iniciativa e a livre concorrência (art. 170 da Constituição Federal).
A edição de um novo Código Comercial vem sendo discutida no âmbito legislativo, sendo o objeto do projeto de lei n. 1572/2011, atualmente aguardando análise pelo plenário da Câmara dos Deputados.
Inobstante a discussão envolvendo a criação de outra lei comercial, os contratos empresariais foram objeto, recentemente, da edição de uma norma específica. Trata-se da “Lei da Liberdade Econômica”, que alterou inúmeros dispositivos do Código Civil.
Alteração de grande relevo promovida foi a do parágrafo único do art. 421, juntamente com o acréscimo do art. 421-A. Referidos dispositivos passaram a fazer prevalecer em contratos privados o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual, presumindo que referidos ajustes são “paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção”.
Essa modificação tem por diretriz a aproximação do direito civil e empresarial aos ideais de livre mercado e livre concorrência. Tratou-se de uma solução menos complexa da que poderia advir com a criação de um novo Código Comercial, que exigiria a promoção de profundas alterações no sistema normativo.
Portanto, de acordo com a disciplina contratual prevista na legislação nacional, tanto contratos cíveis, quanto empresariais, obedecem à mesma matriz legal. O Código Civil disciplina vinte e três espécies contratuais, sendo que a qualificação desses instrumentos como contratos empresariais decorre da existência de empresários em ambos ou todos os polos, a depender da quantidade de partes (contrato bilateral ou plurilateral). Como exigido pelo próprio Código Civil, devem ser observados os princípios basilares da teoria geral dos contratos com as peculiaridades inerentes às relações mercantis.
2. Aplicação do CDC aos contratos empresariais
A proteção do consumidor foi elevada a direito fundamental pelo constituinte (art. 5º, inciso XXXII, da CF), de modo que se configura como cláusula pétrea. A partir dessa previsão constitucional, e da necessária criação de um Código de Defesa do Consumidor (art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), o Congresso Nacional editou a Lei 8.078/90, conhecida como Código de Defesa do Consumidor.
O CDC encontra-se no rol das chamadas normas “pós-modernas”, pois revê conceitos antigos do direito privado, tais como o contrato, a responsabilidade civil e a prescrição.
Inúmeras são as vantagens da aplicação da norma consumerista a favor daquele que se caracteriza como consumidor em uma relação negocial: inversão do ônus da prova, responsabilidade objetiva do fornecedor, interpretação contratual favorável, entre outras. De fato, não é à toa o inesgotável dilema enfrentado pelos Tribunais referente à aplicabilidade do CDC aos casos concretos.
O CDC, em seu artigo 2º, definiu o consumidor como “destinatário final” no mercado de consumo. Tratou-se de opção restritiva adotada pelo legislador, pois o texto legal impede que uma parte se caracterize como consumidora caso adquira um produto ou serviço a fim de fomentar outra atividade a ser prestada no mercado. Essa corrente finalista do conceito de consumidor pressupõe, portanto, que o consumidor será o destinatário final fático e econômico da relação negocial.
Ao interpretar a corrente finalista adotada pelo CDC, o Superior Tribunal de Justiça, em atenção à finalidade do diploma consumerista, passou a mitigar a necessidade de que o consumidor configure-se como destinatário final econômico em uma relação negocial. Isso porque não se pode perder de vista a realidade do mercado, em que número cada vez maior de profissionais presta serviços ou vende mercadorias de modo informal ou como microempreendedor individual.
Compreende-se, pois, que o STJ consagrou a teoria finalista mitigada ou aprofundada do conceito de consumidor. A propósito, leia-se o seguinte excerto:
“1. A jurisprudência do STJ se encontra consolidada no sentido de que a determinação da qualidade de consumidor deve, em regra, ser feita mediante aplicação da teoria finalista, que, numa exegese restritiva do art. 2º do CDC, considera destinatário final tão somente o destinatário fático e econômico do bem ou serviço, seja ele pessoa física ou jurídica. (…) 3. A jurisprudência do STJ, tomando por base o conceito de consumidor por equiparação previsto no art. 29 do CDC, tem evoluído para uma aplicação temperada da teoria finalista frente às pessoas jurídicas, num processo que a doutrina vem denominando finalismo aprofundado, consistente em se admitir que, em determinadas hipóteses, a pessoa jurídica adquirente de um produto ou serviço pode ser equiparada à condição de consumidora, por apresentar frente ao fornecedor alguma vulnerabilidade, que constitui o princípio-motor da política nacional das relações de consumo, premissa expressamente fixada no art. 4º, I, do CDC, que legitima toda a proteção conferida ao consumidor. (…)” (REsp 1195642/RJ, julgado em 21/11/2012)
Perceba-se que o ponto fulcral para a definição do consumidor reside na aferição de sua vulnerabilidade no caso concreto. Caso esteja demonstrado que há um desequilíbrio que torne o empresário vulnerável, será ele também um consumidor.
A vulnerabilidade é o princípio que visa a garantir a igualdade material dos sujeitos da relação de consumo (Masson e Andrade, 2016, pág. 433), subdividindo-se em três espécies:
– pode ser ela de ordem técnica, quando o consumidor não contar com conhecimentos específicos suficientes a respeito do produto ou serviço. Essa forma de vulnerabilidade garante a especialização do mercado de consumo. Não se exige que o consumidor detenha conhecimento acerca do funcionamento de uma tecnologia agregada a um computador, por exemplo. Não tendo a atividade tecnológica como de sua especialidade, o adquirente dessa espécie de produto será vulnerável tecnicamente;
– a vulnerabilidade pode ser jurídica, situação que engloba o consumidor sem conhecimentos jurídicos ou contábeis suficientes para se colocar em situação de igualdade frente ao fornecedor. Exemplo típico é o caso dos consumidores que buscam empréstimo financeiro junto a uma instituição financeira. Em muitos casos, não possui o contratante conhecimento específico acerca do alcance de cláusulas bancárias incidentes no contrato.
– a vulnerabilidade também é chamada de fática ou econômica, quando a fragilidade do contratante frente ao fornecedor ocorrer em termos financeiros. Trata-se da hipótese de aplicabilidade do CDC aos contratos empresariais formulados entre pequenos empreendedores e robustas instituições.
Reputa-se, portanto, ser aplicável o CDC aos contratos empresariais. A análise, todavia, não ocorre de forma genérica e abstrata. Somente a aferição casuística da hipótese permitirá a caracterização da relação como consumerista, lembrando-se, sempre, do pressuposto da vulnerabilidade.
3. A evolução da teoria da revisão contratual
Com a Revolução Francesa (século XVIII) e a o avanço do liberalismo econômico, ganhou relevo o princípio da autonomia da vontade. Referida norma consagra a ideia de que ninguém é obrigado a contratar, mas os que o fizerem deverão cumprir a obrigação assumida. Denota-se aí a nítida relação com outro princípio: o da obrigatoriedade – pacta sunt servand (Gonçalves, 2016, pág. 911).
Vigorou por quase dois séculos a plena liberdade contratual e a consequente vinculação por ela trazida. Foi com a eclosão da primeira guerra mundial que o panorama modificou-se drasticamente. Somando-se aos prejuízos econômicos trazidos pelo conflito, a pandemia do século XX, denominada “gripe espanhola”, levou muitas empresas e cidadãos à falência, circunstâncias que exigiram um novo olhar jurídico acerca da obrigatoriedade contratual em razão da fática impossibilidade de cumprimento dos contratos em seus termos iniciais.
A chamada cláusula “rebus sic stantibus”, que permaneceu relativizada diante da prevalência da obrigatoriedade contratual, foi recuperada no contexto do pós-guerra a fim de corrigir as distorções e a irrealidade de exigência de termos contratuais impossíveis de serem cumpridos por fatos posteriores.
Com o avanço do século XX, e a ocorrência de outra grande guerra mundial, sedimentou-se a necessidade de disposições legais acerca da teoria da imprevisão, consagrando-se seu uso pelos Tribunais.
No Brasil, o Código Civil de 1916 não tratou especificamente acerca do tema. A realidade negocial dessa época no país ainda fazia predominar a cláusula “pacta sunt servanda”.
Leciona Carlos Roberto Gonçalves que:
“A teoria foi adaptada e difundida no cenário brasileiro por Arnoldo Medeiros da Fonseca com o nome de teoria da imprevisão. Em razão da forte resistência oposta à teoria revisionista, o referido autor incluiu o requisito da imprevisibilidade para possibilitar a sua adoção. Assim, não era mais suficiente a ocorrência de um fato extraordinário para justificar a alteração contratual. Passou a ser exigido que este fosse também imprevisível. É por essa razão que os tribunais não aceitam a inflação e alterações na economia como causas para a revisão dos contratos. Tais fenômenos são considerados previsíveis entre nós” (Gonçalves, 2016, pág. 911).
A previsão legal de revisão contratual só ocorreu com a edição do Código de Defesa do Consumidor (1990), que possibilitou, em seu artigo 6º, inciso V, a revisão de contratos em virtude de fatos supervenientes. Posteriormente, o Código Civil de 2002 incorporou a teoria revisionista, dispondo sobre o tema no capítulo referente à extinção dos contratos. Há, contudo, diferenças essenciais no tratamento dado à matéria em cada uma dessas normas, conforme adiante explicitado.
4. Revisão de contratos empresariais à luz do CDC e do CC: diferentes requisitos
Em consonância com o teor protetivo dessa Lei, dispõe o art. 6º, inciso V, do CDC que “são direitos básicos do consumidor a modificação das cláusulas contratuais que estabelecem prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas”.
Perceba-se que a norma consumerista não exige a ocorrência de um fato imprevisto para ensejar a revisão contratual. Isso porque a Lei 8072/90 adotou a “teoria do rompimento da base objetiva do negócio jurídico”, e não a teoria da imprevisão, conforme fez o Código Civil de 2002. A revisão pode ser feita pela simples identificação de desproporção na obrigação assumida pelo consumidor, cuja consequência é tornar o contrato um termo permanentemente aberto à possibilidade de modificação, opondo-se à ideia de que “contractus qui habent tractum sucessivum et dependentiam de futuro, rebus sic stantibus intellingentur” (os pactos de execução continuada e dependentes do futuro entendem-se como se as coisas permanecessem como quando da celebração) – (Tartuce, pág. 222 e 239).
A solução para contratos empresariais que se tornaram excessivamente onerosos em decorrência da pandemia causada pelo Coronavírus pode ser a aplicação das regras protetivas do CDC, desde que, como visto no tópico ‘2’ deste artigo, haja a configuração de uma relação de consumo.
Por oportuno, anota-se que o STJ já fez uso do disposto no art. 6º, V, do CDC para determinar a revisão de cláusula em contrato empresarial de leasing:
“(…) III – Consoante o art. 6º, V, do Código de Defesa do Consumidor, sobrevindo, na execução do contrato, onerosidade excessiva para uma das partes, é possível a revisão da cláusula que gera o desajuste, a fim de recompor o equilíbrio da equação contratual. V – Contendo o contrato opção entre outro indexador e a variação cambial e tendo sido consignado que os recursos a serem utilizados tinham sido captados no exterior, gerando para a arrendante a obrigação de pagamento em dólar, enseja-se a revisão da cláusula de variação cambial com base no art. 6º, V, do Código de Defesa do Consumidor.” (REsp 437.660, quarta turma, julgado em 08.03.03).
Em contrapartida, difere o tratamento conferido pelo Código Civil ao tema da revisão contratual. Lembrando que nem todos os contratos empresariais são sujeitos ao CDC, máxima importância deve ser dada à interpretação correta dos dispositivos correspondentes ao tema previstos no CC.
O Código Civil utilizou-se de três dispositivos para consagrar a revisão contratual: artigos 478, 479 e 480. Fez o legislador a opção de disciplinar a matéria na parte final da teoria geral dos contratos (título IV do livro I da parte especial), no capítulo em que dispõe acerca da extinção das avenças.
Da rápida leitura do artigo 478, visualizam-se requisitos impostos para que se possibilite a revisão contratual:
“Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.”
Acerca da classificação envolvendo a forma de execução do contrato, há mitigação quanto à exigência de que se trate de termo com execução continuada ou diferida. A propósito, segundo o STJ, a renegociação de contrato bancário ou a confissão da dívida não impede a discussão sobre eventuais ilegalidades dos contratos anteriores (Súmula 286).
A exigência de que haja onerosidade excessiva para cumprimento do pacto em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis denotam a adoção pelo legislador da teoria da imprevisão como pressuposto das revisões contratuais. Ao mesmo tempo, a imprevisibilidade não pode decorrer de uma álea normal, coberta objetivamente pelos riscos próprios da contratação (Enunciado 366 do Conselho da Justiça Federal – CJF). Nesse sentido, firme é a posição do STJ no sentido de que a variação do câmbio do real frente ao dólar não configura cláusula imprevisível.
Por fim, o rigor do disposto no art. 478 exige para a revisão contratual que haja a configuração de “extrema vantagem para a outra parte”. Trata-se de requisito que inviabiliza inúmeros casos de revisão contratual, especialmente pelo ônus da prova que será conferido ao interessado na revisão. Um exemplo disso advém da retração do consumo em meio à pandemia causada pelo coronavírus. Um comerciante terá dificuldades em cumprir os termos de avenças que tenha assumido com fornecedores. Ocorre que, nesse caso, o fornecedor não fruirá de nenhuma vantagem adicional caso o primeiro empreendedor cumpra os termos iniciais do contrato, situação que impede o comerciante a buscar aa revisão com base no art. 478 do CC.
Daí advém a crítica formulada por Ruy Rosado de Aguiar Júnior de que o requisito da “extrema vantagem” para o outro contraente é “inadequado para a caracterização da onerosidade, que existe sempre que o efeito do fato novo pesar demais sobre um, pouco importando que disso decorra ou não vantagem ao outro” (Gonçalves, 2016, pág. 214).
Por sua vez, o art. 480 do Código Civil dispõe que a parte pode pleitear a redução da prestação ou alteração do modo de execução, mas faz a ressalva, em sua parte inicial, de que essa previsão é aplicável aos contratos cujas obrigações couberem a apenas uma das partes (contratos unilaterais – como a doação), circunstância que restringe demasiadamente a aplicação da norma.
5. A revisão de contratos empresariais regidos pelo Código Civil com enfoque em uma interpretação teleológica
Como visto no tópico anterior, há uma grande dificuldade em operacionalizar a revisão contratual com base nos dispositivos especificamente criados para esse desiderato pelo Código Civil. Não seria demais afirmar que a exigência de que a parte demonstre a existência de extrema vantagem para o contraente oposto (art. 478) torna inócuo o dispositivo para a maioria dos negócios jurídicos celebrados entre empresários.
Valendo-se mais uma vez dos ensinamentos de Ruy Rosado de Aguiar Júnior, infere-se que o disposto no art. 478 deve ser usado de forma apenas “subsidiária” (Gonçalves, 2016, pág. 214).
Isso porque o Código Civil deixou inúmeras cláusulas gerais em seu texto, como a função social do contrato e a boa-fé, cujas finalidades a serem alcançadas estão acima da aplicação literal de dispositivos compostos por regras.
Por outro lado, o próprio Código Civil traz em seu bojo dispositivo que tende a solucionar as pendências envolvendo a revisão dos contratos. Trata-se do art. 317, cuja localização está disposta fora do título que disciplina a teoria geral dos contratos, encontrando-se em meio às normas referentes ao pagamento das obrigações (título III do livro I da parte especial do Código Civil). Segundo o dispositivo em comento:
“Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.”
A clareza da redação não deixa dúvidas: o único requisito para a revisão de um negócio jurídico é a ocorrência de um fato imprevisível que torne desproporcional a obrigação. Recorda-se que o contrato é, em suma, uma fonte de obrigação, razão por que se encontra albergado pela citada norma.
Ponto relevante para a análise da revisão dos contratos empresariais em meio à crise do coronavírus diz respeito à hipótese em que a parte já se encontrava em mora quando da eclosão da pandemia. Isso porque o artigo 399 do CC dispõe que o “devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação, embora essa impossibilidade resulte de caso fortuito ou de força maior, se estes ocorrerem durante o atraso”. Sobre o tema, importa lembrar que a mora não impede a revisão dos contratos, pois o objeto da revisão é a justiça contratual, não podendo ser impedida pelo inadimplemento contratual (Tartuce, 2016, pág. 234).
A propósito, o disposto na Súmula 380 do STJ (“A simples propositura da ação de revisão de contrato não inibe a caracterização da mora do autor”) não contrapõe dita interpretação acerca da mora. Pelo contrário: a existência do inadimplemento não se confunde com o objeto da revisão contratual baseada em um fato imprevisível.
A facilitação da revisão de contratos empresariais em decorrência de uma contingência, como é a representada pela pandemia do coronavírus, atende ao pressuposto de adoção de uma interpretação teleológica do direito, em consonância com o que dispõe o art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (“na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”).
O fim social e o bem comum representam a síntese da vida ética em comunidade, sendo que “o pressuposto e, ao mesmo tempo, a regra básica dos métodos teleológicos é de que sempre é possível atribuir um propósito às normas” (Ferraz Jr., 2018, pág. 315).
Não se pode perder de vista que os contratos devem atender à sua função social, mesmo que sejam paritários e simétricos. Ao mesmo tempo, há o desafio pelo cumprimento do princípio da preservação das empresas em meio às circunstâncias negativas oriundas da pandemia. Nesse sentido, a aplicação do art. 317 do Código Civil aos contratos empresariais se encontra em sintonia com a interpretação teleológica das normas de direito civil.
Conclusão
O mundo ainda tenta entender como se portar frente à pandemia causada pelo novo coronavírus. Ao mesmo tempo em que a ciência empenha-se na busca por remédio e vacina eficazes, as medidas restritivas impostas pelas autoridades causam consequências severas nos rumos econômicos de praticamente todas as nações do globo.
Não há dúvida de que o maior prejuízo nesse cenário é o de vidas humanas. Todavia, em paralelo a essa questão, encontra-se a análise dos reflexos causados pela pandemia no mundo que virá. Dentre eles, encontra-se a recessão econômica que assolará grandes, médias e pequenas empresas, além de empreendedores individuais, empregados e trabalhadores informais.
O estudo dos temas relevantes ao direito faz-se necessário desde já, a fim de que se possa preparar o terreno para aquilo que o futuro encaminha. A impossibilidade de cumprimentos contratuais em seus termos inicialmente avençados será uma consequência incontornável diante da interrupção do ciclo econômico. E a ampliação dos conceitos atinentes à relativização da obrigatoriedade contratual é medida que se impõe, a fim de que se encontre o equilíbrio a propiciar a preservação das empresas.
Não se está propondo um “calote” generalizado. Pelo contrário. Somente a revisão dos contratos permitirá que tanto contratantes quanto contratados sobrevivam no mercado. Afinal, é mútua a relação de dependência. Ao judiciário competirá a análise casuística, com base na possibilidade e na necessidade de cada um dos polos negociais. Mas, além disso, cientes da plena aplicabilidade da revisão de contratos empresariais com base nos artigos 6º, inciso V, do CDC e 317 do CC, conforme demostrou-se neste artigo, revela-se de máxima importância que os próprios empresários tomem a iniciativa de renegociarem seus termos contratuais sem a necessidade de intervenção do judiciário, já sobrecarregado por ações de todas as naturezas.
Sugere-se, ainda, caso não haja entendimento direto entre as partes, o uso de meios extrajudiciais de solução de conflitos. Nesse sentido, aliás, é a orientação emanada pelo Novo Código de Processo Civil, que no art. 3º, §3º, prevê que “A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial”.
Referências
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